- Eu
mesmo o velei - disse Sor Barristan Selmy, olhando o corpo que jazia
na parte de trás da carroça. - Ele não tinha mais ninguém.
Falaram-me que talvez uma mãe, no Vale. A fraca luz da madrugada, o
jovem cavaleiro parecia estar dormindo. Não fora bonito em vida, mas
a morte suavizara-lhe as feições rudemente talhadas, e as irmãs
silenciosas o tinham vestido a sua melhor túnica de veludo, com um
colarinho elevado para cobrir a ruína em que a lança tinha
transformado sua garganta. Eddard Stark olhou seu rosto e perguntou a
si mesmo se teria sido ele o causador da morte do rapaz. Morto por um
vassalo dos Lannister antes que Ned pudesse falar com ele; seria
possível que não passasse de mero acaso? Supôs que nunca chegaria
a saber.
- Hugh
foi escudeiro de Jon Arryn durante quatro anos - prosseguiu Selmy. -
O rei o armou cavaleiro antes de partir para o norte, em memória de
Jon. O rapaz desejava aquilo desesperadamente, mas temo que não
estivesse pronto. Ned dormira mal na noite anterior e sentia um
cansaço maior do que seria de esperar da idade.
- Nenhum
de nós jamais está pronto.
- Para
ser armado cavaleiro?
- Para a
morte - com gentileza, Ned cobriu o rapaz com seu manto, azul
manchado de sangue, debruado por luas crescentes. Refletiu
amargamente que, quando a mãe perguntasse por que razão o filho
estava morto, lhe diriam que tinha lutado em honra da Mão do Rei,
Eddard Stark. - Isto foi desnecessário. A guerra não devia ser um
jogo - Ned virou-se para a mulher que estava ao lado da carroça,
envolta em cinza, com o rosto escondido, apenas os olhos à mostra.
As irmãs silenciosas preparavam os homens para a sepultura, e era má
sorte olhar a morte no rosto.
- Envie
sua armadura para casa, para o Vale. A mãe deve querê-la.
- Vale
uma boa quantia em prata - disse Sor Barristan. - O rapaz mandou-a
forjar especialmente para o torneio. Um trabalho simples, mas bom.
Não sei se acabou de pagar ao ferreiro.
- Pagou
ontem, senhor, e pagou caro - respondeu Ned. E à irmã silenciosa
disse: - Envie a armadura à sua mãe. Tratarei com esse ferreiro - a
mulher fez-lhe uma reverência.
Mais
tarde, Sor Barristan acompanhou Ned até o pavilhão do rei. O
acampamento começava a se agitar. Salsichas gordas chiavam e
pingavam sobre fogueiras, temperando o ar com os odores do alho e da
pimenta. Jovens escudeiros caminhavam apressados por ali,
conversando, enquanto seus senhores acordavam, bocejando e
espreguiçando-se, saudando o dia.
Um criado
com um ganso debaixo do braço dobrou o joelho ao vê-los.
"Senhores", murmurou, enquanto o ganso grasnava e lhe
bicava os dedos. Os escudos exibidos à porta de todas as tendas
anunciavam seus ocupantes: a águia de prata de Guardamar, o campo de
rouxinóis de Bryce Caron, um cacho de uvas para os Redwyne, o javali
malhado, o touro vermelho, a árvore flamejante, o carneiro branco, a
espiral tripla, o unicórnio roxo, as donzelas dançantes, a víbora
negra, as torres gêmeas, a coruja chifruda e, por fim, os brasões
de um branco puro da Guarda Real, brilhando como a madrugada.
- O rei
pretende participar hoje do corpo a corpo - disse Sor Barristan
enquanto passavam pelo escudo de Sor Meryn, com a tinta maculada por
um profundo golpe onde a lança de Loras Tyrell marcara a madeira ao
derrubá-lo da sela.
- Sim -
disse Ned em tom sombrio. Jory acordara-o na noite anterior para lhe
dar a notícia. Não admirava que tivesse dormido tão mal.
O olhar
de Sor Barristan estava perturbado.
- Diz-se
que as belezas da noite esmorecem de madrugada, e que os filhos do
vinho são frequentemente renegados à luz da manhã.
- É o
que dizem - concordou Ned - mas não de Robert - outros homens
poderiam reconsiderar as palavras ditas em bravatas ébrias, mas
Robert Baratheon as recordaria e, recordando-as, nunca recuaria.
O
pavilhão do rei erguia-se perto da água, e as neblinas matinais que
o rio gerava tinham-no rodeado de colunas cinza. Era todo de seda
dourada, a maior e mais imponente estrutura no acampamento. A porta,
o martelo de batalha de Robert encontrava-se em exibição, junto a
um imenso escudo de ferro decorado com o veado coroado da Casa
Baratheon.
Ned
tivera esperança de encontrar o rei ainda na cama, num sono ensopado
em vinho, mas a sorte não estava com ele. Encontraram Robert bebendo
cerveja de um corno polido e rugindo seu descontentamento com dois
jovens escudeiros que tentavam atar-lhe a armadura.
- Vossa
Graça - dizia um, quase em lágrimas - é muito pequena, não vamos
conseguir - atrapalhou-se, e o gorjal que tentava prender em torno do
grosso pescoço de Robert caiu ao chão.
- Pelos
sete infernos! - Robert praguejou. - Terei de fazer tudo eu mesmo?
Vão os dois para o raio que os parta. Pegue isso. Não fique aí de
boca aberta, Lancei, pegue isso! - o rapaz deu um salto e o rei
reparou na companhia. - Olhe para estes imbecis, Ned. Minha mulher
insistiu que tomasse estes dois como escudeiros, e são menos que
inúteis. Sequer são capazes de pôr a armadura de um homem sobre
seu corpo. Escudeiros, dizem eles. Eu digo que são mais é criadores
de porcos vestidos de seda.
Ned não
precisou mais que uma olhadela para compreender a dificuldade.
- Os
rapazes não estão em falta - disse ao rei. - Você está gordo
demais para a sua armadura, Robert.
Robert
Baratheon bebeu um longo trago de cerveja, atirou o corno vazio para
cima de suas peles de dormir, limpou a boca nas costas da mão e
disse em tom sombrio:
- Gordo?
Gordo, é isso? É assim que você fala com seu rei? - e soltou sua
gargalhada, súbita como uma tempestade. - Ah, maldito seja, Ned, por
que é que você sempre tem razão?
Os
escudeiros sorriram nervosamente, até que o rei se virou para eles.
- Vocês.
Sim, vocês dois. Ouviram a Mão. O rei está muito gordo para a sua
armadura. Vão à procura de Sor Aron Santagar. Digam-lhe que preciso
do esticador de peitorais. Já! O que estão esperando?
Os
rapazes tropeçaram um no outro com a pressa de sair da tenda. Robert
conseguiu manter uma cara severa até eles saírem. Então caiu numa
cadeira, tremendo de tanto rir.
Sor
Barristan Selmy riu com ele. Até Eddard Stark deu um sorriso. Mas os
pensamentos mais graves imiscuíam-se sempre. Não conseguiu deixar
de reparar nos dois escudeiros: rapazes bem-apessoados, louros e bem
constituídos. Um tinha a idade de Sansa, com longos caracóis
dourados; o outro teria talvez uns quinze anos, cabelos cor de areia,
um fio de bigode e os olhos verde-esmeralda da rainha.
- Ah,
gostaria de estar lá para ver a cara de Santagar - disse Robert. -
Espero que tenha a esperteza de enviá-los a outra pessoa qualquer.
Deveríamos mantê-los correndo o dia inteiro!
- Aqueles
rapazes - Ned lhe perguntou- são Lannister?
Robert
anuiu, limpando as lágrimas dos olhos.
- Primos.
Filhos do irmão de Lorde Tywin, Um dos mortos. Ou talvez o vivo,
agora que penso nisso. Não me lembro. Minha esposa vem de uma
família muito grande, Ned.
Uma
família muito ambiciosa, Ned pensou. Nada tinha contra os
escudeiros, mas perturbava-o ver Robert rodeado por parentes da
rainha, tanto acordado quanto dormindo. O apetite dos Lannister por
cargos e honrarias parecia não conhecer limites,
- Diz-se
que Vossa Graça e a rainha trocaram palavras zangadas ontem à
noite. A vontade de rir coalhou no rosto de Robert.
- A
mulher tentou me proibir de participar do corpo a corpo. Agora está
amuada no castelo, maldita seja. Sua irmã nunca teria me
envergonhado assim.
- Não
chegou a conhecer Lyanna como eu conheci, Robert. Você viu sua
beleza, mas não o ferro que tinha por baixo. Ela lhe teria dito que
não tem nada a fazer no corpo a corpo.
- Também
você? - o rei franziu a sobrancelha. - É um homem amargo, Stark.
Tempo demais no norte, todos os fluidos congelaram dentro de você.
Pois bem, os meus continuam a correr - deu uma batida no peito para
prová-lo.
- É o
rei - recordou-lhe Ned.
-
Sento-me no maldito trono de ferro quando tem de ser. Isto quer dizer
que não tenho os mesmos apetites dos outros homens? Um pouco de
vinho de vez em quando, uma mulher a gemer na cama, a sensação de
ter um cavalo entre as pernas? Pelos sete infernos, Ned, quero bater
em alguém.
Sor
Barristan Selmy interveio.
- Vossa
Graça - disse não é conveniente que o rei participe do corpo a
corpo. Não seria uma competição justa. Quem se atreveria a
atingi-lo?
Robert
pareceu sinceramente surpreso.
- Ora,
todos eles, que raio. Se puderem. E o último homem em pé...
- ...
será você - concluiu Ned. Compreendera de imediato que Selmy
atingira o ponto certo. Os perigos do corpo a corpo eram apenas um
atrativo para Robert, mas aquilo lhe tocou o orgulho. - Sor Barristan
tem razão. Não há um homem nos Sete Reinos que se atreva a
arriscar desagradá-lo por tê-lo ferido.
O rei
pôs-se em pé, de rosto rubro.
- Está
me dizendo que aqueles arrogantes covardes vão me deixar ganhar?
- Com
toda certeza - disse Ned, e Sor Barristan Selmy abaixou a cabeça num
acordo silencioso.
Por um
momento, Robert ficou tão zangado que não conseguiu falar.
Atravessou a tenda, rodopiou, voltou a atravessá-la, com o rosto
sombrio e irado. Apanhou do chão o peitoral da armadura e o
arremessou a Barristan Selmy numa fúria sem palavras. Selmy
esquivou-se,
- Saia -
disse então o rei, friamente. - Saia antes que o mate.
Sor
Barristan saiu com rapidez. Ned preparava-se para segui-lo quando o
rei voltou a falar.
- Você
não, Ned.
Ned
virou-se. Robert recuperou o corno, encheu-o com cerveja, que tirou
de um barril que se encontrava a um canto da tenda, e o arremessou a
Ned.
- Bebe -
disse ele em tom brusco.
- Não
tenho sede...
- Bebe. É
seu rei quem ordena.
Ned virou
o corno e bebeu. A cerveja era negra e espessa, tão forte que fazia
arder os olhos. Robert voltou a se sentar.
- Maldito
seja, Ned Stark. Você e Jon Arryn, amei a ambos. E que fizeram de
mim? Você é que devia ter sido rei, você ou Jon.
- A mais
forte pretensão era sua, Vossa Graça.
-
Disse-lhe para beber, não para discutir. Já que me fez rei, podia
ao menos ter a cortesia de me escutar enquanto falo, maldito seja.
Olhe para mim, Ned. Olhe para o que ser rei fez de mim. Deuses, gordo
demais para a minha armadura, como foi que cheguei a isto?
-
Robert...
- Beba e
fique quieto, o rei está falando. Juro-lhe, nunca me senti tão vivo
como quando estava ganhando este trono, nem tão morto como agora que
o possuo. E Cersei... devo-a a Jon Arryn. Não tinha nenhum desejo de
casar depois de Lyanna me ter sido roubada, mas Jon disse que o reino
precisava de um herdeiro. Cersei Lannister seria um bom partido, ele
me disse, me ligaria a Lorde Tywin para o caso de Viserys Targaryen
tentar recuperar o trono do pai - o rei balançou a cabeça. -
Adorava aquele velho, juro, mas agora penso que era um idiota maior
que o Rapaz Lua. Ah, Cersei é adorável de se contemplar, de
verdade, mas fria... pelo modo como se defende na cama, diria que tem
todo o ouro de Rochedo Casterly entre as pernas. Dê-me essa cerveja
se não for beber - tomou o corno, virou-o, arrotou e limpou a boca.
- Lamento pela sua filha, Ned. De verdade. Refiro-me ao lobo. Meu
filho estava mentindo, sou capaz de apostar a alma nisso. Meu
filho... você ama seus filhos, não é verdade?
- De todo
o coração - Ned respondeu.
-
Deixe-me lhe contar um segredo, Ned. Mais de uma vez sonhei em
renunciar à coroa. Embarcar para as Cidades Livres com meu cavalo e
meu martelo, passar o tempo fazendo guerra e entre vadias. Foi para
isso que nasci. O rei mercenário. Como me adorariam os cantores!
Sabe o que me impediu? A ideia de ver Joffrey no trono, com Cersei
atrás dele a segredar-lhe ao ouvido. Meu filho. Como pude fazer um
filho assim, Ned?
- Ele não
passa de um rapaz - disse Ned desajeitadamente. Pouco gostava de
Príncipe Joffrey, mas percebia a dor na voz de Robert. - Esqueceu de
como você era bravo na idade dele?
- Não me
perturbaria se ele fosse bravo, Ned. Não o conhece tão bem como eu
- suspirou e balançou a cabeça. - Ah, talvez tenha razão. Jon
perdeu a paciência comigo com bastante frequência e, no entanto,
acabei por me tornar um bom rei - Robert olhou para Ned e franziu a
sobrancelha perante seu silêncio. - Agora pode falar e concordar.
- Vossa
Graça... - Ned começou cuidadosamente.
Robert
deu-lhe uma palmada nas costas.
- Ah, diz
que sou melhor rei que Aerys e terminamos o assunto. Você nunca
conseguiu mentir por amor ou por honra, Ned Stark. Ainda sou novo, e
agora que está aqui comigo as coisas serão diferentes. Tornaremos
este reinado num que seja digno de canções, e que os Lannister vão
para os sete infernos. Sinto cheiro de bacon. Quem lhe parece que
será nosso campeão hoje? Viu o filho de Mace Tyrell? Chamam-lhe o
Cavaleiro das Flores, Ora, aí está um filho que qualquer homem
ficaria orgulhoso de reclamar. No último torneio, fez o Regicida
cair sobre sua dourada garupa, devia ter visto a cara da Cersei. Ri
até me doer o peito. Renly diz que ele tem uma irmã, uma donzela de
catorze anos, adorável como uma madrugada...
Quebraram
o jejum com pão escuro, ovos de ganso cozidos, peixe frito com
cebolas e bacon, numa mesa montada junto à margem do rio. A
melancolia do rei dissipou-se com a névoa da manhã e não demorou
muito até Robert se tornar amistoso, recordando uma manhã no Ninho
da Águia, quando eram rapazes, enquanto comia uma laranja.
- ...
tinha dado a Jon um barril de laranjas, lembra-se? Só que tinham
apodrecido, e por isso atirei a minha por cima da mesa e atingi Dacks
bem no nariz. Lembra-se do escudeiro perebento de Redfort? Atirou-me
uma de volta e, antes que Jon pudesse sequer soltar um peido, havia
laranjas voando pelo Salão Grande em todas as direções - o rei riu
tumultuosamente, e até Ned sorriu ao recordar.
Era este
o rapaz com quem tinha crescido, pensou; era este o Robert Baratheon
que conhecera e amara. Se conseguisse provar que os Lannister estavam
por trás do ataque a Bran, provar que tinham assassinado Jon Arryn,
este homem escutaria. Então Cersei cairia, e com ela o Regicida, e
se Lorde Tywin se atrevesse a sublevar o Oeste, Robert o esmagaria
tal como esmagara Rhaegar Targaryen no Tridente. Via isso com toda
clareza.
Há muito
tempo que Eddard Stark não comia tão bem, e depois seus sorrisos
chegaram com maior facilidade e frequência, até a hora de retomar o
torneio, Ned acompanhou o rei até o terreno das justas. Prometera
assistir com Sansa aos confrontos finais; Septã Mordane sentia-se
doente, e a filha estava determinada a não perder o fim das justas.
Ao acompanhar Robert ao seu lugar, notou que Cersei Lannister
decidira não comparecer; o lugar ao lado do rei estava vago.
Isto
também deu a Ned motivos de esperança. Abriu caminho até onde a
filha estava sentada e a encontrou no momento em que as trombetas
soavam para a primeira justa do dia. Sansa estava tão absorta que
quase pareceu não notar sua chegada.
Sandor
Clegane foi o primeiro cavaleiro a aparecer. Trazia um manto
verde-oliva sobre a armadura de um cinza-fuliginoso. O manto e o elmo
em forma de cabeça de cão eram as suas únicas concessões à
ornamentação.
- Cem
dragões de ouro pelo Regicida - Mindinho anunciou sonoramente quando
Jaime Lannister entrou na arena, montando um elegante cavalo de
batalha baio puro-sangue, que trazia uma cobertura de cota de malha
dourada, e Jaime cintilava da cabeça aos pés. Até a lança tinha
sido feita com a madeira dourada das Ilhas do Verão.
- Está
apostado - gritou de volta Lorde Renly. - Cão de Caça traz hoje um
ar faminto.
- Mesmo
os cães famintos sabem que não é boa ideia morder a mão que os
alimenta - Mindinho gritou secamente.
Sandor
Clegane fez cair o visor com um clac audível e tomou posição. Sor
Jaime atirou um beijo a uma mulher qualquer que estava entre os
plebeus, abaixou com cuidado o visor e encaminhou-se para a ponta da
arena. Os dois homens abaixaram as lanças.
Nada
seria melhor para Ned Stark do que ver ambos perder, mas Sansa
observava de olhos úmidos e ansiosa. A galeria erguida à pressa
estremeceu quando os cavalos romperam a galope. Cão de Caça
inclinou-se para a frente enquanto avançava, com a lança firme como
uma rocha, mas Jaime mudou habilmente de posição no instante
anterior ao impacto. A ponta da lança de Clegane foi inofensivamente
atirada contra o escudo dourado com o desenho do leão, enquanto a do
Regicida atingia o adversário em cheio. A madeira estilhaçou-se e
Cão de Caça cambaleou, lutando para se manter sentado. Sansa
prendeu a respiração, Uma rude aclamação ergueu-se entre os
plebeus.
- Estou
aqui pensando em que poderei gastar seu dinheiro - gritou Mindinho a
Lorde Renly.
Cão de
Caça conseguiu manter-se sobre a sela. Fez seu cavalo dar meia-volta
com dureza e regressou à arena para a segunda passagem. Jaime
Lannister atirou ao chão a lança quebrada e apanhou uma nova,
brincando com o escudeiro. Cão de Caça esporeou o cavalo para um
galope duro. Lannister avançou para enfrentá-lo. Desta vez, quando
Jaime Lannister mudou de posição, Sandor Clegane mudou com ele.
Ambas as lanças explodiram, e quando os estilhaços assentaram, um
baio puro-sangue sem cavaleiro trotava para longe em busca de grama,
enquanto Sor Jaime Lannister rolava na terra, dourado e amassado.
Sansa
disse:
- Eu
sabia que Cão de Caça ia ganhar.
Mindinho
a ouviu.
- Se sabe
quem vai ganhar o segundo encontro, fale agora, antes que Lorde Renly
me depene - ele gritou para ela. Ned sorriu.
- É uma
pena que o Duende não esteja aqui conosco - disse Lorde Renly. -
Teria ganhado o dobro.
Jaime
Lannister estava de novo em pé, mas seu ornamentado elmo de leão
tinha sido torcido e amassado na queda, e agora não conseguia
tirá-lo. A plebe gritava e apontava, os senhores e as senhoras
tentavam abafar o riso, sem conseguir, e, sobre toda aquela
algazarra, Ned ouvia o Rei Robert às gargalhadas, mais alto que
todos os demais. Por fim, tiveram de levar o Leão de Lannister a um
ferreiro, cego e aos tropeções.
Por essa
altura, Sor Gregor Clegane já estava em posição no topo da arena.
Era enorme, o maior homem que Eddard Stark já vira, Robert Baratheon
e os irmãos eram todos homens grandes, tal como Cão de Caça, e em
Winterfell havia um ajudante de cavalariça simplório chamado Hodor
que era maior que todos eles, mas o cavaleiro a quem chamavam
Montanha Que Cavalga teria olhado de cima para Hodor.
Devia ter
por volta de dois metros e trinta, com ombros maciços e braços tão
grossos como troncos de pequenas árvores. Seu cavalo de batalha
parecia um pônei entre suas pernas cobertas de armadura, e a lança
que trazia parecia tão pequena como um cabo de vassoura.
Ao
contrário do irmão, Sor Gregor não vivia na corte. Era um homem
solitário que raramente saía de suas terras, exceto para travar
guerras e participar de torneios. Estivera com Lorde Tywin quando
Porto Real caíra, era então um cavaleiro recém-armado de dezessete
anos, mas já notável pelo tamanho e pela sua implacável
ferocidade. Havia quem dissesse que fora Gregor quem atirara a cabeça
do príncipe criança Árgon Targaryen contra uma parede e quem
murmurasse que depois disso violara a mãe, a princesa Elia, de
Dorne, antes de lhe cravar a espada. Não se diziam essas coisas ao
alcance dos ouvidos de Gregor.
Ned Stark
não se lembrava de alguma vez ter falado com o homem, embora Gregor
o tivesse acompanhado durante a rebelião de Balon Greyjoy, um
cavaleiro no meio de milhares. Observou-o inquieto. Não era seu
costume dar grande atenção a mexericos, mas as coisas que se diziam
de Sor Gregor eram mais que sinistras. Preparava-se para casar pela
terceira vez, e ouviam-se sombrios sussurros sobre as mortes das duas
primeiras esposas. Dizia-se que sua fortaleza era um lugar sombrio
onde criados desapareciam para nunca mais serem vistos, e até os
cães tinham medo de entrar no salão. E tinha havido uma irmã que
morrera jovem em estranhas circunstâncias, e o fogo que desfigurara
o irmão, e o acidente de caça que matara o pai. Gregor herdara a
fortaleza, o ouro e as propriedades da família. O irmão mais novo,
Sandor, partira no mesmo dia para servir os Lannister como cavaleiro
juramentado, e dizia-se que nunca mais regressara, nem mesmo para
visita.
Quando o
Cavaleiro das Flores fez sua entrada, um murmúrio percorreu a
multidão, e Ned ouviu o sussurro fervente de Sansa:
- Ah, ele
é tão lindo.
Sor Loras
Tyrell era esbelto como um junco, vestido numa fabulosa armadura de
prata polida até cegar, gravada com uma filigrana de sinuosas
trepadeiras negras e minúsculos miosótis azuis. A plebe percebeu,
no mesmo instante que Ned, que o azul das flores provinha de safiras;
um suspiro escapou de um milhar de gargantas. Dos ombros do rapaz
pendia o manto pesado. Era tecido de miosótis, miosótis
verdadeiros, centenas de flores frescas entrelaçadas numa pesada
capa de lã.
Seu
corcel era tão esguio como o cavaleiro, uma bela égua cinzenta,
feita para a velocidade. O enorme garanhão de Sor Gregor relinchou
ao captar seu cheiro. O rapaz de Jardim de Cima fez qualquer coisa
com as pernas e o cavalo curveteou de lado, ágil como um dançarino.
Sansa agarrou o braço de Ned.
- Pai,
não deixe que Sor Gregor lhe faça mal - ela pediu. Ned viu que ela
trazia a rosa que Sor Loras lhe dera no dia anterior. Jory também
lhe contara aquilo.
- Aquelas
são lanças de torneio - disse à filha. - São feitas para que se
estilhacem com o impacto, para que ninguém se fira - mas lembrou-se
do rapaz morto na carroça, com seu manto de crescentes, e as
palavras arranharam-lhe a garganta.
Sor
Gregor estava com problemas em controlar o cavalo. O garanhão
berrava e batia com as patas no chão, abanando a cabeça. A Montanha
espetou-lhe ferozmente os calcanhares envolvidos em armadura. O
cavalo empinou-se e quase o derrubou.
O
Cavaleiro das Flores saudou o rei, dirigiu-se à extremidade mais
distante da arena e abaixou a lança, pronto. Sor Gregor trouxe seu
animal até a linha, lutando com as rédeas. E de súbito começou. O
garanhão da Montanha rompeu num galope duro, atirando-se
furiosamente à frente, ao passo que o passo da égua era suave como
o deslizar da seda. Sor Gregor pôs o escudo em posição e
equilibrou a lança com dificuldade, enquanto continuava a lutar para
manter a fogosa montaria numa linha reta e, de repente, Loras Tyrell
estava sobre ele, colocando a ponta da lança precisamente lá, e num
piscar de olho a Montanha estava caindo. Era tão imenso que levou o
cavalo consigo, num emaranhado de aço e carne.
Ned ouviu
aplausos, aclamações, assobios, suspiros chocados, murmúrios
excitados, e sobretudo as ásperas e roufenhas gargalhadas de Cão de
Caça. O Cavaleiro das Flores puxou as rédeas no fim da arena. Sua
lança nem sequer estava partida. As safiras cintilaram ao sol quando
ergueu o visor, sorrindo.
Os
plebeus pareciam ter enlouquecido por ele. No meio do campo, Sor
Gregor Clegane desembaraçou-se e pôs-se de pé, fervendo de raiva.
Arrancou o elmo e esmagou-o contra o chão. Tinha o rosto escuro de
fúria, e os cabelos caíam-lhe nos olhos.
- Minha
espada - gritou para o escudeiro, e o rapaz correu para ele. Nessa
altura o garanhão já estava em pé também. Gregor Clegane matou o
cavalo com um único golpe, de tamanha violência que quase decepou o
pescoço do animal. As aclamações transformaram-se em guinchos num
piscar de olhos. O garanhão caiu de joelhos, berrando enquanto
morria. Mas então Gregor já atravessava a arena a passos largos,
dirigindo-se para Sor Loras Tyrell, de espada ensanguentada em punho.
- Pare-o!
- gritou Ned, mas suas palavras perderam-se no burburinho. Todos
estavam também gritando, e Sansa chorava.
Tudo
aconteceu num ápice, O Cavaleiro das Flores gritava pela espada no
momento em que Sor Gregor empurrou para o lado seu escudeiro e tentou
agarrar as rédeas do cavalo. A égua cheirou sangue e empinou-se.
Loras Tyrell mal se manteve montado. Sor Gregor brandiu a espada, um
violento golpe a duas mãos que atingiu o rapaz no peito e o derrubou
da sela. O corcel fugiu em pânico, enquanto Sor Loras jazia
atordoado no chão. Mas, quando Gregor ergueu a espada para o golpe
fatal, uma voz áspera advertiu: "Deixe-o em paz", e uma
mão revestida de aço atirou-o para longe do rapaz.
A
Montanha rodopiou numa fúria sem palavras, brandindo a espada num
arco mortífero com toda sua maciça força posta no golpe, mas Cão
de Caça aparou o golpe e contra-atacou, e durante aquilo que pareceu
uma eternidade, os dois irmãos trocaram golpes, enquanto um
entontecido Loras Tyrell era ajudado a pôr-se em segurança. Três
vezes Ned viu Sor Gregor lançar violentos golpes no elmo da cabeça
de Cão, mas nem uma vez Sandor deu uma estocada à cara desprotegida
do irmão,
Foi a voz
do rei que pôs fim àquilo... a voz do rei e vinte espadas. Jon
Arryn dissera-lhes que um comandante precisa de uma boa voz de
batalha, e Robert provara no Tridente que era verdade. Era esta a voz
que usava agora.
- PAREM
COM ESTA LOUCURA - trovejou - EM NOME DO SEU REI!
Cão de
Caça caiu sobre um joelho. O golpe de Sor Gregor cortou o ar, e por
fim caiu em si. Deixou cair a espada, olhou intensamente para Robert,
cercado pela sua Guarda Real e uma dúzia de outros cavaleiros e
guardas. Sem uma palavra, virou-se e afastou-se em passo rápido,
abrindo caminho junto a Barristan Selmy com um encontrão.
- Deixe-o
ir - disse Robert, e nesse mesmo momento tudo terminou.
- O
campeão agora é Cão de Caça? - Sansa perguntou a Ned.
- Não -
ele respondeu. - Haverá uma justa final, entre Cão de Caça e o
Cavaleiro das Flores. Mas Sansa afinal tinha razão. Alguns momentos
mais tarde, Sor Loras Tyrell regressou ao campo num simples gibão de
linho e disse a Sandor Clegane:
-
Devo-lhe a vida. O dia é seu, sor.
- Não
sou sor nenhum - respondeu Cão de Caça, mas aceitou a vitória e a
bolsa de campeão e, talvez pela primeira vez na vida, a adoração
dos plebeus. Aclamaram-no quando abandonou a arena para se dirigir ao
seu pavilhão.
Enquanto
Ned caminhava com Sansa para o campo de tiro ao alvo, Mindinho, Lorde
Renly e alguns dos outros juntaram-se a eles,
- Tyrell
tinha de saber que a égua estava no cio - Mindinho dizia. - Juro que
o rapaz planejou tudo. Gregor sempre preferiu enormes garanhões de
mau temperamento, com mais vigor que bom-senso - a idéia parecia
diverti-lo.
Mas não
divertia Sor Barristan Selmy.
- Pouca
honra existe em truques - o velho disse rigidamente.
- Pouca
honra e vinte mil peças de ouro - Lorde Renly sorriu.
Naquela
tarde, um rapaz chamado Anguy, um plebeu, não anunciado, proveniente
da Marca de Dorne, venceu a competição de tiro ao alvo, suplantando
Sor Balon Swann e Jalabhar Xho a cem passos, depois de todos os
outros arqueiros terem sido eliminados a distâncias mais curtas.
Ned
mandou que Alyn o procurasse e lhe oferecesse um lugar na guarda da
Mão, mas o rapaz estava inebriado de vinho, vitória e riquezas com
que nem sonhara, e recusou. O corpo a corpo durou três horas.
Participaram quase quarenta homens, cavaleiros livres, pequenos
cavaleiros e novos escudeiros em busca de uma reputação. Lutaram
com armas embotadas num caos de lama e sangue, em pequenos grupos que
lutavam juntos e depois se viravam uns contra os outros à medida que
as alianças se formavam e eram quebradas, até que apenas um homem
ficou de pé. O vencedor foi o sacerdote vermelho, Thoros de Mys, um
louco que raspava a cabeça e lutava com uma espada em chamas. Já
antes tinha vencido lutas corpo a corpo; a espada em fogo assustava
as montarias dos outros cavaleiros, mas nada assustava Thoros. O
balanço final foi de três membros partidos, uma clavícula
estilhaçada, uma dúzia de dedos esmagados, dois cavalos que tiveram
de ser abatidos e mais cortes, entorses e hematomas do que alguém se
preocupou em contar. Ned ficou imensamente feliz por Robert não ter
participado.
Naquela
noite, no festim, Eddard Stark sentia-se mais esperançoso do que se
sentira havia muito tempo, Robert estava de ótimo humor, não se
viam Lannister em lado nenhum, e até as filhas estavam se portando
bem. Jory trouxera Arya para se juntar a eles e Sansa dirigiu-se à
irmã de maneira agradável.
- O
torneio foi magnífico - suspirou. - Devia ter vindo. Como foi seu
treinamento?
- Estou
toda dolorida - relatou Arya em tom feliz, exibindo, orgulhosa, um
enorme hematoma púrpura que tinha na perna.
- Deve
ser uma principiante horrível - disse Sansa, com ar de dúvida.
Mais
tarde, enquanto Sansa ouvia uma trupe de cantores interpretar a
complexa série de baladas interligadas chamada "Dança dos
Dragões", Ned inspecionou o hematoma da filha.
- Espero
que Forel não esteja sendo muito duro com você.
Arya
equilibrou-se numa perna. Nos últimos tempos, estava ficando muito
melhor naquilo.
- Syrio
diz que cada ferida é uma lição, e cada lição nos torna
melhores.
Ned
franziu a sobrancelha. Aquele Syrio Forel tinha chegado com uma
reputação excelente, e seu brilhante estilo bravosiano adequava-se
bem à lâmina esguia de Arya, mas, mesmo assim... Alguns dias antes,
ela andara vagueando com uma tira de seda negra atada sobre os olhos.
Arya dissera-lhe que Syrio a estava ensinando a ver com os ouvidos, o
nariz e a pele. Antes disso, tinha-a posto para fazer piruetas e
saltos mortais.
- Arya,
tem certeza de que quer persistir nisto?
Ela
confirmou com a cabeça.
- Amanhã
vamos apanhar gatos.
- Gatos -
Ned suspirou. - Talvez tenha sido um erro contratar esse bravosi. Se
quiser, pedirei a Jory para substituí-lo nas suas aulas. Ou posso
ter uma discreta conversa com Sor Barristan Selmy. Quando jovem, foi
o melhor espadachim dos Sete Reinos.
- Não
quero ninguém - disse Arya. - Quero Syrio.
Ned
passou os dedos pelos cabelos. Qualquer mestre de armas decente podia
ensinar a Arya os rudimentos sobre estocadas e paradas sem este
disparate de vendas, rodas e saltos de um pé só, mas conhecia
suficientemente bem a filha mais nova para saber que não havia
discussão com aquela obstinada projeção de queixo.
- Como
quiser - ele respondeu, Certamente iria se cansar daquilo em breve. -
Tente ter cuidado.
- Terei -
ela prometeu solenemente enquanto saltava do pé direito para o
esquerdo num movimento fluido.
Muito
mais tarde, depois de atravessar a cidade com as filhas e colocá-las
em segurança na cama, Sansa com seus sonhos e Arya com seus
hematomas, Ned subiu até os próprios aposentos, no topo da Torre da
Mão. O dia estivera quente, e o quarto fechado estava abafado. Ned
dirigiu-se a janela e abriu as pesadas venezianas a fim de deixar
entrar o ar fresco da noite. Do outro lado do Pátio Grande reparou
no tremeluzente brilho da luz de velas nas janelas de Mindinho.
Já
passava bastante da meia-noite. Junto ao rio, as festas estavam
apenas começando a murchar e morrer. Pegou o punhal e o estudou. A
arma de Mindinho, que Tyrion Lannister ganhara dele numa aposta de
torneio, enviada para matar Bran em seu sono. Por quê? Por que
queria o anão ver Bran morto? Por que alguém ia querer ver Bran
morto? O punhal, a queda de Bran, tudo aquilo estava de algum modo
ligado ao assassinato de Jon Arryn, podia senti-lo nas entranhas, mas
a verdade sobre a morte de Jon permanecia para ele tão envolta em
brumas como quando começara a investigar. Lorde Stannis não voltara
a Porto Real para o torneio. Lysa Arryn mantinha-se em silêncio, por
trás das muralhas do Ninho da Águia. O escudeiro estava morto e
Jory continuava a investigar os prostíbulos. Que tinha ele além do
bastardo de Robert?
Que o
carrancudo aprendiz do armeiro era filho do rei Ned não tinha
dúvida. Os traços dos Baratheon estavam estampados em seu rosto, no
queixo, nos olhos, nos cabelos negros. Renly era novo demais para ser
pai de um rapaz daquela idade. Stannis, demasiado frio e orgulhoso na
sua honra. Gendry tinha de ser de Robert.
Mas, ao
saber tudo isso, o que aprendera? O rei tinha outros filhos
ilegítimos espalhados pelos Sete Reinos. Tinha reconhecido
abertamente um de seus bastardos, um rapaz da idade de Bran, cuja mãe
era bem-nascida. O rapaz estava sendo criado pelo castelão de Lorde
Renly em Ponta Tempestade.
Ned
também recordava a primeira criança gerada por Robert, uma filha
nascida no Vale quando ainda era pouco mais que um rapaz. Uma doce
garotinha; o jovem senhor de Ponta Tempestade a amara perdidamente.
Costumava fazer visitas diárias para brincar com o bebê, muito
depois de ter perdido interesse pela mãe. Era frequente arrastar Ned
para lhe fazer companhia, independente de sua vontade. Compreendeu de
súbito que a menina devia ter agora dezessete ou dezoito anos; mais
velha que Robert era quando nascera. Estranho pensamento.
Cersei
podia não estar contente com as escapadelas do senhor seu esposo,
mas no fim das contas pouco importava se o rei tinha um bastardo ou
uma centena. A lei e o costume poucos direitos davam aos filhos
ilegítimos. Gendry, a moça no Vale, o rapaz em Ponta Tempestade,
nenhum deles podia ameaçar os filhos legítimos de Robert...
Suas
reflexões foram interrompidas por um suave toque na porta.
- Um
homem para vê-lo, senhor - chamou Harwin. - Não quer dizer o nome.
- Mande-o
entrar - Ned respondeu, curioso.
O
visitante era um homem corpulento com botas molhadas e completamente
enlameadas, um pesado manto marrom da ráfia mais grosseira, as
feições escondidas por um capuz, as mãos enfiadas em volumosas
mangas.
- Quem é
você? - Ned perguntou.
- Um
amigo - disse o homem encapuzado numa estranha voz. - Temos de
conversar a sós, Lorde Stark.
A
curiosidade era mais forte que a cautela.
- Harwin,
deixe-nos - ordenou. Só depois de estarem a sós, por trás das
portas fechadas, é que o visitante puxou o capuz para trás.
- Lorde
Varys? - Ned exclamou, estupefato.
- Lorde
Stark - disse Varys polidamente enquanto se sentava.
- Posso
lhe servir uma bebida? - Ned encheu duas taças de vinho do verão e
entregou uma delas a Varys. - Poderia ter passado por você que nunca
o reconheceria - ele disse, incrédulo. Nunca vira o eunuco vestido
de outra coisa que não fosse seda, veludo e os mais ricos damascos;
e este homem cheirava a suor, não a lilases.
- Era
esta a minha maior esperança - Varys respondeu. - Não seria bom se
certas pessoas soubessem que conversamos em particular. A rainha o
vigia de perto. Este vinho é de primeira escolha. Obrigado.
- Como
passou pelos meus guardas? - Ned perguntou. Porther e Cayn tinham
sido colocados fora da torre, e Alyn, nas escadas.
- A
Fortaleza Vermelha tem caminhos que só são conhecidos por fantasmas
e aranhas - Varys sorriu como quem pede perdão. - Não lhe tomarei
muito tempo, senhor. Há coisas que precisa saber. E a Mão do Rei, e
o rei é um tolo - a voz do eunuco tinha perdido o timbre rico; agora
era fina e aguçada como um chicote. - É seu amigo, eu sei, mas
apesar disso, um tolo... e está perdido, a menos que o salve. Hoje
foi por pouco. Alimentavam a esperança de matá-lo durante a luta
corpo a
corpo.
Por um
momento Ned ficou sem fala, de tão chocado.
- Quem?
Varys
bebericou o vinho.
- Se
realmente preciso lhe dizer isso, então é um tolo ainda maior que
Robert, e eu estou do lado errado.
- Os
Lannister - Ned falou. - A rainha... não, não acredito nisso, nem
mesmo de Cersei. Ela lhe pediu para não lutar!
- Ela o
proibiu de lutar, na presença do irmão, dos cavaleiros e de metade
da corte. Diga-me francamente: conhece alguma maneira mais segura de
forçar o Rei Robert a participar do corpo a corpo? É o que lhe
pergunto.
Ned tinha
uma sensação doentia nas entranhas. O eunuco descobrira uma
verdade; dizer a Robert Baratheon que não conseguia, não devia ou
não podia fazer uma coisa era o mesmo que lhe ordenar que fizesse.
- Mesmo
que ele tivesse lutado, quem se atreveria a atingir o rei?
Varys
encolheu os ombros.
- Havia
quarenta participantes no corpo a corpo. Os Lannister têm muitos
amigos. No meio de todo aquele caos, com cavalos a relinchar, ossos a
se partirem e Thoros de Myr a brandir aquela sua absurda espada
flamejante, quem poderia falar em assassinato se algum golpe casual
caísse sobre Sua Graça? - o eunuco dirigiu-se ao jarro e voltou a
encher a taça. - Depois de a coisa feita, o assassino estaria fora
de si de desgosto. Quase consigo ouvi-lo chorar. Tão triste. Mas não
haveria dúvida de que a amável e compassiva viúva se apiedaria,
poria o pobre infeliz em pé e o abençoaria com um gentil beijo de
perdão. O bom Rei Joffrey não teria escolha que não fosse
perdoá-lo - Varys passou a mão no rosto. - Ou talvez Cersei
deixasse Sor Ilyn cortar-lhe a cabeça, haveria assim menos riscos
para os Lannister, embora fosse uma surpresa bem desagradável para
seu pequeno amigo.
Ned
sentiu sua ira aumentar.
-
Conhecia esta conjura e, no entanto, não fez nada.
- Eu
governo murmuradores, não guerreiros.
- Podia
ter vindo falar comigo mais cedo.
- Ah,
sim, confesso. E o senhor teria ido correndo falar com o rei, não é
verdade? E quando Robert ouvisse dizer que estava em perigo, o que
teria feito? Gostaria de saber.
Ned
pensou naquilo.
- Teria
mandado todos para os sete infernos e lutado de qualquer maneira,
para mostrar que não os temia.
Varys
abriu as mãos.
- Vou
fazer outra confissão, Lorde Eddard. Tinha curiosidade em ver o que
o senhor faria. Por que não veio falar comigo? Me perguntou, e devo
responder: Ora, porque não confiava no senhor.
- Não
confiava em mim? - Ned estava francamente estupefato.
- A
Fortaleza Vermelha abriga dois tipos de pessoas, Lorde Eddard - Varys
continuou. - Aqueles que são leais ao reino e os que são leais
apenas a si mesmos. Até hoje de manhã não sabia dizer a que grupo
o senhor pertencia... e portanto esperei para ver... e agora sei com
toda certeza - fez um rechonchudo sorrisinho apertado e, por um
momento, seu rosto privado e sua máscara pública foram iguais. -
Começo a compreender por que a rainha o teme tanto. Ah, sim, como
começo.
- Quem
ela deve temer é você - disse Ned.
- Não.
Eu sou aquilo que sou. O rei utiliza-me, mas isso o envergonha. Nosso
Robert é guerreiro muito poderoso, e um homem tão viril pouca
amizade sente por denunciantes, espiões e eunucos. Se chegar o dia
em que Cersei sussurre "Mate aquele homem", Ilyn Payne me
cortará a cabeça num piscar de olhos. E quem faria então luto pelo
pobre Varys? Seja no Norte, seja no Sul, não se cantam canções
sobre aranhas - estendeu uma mão suave e tocou em Ned. - Mas o
senhor, Lorde Stark... penso... não, sei... ele não o mataria, nem
mesmo pela sua rainha, e pode residir aí a nossa salvação.
Aquilo
tudo era demais. Por um momento, Eddard Stark nada mais desejou que
voltar a Winterfell, à simplicidade limpa do Norte, onde os inimigos
eram o inverno e os selvagens do lado de lá da Muralha.
-
Certamente que Robert tem outros amigos leais - protestou. - Os
irmãos, a...
- ...
mulher? - terminou Varys, com um sorriso cortante. - Os irmãos
odeiam os Lannister, é certo, mas odiar a rainha e amar o rei não
são bem a mesma coisa, não é? Sor Barristan ama a sua honra, o
Grande Meistre Pycelle ama o seu cargo, e Mindinho ama Mindinho.
- A
Guarda Real...
- Um
escudo de papel - disse o eunuco. - Procure não parecer tão
chocado, Lorde Stark. O próprio Jaime Lannister é um Irmão
Juramentado das Espadas Brancas, e todos sabemos o que os votos dele
valem. Os dias em que homens como Ryam Redwyne e Príncipe Aemon, o
Cavaleiro do Dragão, usavam o manto branco estão perdidos na poeira
e nas canções. Daqueles sete, só Sor Barristan Selmy é feito do
aço verdadeiro, e Selmy é velho. Sor Borós e Sor Meryn são
criaturas da rainha até os ossos, e tenho profundas suspeitas sobre
os outros. Não, senhor, quando as espadas forem desembainhadas a
sério, será o único amigo verdadeiro que Robert Baratheon terá.
- Robert
tem de ser informado - disse Ned. - Se o que diz for verdade, e ainda
que apenas parte do que diz for verdade, então o próprio rei terá
de ouvir.
- E que
provas lhe apresentaremos? As minhas palavras contra as deles? Os
meus passarinhos contra a rainha e o Regicida, contra os irmãos e o
conselho do rei, contra os Guardiães do Leste e do Oeste, contra
todo o poderio de Rochedo Casterly? Rogo-lhe, mande buscar
diretamente Sor Ilyn, pois nos poupará tempo. Sei onde termina essa
estrada.
- Mas se
o que diz for verdade, eles se limitarão a esperar seu tempo e farão
outra tentativa.
-
Certamente farão - Varys confirmou. - E temo que o façam mais cedo
que tarde. O senhor os está deixando muito ansiosos, Lorde Eddard.
Mas meus passarinhos estarão à escuta, e em conjunto, o senhor e
eu, talvez sejamos capazes de nos adiantarmos a eles - pôs-se em pé
e puxou o capuz até voltar a esconder o rosto. - Agradeço-lhe o
vinho. Voltaremos a conversar. Quando voltar a me ver no conselho,
assegure-se de me tratar com o desprezo habitual. Não deverá achar
difícil.
O eunuco
já se encontrava junto à porta quando Ned o chamou:
- Varys -
o homem encapuzado virou-se. - Como morreu Jon Arryn?
-
Perguntava a mim próprio quando chegaria a esse ponto.
-
Diga-me.
-
Chamam-lhe lágrimas de Lys. Coisa rara e dispendiosa, límpida e
doce como a água, e não deixa rastro algum. Supliquei a Lorde Arryn
que usasse um provador, foi nesta mesma sala que lhe supliquei, mas
ele não queria ouvir falar do assunto. Só alguém que fosse menos
que um homem podia sequer pensar em tal coisa, ele me disse.
Ned tinha
de saber o resto.
- Quem
lhe deu o veneno?
- Algum
amigo querido, sem dúvida, alguém que partilhasse com frequência
comida e bebida com ele. Ah, mas qual? Havia muitos assim. Lorde
Arryn era um homem bondoso e confiante - o eunuco suspirou. - Mas
havia um rapaz. Tudo o que era devia a Jon Arryn, mas quando a viúva
fugiu para o Ninho da Águia com os seus, ficou em Porto Real e
prosperou. Alegra-me sempre o coração ver os jovens subir neste
mundo - o chicote estava de novo em sua voz; cada palavra era uma
chicotada. - Deve ter feito uma figura galante no torneio, em sua
brilhante armadura nova, com aqueles crescentes no manto. Uma pena
que tenha morrido tão intempestivamente, antes que o senhor tivesse
possibilidade de falar com ele...
Ned
sentiu-se quase como se ele próprio tivesse sido envenenado.
- O
escudeiro - ele exclamou. - Sor Hugh - rodas dentro de rodas dentro
de rodas. A cabeça de Ned latejava. - Por quê? Por quê agora? Jon
Arryn foi Mão durante catorze anos. Que andava fazendo ele para que
tivessem de matá-lo?
- Andava
fazendo perguntas - respondeu Varys, esgueirando-se porta afora.
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