segunda-feira, 22 de julho de 2013

2 - CATELYN


Catelyn nunca gostara daquele bosque sagrado. Nascera entre os Tully, em Correrrio, mais ao Sul, nas margens do Ramo Vermelho do Tridente. O bosque sagrado que lá havia era um jardim, luminoso e arejado, onde grandes árvores de pau-brasil espalhavam sombras sarapintadas por córregos que rumorejavam entre as margens, aves cantavam em ninhos escondidos e o ar era perfumado pelo odor de flores.
Os deuses de Winterfell mantinham um tipo diferente de bosque. Era um lugar escuro e primordial, três acres de floresta antiga, intocada ao longo de dez mil anos, enquanto o castelo se levantava a toda sua volta. Cheirava a terra úmida e a decomposição. Ali não crescia o pau-brasil. Aquele era um bosque de obstinadas árvores sentinelas, revestidas de agulhas cinza-esverdeadas, de poderosos carvalhos, de árvores de pau-ferro tão velhas como o próprio reino. Ali, espessos troncos negros enroscavam-se uns aos outros, enquanto ramos retorcidos teciam um denso dossel elevado e raízes deformadas batalhavam sob o solo. Aquele era um lugar de profundo silêncio e sombras meditativas, e os deuses que ali viviam não tinham nomes.
Mas ela sabia que naquela noite encontraria ali seu marido. Sempre que ele tirava a vida de um homem, procurava depois o sossego do bosque sagrado. Catelyn fora ungida com os sete óleos e fora-lhe dado o nome no arco-íris de luz que enchia o septo de Correrrio. Pertencia à Fé, tal como o pai e o avô, e o pai deste antes dele. Seus deuses possuíam nomes, e seus rostos eram-lhe tão familiares como os de seus pais. O serviço religioso era um septão com um turíbulo, o cheiro do incenso, um cristal de sete lados animado com luz, vozes erguidas em canto. Os Tully mantinham um bosque sagrado, como todas as grandes casas, mas era apenas um lugar para passear, ler ou ficar deitado ao sol. A prece pertencia ao septo.
Por ela, Ned tinha construído um pequeno septo onde podia cantar às sete caras de deus, mas o sangue dos Primeiros Homens ainda corria nas veias dos Stark, e seus deuses eram os antigos, os deuses sem nome nem rosto da mata verde que partilhavam com os filhos desaparecidos da floresta. No centro do bosque, um antigo represeiro reinava pensativo sobre uma pequena lagoa onde as águas eram negras e frias.
Ned chamava-lhe "a árvore-coração". A casca do represeiro era branca como osso e suas folhas, vermelhas como um milhar de mãos manchadas de sangue. Uma cara tinha sido esculpida no tronco da grande árvore, de traços compridos e melancólicos, com os olhos profundamente escavados, vermelhos de seiva seca e estranhamente vigilantes. Aqueles olhos eram velhos; mais velhos do que a própria Winterfell.
Se as lendas falavam a verdade, tinham visto Brandon, o Construtor, assentar a primeira pedra; tinham visto as muralhas de granito do castelo crescer à sua volta. Dizia-se que os filhos da floresta tinham esculpido as caras nas árvores durante os séculos de alvorada, antes da chegada dos Primeiros Homens, vindos do mar estreito.
No sul, os últimos represeiros tinham sido derrubados ou queimados havia mil anos, exceto na Ilha das Caras, onde os homens verdes mantinham sua vigilância silenciosa e as coisas eram diferentes. Aqui cada castelo possuía seu bosque sagrado, e cada bosque sagrado tinha sua árvore--coração, e cada árvore-coração, seu rosto.
Catelyn encontrou o marido sob o represeiro, sentado numa pedra coberta de musgo. Tinha Gelo, a espada, pousada sobre as coxas, e limpava-lhe a lâmina naquelas águas, negras como a noite. Mil anos de húmus jaziam numa grossa camada no solo do bosque sagrado, engolindo o som dos pés da mulher, mas os olhos vermelhos do represeiro pareciam segui-la enquanto se aproximava.
- Ned - ela chamou, com suavidade. Ele ergueu a cabeça para olhá-la.
- Catelyn - disse. Sua voz era distante e formal. - Onde estão as crianças? - Ele sempre lhe perguntava aquilo.
- Na cozinha, discutindo nomes para as crias de lobo - ela estendeu o manto sobre o chão da floresta e sentou-se junto à lagoa, de costas voltadas para o represeiro. Podia sentir os olhos a observá-la, mas fez o melhor que pôde para ignorá-los.
- Arya já está apaixonada, e Sansa, enfeitiçada e apiedada, mas Rickon não está muito seguro.
- Tem medo? - Ned perguntou.
- Um pouco - admitiu ela. - Só tem três anos. Ned franziu as sobrancelhas.
- Ele tem de aprender a enfrentar seus medos. Não terá três anos para sempre. E o inverno está para chegar.
- Sim - concordou Catelyn. As palavras provocaram-lhe um arrepio, como sempre. As palavras Stark. Todas as casas nobres tinham as suas palavras. Lemas de família, pedras de toque, espécies de orações, que alardeavam honra e glória, prometiam lealdade e verdade, juravam fé e coragem. Todas, menos a dos Stark. O inverno está para chegar, diziam as palavras Stark. Refletiu sobre como aqueles nortenhos eram um povo estranho, e já não era a primeira vez que o fazia.
- O homem morreu bem, posso lhe assegurar - disse Ned.
Tinha na mão um bocado de couro oleado com o qual fazia percorrer com leveza a espada enquanto falava, polindo o metal até soltar um brilho escuro. - Fiquei contente por causa de Bran. Teria ficado orgulhosa dele.
- Estou sempre orgulhosa de Bran - Catelyn respondeu, observando a espada enquanto ele a esfregava. Conseguia ver as ondulações profundas do aço, onde o metal fora dobrado sobre si próprio cem vezes durante a forja. Catelyn não sentia qualquer amor por espadas, mas não podia negar que Gelo possuía sua beleza. Tinha sido forjada em Valíria antes de a destruição ter caído sobre a antiga cidade franca, quando os ferreiros trabalhavam seus metais tanto com feitiços como com martelos. Tinha já quatrocentos anos, e era tão aguçada como no dia em que fora forjada. O nome que ostentava era ainda mais antigo, um legado da era dos heróis, quando os Stark eram reis no Norte.
- Foi o quarto este ano - disse Ned sombriamente. - O pobre homem estava meio louco. Algo lhe incutiu um medo tão profundo que minhas palavras não o alcançaram - suspirou. - Ben escreveu-me dizendo que a força da Patrulha da Noite já não tem mil homens. Não são só deserções. Tem também perdido homens nas patrulhas.
- São os selvagens? - ela perguntou.
- Quem mais poderia ser? - Ned ergueu Gelo e observou o aço frio ao longo de todo seu comprimento. - E só vai piorar. Pode chegar o dia em que eu não tenha escolha a não ser reunir os vassalos e marchar para o norte a fim de lidar de uma vez por todas com esse Rei-para-lá-da-Muralha.
- Para lá da Muralha? - a idéia fez Catelyn estremecer.
Ned viu o terror no seu rosto.
- Mance Rayder não é nada que devamos temer.
- Há coisas mais escuras para lá da Muralha - ela olhou de relance a árvore-coração às suas costas, a casca clara e os olhos vermelhos, observando, escutando, pensando seus longos e lentos pensamentos.
O sorriso dele era gentil.
- Você ouve em demasia as histórias da Velha Ama. Os Outros estão tão mortos como os filhos da floresta, desaparecidos há oito mil anos. Meistre Luwin lhe diria que nunca sequer chegaram a estar vivos. Nenhum homem vivo alguma vez viu um.
- Até hoje de manhã, nenhum homem vivo tinha visto um lobo gigante - recordou Catelyn.
- Já devia saber que não se pode discutir com uma Tully - ele disse com um sorriso triste e devolveu Gelo à sua bainha. - Não veio até aqui me contar histórias de embalar. Sei bem como gosta pouco deste lugar. Que se passa, minha senhora?
Catelyn tomou nas suas a mão do marido.
- Hoje chegaram dolorosas novas, meu senhor. Não quis incomodá-lo até se ter purificado - não havia maneira de suavizar o golpe, e ela o disse sem rodeios. - Lamento tanto, meu amor. Jon Arryn está morto.
Os olhos dele encontraram os dela, e Catelyn viu como lhe custou, como sabia que custaria. Na juventude, Ned tinha sido acolhido no Ninho da Águia, e Lorde Arryn, que não tinha filhos seus, tinha se tornado um segundo pai para ele e para o seu outro protegido, Robert Baratheon. Quando o Rei Aerys Targaryen, o Louco, exigira suas cabeças, o Senhor do Ninho da Águia erguera em revolta os seus estandartes da lua e do falcão em vez de entregar aqueles que jurara proteger.
E um dia, há quinze anos, seu segundo pai tinha se transformado também num irmão, quando ele e Ned se juntaram no septo de Correrrio para desposar duas irmãs, as filhas de Lorde Hoster Tully,
-Jon... - Ned disse. - Esta notícia é segura?
- Trazia o selo do rei, e a carta vinha escrita na caligrafia do próprio Robert. Guardei-a para você. Diz que Lorde Arryn partiu depressa. Nem Meistre Pycelle pôde fazer alguma coisa, mas trouxe o leite da papoula, para que Jon não ficasse por muito tempo em sofrimento.
- Isto foi uma pequena misericórdia, suponho - ele disse.
Catelyn via o pesar em seu rosto, mas mesmo nesse momento seu primeiro pensamento era-lhe dedicado.
- A sua irmã - disse Ned. - E o filho de Jon. Que notícias há deles?
- A mensagem dizia apenas que estavam bem e que tinham regressado ao Ninho da Águia - ela respondeu. - Eu preferia que tivessem ido para Correrrio. O Ninho da Águia é um lugar alto e solitário, e sempre foi o lugar de Jon, não deles. A memória de Lorde Jon assombrará cada pedra. Conheço minha irmã. Ela precisa do conforto da família e dos amigos ao seu redor.
- Seu tio espera no Vale, não é verdade? Ouvi dizer que Jon o nomeou Cavaleiro do Portão. Catelyn anuiu com a cabeça.
- Brynden fará por ela e pelo rapaz o que puder. E algum conforto, mas mesmo assim...
- Vá ter com ela - Ned tentou animá-la. - Leva as crianças. Encha aqueles salões de ruído, gritos e risos. Aquele rapaz precisa de outras crianças a sua volta, e Lysa não deve ficar só na sua dor.
- Gostaria de poder fazer isso - disse Catelyn. - A carta trazia outras notícias. O rei viaja para Winterfell à sua procura.
Ned precisou de um momento para ver o sentido daquelas palavras, mas, quando as compreendeu, a escuridão abandonou seus olhos.
- Robert vem para cá? - quando ela anuiu, um sorriso abriu-se no seu rosto.
Catelyn desejou poder compartilhar da alegria do marido. Mas ouvira o que se dizia pelos pátios; um lobo gigante morto na neve, com um chifre partido na garganta. O terror retorcia-se no seu interior como uma serpente, mas forçou-se a sorrir para aquele homem que amava, aquele homem que não punha fé alguma nos sinais.
- Sabia que te agradaria - disse. - Deveríamos enviar uma mensagem ao seu irmão, na Muralha.
- Sim, claro - ele concordou. - Ben vai querer estar aqui. Direi a Meistre Luwin para enviar sua ave mais rápida - Ned ergueu-se e ajudou a esposa a pôr-se em pé. - Demônios, quantos anos já se passaram? E não nos dá mais notícias do que estas? A mensagem dizia quantos homens traz na comitiva?
- Penso que um cento de cavaleiros, pelo menos, com todos os seus servidores, e vez e meia este número de cavaleiros livres. Cersei e as crianças viajam com eles.
- Robert virá em passo moderado por causa delas - disse Ned. - Ainda bem. Teremos mais tempo para nos preparar.
- Os irmãos da rainha também vêm na comitiva - ela completou.
Ao ouvir aquilo, Ned fez um trejeito. Catelyn sabia que pouca simpatia havia entre ele e a família da rainha. Os Lannister de Rochedo Casterly tinham chegado tarde à causa de Robert, quando a vitória era praticamente certa, e ele nunca os perdoara por isso.
- Bem, se o preço a pagar pela companhia de Robert é uma infestação de Lannister, que seja. Parece que Robert traz metade da corte.
- Aonde o rei vai, o reino segue - ela respondeu.
- Será bom ver as crianças. O mais novo ainda mamava da teta da Lannister da última vez que o vi. Agora deve ter o quê? Cinco anos?
- O Príncipe Tommen tem sete anos. A mesma idade de Bran. Por favor, Ned, tenha tento na língua. Lannister é nossa rainha, e diz-se que seu orgulho cresce a cada ano que passa.
Ned apertou-lhe a mão.
- Terá de haver um festim, bem-composto, com cantores, e Robert vai querer caçar. Enviarei Jory para o sul com uma guarda de honra ao seu encontro, a fim de escoltá-los no caminho até aqui pela estrada do rei. Deuses, como iremos alimentar a todos? Maldito seja o homem. Maldito seja o seu real couro. 

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