terça-feira, 27 de agosto de 2013

38 - TYRION


- Quer comer? - perguntou Morel, carrancudo. Segurava um prato de feijão cozido com a mão grossa de dedos curtos.
Tyrion Lannister estava faminto, mas recusou-se a deixar que aquele bruto o visse rebaixado.
- Uma perna de carneiro seria agradável - disse ele da pilha de palha suja que se acumulava a um canto de sua cela. - Talvez um prato de ervilhas com cebola, um pouco de pão fresco cozido com manteiga e um jarro de vinho com açúcar para empurrar tudo para baixo. Ou cerveja, se for mais fácil. Tento não ser esquisito demais.
- Há feijões - disse Mord. - Tome - e estendeu o braço.
Tyrion suspirou. O carcereiro não passava de cento e trinta quilos de grosseira estupidez, com dentes podres escurecidos e pequenos olhos escuros. O lado esquerdo do rosto era liso, com uma cicatriz no local em que um machado lhe cortara a orelha e parte da bochecha. Era tão previsível quanto feio, mas Tyrion tinha fome. Estendeu a mão para o prato.
Mord o puxou para longe, sorrindo.
- 'Tá aqui - disse, segurando-o fora do alcance de Tyrion.
O anão pôs-se rigidamente em pé, sentindo dores em todas as articulações.
- Temos de jogar o mesmo jogo idiota a cada refeição? - tentou de novo apanhar os feijões. Mord afastou-se, arrastando os pés, mostrando os dentes podres.
- Tá aqui, homem anão - esticou o braço sobre a borda onde terminava a cela e começava o céu. - Não quer comer? Toma. Ande para pegar.
Os braços de Tyrion eram curtos demais para alcançar o prato, e não ia se aproximar tanto assim da borda. Bastaria um empurrão rápido da pesada barriga branca de Mord, e ele acabaria seus dias como uma repugnante nódoa vermelha nas pedras de Céu, como acontecera com tantos outros prisioneiros do Ninho da Águia ao longo dos tempos.
- Pensando bem, não tenho fome - declarou, retirando-se para o canto da cela.
Mord grunhiu e abriu os dedos grossos. O vento capturou o prato, virando-o ao contrário enquanto caía. Um punhado de feijões borrifou os dois enquanto a comida tombava para longe dos seus olhos. O carcereiro desatou a rir, fazendo a barriga tremer como uma taça de pudim.
Tyrion sentiu um súbito ataque de raiva.
- Filho duma mula lazarenta - cuspiu. - Espero que morra de caganeira.
Por aquilo Mord lhe deu um pontapé ao encaminhar-se para a saída, enterrando com força a bota de ponta de aço nas costelas de Tyrion.
- Retiro o que disse! - arquejou, enquanto se retorcia na palha. - Hei de matá-lo eu mesmo, juro! - a pesada porta reforçada de ferro fechou-se com estrondo. Tyrion ouviu o ruído de chaves.
Para um homem pequeno, tinha sido amaldiçoado com uma boca perigosamente grande, refletiu enquanto rastejava de volta ao canto daquilo que os Arryn chamavam ridiculamente masmorras. Aconchegou-se sob um cobertor fino que era sua única roupa de cama, olhando um deslumbrante céu azul sem uma nuvem e montanhas distantes que se pareciam prolongar até o infinito, desejando ainda possuir o manto de pele de gato-das-sombras que ganhara de Marillion nos dados depois de o cantor tê-lo roubado do corpo daquele chefe salteador. A pele cheirava a sangue e mofo, mas era quente e grossa. Mord ficara com ela no momento em que lhe pusera os olhos em cima.
O vento puxava-lhe o cobertor com rajadas aguçadas como garras. A cela era miseravelmente pequena, até para um anão. A menos de um metro e meio de distância, onde deveria existir uma parede, onde uma parede estaria em uma masmorra de verdade, o chão terminava e o céu começava.
Não tinha falta de ar fresco e luz do sol, e da lua e das estrelas à noite, mas Tyrion teria trocado tudo isso num instante pelo mais úmido e sombrio fosso nas entranhas de Rochedo Casterly,
- Você vai voar - garantira-lhe Mord, quando o enfiara na cela. - Vinte dias, trinta, se calhar, cinquenta. Depois vai voar.
Os Arryn mantinham a única masmorra no reino de onde os prisioneiros eram livres para fugir se bem entendessem.
Naquele primeiro dia, depois de levar horas cobrindo-se de coragem, Tyrion deitara-se de barriga para baixo e rastejara até a borda para pôr a cabeça para fora e espreitar para baixo. O Céu estava cento e oitenta metros mais abaixo, sem nada, a não ser o ar para separá-lo do castelo. Se esticasse o pescoço o máximo possível, conseguia ver outras celas à direita, à esquerda e acima. Era uma abelha numa colmeia de pedra, e alguém lhe arrancara as asas.
Fazia frio na cela, o vento uivava noite e dia e, pior que tudo o mais, o chão era inclinado. Só um pouco, mas o suficiente. Tinha medo de fechar os olhos, medo da possibilidade de rolar durante o sono e acordar em total terror no momento em que deslizasse pela borda. Pouco admirava que as celas abertas enlouquecessem os homens.
Que os deuses me salvem, escrevera na parede um inquilino anterior qualquer, usando algo que se parecia, de forma suspeita, com sangue, o azul está chamando. A princípio Tyrion interrogou-se sobre quem teria sido ele e o que lhe teria acontecido; mais tarde, decidiu que preferia não saber. Se ao menos tivesse calado a boca...
O maldito rapaz começara tudo, olhando-o de cima de um trono esculpido em represeiro sob os estandartes da lua e do falcão da Casa Arryn. Tinham olhado de cima para Tyrion Lannister ao longo de toda a sua vida, mas era raro que quem o fizesse fosse um menino remelento de seis anos que precisava enfiar grossas almofadas debaixo das nádegas para se elevar à altura de um homem,
- Este é o homem mau? - perguntou o rapaz, agarrando-se à sua boneca.
- É - respondeu a Senhora Lysa de seu trono menor, ao seu lado. Vestia-se toda de azul e estava empoada e perfumada para os pretendentes que lhe enchiam a corte.
- Ele é tão pequeno - observou o Senhor do Ninho da Águia, aos risinhos.
- Este é Tyrion, o Duende, da Casa Lannister, que assassinou o senhor seu pai - ela levantou a voz para que chegasse a todo o comprimento do Alto Salão do Ninho da Águia, ressoando nas paredes de um branco leitoso e nos estreitos pilares, para que todos os homens pudessem ouvi-la. - Ele assassinou a Mão do Rei!
- Ah, e também o matei? - disse Tyrion, como um bobo.
Esta teria sido uma ótima ocasião para manter a boca fechada e a cabeça inclinada. Agora compreendia isto; pelos sete infernos, agora o compreendia. O Alto Salão dos Arryn era longo e austero, com uma frieza sinistra nas paredes de mármore branco com veios azuis, mas os rostos que o rodeavam eram de longe mais frios. O poder do Rochedo Casterly estava distante, e não havia amigos dos Lannister no Vale de Arryn. A submissão e o silêncio teriam sido suas melhores defesas.
Mas o humor de Tyrion estava negro como a noite mais escura. Para sua vergonha, fraquejara durante a última etapa de seu dia de subida ao Ninho da Águia, e as pernas atrofiadas se tinham mostrado incapazes de levá-lo mais alto. Bronn o transportara o resto do caminho, e a humilhação despejara óleo nas chamas da sua ira.
- Parece que fui um tipinho bastante atarefado - disse com um sarcasmo amargo. -Pergunto a mim mesmo onde teria arranjado tempo para tratar de todos esses assassinatos e mortes.
Deveria ter se lembrado de com quem estava lidando. Lysa Arryn e seu débil filho malsão não tinham ficado conhecidos na corte pelo seu amor por frases espirituosas, especialmente quando lhes eram dirigidas.
- Duende - Lysa disse friamente - cuidado com essa língua trocista e fale respeitosamente com meu filho, ou prometo que se arrependerá. Lembre-se de onde está. Isto é o Ninho da Águia e estes ao seu redor são os cavaleiros do Vale, homens leais que queriam bem a Jon Arryn. Todos eles morreriam por mim.
- Senhora Arryn, se algum mal me acontecer, meu irmão Jaime ficará feliz por se assegurar de que morram - no preciso momento em que cuspia as palavras, Tyrion soube que eram uma loucura.
- É capaz de voar, senhor de Lannister? - perguntou a Senhora Lysa. - Um anão tem asas? Se não, mais sensato seria engolir a próxima ameaça que lhe vier à cabeça.
- Não fiz ameaça nenhuma - ele respondeu. - Isso foi uma promessa.
Ao ouvir aquilo, o pequeno Lorde Robert pusera-se em pé de um salto, tão perturbado que a boneca caíra ao chão.
- Não pode nos machucar - o menino gritou. - Ninguém pode nos machucar aqui. Diga-lhe, mãe, diga-lhe que não pode nos machucar aqui - o rapaz começara a estremecer.
- O Ninho da Águia é inexpugnável - declarou calmamente Lysa Arryn. Puxou o filho para junto dela, rodeando-o com a segurança de seus rechonchudos braços brancos. - O Duende está tentando nos assustar, meu querido. Todos os Lannister são mentirosos. Ninguém vai machucar meu lindo filho.
O inferno era que não havia dúvida de que a mulher tinha razão. Depois de ver o que era preciso fazer para chegar até ali, Tyrion podia imaginar como seria um cavaleiro tentando abrir caminho até lá, lutando, revestido de armadura, enquanto pedras e setas choviam sobre ele dos pontos altos e inimigos o enfrentavam a cada passo. A palavra pesadelo nem começava a descrever a situação. Não surpreendia que o Ninho da Águia nunca tivesse sido tomado,
Mas, mesmo assim, Tyrion foi incapaz de se calar.
- Inexpugnável, não - bradou - meramente inconveniente.
O jovem Robert apontou para baixo, com a mão tremendo.
- Você é um mentiroso. Mãe, quero vê-lo voar - dois guardas vestidos com mantos azuis-celeste agarraram Tyrion pelos braços, levantando-o do chão.
Só os deuses sabiam o que poderia ter acontecido se não fosse Catelyn Stark.
- Irmã - ela chamou de seu lugar abaixo dos tronos. - Peço que se lembre que este homem é meu prisioneiro. Não o quero ferido.
Lysa Arryn olhou de relance e friamente para a irmã por um momento, depois se ergueu e caminhou imponentemente na direção de Tyrion, arrastando as longas saias atrás de si. Por um instante, o anão temeu que ela lhe batesse, mas, em vez disso, ordenou que o largassem. Os homens atiraram-no ao chão, as pernas fugiram-lhe e Tyrion caiu.
Deve ter apresentado um belo espetáculo quando lutou para se pôr de pé e a perna direita entrou em espasmos, atirando-o de novo ao chão. Gargalhadas rebentaram em todo o Alto Salão dos Arryn.
- O hospedezinho de minha irmã está demasiado cansado para se manter em pé - anunciou a Senhora Lysa. - Sor Vardis, leve-o para a masmorra. Um descanso em uma de nossas celas abertas lhe fará muito bem.
Os guardas o puxaram com brusquidão. Tyrion Lannister ficou pendurado entre eles, lançando fracos pontapés, com o rosto vermelho de vergonha.
- Eu me lembrarei disto - disse a todos quando o levaram.
E lembrava-se, por mais inútil que isso fosse. A princípio consolou-se com a ideia de que seu encarceramento não podia durar muito tempo. Lysa Arryn queria humilhá-lo, era tudo. Voltaria para buscá-lo, e em breve. Se não o fizesse, então Catelyn Stark desejaria interrogá-lo. Daquela vez dominaria melhor a língua. Elas não se atreveriam a matá-lo sem mais nem menos; ainda era um Lannister de Rochedo Casterly e se derramassem seu sangue, isso significaria guerra. Pelo menos era o que dizia a si mesmo.
Agora já não tinha tanta certeza. Talvez seus captores só pretendessem deixá-lo ali, apodrecendo, mas temia não ter forças para apodrecer por muito tempo. A cada dia que passava ficava um pouco mais fraco, e era só uma questão de tempo até que os pontapés e golpes de Mord o ferissem seriamente, partindo-se do princípio de que o carcereiro não o mataria antes de fome.
Mais algumas noites de frio e fome, e o azul também começaria a chamar por ele. Gostaria de saber o que estava acontecendo para lá das paredes (as que havia) de sua cela. Lorde Tywin teria certamente enviado patrulhas quando a notícia lhe chegara. Jaime poderia estar naquele momento liderando uma tropa na travessia das Montanhas da Lua... a menos que em vez disso se dirigisse para o norte, contra Winterfell. Será que alguém fora do Vale chegaria a suspeitar do local para onde Catelyn Stark o levara? Gostaria de saber o que faria Cersei quando soubesse. O rei podia ordenar sua libertação, mas Robert daria ouvidos à mulher ou à Mão? Tyrion não tinha ilusões quanto ao amor de Robert pela irmã.
Se Cersei usasse a cabeça, insistiria que o próprio rei julgasse Tyrion. Até Ned Stark pouco podia objetar a isso sem pôr em causa a honra do rei. E Tyrion, de bom grado, tentaria sua sorte num julgamento. Fossem quais fossem os assassinatos que lhe atribuíam, os Stark não tinham nenhuma prova, até onde ele soubesse. Que apresentassem seu caso perante o Trono de Ferro e os senhores da terra. Seria o fim deles. Se ao menos Cersei fosse suficientemente inteligente para ver isso...
Tyrion Lannister suspirou. Sua irmã não era desprovida de certa astúcia, mas o orgulho a cegava. Veria naquilo o insulto, mas não a oportunidade. E Jaime era ainda pior, impetuoso, teimoso e de ira fácil. Seu irmão nunca desataria um nó se pudesse abri-lo em dois a golpes de espada.
Perguntava a si mesmo qual deles teria enviado o salteador para silenciar o rapaz Stark, e se teriam de fato conspirado para matar Jon Arryn. Se a antiga Mão foi assassinada, a coisa tinha sido feita com habilidade e sutileza. Homens da idade dele andavam sempre morrendo de doença súbita. Por outro lado, enviar um imbecil qualquer com uma faca roubada para matar Brandon Stark parecia-lhe inacreditavelmente tosco. E, pensando melhor, não seria isso peculiar?...
Tyrion estremeceu. Ora, aí estava uma suspeita sórdida. Talvez o lobo gigante e o leão não fossem os únicos animais na floresta, e, se isto fosse verdade, alguém o estava usando como boi de piranha. Tyrion Lannister detestava ser usado. Tinha de sair dali, e depressa. Suas chances de dominar Mord eram baixas ou nulas, e ninguém se preparava para lhe fazer chegar cento e oitenta metros de corda, portanto, teria de convencê-los a libertá-lo. Sua boca o tinha metido naquela cela, bem podia tirá-lo de lá também.
Tyrion pôs-se em pé, fazendo o possível para ignorar a inclinação do chão, com seu tão sutil puxão para o abismo. Bateu na porta com o punho.
- Mord - gritou. - Carcereiro! Mord, preciso de você! - teve de continuar durante uns bons dez minutos até ouvir passos.
Tyrion deu um passo para trás um instante antes de a porta se abrir com estrondo.
- Você está fazendo barulho - grunhiu Mord, com sangue nos olhos. Pendurada à sua mão carnuda estava uma correia de couro, larga e grossa, enrolada no punho.
Nunca lhes mostre que tem medo, lembrou-se Tyrion.
- Gostaria de ser rico? - ele perguntou.
Mord bateu nele. Balançou a correia para trás com a mão, preguiçosamente, mas o couro apanhou Tyrion na parte de cima do braço. A força que trazia o fez cambalear, e a dor o fez ranger os dentes.
- Boca não, homem anão - preveniu Mord.
- Ouro - disse Tyrion, imitando um sorriso. - O Rochedo Casterly está cheio de ouro... ahhh... - daquela vez o golpe foi dado para a frente, e Mord colocou mais força no balanço, fazendo o couro estalar e saltar. Atingiu Tyrion nas costelas e o pôs de joelhos, choramingando. Forçou-se a olhar para o carcereiro. - Tão rico como os Lannister – arquejou. - É o que se diz, Mord...
Mord grunhiu. A correia assobiou pelo ar e acertou em cheio o rosto de Tyrion. A dor foi tanta que ele nem se deu conta de ter caído, mas, quando voltou a abrir os olhos, estava no chão da cela. O ouvido ressoava e a boca estava cheia de sangue.
Apalpou em busca de um apoio para se erguer, e os dedos roçaram... coisa nenhuma. Tyrion puxou a mão para trás tão depressa como se a tivesse escaldado, e fez o possível para prender a respiração. Tinha caído bem na borda, a centímetros do azul.
- Mais a dizer? - Mord segurou a correia entre os punhos e deu-lhe um forte puxão, que o fez Tyrion saltar. O carcereiro riu.
Ele não vai me empurrar, disse Tyrion desesperadamente a si mesmo enquanto se afastava da borda engatinhando. Catelyn Stark me quer vivo, ele não se atreverá a me matar. Limpou o sangue dos lábios com as costas da mão, sorriu e disse:
- Essa foi forte, Mord - o carcereiro o olhou de soslaio, desconfiando de estar sendo escarnecido. - Podia dar bom uso a um homem forte como você - a correia voou, mas desta vez Tyrion conseguiu esquivar-se. Levou um golpe de raspão no ombro, nada mais. - Ouro - repetiu, afastando-se sobre os pés e as mãos como um caranguejo - mais ouro do que verá aqui em toda a vida. O suficiente para comprar terras, mulheres, cavalos... Podia ser um senhor. Lorde Mord - Tyrion reuniu ruidosamente um globo de sangue e muco e cuspiu-o para o céu.
- Não há ouro - Mord respondeu.
Ele está ouvindo! pensou Tyrion.
- Tiraram-me a bolsa quando me capturaram, mas o ouro ainda é meu. Catelyn Stark pode tomar um homem prisioneiro, mas nunca se rebaixaria a roubá-lo. Isso não seria honroso. Ajude-me, e todo o ouro será seu - a correia de Mord saltou, mas foi um golpe hesitante, isolado, lento e desdenhoso. Tyrion apanhou o couro e o manteve preso à mão. - Não haverá risco para você. Tudo o que tem a fazer é entregar uma mensagem.
O carcereiro libertou a tira de couro da mão de Tyrion.
- Mensagem - repetiu, como se nunca tivesse ouvido a palavra. A carranca abria-lhe profundas fendas na testa.
- O senhor me ouviu. Basta que leve minhas palavras à sua senhora. Diga-lhe... - o quê? O que poderia levar Lysa Arryn a se mostrar flexível? A inspiração chegou de súbito a Tyrion Lannister. - ... Diga-lhe que desejo confessar meus crimes.
Mord ergueu o braço e Tyrion preparou-se para mais um golpe, mas o carcereiro hesitou. A suspeita e a cobiça guerreavam nos seus olhos. Desejava aquele ouro, mas temia um truque; seu aspecto era de um homem que tinha sido frequentemente enganado.
- É mentira - resmungou em tom sombrio. - Homem anão me engana.
- Posso pôr minha promessa por escrito - garantiu Tyrion.
Alguns iletrados sentiam desdém pela escrita; outros pareciam ter por ela uma reverência supersticiosa, como se fosse algum tipo de magia. Felizmente, Mord pertencia ao segundo tipo. O carcereiro abaixou a correia.
- Escrever ouro. Muito ouro.
- Ah, muito ouro - assegurou-lhe Tyrion. - A bolsa é só um aperitivo, meu amigo. Meu irmão usa uma armadura de folha de ouro - na verdade, a armadura de Jaime era aço dourado, mas aquele imbecil nunca saberia a diferença.
Mord passou os dedos pela correia, pensativo, mas por fim cedeu e foi buscar papel e tinta. Depois da carta escrita, o carcereiro franziu as sobrancelhas ao vê-la, desconfiado.
- Agora, vá entregar minha mensagem - Tyrion ordenou.
Estava tremendo no sono quando vieram buscá-lo naquela noite. Mord abriu a porta, mas manteve-se em silêncio. Sor Vardis Egen acordou Tyrion com a ponta da bota.
- Em pé, Duende. Minha senhora deseja vê-lo.
Tyrion esfregou o sono dos olhos e afivelou um sorriso que não sentia.
- Sem dúvida que sim, mas o que o faz pensar que eu desejo vê-la?
Sor Vardis franziu as sobrancelhas. Tyrion lembrava-se bem dele, dos anos que passara em Porto Real como capitão da guarda doméstica da Mão. Uma face quadrada e simples, cabelos grisalhos, constituição pesada e sem sombra de humor.
- Seus desejos não são da minha conta. Em pé, ou mandarei que o carreguem.
Tyrion pôs-se desajeitadamente em pé.
- Uma noite fria - disse em tom casual - e o Alto Salão tem tantas correntes de ar. Não quero apanhar um resfriado. Mord, se me fizer um favor, vá buscar o meu manto.
O carcereiro o olhou de soslaio, com uma expressão estúpida e desconfiada.
- O meu manto - repetiu Tyrion. - A pele de gato-das-sombras que tirou de mim para guardar em segurança. Você se lembra.
- Vá buscar o maldito manto - disse Sor Vardis.
Mord não se atreveu a resmungar. Lançou a Tyrion um olhar que prometia uma retribuição futura, mas foi buscar o manto. Quando o enrolou em torno do pescoço do prisioneiro, Tyrion sorriu.
- Muito obrigado. Pensarei em você sempre que o usar - atirou a parte da frente da longa pele por sobre o ombro direito e sentiu-se quente pela primeira vez em vários dias. - Mostre o caminho, Sor Vardis.
O Alto Salão dos Arryn brilhava à luz de cinquenta archotes, que ardiam em suportes presos às paredes. A Senhora Lysa trajava-se de seda negra, com a lua e o falcão bordados com pérolas no peito. Como não parecia ser do tipo que se juntaria à Patrulha da Noite, Tyrion só conseguia imaginar que ela decidira que roupas fúnebres eram um traje apropriado para uma confissão. Os longos cabelos ruivos, presos numa trança elaborada, caíam-lhe sobre o ombro esquerdo. O trono mais alto ao seu lado estava vazio; sem dúvida que o pequeno Senhor do Ninho da Águia estava embalado no seu sono. Pelo menos por isso Tyrion sentia-se grato.
Fez uma profunda reverência e demorou-se um momento passando os olhos pelo salão. A Senhora Arryn convocara seus cavaleiros e servidores para ouvir a confissão, tal como ele esperara. Viu o rosto escarpado de Sor Brynden Tully e o abrupto de Lorde Nestor Royce. Ao lado de Nestor estava um homem mais novo com ferozes suíças negras que só podia ser seu herdeiro, Sor Aibar. Encontrava-se ali representada a maior parte das principais Casas do Vale. Tyrion notou em Sor Lyn Corbray, esguio como uma espada, Lorde Hunter, com suas pernas artríticas, a viúva Senhora Waynwood, rodeada pelos filhos. Outros exibiam símbolos que não conhecia: uma lança quebrada, uma víbora verde, uma torre ardente, um cálice alado.
Entre os senhores do Vale encontravam-se vários dos que tinham sido seus companheiros na estrada de altitude: Sor Rodrik Cassei, pálido dos ferimentos mal curados, tinha Sor Willis Wode a seu lado. Marillion, o cantor, encontrara uma nova harpa. Tyrion sorriu. Acontecesse o que acontecesse ali naquela noite, não queria que fosse em segredo, e não havia ninguém melhor que um cantor para espalhar uma história aos sete ventos.
Ao fundo da sala, Bronn preguiçava sob um pilar. Os olhos negros do cavaleiro livre estavam fixos em Tyrion, e a mão pousava levemente no botão do punho da espada. Tyrion olhou-o longamente, interrogando-se...
Catelyn Stark foi a primeira a falar.
- Foi nos dito que deseja confessar seus crimes.
- Desejo, senhora - Tyrion respondeu.
Lysa Arryn sorriu para a irmã.
- As celas abertas os quebram sempre. Os deuses podem vê-los lá, e não há escuridão onde se refugiem.
- Ele não me parece quebrado - disse Catelyn.
Lysa não lhe prestou atenção.
- Diga o que tem a dizer - ela ordenou.
E agora façamos rolar os dados, pensou com outro rápido relance para Bronn.
- Por onde começar? Sou um homenzinho vil, confesso. Meus crimes são incontáveis, senhores e senhoras. Deitei-me com prostitutas, não uma, mas centenas de vezes. Desejei a morte do senhor meu pai e também de minha irmã, nossa piedosa rainha - atrás dele, alguém soltou um risinho. - Nem sempre tratei meus criados com delicadeza. Joguei jogos de azar. Até cheguei a roubar neles, admito, enrubescido. Disse muitas coisas cruéis e maliciosas a respeito dos nobres senhores e senhoras da corte - aquilo provocou abertas gargalhadas. - Uma vez...
- Silêncio! - a pálida cara redonda de Lysa Arryn tomara um tom ardente, cor-de-rosa. - O que imagina que está fazendo, anão?
Tyrion inclinou a cabeça para o lado.
- Ora, confessando os meus crimes, senhora.
Catelyn Stark deu um passo à frente.
- Você é acusado de enviar um assassino contratado para matar meu filho Bran em sua própria cama e de conspirar para o assassinato de Lorde Jon Arryn, a Mão do Rei.
Tyrion encolheu os ombros com ar impotente.
- Temo que esses crimes não possa confessar. Nada sei de assassinatos.
A Senhora Lysa ergueu-se de seu trono de represeiro.
- Não serei alvo de troça. Já teve a sua brincadeirinha, Duende. Creio que tenha gostado dela. Sor Vardis, leve-o de volta para as masmorras... mas desta vez arranje-lhe uma cela menor, com o chão mais inclinado.
- É assim que se faz justiça no Vale? - rugiu Tyrion, tão alto que Sor Vardis se imobilizou por um instante. - Será que a honra fica à porta do Portão Sangrento? Acusam-me de crimes, eu os nego e, portanto, atiram-me em uma cela a céu aberto para que congele e morra de fome - ergueu a cabeça, para mostrar bem a todos as nódoas negras que Mord deixara em seu rosto.
- Onde está a justiça do rei? Será que o Ninho da Águia não faz parte dos Sete Reinos? Diz-me que sou acusado. Muito bem. Exijo um julgamento! Deixe-me falar, e deixe que a minha verdade ou falsidade seja julgada abertamente, à vista dos deuses e dos homens.
Um murmúrio baixo encheu o Alto Salão. Tyrion soube que tinha ganhado. Era bem-nascido, filho do mais poderoso senhor do reino, irmão da rainha. Não lhe podia ser negado um julgamento. Guardas de manto azul-celeste tinham começado a se dirigir a Tyrion, mas Sor Vardis ordenou que parassem e olhou para a Senhora Lysa.
A pequena boca da senhora torceu-se num sorriso petulante.
- Se julgado e considerado culpado dos crimes pelos quais é acusado, então, pelas leis do próprio rei, deverá pagar com o sangue da sua vida. Não temos carrasco no Ninho da Águia, senhor de Lannister. Que seja aberta a Porta da Lua.
A aglomeração de espectadores separou-se. Uma estreita porta surgiu à vista, entre dois esguios pilares de mármore, com um crescente esculpido na madeira branca. Aqueles que estavam mais perto da porta recuaram quando um par de guardas marchou até ela. Um dos homens removeu as pesadas barras de bronze; o segundo puxou a porta para dentro. Seus mantos azuis ergueram-se dos ombros, ondulando, apanhados pela súbita rajada de vento que entrou uivando pela porta aberta. Do outro lado havia o vazio do céu noturno, salpicado de estrelas frias e indiferentes.
- Admire a justiça do rei - disse Lysa Arryn.
Chamas de archotes flutuaram como flâmulas ao longo das paredes, e aqui e ali um ou outro archote foi apagado.
- Lysa, penso que isto é insensato - disse Catelyn Stark enquanto o vento negro rodopiava pelo salão.
Sua irmã a ignorou.
- Deseja um julgamento, senhor de Lannister. Muito bem, terá um julgamento. Meu filho ouvirá o que tem a dizer e dará seu julgamento. Então, pode sair... por uma porta ou pela outra.
Ela parecia tão contente consigo mesma, pensou Tyrion, e não admirava. Como poderia um julgamento ameaçá-la, quando o senhor juiz era o fracote do filho? Tyrion olhou de relance para a Porta da Lua. “Mãe, quero vê-lo voar!” dissera o rapaz. Quantos homens teria já o ranhento canalhinha mandado atravessar aquela porta?
- Agradeço, minha boa senhora, mas não vejo necessidade de incomodar Lorde Robert -disse Tyrion delicadamente. - Os deuses conhecem a verdade da minha inocência. Desejo o seu veredicto, não o julgamento dos homens. Exijo um julgamento por combate.
Uma tempestade de súbitas gargalhadas encheu o Alto Salão dos Arryn. Lorde Nestor Royce resfolegou, Sor Willis gargalhou, Sor Lyn Corbray relinchou e outros atiraram as cabeças para trás e uivaram até que lágrimas lhes correram pelo rosto. Marillion arrancou desajeitadamente uma nota alegre de sua nova harpa com os dedos da mão quebrada. Até o vento pareceu assobiar com zombaria ao entrar, aos gritos, pela Porta da Lua.
Os olhos de um azul aguado de Lysa Arryn pareceram incertos. Tinha sido apanhada de surpresa.
- Tem certamente esse direito.
O jovem cavaleiro com a víbora verde bordada na capa deu um passo em frente e caiu sobre o joelho.
- Minha senhora, peço a mercê de ser o campeão da vossa causa.
- A honra deve ser minha - disse o velho Lorde Hunter. - Pelo amor que sentia pelo senhor vosso esposo, deixe-me vingar a sua morte.
- Meu pai serviu fielmente a Lorde Jon como Supremo Intendente do Vale - trovejou Sor Aibar Royce. - Deixe-me servir agora o seu filho.
- Os deuses favorecem o homem com a causa justa - disse Sor Lyn Corbray - mas é comum que este acabe por ser o homem com a espada mais hábil. Todos sabemos quem este homem é - e sorriu modestamente.
Uma dúzia de outros homens falou ao mesmo tempo, clamando para serem ouvidos. Tyrion achou desanimador que tantos estranhos estivessem ansiosos por matá-lo. Este afinal talvez não tivesse sido um plano tão inteligente como parecera.
A Senhora Lysa ergueu a mão exigindo silêncio.
- Agradeço, senhores, como sei que meu filho agradeceria se estivesse entre nós. Não há homens nos Sete Reinos tão ousados e leais como os cavaleiros do Vale. Gostaria de poder conceder a todos esta honra. Mas só posso escolher um - fez um gesto. - Sor Vardis Egen, foi sempre um bom braço direito do senhor meu esposo. Será o nosso campeão.
Sor Vardis tinha estado singularmente silencioso.
- Minha senhora - ele disse gravemente, deixando-se cair sobre o joelho - peço livrar-me deste fardo, pois não tenho gosto nele. O homem não é guerreiro nenhum. Olhe-o. Um anão, com metade do meu tamanho e coxo das pernas. Seria vergonhoso matar um homem assim e dar-lhe o nome de justiça.
Ah, excelente, pensou Tyrion.
- Concordo.
Lysa olhou-o furiosa.
- Você exigiu um julgamento pelo combate.
- E agora exijo um campeão, tal como a senhora arranjou um. Sei que meu irmão Jaime tomará de bom grado o meu partido.
- Seu precioso Regicida está a centenas de léguas daqui - exclamou Lysa Arryn.
- Envie uma ave até ele. De bom grado esperarei sua chegada.
- Defrontará Sor Vardis pela manhã.
- Cantor - disse Tyrion, virando-se para Marillion - quando escrever uma balada sobre isto, não se esqueça de dizer como a Senhora Arryn negou ao anão o direito a um campeão, e o enviou, aleijado, ferido e coxo, para defrontar seu melhor cavaleiro.
- Não estou lhe negando nada! - disse Lysa Arryn, com a voz esganiçada de irritação. - Indique seu campeão, Duende... Se achar que há um homem que morra por você...
- Se não fizer diferença, preferia encontrar um que mate por mim - Tyrion olhou em volta do longo salão. Ninguém se mexeu. Por um longo momento, perguntou a si mesmo se tudo aquilo não teria sido um colossal disparate.
Então, houve uma agitação na parte de trás da sala.
- Eu luto pelo anão - gritou Bronn.  

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