quarta-feira, 21 de agosto de 2013

32 - ARYA


O gato preto de uma só orelha arqueou o dorso e silvou para ela. Arya avançou pela ruela, equilibrada com leveza nas pontas dos pés nus, escutando as batidas irregulares do coração, respirando lenta e profundamente. Silenciosa como uma sombra, disse a si mesma, leve como uma pena. O gato observou seu avanço, com olhos cautelosos.
Apanhar gatos era difícil. Tinha as mãos cobertas de arranhões meio curados e ambos os joelhos estavam cheios de crostas onde os esfolara nos tombos que levara. A princípio, até o enorme e gordo gato do cozinheiro fora capaz de lhe escapar, mas Syrio a manteve caçando noite e dia. Quando correra até ele com as mãos sangrando, dissera-lhe:
- Tão lenta! Mais depressa, garota. Seus inimigos lhe farão mais que arranhões.
Então, Syrio passou fogo de Myr em suas feridas, e ardeu tanto que Arya teve de morder o lábio para não gritar. Depois, ele mandou que apanhasse mais gatos. A Fortaleza Vermelha estava cheia deles: velhos gatos preguiçosos dormitando ao sol, caçadores de ratos de olhos frios retorcendo as caudas, gatinhos rápidos cujas garras eram como agulhas, gatos de senhora, todos escovados e confiantes, sombras esfarrapadas que caçavam nas pilhas de dejetos. Um a um, Arya os perseguiu, agarrou e trouxe todos, orgulhosamente, para Syrio Forel... todos, menos aquele, aquele endemoniado gato negro de uma orelha só.
- Este é o verdadeiro rei do castelo que aí está - dissera-lhe um dos homens de manto dourado. - Mais velho que o pecado e duas vezes mais maldoso. Certa vez, o rei organizou um banquete em honra do pai da rainha, e este bastardo preto saltou para a mesa e roubou uma codorna assada justamente dos dedos de Lorde Tywin. Robert riu tanto que quase explodiu. Afaste-se desse bicho, miúda.
Ela correu atrás dele por metade do castelo; duas vezes em volta da Torre da Mão, através da muralha interior, pelos estábulos, pelos degraus sinuosos abaixo, até para lá da cozinha pequena, da pocilga e dos aquartelamentos dos homens de manto dourado, ao longo da base da muralha do rio e por mais degraus acima, e de um lado para o outro pelo Caminho dos Traidores, e depois desceu novamente, atravessando um portão e rodeando um poço, entrando e saindo de estranhos edifícios, até que não soube mais onde se encontrava.
Agora, por fim, tinha-o encurralado. Muros altos apertavam os dois de ambos os lados, e na frente não havia mais que uma massa de pedra lisa e sem janelas. Silenciosa como uma sombra, repetiu enquanto deslizava em frente, leve como uma pena.
Quando estava a não mais de três passos, o gato se pôs em movimento. Saltou para a esquerda e depois para a direita; e Arya saltou para a direita e depois para a esquerda, interrompendo sua fuga. O animal voltou a silvar e tentou passar como um raio entre suas pernas. Rápida como uma cobra, pensou. Suas mãos fecharam-se em volta dele.
Apertou-o contra o peito, rodopiando e rindo em voz alta enquanto as garras do gato raspavam na parte da frente de seu colete de couro. Rapidamente beijou o gato bem entre os olhos, atirando a cabeça para trás um instante antes de as garras do animal encontrarem seu rosto. O gato miou e bufou.
- O que ele está fazendo com aquele gato?
Sobressaltada, Arya deixou cair o gato e rodopiou na direção da voz. O gato desapareceu num piscar de olhos. No fim da ruela encontrava-se uma jovem com uma massa de caracóis dourados, trajando um vestido de boneca de cetim azul. Tinha ao lado um rapazinho louro e roliço, com um veado empinado bordado a pérolas no peito do gibão e uma miniatura de espada ao cinto. Princesa Myrcella e Príncipe Tommen, pensou Arya. Uma septã grande como um cavalo de tração pairava sobre ambos, e atrás dela viam-se dois homens grandes com mantos carmim, guardas da Casa Lannister.
- O que você estava fazendo com aquele gato, rapaz? - perguntou de novo Myrcella com severidade. Dirigindo-se ao irmão, disse: - É um rapaz esfarrapado, não é? Olha para ele - e soltou um risinho.
- Um rapaz esfarrapado, sujo e malcheiroso - concordou Tommen.
Eles não me reconhecem, Arya se deu conta. Nem sequer percebem que sou uma menina. Mas não era de se estranhar, ela estava descalça e suja, com os cabelos emaranhados da longa correria pelo castelo, vestida com um colete rasgado por garras de gato e com calças marrons de ráfia cortadas grosseiramente acima dos joelhos cobertos de crostas. Não se usam saias e sedas quando se está apanhando gatos. Num movimento rápido, abaixou a cabeça e caiu sobre um joelho. Talvez acabassem por não reconhecê-la mesmo. Caso contrário, estaria metida numa grande enrascada. Septã Mordane se sentiria humilhada, e Sansa nunca mais voltaria a falar com ela, de tanta vergonha.
A velha septã gorda avançou.
- Rapaz, como chegou aqui? Não deve vir a esta parte do castelo.
- Não é possível manter este tipo de moleque lá fora - disse um dos homens de manto vermelho. - É como tentar evitar a entrada de ratazanas.
- A quem você pertence, rapaz? - exigiu saber a septã. - Responda-me. O que se passa com você, é mudo?
A voz de Arya ficou presa na garganta. Se respondesse, Tommen e Myrcella certamente a reconheceriam.
- Godwyn, traga-o aqui - ordenou a septã. O mais alto dos guardas avançou pela ruela.
O pânico apertou sua garganta como uma mão gigante. Não consegui falar nem que sua vida dependesse disso. Calma como águas paradas, pensou, movendo a boca em silêncio. No momento em que Godwyn estendeu a mão para agarrá-la, Arya pôs-se em movimento. Rápida como. uma cobra. Inclinou-se para a esquerda, e os dedos do homem roçaram seu braço, e então girou em volta dele. Suave como seda de verão. Quando o homem conseguiu se virar, ela já seguia numa correria pela ruela afora. Ligeira como uma corça. A septã gritou. Arya deslizou por entre pernas tão grossas e brancas como colunas de mármore, pôs-se em pé de um salto, atirou-se em direção ao Príncipe Tommen e saltou por cima dele, fazendo-o cair de traseiro no chão, com força, soltando um "Uf”. Arya rodopiou, ficando fora do alcance do segundo guarda, e então já tinha passado por todos eles e corria a toda velocidade.
Ouviu gritos, depois passos que corriam e se aproximavam. Deixou-se cair e rolou. O homem do manto vermelho passou por ela de lado, tropeçando. Arya pôs-se em pé como uma mola. Viu uma janela acima de sua cabeça, alta e estreita, pouco mais que uma fresta. Saltou, pendurou-se no peitoril e subiu. Segurou a respiração enquanto se retorcia para passar.
Escorregadia como uma enguia. Caindo no chão em frente de uma surpresa criada, endireitou-se de um salto, sacudiu as sujeiras das roupas e desatou de novo a correr, atravessando a porta e um longo salão, descendo escadas, atravessando um pátio escondido, rodeando uma esquina, percorrendo um muro, e atravessando uma janela baixa e estreita para dentro de um porão escuro como breu. Os sons foram ficando cada vez mais distantes atrás de Arya.
Ela estava sem fôlego e completamente perdida. Estaria metida em uma grande enrascada se a tivessem reconhecido, mas não lhe parecia haver motivo para preocupações. Movera-se muito rápido. Ligeira como uma corça. Agachou-se no escuro de encontro a uma parede úmida de pedra e pôs-se a escutar, mas os únicos sons que ouviu foram o bater do seu coração e um pingo distante de água. Silenciosa como uma sombra, disse a si mesma. Gostaria de saber onde estava. Na época de sua chegada a Porto Real, costumava ter pesadelos em que se perdia no castelo. Seu pai dizia que a Fortaleza Vermelha era menor que Winterfell, mas nos seus sonhos ela era imensa, um infinito labirinto de pedra com paredes que pareciam se mover e mudar atrás dela. Dava por si vagando ao longo de salões sombrios, passando por tapeçarias desbotadas, descendo escadas circulares sem fim, correndo por pátios ou sobre pontes, e seus gritos ecoavam sem resposta. Em algumas das salas, as paredes de pedra vermelha pareciam pingar sangue, e ela não encontrava janelas em parte alguma. Por vezes, ouvia a voz de seu pai, mas era sempre de muito longe e, por mais depressa que corresse, a voz ficava cada vez mais fraca, até desaparecer no nada e Arya ficar sozinha no escuro.
Percebeu que agora estava muito escuro. Abraçou com força os joelhos nus contra o peito e estremeceu. Resolveu que esperaria em silêncio e contaria até dez mil. Então seria seguro rastejar para fora dali e encontrar o caminho para casa. Quando chegou a oitenta e sete, a sala começou a clarear, porque seus olhos tinham se adaptado à escuridão.
Lentamente, os vultos que a rodeavam tomaram forma. Enormes olhos vazios fixavam-se nela, famintos, através das sombras, e viu vagamente as sombras pontiagudas de longos dentes. Tinha perdido a conta. Fechou os olhos, mordeu o lábio e mandou o medo embora, Quando voltasse a olhar, os monstros teriam partido. Nunca teriam existido. Fez de conta que Syrio estava ao seu lado no escuro, sussurrando-lhe ao ouvido. Calma como as águas paradas, disse a si mesma. Forte como um urso. Feroz como um glutão. Voltou a abrir os olhos.
Os monstros ainda lá estavam, mas o medo tinha desaparecido. Arya pôs-se em pé, movendo-se com cuidado. As cabeças estavam todas em volta dela. Tocou em uma, curiosa, perguntando-se se seria verdadeira. As pontas dos seus dedos roçaram num maxilar maciço, sentindo-o bastante real. O osso era suave sob sua mão, frio e duro ao toque. Percorreu um dente com os dedos, negro e aguçado, um punhal feito de escuridão. Aquilo a fez estremecer.
- Está morto - disse em voz alta. - É só um crânio, não pode me fazer mal - mas, de algum modo, o monstro parecia saber que ela estava ali. Podia sentir seus olhos vazios observando-a por entre as sombras, e havia qualquer coisa naquela sala escura e cavernosa que não gostava dela. Afastou-se do crânio com cuidado e bateu as costas num segundo, maior que o primeiro. Por um instante sentiu os dentes se enterrarem em seu ombro, como se aquilo desejasse mordê-la. Arya rodopiou, sentiu o couro prender-se e se rasgar quando uma enorme presa mordeu seu colete, e então desatou a correr. Outro crânio ergueu-se na sua frente, o maior de todos os monstros, mas Arya nem sequer titubeou. Saltou sobre uma fileira de dentes negros altos como espadas, precipitou-se por entre maxilas famintas e atirou-se contra a porta.
Suas mãos alcançaram um pesado anel de ferro incrustado na madeira, e ela o puxou. A porta resistiu por um momento, antes de começar lentamente a se abrir para dentro, com um rangido tão alto que Arya teve certeza de que poderia ser ouvido em toda a cidade. Abriu a porta apenas o suficiente para se esgueirar e sair para o átrio à sua frente.
Se a sala com os monstros era escura, o átrio era a mais negra fossa dos sete infernos. Calma como águas paradas, disse Arya a si mesma, e segundos depois de seus olhos se adaptarem, percebeu que nada havia para ver além do vago contorno cinzento da porta que acabara de atravessar. Agitou os dedos na frente do rosto, sentiu o ar, mas nada viu. Estava cega.
Uma dançarina de água vê com todos os sentidos, lembrou-se. Fechou os olhos e sossegou a respiração... um, dois, três; sentiu o silêncio e estendeu as mãos. Seus dedos roçaram pedras ásperas, sem acabamento, à sua esquerda. Seguiu a parede tocando levemente a superfície, avançando com pequenos passos deslizantes pela escuridão.
Todos os átrios levam a algum lado, Onde há uma entrada, há uma saída. O medo golpeia mais profundamente que as espadas. Arya decidiu que não teria medo. Parecia já ter percorrido um longo caminho quando a parede terminou abruptamente e uma aragem de ar frio soprou seu rosto.
Cabelos soltos agitaram-se levemente contra sua pele. Vindos de algum lugar, muito abaixo, ouviu ruídos. O raspar de botas, o som distante de vozes. Uma luz vacilante passou pela parede, ligeira, e ela viu que se encontrava no topo de um grande poço negro, um precipício com seis metros de lado a lado, que mergulhava profundamente na terra. Enormes pedras tinham sido enfiadas nas paredes curvas para formar degraus, espiralando para baixo, e mais para baixo, escuras como os degraus do inferno sobre os quais a Velha Ama costumava lhe falar. E algo subia, vindo da escuridão, das entranhas da terra...
Arya espreitou por sobre a borda e sentiu a fria aragem negra no rosto. Muito abaixo viu a luz de um único archote, pequeno como a chama de uma vela. Distinguiu dois homens. Suas sombras se contorciam contra os lados do poço, altas como gigantes. Conseguia ouvir suas vozes ecoando pela chaminé acima.
- ... encontrou um bastardo - disse um deles. - O resto virá em breve. Um dia, dois, uma quinzena...
- E quando souber a verdade, o que vai fazer? - perguntou uma segunda voz no sotaque fluido das Cidades Livres.
- Só os deuses sabem - disse a primeira voz. Arya conseguiu ver um filamento de fumaça cinzenta que saía do archote, contorcendo-se como uma serpente enquanto subia. - Os idiotas tentaram matar seu filho e, o que é pior, fizeram da tentativa uma farsa. Ele não é homem que ponha algo assim de lado. Pode ter a certeza de que o lobo e o leão se atirarão em breve às gargantas um do outro, quer queiramos ou não.
- É cedo demais, cedo demais - queixou-se a voz com o sotaque. - De que serviria uma guerra agora? Não estamos preparados. Faça com que se demore a vir.
- Isto é o mesmo que me pedir para parar o tempo. Acha que sou um feiticeiro?
O outro soltou um risinho.
- Sim, não mais que isso. - Labaredas lamberam o ar frio. As sombras altas estavam quase em cima de Arya. Logo depois, o homem que segurava o archote surgiu no seu campo de visão, com o companheiro ao seu lado. Arya arrastou-se para trás, afastando-se do poço, e encostou-se à parede. Prendeu a respiração no momento em que os homens chegavam ao topo das escadas.
- Que quer que eu faça? - perguntou o homem, robusto, com uma capa curta de couro, que levava o archote. Mesmo calçando botas pesadas, seus pés pareciam deslizar pelo chão sem um som sequer. Sua cara era redonda, desfigurada por cicatrizes, e um tufo de barba negra espreitava por baixo do capacete de aço. Ele usava cota de malha sobre couro fervido, com um punhal e uma espada curta enfiados no cinto. Arya sentiu qualquer coisa estranhamente familiar nele.
- Se uma Mão pode morrer, por que não uma segunda? - respondeu o homem com sotaque e a barba amarela bifurcada. - Você já dançou essa dança, meu amigo - não era alguém que Arya tivesse visto antes, disto tinha certeza. Era enormemente gordo, mas parecia caminhar com ligeireza, transportando o peso nas bolas que eram seus pés, como o faria um dançarino de água. Seus anéis cintilavam à luz do archote, ouro vermelho e prata branca, incrustados de rubis, safiras, olhos de tigre amarelos e listrados. Todos os dedos traziam um anel; alguns tinham dois.
- Antes não é agora, e esta Mão não é a outra - respondeu o homem desfigurado quando entraram no átrio. Imóvel como uma pedra, disse Arya a si mesma, silenciosa como uma sombra. Cegos pela luz do archote, os homens não a viram encostada à pedra, a poucos centímetros de distância.
- Talvez seja assim - respondeu o homem da barba bifurcada, fazendo uma pausa para recuperar o fôlego depois da longa subida. - Seja como for, precisamos de tempo, A princesa espera uma criança. O khal não se mexerá até que seu filho nasça. Você sabe como são aqueles selvagens.
O homem do archote empurrou qualquer coisa. Arya ouviu um profundo estrondo. Uma enorme laje de pedra, vermelha à luz do archote, deslizou do teto com um barulho tão estridente que quase a levou a gritar. Onde estava a entrada do poço só havia agora pedra, sólida e sem nenhuma fenda.
- Se ele não se mexer em breve, poderá ser tarde demais - disse o homem robusto com o capacete de aço. - Isto já não é um jogo com dois jogadores, se é que alguma vez tenha sido. Stannis Baratheon e Lysa Arryn fugiram para fora do meu alcance, e os murmúrios dizem que reúnem espadas à sua volta. O Cavaleiro das Flores escreve para Jardim de Cima, insistindo com o senhor seu pai para que envie a irmã para a corte, A moça é uma donzela de catorze anos, doce, bela e maleável, e Lorde Renly e Sor Loras pretendem que Robert a leve para a cama, case-se com ela e faça dela uma nova rainha. Mindinho... só os deuses sabem que jogo Mindinho está jogando. Mas é Lorde Stark que me dificulta o sono. Ele tem o bastardo, tem o livro e, em breve, terá a verdade. E agora a mulher dele raptou Tyrion Lannister, graças à interferência de Mindinho. Lorde Tywin tomará isto como um ultraje, e Jaime tem uma estranha afeição pelo Duende. Se os Lannister agirem contra o Norte, os Tully se envolverão também. Você me pede que eu faça demorar para acontecer. Apresse-se então, respondo eu. Nem mesmo o melhor dos malabaristas consegue manter para sempre cem bolas no ar.
- Você é mais que um malabarista, velho amigo. É um verdadeiro feiticeiro. Tudo o que peço é que aplique sua magia durante um pouco mais de tempo - começaram a atravessar o átrio na direção de onde Arya viera, passando pela sala com os monstros.
- Farei o que puder - o homem do archote disse suavemente. - Preciso de ouro e de mais cinquenta aves.
Arya esperou que eles se afastassem bastante e depois rastejou atrás deles. Silenciosa como uma sombra.
- Tantas? - as vozes tornavam-se mais fracas à medida que a luz diminuía à sua frente. -Aquelas de que necessita são difíceis de encontrar... tão novas. Para entender as suas cartas... talvez mais velhas... não morrem tão facilmente...
- Não. As mais novas são mais seguras... trate-as com cuidado.
- ... se se mantivessem de boca fechada...
- ... o risco...
Muito depois de as vozes desaparecerem, Arya ainda via a luz do archote, uma estrela fumegante pedindo-lhe que a seguisse. Duas vezes parecia ter desaparecido, mas ela prosseguiu em frente, e nas duas vezes encontrou-se no topo de escadas íngremes e estreitas, com o archote cintilando muito abaixo. Apressou-se em segui-lo para baixo, e mais para baixo. Uma vez tropeçou numa pedra e caiu contra a parede, e sua mão encontrou terra nua suportada por troncos, já não mais o túnel revestido de pedra.
Sentia rastejar atrás deles por milhas. Por fim, eles desapareceram, mas não havia lugar para onde ir a não ser em frente. Encontrou de novo a parede e a seguiu, cega e perdida, fazendo de conta que Nymeria caminhava ao seu lado na escuridão. Por fim, mergulhou até o joelho em uma água malcheirosa, desejando poder dançar sobre ela como Syrio talvez pudesse, e perguntando-se se alguma vez voltaria a ver a luz. Já estava completamente escuro quando Arya finalmente emergiu para o ar noturno.
Descobriu que se encontrava na desembocadura de um esgoto, no local onde se despejava no rio. Cheirava tão mal que ela se despiu ali mesmo, atirando a roupa suja para a margem do rio antes de mergulhar nas profundas águas negras. Nadou até sentir-se limpa, e saiu da água tremendo.
Alguns cavaleiros passaram pela estrada do rio enquanto Arya lavava a roupa, mas, se a viram, magricela e nua, esfregando os farrapos ao luar, não lhe deram importância. Estava a milhas do castelo, mas, onde quer que se estivesse em Porto Real, bastava olhar para cima para ver a Fortaleza Vermelha no topo do Monte Aegon, e assim não havia perigo de não encontrar o caminho de volta. A roupa já estava quase seca quando chegou aos portões da casa. A porta levadiça encontrava-se descida e os portões, trancados, mas dirigiu-se para a porta lateral de entrada. Os homens de manto dourado que estavam de vigia zombaram dela quando lhes pediu que a deixassem entrar.
- Desapareça - disse um deles. - Já não há restos da cozinha, e não queremos pedintes depois do cair da noite,
- Não sou pedinte - ela disse. - Eu vivo aqui.
- Eu mandei que desapareça. Precisa de um cascudo nas orelhas para que me escute?
- Quero ver meu pai.
Os guardas trocaram um olhar.
- E eu queria dormir com a rainha, mas isso não me atrasa nem adianta - disse o mais novo, O outro a encarou.
- E quem é esse teu pai, rapaz? O caçador de ratos da cidade?
- A Mão do Rei - Arya respondeu.
Os dois homens riram, mas então o mais velho deu um soco no outro, casualmente, como quem dá uma pancada num cão. Arya viu o golpe antes que se formasse, e pulou para trás, para fora do seu alcance, intocada.
- Não sou um rapaz - ela cuspiu as palavras. - Sou Arya Stark de Winterfell, e se me puserem as mãos o senhor meu pai ordenará ver suas cabeças na ponta de lanças. Se não acreditam em mim, vão buscar Jory Cassei ou Vayon Poole na Torre da Mão - pôs as mãos na cintura. - E agora, abrem o portão, ou vão precisar de um cascudo nas orelhas para ajudá-los a ouvir?
Seu pai estava sozinho na sala privada quando Harwin e Gordo Tom marcharam com Arya até lá, com uma candeia de azeite brilhando suavemente junto ao seu cotovelo. Estava inclinado e o maior livro que Arya vira na vida, um volume grosso com páginas amarelas e duras escritas numa letra complicada, encadernadas em couro desbotado. Eddard Stark fechou o livro para ouvir o relatório de Harwin. Tinha o rosto severo quando mandou os homens embora com agradecimentos.
- Você sabe que coloquei metade da minha guarda à sua procura? - disse Eddard Stark quando ficaram sozinhos. - Septá Mordane está fora de si de tanto medo. Está no septo orando pelo seu regresso sã e salva. Arya, você sabe que não deve nunca sair dos portões do castelo sem minha licença.
- Eu não saí dos portões - ela disse. - Bem, não tive intenção de sair. Estava lá embaixo nas masmorras, só que elas se transformaram, assim, num túnel. Estava tudo às escuras e eu não tinha um archote ou uma vela para iluminar, e por isso tive de continuar. Não podia voltar por onde tinha vindo por causa dos monstros. Pai, eles estavam falando de matá-lo! Os monstros, não, os dois homens. Eles não me viram, porque estava imóvel como uma pedra e silenciosa como uma sombra, mas eu os ouvi. Disseram que o senhor tem um livro e um bastardo, e que se uma Mão podia morrer, por que não uma segunda? O livro é esse? Aposto que o bastardo é Jon.
- Jon? Arya, do que está falando? Quem foi que disse isso?
- Eles disseram. Era um gordo com anéis e uma barba amarela bifurcada, e outro com cota de malha e um capacete de aço. E o gordo disse que tinham de fazer que demorasse mais, mas o outro respondeu que não podiam continuar fazendo malabarismos, e o lobo e o leão iam atacar-se um ao outro, e que era uma farsa - tentou se lembrar do resto. Não tinha compreendido bem tudo o que ouvira, e agora tudo se misturava em sua cabeça. - O gordo disse que a princesa estava esperando bebê. O do capacete de aço, que tinha o archote, disse que tinham de se apressar. Acho que ele era um feiticeiro.
- Um feiticeiro - disse Ned, sem sorrir. - Tinha uma longa barba branca e um chapéu alto e pontiagudo salpicado de estrelas?
- Não! Não foi como nas histórias da Velha Ama. Ele não parecia um feiticeiro, mas o gordo disse que ele era.
- Vou preveni-la, Arya, que se está tecendo este fio de ar...
- Não, eu já lhe disse, foi nas masmorras, perto do lugar com a parede secreta. Eu estava caçando gatos e, bem... - torceu o nariz. Se admitisse ter derrubado Príncipe Tommen, seu pai ficaria realmente zangado com ela. - ... bem, entrei assim por uma janela. Foi onde encontrei os monstros.
- Monstros e feiticeiros - o pai disse. - Parece que você teve uma bela aventura. Esses homens que disse ter ouvido, falaram de malabarismos e pantomimas?
- Sim - Arya admitiu - só que...
- Arya, eles eram pantomimeiros - seu pai a repreendeu. - Deve haver por esses dias uma dúzia de trupes em Porto Real, vindas para ganhar algumas moedas com o público do torneio. Não tenho certeza do que esses dois faziam no castelo, mas talvez o rei tenha pedido um espetáculo.
- Não - ela balançou a cabeça obstinadamente. - Eles não eram...
- Seja como for, não devia andar seguindo pessoas e espiá-las. E tampouco me agrada a idéia de minha filha andar se enfiando por janelas desconhecidas atrás de gatos vadios. Olhe para você, querida. Seus braços estão cobertos de arranhões. Isto já se prolongou o suficiente. Diga a Syrio Forel que quero conversar com ele...
Seu pai foi interrompido por uma batida súbita e curta na porta.
- Senhor Eddard, meus perdões - chamou Desmond, abrindo uma fresta da porta - mas está aqui um irmão negro suplicando uma audiência. Diz que o assunto é urgente. Pensei que talvez quisesse saber.
- Minha porta está sempre aberta para a Patrulha da Noite - ele respondeu.
Desmond introduziu o homem na sala. Era corcunda e feio, com uma barba malcuidada e roupas sujas, mas Eddard Stark o recebeu de forma agradável e perguntou seu nome.
- Yoren, a serviço de vossa senhoria. Minhas desculpas pela hora - fez uma reverência para Arya. - E este deve ser o seu filho. Ele se parece com o senhor.
- Sou uma menina - Arya disse, exasperada. Se aquele velho vinha da Muralha, devia ter passado por Winterfell. - Conhece meus irmãos? - perguntou em tom excitado. - Robb e Bran estão em Winterfell, e Jon está na Muralha. Jon Snow. Ele também pertence à Patrulha da Noite, deve conhecê-lo, tem um lobo gigante, branco, de olhos vermelhos. Jon já é um patrulheiro? Eu sou Arya Stark - o velho, com suas malcheirosas roupas negras, a olhava de um modo estranho, mas Arya parecia não conseguir parar de falar. - Quando o senhor voltar à Muralha, pode levar uma carta minha para Jon? - desejava que Jon estivesse ali naquele momento. Ele acreditaria no que ela dizia sobre as masmorras e o homem gordo com a barba bifurcada e o feiticeiro do capacete de aço.
- Minha filha esquece-se com frequência da educação - disse Eddard Stark com um ligeiro sorriso que suavizava suas palavras. - Peço-lhe perdão, Yoren. Foi meu irmão Benjen que o enviou?
- Ninguém me enviou, senhor, além do velho Mormont. Estou aqui para encontrar homens para a Muralha, e da próxima vez que Robert fizer um torneio, dobrarei o joelho e gritarei aquilo que nos faz falta, para ver se o rei e sua Mão têm alguma escória nas masmorras de que queiram se ver livres. Mas pode-se dizer que Benjen Stark é o motivo de estarmos nos falando. O sangue dele corre negro, o que fez com que fosse tanto meu irmão como seu. Foi por ele que vim. E cavalguei duramente, e como, quase matei a égua de tanto fazê-la correr, mas deixei os outros muito para trás.
- Os outros?
Yoren cuspiu:
- Mercenários, cavaleiros livres e lixo dessa espécie. Aquela estalagem estava cheia deles, e os vi farejando o cheiro. O cheiro de sangue ou de ouro, no fim das contas sempre dá no mesmo. E nem todos vieram para Porto Real. Alguns foram a galope para o Rochedo Casterly, e lá é mais perto. A essa altura, Lorde Tywin já deve ter recebido a notícia, pode contar com isso.
Eddard franziu a testa.
- E que notícia é essa?
Yoren lançou um olhar a Arya.
- É melhor que eu a dê em particular, senhor, se me desculpa.
- Como quiser. Desmond, leve minha filha aos seus aposentos - Ned deu um beijo na testa da filha. - Acabaremos nossa conversa amanhã.
Arya ficou no mesmo lugar, como se tivesse criado raízes.
- Não aconteceu nada ao Jon, não é? - perguntou a Yoren. - Ou ao Tio Benjen?
- Bem, quanto ao Stark não sei dizer. O rapaz Snow estava razoavelmente bem quando deixei a Muralha. Não são eles a minha preocupação.
Desmond pegou-lhe na mão.
- Venha, senhora. Ouviu o senhor seu pai.
Arya não tinha alternativa que não fosse ir com ele, desejando que tivesse sido Tom Gordo a buscá-la. Com Tom podia ter conseguido, com alguma desculpa, ficar junto à porta e ouvir o Yoren tinha a dizer, mas Desmond era inflexível demais para ser enganado.
- Quantos guardas meu pai tem? - ela perguntou a Desmond enquanto desciam para o seu quarto.
- Aqui em Porto Real? Cinquenta.
- Não deixariam que alguém o matasse, não é? - ela quis saber.
Desmond riu.
- Disso não precisa ter medo, senhorinha. Lorde Eddard está guardado noite e dia. Não lhe acontecerá nenhum mal.
- Os Lannister têm mais de cinquenta homens.
- Têm, mas cada nortenho vale tanto como dez desses soldados do Sul, por isso pode dormir tranquila.
- E se um feiticeiro fosse enviado para matá-lo?
- Bem, quanto a isso - Desmond respondeu, puxando da espada - os feiticeiros morrem como os outros homens depois de lhes cortarmos a cabeça.  

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