segunda-feira, 19 de agosto de 2013

30 - EDDARD


- Eu mesmo o velei - disse Sor Barristan Selmy, olhando o corpo que jazia na parte de trás da carroça. - Ele não tinha mais ninguém. Falaram-me que talvez uma mãe, no Vale. A fraca luz da madrugada, o jovem cavaleiro parecia estar dormindo. Não fora bonito em vida, mas a morte suavizara-lhe as feições rudemente talhadas, e as irmãs silenciosas o tinham vestido a sua melhor túnica de veludo, com um colarinho elevado para cobrir a ruína em que a lança tinha transformado sua garganta. Eddard Stark olhou seu rosto e perguntou a si mesmo se teria sido ele o causador da morte do rapaz. Morto por um vassalo dos Lannister antes que Ned pudesse falar com ele; seria possível que não passasse de mero acaso? Supôs que nunca chegaria a saber.
- Hugh foi escudeiro de Jon Arryn durante quatro anos - prosseguiu Selmy. - O rei o armou cavaleiro antes de partir para o norte, em memória de Jon. O rapaz desejava aquilo desesperadamente, mas temo que não estivesse pronto. Ned dormira mal na noite anterior e sentia um cansaço maior do que seria de esperar da idade.
- Nenhum de nós jamais está pronto.
- Para ser armado cavaleiro?
- Para a morte - com gentileza, Ned cobriu o rapaz com seu manto, azul manchado de sangue, debruado por luas crescentes. Refletiu amargamente que, quando a mãe perguntasse por que razão o filho estava morto, lhe diriam que tinha lutado em honra da Mão do Rei, Eddard Stark. - Isto foi desnecessário. A guerra não devia ser um jogo - Ned virou-se para a mulher que estava ao lado da carroça, envolta em cinza, com o rosto escondido, apenas os olhos à mostra. As irmãs silenciosas preparavam os homens para a sepultura, e era má sorte olhar a morte no rosto.
- Envie sua armadura para casa, para o Vale. A mãe deve querê-la.
- Vale uma boa quantia em prata - disse Sor Barristan. - O rapaz mandou-a forjar especialmente para o torneio. Um trabalho simples, mas bom. Não sei se acabou de pagar ao ferreiro.
- Pagou ontem, senhor, e pagou caro - respondeu Ned. E à irmã silenciosa disse: - Envie a armadura à sua mãe. Tratarei com esse ferreiro - a mulher fez-lhe uma reverência.
Mais tarde, Sor Barristan acompanhou Ned até o pavilhão do rei. O acampamento começava a se agitar. Salsichas gordas chiavam e pingavam sobre fogueiras, temperando o ar com os odores do alho e da pimenta. Jovens escudeiros caminhavam apressados por ali, conversando, enquanto seus senhores acordavam, bocejando e espreguiçando-se, saudando o dia.
Um criado com um ganso debaixo do braço dobrou o joelho ao vê-los. "Senhores", murmurou, enquanto o ganso grasnava e lhe bicava os dedos. Os escudos exibidos à porta de todas as tendas anunciavam seus ocupantes: a águia de prata de Guardamar, o campo de rouxinóis de Bryce Caron, um cacho de uvas para os Redwyne, o javali malhado, o touro vermelho, a árvore flamejante, o carneiro branco, a espiral tripla, o unicórnio roxo, as donzelas dançantes, a víbora negra, as torres gêmeas, a coruja chifruda e, por fim, os brasões de um branco puro da Guarda Real, brilhando como a madrugada.
- O rei pretende participar hoje do corpo a corpo - disse Sor Barristan enquanto passavam pelo escudo de Sor Meryn, com a tinta maculada por um profundo golpe onde a lança de Loras Tyrell marcara a madeira ao derrubá-lo da sela.
- Sim - disse Ned em tom sombrio. Jory acordara-o na noite anterior para lhe dar a notícia. Não admirava que tivesse dormido tão mal.
O olhar de Sor Barristan estava perturbado.
- Diz-se que as belezas da noite esmorecem de madrugada, e que os filhos do vinho são frequentemente renegados à luz da manhã.
- É o que dizem - concordou Ned - mas não de Robert - outros homens poderiam reconsiderar as palavras ditas em bravatas ébrias, mas Robert Baratheon as recordaria e, recordando-as, nunca recuaria.
O pavilhão do rei erguia-se perto da água, e as neblinas matinais que o rio gerava tinham-no rodeado de colunas cinza. Era todo de seda dourada, a maior e mais imponente estrutura no acampamento. A porta, o martelo de batalha de Robert encontrava-se em exibição, junto a um imenso escudo de ferro decorado com o veado coroado da Casa Baratheon.
Ned tivera esperança de encontrar o rei ainda na cama, num sono ensopado em vinho, mas a sorte não estava com ele. Encontraram Robert bebendo cerveja de um corno polido e rugindo seu descontentamento com dois jovens escudeiros que tentavam atar-lhe a armadura.
- Vossa Graça - dizia um, quase em lágrimas - é muito pequena, não vamos conseguir - atrapalhou-se, e o gorjal que tentava prender em torno do grosso pescoço de Robert caiu ao chão.
- Pelos sete infernos! - Robert praguejou. - Terei de fazer tudo eu mesmo? Vão os dois para o raio que os parta. Pegue isso. Não fique aí de boca aberta, Lancei, pegue isso! - o rapaz deu um salto e o rei reparou na companhia. - Olhe para estes imbecis, Ned. Minha mulher insistiu que tomasse estes dois como escudeiros, e são menos que inúteis. Sequer são capazes de pôr a armadura de um homem sobre seu corpo. Escudeiros, dizem eles. Eu digo que são mais é criadores de porcos vestidos de seda.
Ned não precisou mais que uma olhadela para compreender a dificuldade.
- Os rapazes não estão em falta - disse ao rei. - Você está gordo demais para a sua armadura, Robert.
Robert Baratheon bebeu um longo trago de cerveja, atirou o corno vazio para cima de suas peles de dormir, limpou a boca nas costas da mão e disse em tom sombrio:
- Gordo? Gordo, é isso? É assim que você fala com seu rei? - e soltou sua gargalhada, súbita como uma tempestade. - Ah, maldito seja, Ned, por que é que você sempre tem razão?
Os escudeiros sorriram nervosamente, até que o rei se virou para eles.
- Vocês. Sim, vocês dois. Ouviram a Mão. O rei está muito gordo para a sua armadura. Vão à procura de Sor Aron Santagar. Digam-lhe que preciso do esticador de peitorais. Já! O que estão esperando?
Os rapazes tropeçaram um no outro com a pressa de sair da tenda. Robert conseguiu manter uma cara severa até eles saírem. Então caiu numa cadeira, tremendo de tanto rir.
Sor Barristan Selmy riu com ele. Até Eddard Stark deu um sorriso. Mas os pensamentos mais graves imiscuíam-se sempre. Não conseguiu deixar de reparar nos dois escudeiros: rapazes bem-apessoados, louros e bem constituídos. Um tinha a idade de Sansa, com longos caracóis dourados; o outro teria talvez uns quinze anos, cabelos cor de areia, um fio de bigode e os olhos verde-esmeralda da rainha.
- Ah, gostaria de estar lá para ver a cara de Santagar - disse Robert. - Espero que tenha a esperteza de enviá-los a outra pessoa qualquer. Deveríamos mantê-los correndo o dia inteiro!
- Aqueles rapazes - Ned lhe perguntou- são Lannister?
Robert anuiu, limpando as lágrimas dos olhos.
- Primos. Filhos do irmão de Lorde Tywin, Um dos mortos. Ou talvez o vivo, agora que penso nisso. Não me lembro. Minha esposa vem de uma família muito grande, Ned.
Uma família muito ambiciosa, Ned pensou. Nada tinha contra os escudeiros, mas perturbava-o ver Robert rodeado por parentes da rainha, tanto acordado quanto dormindo. O apetite dos Lannister por cargos e honrarias parecia não conhecer limites,
- Diz-se que Vossa Graça e a rainha trocaram palavras zangadas ontem à noite. A vontade de rir coalhou no rosto de Robert.
- A mulher tentou me proibir de participar do corpo a corpo. Agora está amuada no castelo, maldita seja. Sua irmã nunca teria me envergonhado assim.
- Não chegou a conhecer Lyanna como eu conheci, Robert. Você viu sua beleza, mas não o ferro que tinha por baixo. Ela lhe teria dito que não tem nada a fazer no corpo a corpo.
- Também você? - o rei franziu a sobrancelha. - É um homem amargo, Stark. Tempo demais no norte, todos os fluidos congelaram dentro de você. Pois bem, os meus continuam a correr - deu uma batida no peito para prová-lo.
- É o rei - recordou-lhe Ned.
- Sento-me no maldito trono de ferro quando tem de ser. Isto quer dizer que não tenho os mesmos apetites dos outros homens? Um pouco de vinho de vez em quando, uma mulher a gemer na cama, a sensação de ter um cavalo entre as pernas? Pelos sete infernos, Ned, quero bater em alguém.
Sor Barristan Selmy interveio.
- Vossa Graça - disse não é conveniente que o rei participe do corpo a corpo. Não seria uma competição justa. Quem se atreveria a atingi-lo?
Robert pareceu sinceramente surpreso.
- Ora, todos eles, que raio. Se puderem. E o último homem em pé...
- ... será você - concluiu Ned. Compreendera de imediato que Selmy atingira o ponto certo. Os perigos do corpo a corpo eram apenas um atrativo para Robert, mas aquilo lhe tocou o orgulho. - Sor Barristan tem razão. Não há um homem nos Sete Reinos que se atreva a arriscar desagradá-lo por tê-lo ferido.
O rei pôs-se em pé, de rosto rubro.
- Está me dizendo que aqueles arrogantes covardes vão me deixar ganhar?
- Com toda certeza - disse Ned, e Sor Barristan Selmy abaixou a cabeça num acordo silencioso.
Por um momento, Robert ficou tão zangado que não conseguiu falar. Atravessou a tenda, rodopiou, voltou a atravessá-la, com o rosto sombrio e irado. Apanhou do chão o peitoral da armadura e o arremessou a Barristan Selmy numa fúria sem palavras. Selmy esquivou-se,
- Saia - disse então o rei, friamente. - Saia antes que o mate.
Sor Barristan saiu com rapidez. Ned preparava-se para segui-lo quando o rei voltou a falar.
- Você não, Ned.
Ned virou-se. Robert recuperou o corno, encheu-o com cerveja, que tirou de um barril que se encontrava a um canto da tenda, e o arremessou a Ned.
- Bebe - disse ele em tom brusco.
- Não tenho sede...
- Bebe. É seu rei quem ordena.
Ned virou o corno e bebeu. A cerveja era negra e espessa, tão forte que fazia arder os olhos. Robert voltou a se sentar.
- Maldito seja, Ned Stark. Você e Jon Arryn, amei a ambos. E que fizeram de mim? Você é que devia ter sido rei, você ou Jon.
- A mais forte pretensão era sua, Vossa Graça.
- Disse-lhe para beber, não para discutir. Já que me fez rei, podia ao menos ter a cortesia de me escutar enquanto falo, maldito seja. Olhe para mim, Ned. Olhe para o que ser rei fez de mim. Deuses, gordo demais para a minha armadura, como foi que cheguei a isto?
- Robert...
- Beba e fique quieto, o rei está falando. Juro-lhe, nunca me senti tão vivo como quando estava ganhando este trono, nem tão morto como agora que o possuo. E Cersei... devo-a a Jon Arryn. Não tinha nenhum desejo de casar depois de Lyanna me ter sido roubada, mas Jon disse que o reino precisava de um herdeiro. Cersei Lannister seria um bom partido, ele me disse, me ligaria a Lorde Tywin para o caso de Viserys Targaryen tentar recuperar o trono do pai - o rei balançou a cabeça. - Adorava aquele velho, juro, mas agora penso que era um idiota maior que o Rapaz Lua. Ah, Cersei é adorável de se contemplar, de verdade, mas fria... pelo modo como se defende na cama, diria que tem todo o ouro de Rochedo Casterly entre as pernas. Dê-me essa cerveja se não for beber - tomou o corno, virou-o, arrotou e limpou a boca. - Lamento pela sua filha, Ned. De verdade. Refiro-me ao lobo. Meu filho estava mentindo, sou capaz de apostar a alma nisso. Meu filho... você ama seus filhos, não é verdade?
- De todo o coração - Ned respondeu.
- Deixe-me lhe contar um segredo, Ned. Mais de uma vez sonhei em renunciar à coroa. Embarcar para as Cidades Livres com meu cavalo e meu martelo, passar o tempo fazendo guerra e entre vadias. Foi para isso que nasci. O rei mercenário. Como me adorariam os cantores! Sabe o que me impediu? A ideia de ver Joffrey no trono, com Cersei atrás dele a segredar-lhe ao ouvido. Meu filho. Como pude fazer um filho assim, Ned?
- Ele não passa de um rapaz - disse Ned desajeitadamente. Pouco gostava de Príncipe Joffrey, mas percebia a dor na voz de Robert. - Esqueceu de como você era bravo na idade dele?
- Não me perturbaria se ele fosse bravo, Ned. Não o conhece tão bem como eu - suspirou e balançou a cabeça. - Ah, talvez tenha razão. Jon perdeu a paciência comigo com bastante frequência e, no entanto, acabei por me tornar um bom rei - Robert olhou para Ned e franziu a sobrancelha perante seu silêncio. - Agora pode falar e concordar.
- Vossa Graça... - Ned começou cuidadosamente.
Robert deu-lhe uma palmada nas costas.
- Ah, diz que sou melhor rei que Aerys e terminamos o assunto. Você nunca conseguiu mentir por amor ou por honra, Ned Stark. Ainda sou novo, e agora que está aqui comigo as coisas serão diferentes. Tornaremos este reinado num que seja digno de canções, e que os Lannister vão para os sete infernos. Sinto cheiro de bacon. Quem lhe parece que será nosso campeão hoje? Viu o filho de Mace Tyrell? Chamam-lhe o Cavaleiro das Flores, Ora, aí está um filho que qualquer homem ficaria orgulhoso de reclamar. No último torneio, fez o Regicida cair sobre sua dourada garupa, devia ter visto a cara da Cersei. Ri até me doer o peito. Renly diz que ele tem uma irmã, uma donzela de catorze anos, adorável como uma madrugada...
Quebraram o jejum com pão escuro, ovos de ganso cozidos, peixe frito com cebolas e bacon, numa mesa montada junto à margem do rio. A melancolia do rei dissipou-se com a névoa da manhã e não demorou muito até Robert se tornar amistoso, recordando uma manhã no Ninho da Águia, quando eram rapazes, enquanto comia uma laranja.
- ... tinha dado a Jon um barril de laranjas, lembra-se? Só que tinham apodrecido, e por isso atirei a minha por cima da mesa e atingi Dacks bem no nariz. Lembra-se do escudeiro perebento de Redfort? Atirou-me uma de volta e, antes que Jon pudesse sequer soltar um peido, havia laranjas voando pelo Salão Grande em todas as direções - o rei riu tumultuosamente, e até Ned sorriu ao recordar.
Era este o rapaz com quem tinha crescido, pensou; era este o Robert Baratheon que conhecera e amara. Se conseguisse provar que os Lannister estavam por trás do ataque a Bran, provar que tinham assassinado Jon Arryn, este homem escutaria. Então Cersei cairia, e com ela o Regicida, e se Lorde Tywin se atrevesse a sublevar o Oeste, Robert o esmagaria tal como esmagara Rhaegar Targaryen no Tridente. Via isso com toda clareza.
Há muito tempo que Eddard Stark não comia tão bem, e depois seus sorrisos chegaram com maior facilidade e frequência, até a hora de retomar o torneio, Ned acompanhou o rei até o terreno das justas. Prometera assistir com Sansa aos confrontos finais; Septã Mordane sentia-se doente, e a filha estava determinada a não perder o fim das justas. Ao acompanhar Robert ao seu lugar, notou que Cersei Lannister decidira não comparecer; o lugar ao lado do rei estava vago.
Isto também deu a Ned motivos de esperança. Abriu caminho até onde a filha estava sentada e a encontrou no momento em que as trombetas soavam para a primeira justa do dia. Sansa estava tão absorta que quase pareceu não notar sua chegada.
Sandor Clegane foi o primeiro cavaleiro a aparecer. Trazia um manto verde-oliva sobre a armadura de um cinza-fuliginoso. O manto e o elmo em forma de cabeça de cão eram as suas únicas concessões à ornamentação.
- Cem dragões de ouro pelo Regicida - Mindinho anunciou sonoramente quando Jaime Lannister entrou na arena, montando um elegante cavalo de batalha baio puro-sangue, que trazia uma cobertura de cota de malha dourada, e Jaime cintilava da cabeça aos pés. Até a lança tinha sido feita com a madeira dourada das Ilhas do Verão.
- Está apostado - gritou de volta Lorde Renly. - Cão de Caça traz hoje um ar faminto.
- Mesmo os cães famintos sabem que não é boa ideia morder a mão que os alimenta - Mindinho gritou secamente.
Sandor Clegane fez cair o visor com um clac audível e tomou posição. Sor Jaime atirou um beijo a uma mulher qualquer que estava entre os plebeus, abaixou com cuidado o visor e encaminhou-se para a ponta da arena. Os dois homens abaixaram as lanças.
Nada seria melhor para Ned Stark do que ver ambos perder, mas Sansa observava de olhos úmidos e ansiosa. A galeria erguida à pressa estremeceu quando os cavalos romperam a galope. Cão de Caça inclinou-se para a frente enquanto avançava, com a lança firme como uma rocha, mas Jaime mudou habilmente de posição no instante anterior ao impacto. A ponta da lança de Clegane foi inofensivamente atirada contra o escudo dourado com o desenho do leão, enquanto a do Regicida atingia o adversário em cheio. A madeira estilhaçou-se e Cão de Caça cambaleou, lutando para se manter sentado. Sansa prendeu a respiração, Uma rude aclamação ergueu-se entre os plebeus.
- Estou aqui pensando em que poderei gastar seu dinheiro - gritou Mindinho a Lorde Renly.
Cão de Caça conseguiu manter-se sobre a sela. Fez seu cavalo dar meia-volta com dureza e regressou à arena para a segunda passagem. Jaime Lannister atirou ao chão a lança quebrada e apanhou uma nova, brincando com o escudeiro. Cão de Caça esporeou o cavalo para um galope duro. Lannister avançou para enfrentá-lo. Desta vez, quando Jaime Lannister mudou de posição, Sandor Clegane mudou com ele. Ambas as lanças explodiram, e quando os estilhaços assentaram, um baio puro-sangue sem cavaleiro trotava para longe em busca de grama, enquanto Sor Jaime Lannister rolava na terra, dourado e amassado.
Sansa disse:
- Eu sabia que Cão de Caça ia ganhar.
Mindinho a ouviu.
- Se sabe quem vai ganhar o segundo encontro, fale agora, antes que Lorde Renly me depene - ele gritou para ela. Ned sorriu.
- É uma pena que o Duende não esteja aqui conosco - disse Lorde Renly. - Teria ganhado o dobro.
Jaime Lannister estava de novo em pé, mas seu ornamentado elmo de leão tinha sido torcido e amassado na queda, e agora não conseguia tirá-lo. A plebe gritava e apontava, os senhores e as senhoras tentavam abafar o riso, sem conseguir, e, sobre toda aquela algazarra, Ned ouvia o Rei Robert às gargalhadas, mais alto que todos os demais. Por fim, tiveram de levar o Leão de Lannister a um ferreiro, cego e aos tropeções.
Por essa altura, Sor Gregor Clegane já estava em posição no topo da arena. Era enorme, o maior homem que Eddard Stark já vira, Robert Baratheon e os irmãos eram todos homens grandes, tal como Cão de Caça, e em Winterfell havia um ajudante de cavalariça simplório chamado Hodor que era maior que todos eles, mas o cavaleiro a quem chamavam Montanha Que Cavalga teria olhado de cima para Hodor.
Devia ter por volta de dois metros e trinta, com ombros maciços e braços tão grossos como troncos de pequenas árvores. Seu cavalo de batalha parecia um pônei entre suas pernas cobertas de armadura, e a lança que trazia parecia tão pequena como um cabo de vassoura.
Ao contrário do irmão, Sor Gregor não vivia na corte. Era um homem solitário que raramente saía de suas terras, exceto para travar guerras e participar de torneios. Estivera com Lorde Tywin quando Porto Real caíra, era então um cavaleiro recém-armado de dezessete anos, mas já notável pelo tamanho e pela sua implacável ferocidade. Havia quem dissesse que fora Gregor quem atirara a cabeça do príncipe criança Árgon Targaryen contra uma parede e quem murmurasse que depois disso violara a mãe, a princesa Elia, de Dorne, antes de lhe cravar a espada. Não se diziam essas coisas ao alcance dos ouvidos de Gregor.
Ned Stark não se lembrava de alguma vez ter falado com o homem, embora Gregor o tivesse acompanhado durante a rebelião de Balon Greyjoy, um cavaleiro no meio de milhares. Observou-o inquieto. Não era seu costume dar grande atenção a mexericos, mas as coisas que se diziam de Sor Gregor eram mais que sinistras. Preparava-se para casar pela terceira vez, e ouviam-se sombrios sussurros sobre as mortes das duas primeiras esposas. Dizia-se que sua fortaleza era um lugar sombrio onde criados desapareciam para nunca mais serem vistos, e até os cães tinham medo de entrar no salão. E tinha havido uma irmã que morrera jovem em estranhas circunstâncias, e o fogo que desfigurara o irmão, e o acidente de caça que matara o pai. Gregor herdara a fortaleza, o ouro e as propriedades da família. O irmão mais novo, Sandor, partira no mesmo dia para servir os Lannister como cavaleiro juramentado, e dizia-se que nunca mais regressara, nem mesmo para visita.
Quando o Cavaleiro das Flores fez sua entrada, um murmúrio percorreu a multidão, e Ned ouviu o sussurro fervente de Sansa:
- Ah, ele é tão lindo.
Sor Loras Tyrell era esbelto como um junco, vestido numa fabulosa armadura de prata polida até cegar, gravada com uma filigrana de sinuosas trepadeiras negras e minúsculos miosótis azuis. A plebe percebeu, no mesmo instante que Ned, que o azul das flores provinha de safiras; um suspiro escapou de um milhar de gargantas. Dos ombros do rapaz pendia o manto pesado. Era tecido de miosótis, miosótis verdadeiros, centenas de flores frescas entrelaçadas numa pesada capa de lã.
Seu corcel era tão esguio como o cavaleiro, uma bela égua cinzenta, feita para a velocidade. O enorme garanhão de Sor Gregor relinchou ao captar seu cheiro. O rapaz de Jardim de Cima fez qualquer coisa com as pernas e o cavalo curveteou de lado, ágil como um dançarino. Sansa agarrou o braço de Ned.
- Pai, não deixe que Sor Gregor lhe faça mal - ela pediu. Ned viu que ela trazia a rosa que Sor Loras lhe dera no dia anterior. Jory também lhe contara aquilo.
- Aquelas são lanças de torneio - disse à filha. - São feitas para que se estilhacem com o impacto, para que ninguém se fira - mas lembrou-se do rapaz morto na carroça, com seu manto de crescentes, e as palavras arranharam-lhe a garganta.
Sor Gregor estava com problemas em controlar o cavalo. O garanhão berrava e batia com as patas no chão, abanando a cabeça. A Montanha espetou-lhe ferozmente os calcanhares envolvidos em armadura. O cavalo empinou-se e quase o derrubou.
O Cavaleiro das Flores saudou o rei, dirigiu-se à extremidade mais distante da arena e abaixou a lança, pronto. Sor Gregor trouxe seu animal até a linha, lutando com as rédeas. E de súbito começou. O garanhão da Montanha rompeu num galope duro, atirando-se furiosamente à frente, ao passo que o passo da égua era suave como o deslizar da seda. Sor Gregor pôs o escudo em posição e equilibrou a lança com dificuldade, enquanto continuava a lutar para manter a fogosa montaria numa linha reta e, de repente, Loras Tyrell estava sobre ele, colocando a ponta da lança precisamente lá, e num piscar de olho a Montanha estava caindo. Era tão imenso que levou o cavalo consigo, num emaranhado de aço e carne.
Ned ouviu aplausos, aclamações, assobios, suspiros chocados, murmúrios excitados, e sobretudo as ásperas e roufenhas gargalhadas de Cão de Caça. O Cavaleiro das Flores puxou as rédeas no fim da arena. Sua lança nem sequer estava partida. As safiras cintilaram ao sol quando ergueu o visor, sorrindo.
Os plebeus pareciam ter enlouquecido por ele. No meio do campo, Sor Gregor Clegane desembaraçou-se e pôs-se de pé, fervendo de raiva. Arrancou o elmo e esmagou-o contra o chão. Tinha o rosto escuro de fúria, e os cabelos caíam-lhe nos olhos.
- Minha espada - gritou para o escudeiro, e o rapaz correu para ele. Nessa altura o garanhão já estava em pé também. Gregor Clegane matou o cavalo com um único golpe, de tamanha violência que quase decepou o pescoço do animal. As aclamações transformaram-se em guinchos num piscar de olhos. O garanhão caiu de joelhos, berrando enquanto morria. Mas então Gregor já atravessava a arena a passos largos, dirigindo-se para Sor Loras Tyrell, de espada ensanguentada em punho.
- Pare-o! - gritou Ned, mas suas palavras perderam-se no burburinho. Todos estavam também gritando, e Sansa chorava.
Tudo aconteceu num ápice, O Cavaleiro das Flores gritava pela espada no momento em que Sor Gregor empurrou para o lado seu escudeiro e tentou agarrar as rédeas do cavalo. A égua cheirou sangue e empinou-se. Loras Tyrell mal se manteve montado. Sor Gregor brandiu a espada, um violento golpe a duas mãos que atingiu o rapaz no peito e o derrubou da sela. O corcel fugiu em pânico, enquanto Sor Loras jazia atordoado no chão. Mas, quando Gregor ergueu a espada para o golpe fatal, uma voz áspera advertiu: "Deixe-o em paz", e uma mão revestida de aço atirou-o para longe do rapaz.
A Montanha rodopiou numa fúria sem palavras, brandindo a espada num arco mortífero com toda sua maciça força posta no golpe, mas Cão de Caça aparou o golpe e contra-atacou, e durante aquilo que pareceu uma eternidade, os dois irmãos trocaram golpes, enquanto um entontecido Loras Tyrell era ajudado a pôr-se em segurança. Três vezes Ned viu Sor Gregor lançar violentos golpes no elmo da cabeça de Cão, mas nem uma vez Sandor deu uma estocada à cara desprotegida do irmão,
Foi a voz do rei que pôs fim àquilo... a voz do rei e vinte espadas. Jon Arryn dissera-lhes que um comandante precisa de uma boa voz de batalha, e Robert provara no Tridente que era verdade. Era esta a voz que usava agora.
- PAREM COM ESTA LOUCURA - trovejou - EM NOME DO SEU REI!
Cão de Caça caiu sobre um joelho. O golpe de Sor Gregor cortou o ar, e por fim caiu em si. Deixou cair a espada, olhou intensamente para Robert, cercado pela sua Guarda Real e uma dúzia de outros cavaleiros e guardas. Sem uma palavra, virou-se e afastou-se em passo rápido, abrindo caminho junto a Barristan Selmy com um encontrão.
- Deixe-o ir - disse Robert, e nesse mesmo momento tudo terminou.
- O campeão agora é Cão de Caça? - Sansa perguntou a Ned.
- Não - ele respondeu. - Haverá uma justa final, entre Cão de Caça e o Cavaleiro das Flores. Mas Sansa afinal tinha razão. Alguns momentos mais tarde, Sor Loras Tyrell regressou ao campo num simples gibão de linho e disse a Sandor Clegane:
- Devo-lhe a vida. O dia é seu, sor.
- Não sou sor nenhum - respondeu Cão de Caça, mas aceitou a vitória e a bolsa de campeão e, talvez pela primeira vez na vida, a adoração dos plebeus. Aclamaram-no quando abandonou a arena para se dirigir ao seu pavilhão.
Enquanto Ned caminhava com Sansa para o campo de tiro ao alvo, Mindinho, Lorde Renly e alguns dos outros juntaram-se a eles,
- Tyrell tinha de saber que a égua estava no cio - Mindinho dizia. - Juro que o rapaz planejou tudo. Gregor sempre preferiu enormes garanhões de mau temperamento, com mais vigor que bom-senso - a idéia parecia diverti-lo.
Mas não divertia Sor Barristan Selmy.
- Pouca honra existe em truques - o velho disse rigidamente.
- Pouca honra e vinte mil peças de ouro - Lorde Renly sorriu.
Naquela tarde, um rapaz chamado Anguy, um plebeu, não anunciado, proveniente da Marca de Dorne, venceu a competição de tiro ao alvo, suplantando Sor Balon Swann e Jalabhar Xho a cem passos, depois de todos os outros arqueiros terem sido eliminados a distâncias mais curtas.
Ned mandou que Alyn o procurasse e lhe oferecesse um lugar na guarda da Mão, mas o rapaz estava inebriado de vinho, vitória e riquezas com que nem sonhara, e recusou. O corpo a corpo durou três horas. Participaram quase quarenta homens, cavaleiros livres, pequenos cavaleiros e novos escudeiros em busca de uma reputação. Lutaram com armas embotadas num caos de lama e sangue, em pequenos grupos que lutavam juntos e depois se viravam uns contra os outros à medida que as alianças se formavam e eram quebradas, até que apenas um homem ficou de pé. O vencedor foi o sacerdote vermelho, Thoros de Mys, um louco que raspava a cabeça e lutava com uma espada em chamas. Já antes tinha vencido lutas corpo a corpo; a espada em fogo assustava as montarias dos outros cavaleiros, mas nada assustava Thoros. O balanço final foi de três membros partidos, uma clavícula estilhaçada, uma dúzia de dedos esmagados, dois cavalos que tiveram de ser abatidos e mais cortes, entorses e hematomas do que alguém se preocupou em contar. Ned ficou imensamente feliz por Robert não ter participado.
Naquela noite, no festim, Eddard Stark sentia-se mais esperançoso do que se sentira havia muito tempo, Robert estava de ótimo humor, não se viam Lannister em lado nenhum, e até as filhas estavam se portando bem. Jory trouxera Arya para se juntar a eles e Sansa dirigiu-se à irmã de maneira agradável.
- O torneio foi magnífico - suspirou. - Devia ter vindo. Como foi seu treinamento?
- Estou toda dolorida - relatou Arya em tom feliz, exibindo, orgulhosa, um enorme hematoma púrpura que tinha na perna.
- Deve ser uma principiante horrível - disse Sansa, com ar de dúvida.
Mais tarde, enquanto Sansa ouvia uma trupe de cantores interpretar a complexa série de baladas interligadas chamada "Dança dos Dragões", Ned inspecionou o hematoma da filha.
- Espero que Forel não esteja sendo muito duro com você.
Arya equilibrou-se numa perna. Nos últimos tempos, estava ficando muito melhor naquilo.
- Syrio diz que cada ferida é uma lição, e cada lição nos torna melhores.
Ned franziu a sobrancelha. Aquele Syrio Forel tinha chegado com uma reputação excelente, e seu brilhante estilo bravosiano adequava-se bem à lâmina esguia de Arya, mas, mesmo assim... Alguns dias antes, ela andara vagueando com uma tira de seda negra atada sobre os olhos. Arya dissera-lhe que Syrio a estava ensinando a ver com os ouvidos, o nariz e a pele. Antes disso, tinha-a posto para fazer piruetas e saltos mortais.
- Arya, tem certeza de que quer persistir nisto?
Ela confirmou com a cabeça.
- Amanhã vamos apanhar gatos.
- Gatos - Ned suspirou. - Talvez tenha sido um erro contratar esse bravosi. Se quiser, pedirei a Jory para substituí-lo nas suas aulas. Ou posso ter uma discreta conversa com Sor Barristan Selmy. Quando jovem, foi o melhor espadachim dos Sete Reinos.
- Não quero ninguém - disse Arya. - Quero Syrio.
Ned passou os dedos pelos cabelos. Qualquer mestre de armas decente podia ensinar a Arya os rudimentos sobre estocadas e paradas sem este disparate de vendas, rodas e saltos de um pé só, mas conhecia suficientemente bem a filha mais nova para saber que não havia discussão com aquela obstinada projeção de queixo.
- Como quiser - ele respondeu, Certamente iria se cansar daquilo em breve. - Tente ter cuidado.
- Terei - ela prometeu solenemente enquanto saltava do pé direito para o esquerdo num movimento fluido.
Muito mais tarde, depois de atravessar a cidade com as filhas e colocá-las em segurança na cama, Sansa com seus sonhos e Arya com seus hematomas, Ned subiu até os próprios aposentos, no topo da Torre da Mão. O dia estivera quente, e o quarto fechado estava abafado. Ned dirigiu-se a janela e abriu as pesadas venezianas a fim de deixar entrar o ar fresco da noite. Do outro lado do Pátio Grande reparou no tremeluzente brilho da luz de velas nas janelas de Mindinho.
Já passava bastante da meia-noite. Junto ao rio, as festas estavam apenas começando a murchar e morrer. Pegou o punhal e o estudou. A arma de Mindinho, que Tyrion Lannister ganhara dele numa aposta de torneio, enviada para matar Bran em seu sono. Por quê? Por que queria o anão ver Bran morto? Por que alguém ia querer ver Bran morto? O punhal, a queda de Bran, tudo aquilo estava de algum modo ligado ao assassinato de Jon Arryn, podia senti-lo nas entranhas, mas a verdade sobre a morte de Jon permanecia para ele tão envolta em brumas como quando começara a investigar. Lorde Stannis não voltara a Porto Real para o torneio. Lysa Arryn mantinha-se em silêncio, por trás das muralhas do Ninho da Águia. O escudeiro estava morto e Jory continuava a investigar os prostíbulos. Que tinha ele além do bastardo de Robert?
Que o carrancudo aprendiz do armeiro era filho do rei Ned não tinha dúvida. Os traços dos Baratheon estavam estampados em seu rosto, no queixo, nos olhos, nos cabelos negros. Renly era novo demais para ser pai de um rapaz daquela idade. Stannis, demasiado frio e orgulhoso na sua honra. Gendry tinha de ser de Robert.
Mas, ao saber tudo isso, o que aprendera? O rei tinha outros filhos ilegítimos espalhados pelos Sete Reinos. Tinha reconhecido abertamente um de seus bastardos, um rapaz da idade de Bran, cuja mãe era bem-nascida. O rapaz estava sendo criado pelo castelão de Lorde Renly em Ponta Tempestade.
Ned também recordava a primeira criança gerada por Robert, uma filha nascida no Vale quando ainda era pouco mais que um rapaz. Uma doce garotinha; o jovem senhor de Ponta Tempestade a amara perdidamente. Costumava fazer visitas diárias para brincar com o bebê, muito depois de ter perdido interesse pela mãe. Era frequente arrastar Ned para lhe fazer companhia, independente de sua vontade. Compreendeu de súbito que a menina devia ter agora dezessete ou dezoito anos; mais velha que Robert era quando nascera. Estranho pensamento.
Cersei podia não estar contente com as escapadelas do senhor seu esposo, mas no fim das contas pouco importava se o rei tinha um bastardo ou uma centena. A lei e o costume poucos direitos davam aos filhos ilegítimos. Gendry, a moça no Vale, o rapaz em Ponta Tempestade, nenhum deles podia ameaçar os filhos legítimos de Robert...
Suas reflexões foram interrompidas por um suave toque na porta.
- Um homem para vê-lo, senhor - chamou Harwin. - Não quer dizer o nome.
- Mande-o entrar - Ned respondeu, curioso.
O visitante era um homem corpulento com botas molhadas e completamente enlameadas, um pesado manto marrom da ráfia mais grosseira, as feições escondidas por um capuz, as mãos enfiadas em volumosas mangas.
- Quem é você? - Ned perguntou.
- Um amigo - disse o homem encapuzado numa estranha voz. - Temos de conversar a sós, Lorde Stark.
A curiosidade era mais forte que a cautela.
- Harwin, deixe-nos - ordenou. Só depois de estarem a sós, por trás das portas fechadas, é que o visitante puxou o capuz para trás.
- Lorde Varys? - Ned exclamou, estupefato.
- Lorde Stark - disse Varys polidamente enquanto se sentava.
- Posso lhe servir uma bebida? - Ned encheu duas taças de vinho do verão e entregou uma delas a Varys. - Poderia ter passado por você que nunca o reconheceria - ele disse, incrédulo. Nunca vira o eunuco vestido de outra coisa que não fosse seda, veludo e os mais ricos damascos; e este homem cheirava a suor, não a lilases.
- Era esta a minha maior esperança - Varys respondeu. - Não seria bom se certas pessoas soubessem que conversamos em particular. A rainha o vigia de perto. Este vinho é de primeira escolha. Obrigado.
- Como passou pelos meus guardas? - Ned perguntou. Porther e Cayn tinham sido colocados fora da torre, e Alyn, nas escadas.
- A Fortaleza Vermelha tem caminhos que só são conhecidos por fantasmas e aranhas - Varys sorriu como quem pede perdão. - Não lhe tomarei muito tempo, senhor. Há coisas que precisa saber. E a Mão do Rei, e o rei é um tolo - a voz do eunuco tinha perdido o timbre rico; agora era fina e aguçada como um chicote. - É seu amigo, eu sei, mas apesar disso, um tolo... e está perdido, a menos que o salve. Hoje foi por pouco. Alimentavam a esperança de matá-lo durante a luta corpo a
corpo.
Por um momento Ned ficou sem fala, de tão chocado.
- Quem?
Varys bebericou o vinho.
- Se realmente preciso lhe dizer isso, então é um tolo ainda maior que Robert, e eu estou do lado errado.
- Os Lannister - Ned falou. - A rainha... não, não acredito nisso, nem mesmo de Cersei. Ela lhe pediu para não lutar!
- Ela o proibiu de lutar, na presença do irmão, dos cavaleiros e de metade da corte. Diga-me francamente: conhece alguma maneira mais segura de forçar o Rei Robert a participar do corpo a corpo? É o que lhe pergunto.
Ned tinha uma sensação doentia nas entranhas. O eunuco descobrira uma verdade; dizer a Robert Baratheon que não conseguia, não devia ou não podia fazer uma coisa era o mesmo que lhe ordenar que fizesse.
- Mesmo que ele tivesse lutado, quem se atreveria a atingir o rei?
Varys encolheu os ombros.
- Havia quarenta participantes no corpo a corpo. Os Lannister têm muitos amigos. No meio de todo aquele caos, com cavalos a relinchar, ossos a se partirem e Thoros de Myr a brandir aquela sua absurda espada flamejante, quem poderia falar em assassinato se algum golpe casual caísse sobre Sua Graça? - o eunuco dirigiu-se ao jarro e voltou a encher a taça. - Depois de a coisa feita, o assassino estaria fora de si de desgosto. Quase consigo ouvi-lo chorar. Tão triste. Mas não haveria dúvida de que a amável e compassiva viúva se apiedaria, poria o pobre infeliz em pé e o abençoaria com um gentil beijo de perdão. O bom Rei Joffrey não teria escolha que não fosse perdoá-lo - Varys passou a mão no rosto. - Ou talvez Cersei deixasse Sor Ilyn cortar-lhe a cabeça, haveria assim menos riscos para os Lannister, embora fosse uma surpresa bem desagradável para seu pequeno amigo.
Ned sentiu sua ira aumentar.
- Conhecia esta conjura e, no entanto, não fez nada.
- Eu governo murmuradores, não guerreiros.
- Podia ter vindo falar comigo mais cedo.
- Ah, sim, confesso. E o senhor teria ido correndo falar com o rei, não é verdade? E quando Robert ouvisse dizer que estava em perigo, o que teria feito? Gostaria de saber.
Ned pensou naquilo.
- Teria mandado todos para os sete infernos e lutado de qualquer maneira, para mostrar que não os temia.
Varys abriu as mãos.
- Vou fazer outra confissão, Lorde Eddard. Tinha curiosidade em ver o que o senhor faria. Por que não veio falar comigo? Me perguntou, e devo responder: Ora, porque não confiava no senhor.
- Não confiava em mim? - Ned estava francamente estupefato.
- A Fortaleza Vermelha abriga dois tipos de pessoas, Lorde Eddard - Varys continuou. - Aqueles que são leais ao reino e os que são leais apenas a si mesmos. Até hoje de manhã não sabia dizer a que grupo o senhor pertencia... e portanto esperei para ver... e agora sei com toda certeza - fez um rechonchudo sorrisinho apertado e, por um momento, seu rosto privado e sua máscara pública foram iguais. - Começo a compreender por que a rainha o teme tanto. Ah, sim, como começo.
- Quem ela deve temer é você - disse Ned.
- Não. Eu sou aquilo que sou. O rei utiliza-me, mas isso o envergonha. Nosso Robert é guerreiro muito poderoso, e um homem tão viril pouca amizade sente por denunciantes, espiões e eunucos. Se chegar o dia em que Cersei sussurre "Mate aquele homem", Ilyn Payne me cortará a cabeça num piscar de olhos. E quem faria então luto pelo pobre Varys? Seja no Norte, seja no Sul, não se cantam canções sobre aranhas - estendeu uma mão suave e tocou em Ned. - Mas o senhor, Lorde Stark... penso... não, sei... ele não o mataria, nem mesmo pela sua rainha, e pode residir aí a nossa salvação.
Aquilo tudo era demais. Por um momento, Eddard Stark nada mais desejou que voltar a Winterfell, à simplicidade limpa do Norte, onde os inimigos eram o inverno e os selvagens do lado de lá da Muralha.
- Certamente que Robert tem outros amigos leais - protestou. - Os irmãos, a...
- ... mulher? - terminou Varys, com um sorriso cortante. - Os irmãos odeiam os Lannister, é certo, mas odiar a rainha e amar o rei não são bem a mesma coisa, não é? Sor Barristan ama a sua honra, o Grande Meistre Pycelle ama o seu cargo, e Mindinho ama Mindinho.
- A Guarda Real...
- Um escudo de papel - disse o eunuco. - Procure não parecer tão chocado, Lorde Stark. O próprio Jaime Lannister é um Irmão Juramentado das Espadas Brancas, e todos sabemos o que os votos dele valem. Os dias em que homens como Ryam Redwyne e Príncipe Aemon, o Cavaleiro do Dragão, usavam o manto branco estão perdidos na poeira e nas canções. Daqueles sete, só Sor Barristan Selmy é feito do aço verdadeiro, e Selmy é velho. Sor Borós e Sor Meryn são criaturas da rainha até os ossos, e tenho profundas suspeitas sobre os outros. Não, senhor, quando as espadas forem desembainhadas a sério, será o único amigo verdadeiro que Robert Baratheon terá.
- Robert tem de ser informado - disse Ned. - Se o que diz for verdade, e ainda que apenas parte do que diz for verdade, então o próprio rei terá de ouvir.
- E que provas lhe apresentaremos? As minhas palavras contra as deles? Os meus passarinhos contra a rainha e o Regicida, contra os irmãos e o conselho do rei, contra os Guardiães do Leste e do Oeste, contra todo o poderio de Rochedo Casterly? Rogo-lhe, mande buscar diretamente Sor Ilyn, pois nos poupará tempo. Sei onde termina essa estrada.
- Mas se o que diz for verdade, eles se limitarão a esperar seu tempo e farão outra tentativa.
- Certamente farão - Varys confirmou. - E temo que o façam mais cedo que tarde. O senhor os está deixando muito ansiosos, Lorde Eddard. Mas meus passarinhos estarão à escuta, e em conjunto, o senhor e eu, talvez sejamos capazes de nos adiantarmos a eles - pôs-se em pé e puxou o capuz até voltar a esconder o rosto. - Agradeço-lhe o vinho. Voltaremos a conversar. Quando voltar a me ver no conselho, assegure-se de me tratar com o desprezo habitual. Não deverá achar difícil.
O eunuco já se encontrava junto à porta quando Ned o chamou:
- Varys - o homem encapuzado virou-se. - Como morreu Jon Arryn?
- Perguntava a mim próprio quando chegaria a esse ponto.
- Diga-me.
- Chamam-lhe lágrimas de Lys. Coisa rara e dispendiosa, límpida e doce como a água, e não deixa rastro algum. Supliquei a Lorde Arryn que usasse um provador, foi nesta mesma sala que lhe supliquei, mas ele não queria ouvir falar do assunto. Só alguém que fosse menos que um homem podia sequer pensar em tal coisa, ele me disse.
Ned tinha de saber o resto.
- Quem lhe deu o veneno?
- Algum amigo querido, sem dúvida, alguém que partilhasse com frequência comida e bebida com ele. Ah, mas qual? Havia muitos assim. Lorde Arryn era um homem bondoso e confiante - o eunuco suspirou. - Mas havia um rapaz. Tudo o que era devia a Jon Arryn, mas quando a viúva fugiu para o Ninho da Águia com os seus, ficou em Porto Real e prosperou. Alegra-me sempre o coração ver os jovens subir neste mundo - o chicote estava de novo em sua voz; cada palavra era uma chicotada. - Deve ter feito uma figura galante no torneio, em sua brilhante armadura nova, com aqueles crescentes no manto. Uma pena que tenha morrido tão intempestivamente, antes que o senhor tivesse possibilidade de falar com ele...
Ned sentiu-se quase como se ele próprio tivesse sido envenenado.
- O escudeiro - ele exclamou. - Sor Hugh - rodas dentro de rodas dentro de rodas. A cabeça de Ned latejava. - Por quê? Por quê agora? Jon Arryn foi Mão durante catorze anos. Que andava fazendo ele para que tivessem de matá-lo?
- Andava fazendo perguntas - respondeu Varys, esgueirando-se porta afora.  

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