quarta-feira, 11 de setembro de 2013

11 - THEON


Não havia ancoradouro seguro em Pyke, mas Theon Greyjoy queria ver do mar o castelo do pai, para voltar a observá-lo como o vira pela última vez, dez anos antes, quando a galé de guerra de Robert Baratheon o levara da ilha para se tornar protegido de Eddard Stark. Naquele dia, tinha permanecido junto à amurada, escutando o bater dos remos e o ressoar do tambor do mestre enquanto via Pyke se tornar cada vez menor com a distância. Agora queria vê-lo crescer, erguer-se do mar à sua frente.
Obediente aos seus desejos, o Myraham abriu caminho para lá do cabo com as velas batendo, com o capitão amaldiçoando o vento, a sua tripulação e as loucuras dos fidalgos bem-nascidos. Theon puxou o capuz do manto, protegendo-se dos borrifos, e procurou a sua casa.
O litoral era todo feito de rochedos aguçados e falésias carrancudas, e o castelo parecia ser um só com as torres, muralhas e pontes esculpidas da mesma rocha cinza-escuro, umedecido pelas mesmas ondas salgadas, com as mesmas manchas de musgo verde-escuro que se espalhavam parecendo uma grinalda, salpicado pelos excrementos das mesmas aves marinhas. A ponta de terra onde os Greyjoy tinham erguido sua fortaleza projetara-se em outra época como uma espada pelas entranhas do oceano, mas as grandes ondas tinham-na martelado dia e noite até que a terra se quebrou e se estilhaçou, milhares de anos antes.
Apenas restaram três ilhas nuas e estéreis e uma dúzia de grandes pilares de rocha que se erguiam da água como as colunas do templo de algum deus marinho, enquanto as ondas iradas espumavam e quebravam ao redor. Lúgubre, escuro, ameaçador, Pyke erguia-se sobre essas ilhas e pilares, quase como se fizesse parte delas, com a muralha exterior fechando o promontório para defender a base da grande ponte de pedra que se lançava do topo da falésia até a maior das ilhotas, dominada pelo sólido núcleo da Grande Fortaleza. Mais adiante ficavam a Fortaleza da Cozinha e a Fortaleza Sangrenta, cada uma erguida na sua própria ilha rochosa. Torres e edifícios externos garravam-se aos rochedos que os rodeavam, ligados uns aos outros por arcadas cobertas quando os pilares ficavam perto, ou por longas pontes suspensas de madeira e corda quando eram distantes.
A Torre do Mar erguia-se da ilha mais afastada, na ponta da espada quebrada; a mais antiga parte do castelo, alta e redonda, com o pilar de faces abruptas sobre o qual se erguia, meio corroído, pelo interminável bater das ondas. A base da torre tinha se tornado branca com séculos de acúmulo de sal, os andares superiores verdes com o musgo que rastejava sobre eles como um espesso cobertor, o topo irregular negro com a fuligem do fogo das vigias noturnas.
Por cima da Torre do Mar esvoaçava o estandarte do pai. O Myraham estava distante demais para que Theon visse mais do que o pano, mas sabia qual símbolo ostentava: a lula gigante dourada da Casa Greyjoy, com os tentáculos contorcendo-se e se esticando no fundo negro. A bandeira voava presa a um mastro de ferro, tremendo e retorcendo-se quando era atingida por uma rajada de vento, como uma ave que lutava para levantar voo. O melhor de tudo era que, aqui, o lobo gigante dos Stark não voava mais alto, não lançava sua sombra sobre a lula gigante dos Greyjoy.
Theon nunca tinha visto algo mais entusiástico. No céu atrás do castelo, a bela cauda vermelha do cometa era visível através de nuvens esparsas e rápidas. Ao longo de todo o caminho entre Correrrio e Guardamar, os Mallister tinham discutido seu significado. E o meu cometa, disse Theon a si mesmo, enfiando uma mão no manto debruado de peles para tocar a bolsa de oleado acomodada no seu bolso. Lá dentro estava a carta que Robb Stark lhe dera, um papel que valia uma coroa.
- O castelo está como se recorda dele, senhor? - perguntou a filha do capitão enquanto se apertava contra o seu braço,
- Parece menor - Theon confessou. - Embora talvez seja só a distância.
Myrabam era um navio mercantil de casco largo, do sul, vindo de Vilavelha com um carregamento de vinho, especiarias e sementes, que pretendia trocar por minério de ferro. O capitão era também um mercador de casco largo do sul, e o mar pedregoso que espumava aos pés do castelo fazia seus lábios rechonchudos tremerem, por isso permanecia bem afastado, mais longe do que Theon teria preferido. Um capitão de ferro com um dracar os teria levado ao longo das falésias e sob a alta ponte que ligava a guarita à Grande Fortaleza, mas aquele rechonchudo vilavelhense não tinha nem o navio, nem a tripulação, nem a coragem de tentar tal coisa. Portanto, passaram a distância segura, e Theon teve de se contentar em ver Pyke de longe. Mesmo assim, o Myraham foi obrigado a lutar ferozmente para se manter afastado daqueles rochedos.
- Ali deve ser ventoso - observou a filha do capitão.
Ele riu.
- Ventoso, frio e úmido. Um lugar duro e miserável, para falar a verdade... Mas o senhor meu pai me disse um dia que lugares duros geram homens duros, e homens duros governam o mundo.
A cara do capitão estava verde como o mar quando se aproximou, às reverências, de Theon e perguntou:
- Podemos nos dirigir ao porto agora, senhor?
- Podemos - Theon respondeu, com um tênue sorriso a brincar nos seus lábios. A promessa de ouro tinha transformado o vilavelhense num lambe-botas sem vergonha. Teria sido uma viagem muito diferente se um dracar das ilhas o aguardasse em Guardamar, como ele tinha esperado.
Os capitães de ferro eram orgulhosos e voluntariosos, e não reverenciavam ninguém pelo sangue. As ilhas eram pequenas demais para a reverência, e um dracar era ainda menor. Se qualquer capitão era um rei a bordo do seu navio, como era costume dizer, pouco admirava que chamassem as ilhas de terra dos dez mil reis. E quando se via seus reis cagando por cima da amurada e ficando enjoados durante uma tempestade, era difícil ajoelhar-se e fingir que eram deuses, "O Deus Afogado faz homens", tinha dito, um dia, o velho rei Urron Redhand, há milhares de anos, "mas são os homens que fazem coroas".
Um dracar também teria feito a travessia em metade do tempo. A bem da verdade, o Myraham era uma banheira chafurdante, e Theon não gostaria de estar a bordo dele numa tempestade. Apesar de tudo, não podia se sentir muito infeliz. Estava ali, não se afogara, e a viagem tinha oferecido alguns outros divertimentos. Pôs um braço em volta da filha do capitão.
- Chame-me quando chegarmos a Fidalporto - disse ao pai dela. - Estaremos lá embaixo, na minha cabine - e empurrou a garota para a popa, enquanto o pai os via partir num silêncio taciturno.
A cabine, na verdade, era do capitão, mas tinha sido entregue a Theon quando partiram de Guardamar. A filha do capitão não lhe tinha sido entregue, mas viera de vontade própria para sua cama mesmo assim. Uma taça de vinho, alguns murmúrios, e lá estava ela. A garota era um pouco rechonchuda para o seu gosto, com uma pele tão manchada como mingau de aveia, mas seus seios enchiam muito bem suas mãos, e ela era donzela da primeira vez que a teve. Isso era surpreendente, considerando a idade que tinha, mas Theon achou o fato divertido. Não lhe parecia que o capitão aprovasse, e isso também era divertido, observar o homem lutando para engolir o ultraje enquanto desempenhava as suas cortesias para com o grande senhor, sem nunca ter longe do pensamento a rica bolsa de ouro que lhe tinha sido prometida.
Enquanto Theon se livrava do manto molhado, a moça disse:
- Deve estar muito feliz por voltar a ver seu lar, senhor. Quantos anos esteve fora?
- Dez, ou tão perto disso que não faz diferença - ele respondeu. - Era um menino de dez anos quando fui levado para Winterfell como protegido de Eddard Stark.
Um protegido no nome, um refém na realidade. Metade dos seus dias como refém... Mas não mais. Sua vida era de novo sua, e não se via um Stark em nenhum canto. Puxou a filha do capitão para mais perto e beijou-a na orelha.
- Tire o manto.
Ela abaixou os olhos, subitamente tímida, mas fez o que lhe pedia. Quando a pesada veste, ensopada de maresia, caiu dos seus ombros e se amontoou no convés, ela fez uma pequena reverência e deu um sorriso ansioso. Ficava com um ar bastante estúpido quando sorria, mas ele nunca tinha exigido das mulheres que fossem espertas.
- Vem cá.
Ela foi:
- Nunca vi as Ilhas de Ferro.
- Considere-se sortuda - Theon afagou seu cabelo. Era fino e escuro, embora o vento o tivesse embaraçado.
- As ilhas são lugares austeros e pedregosos, de conforto escasso e perspectivas desanimadoras. Aqui a morte nunca está longe, e a vida é má e magra. Os homens passam as noites bebendo cerveja e discutindo sobre qual dos grupos é pior, o dos pescadores que lutam contra o mar ou o dos agricultores, que tentam arrancar uma colheita do solo pobre e raso. Na realidade, os mineiros vivem pior do que ambos, quebrando suas costas no escuro, e para quê? Ferro, chumbo, estanho, são esses os nossos tesouros. Não é de espantar que os homens de ferro de outrora tivessem se voltado para o saque.
A estúpida moça não parecia estar ouvindo.
- Podia ir para a terra firme com você - ela disse. - Faria isso, se lhe agradasse...
- Podia ir para terra firme - concordou Theon, apertando seu seio - mas receio que não comigo.
- Trabalharia no seu castelo, senhor. Sei limpar peixe, cozer pão e bater manteiga. O pai diz que meu guisado de caranguejo com pimenta é o melhor que já provou. Poderia encontrar um lugar para mim nas suas cozinhas, e eu poderia preparar guisado de caranguejo com pimenta para o senhor.
- E aquecer minha cama à noite? - estendeu a mão para as fitas do seu corpete e começou a desatá-las, com dedos hábeis e experientes. - Antigamente, poderia tê-la levado para casa como saque e tê-la mantido como esposa, quer você quisesse quer não. Os homens de ferro de outrora faziam coisas assim. Um homem tinha sua esposa da rocha, a verdadeira consorte, nascida de ferro como ele, mas também possuía suas esposas de sal, mulheres capturadas em saques.
Os olhos da moça abriram-se muito, e não era porque ele tinha desnudado seus seios.
- Eu seria sua esposa de sal, senhor.
- Temo que esses dias tenham passado - o dedo de Theon moveu-se ao redor de uma mama pesada, numa espiral que se dirigia para o gordo mamilo marrom. - Já não podemos montar o vento com fogo e espada, roubando o que quisermos. Agora arranhamos o solo e atiramos linhas ao mar como os outros homens e consideramo-nos sortudos se tivermos bacalhau salgado e mingau suficientes para nos sustentar durante um inverno.
Tomou o mamilo na boca e mordeu-o, até ela arfar.
- Pode pôr em mim de novo, se desejar - sussurrou a garota ao seu ouvido, enquanto ele chupava seu seio.
Quando afastou a cabeça do seio dela, a pele estava vermelho-escura onde a boca a marcara.
- Desejo ensinar uma coisa nova a você. Dispa-me, e me dê prazer com a boca.
- Com a boca?
O polegar dele roçou levemente nos lábios carnudos da moça.
- Foi para isso que estes lábios foram feitos, doçura. Se fosse minha esposa de sal, faria o que eu ordenasse.
Ela, a princípio, se mostrou tímida, mas aprendia depressa para uma garota tão estúpida, o que o agradava. Tinha a boca tão úmida e doce como a boceta, e assim não tinha de ouvir sua tagarelice tediosa.
Antigamente, teria realmente ficado com ela como esposa de sal, pensou consigo mesmo, enquanto enfiava os dedos no seu cabelo embaraçado. Antigamente. Quando ainda mantinhamos o Costume Antigo, vivíamos pelo machado e não pela picareta, roubando o que quiséssemos, fossem riquezas, mulheres ou glória. Naqueles dias, os homens de ferro não trabalhavam nas minas; isso era tarefa para os cativos trazidos das incursões, assim como o lamentável trabalho na agricultura e na criação de cabras e ovelhas. A guerra era o oficio próprio para um homem de ferro.
O Deus Afogado fizera-os para saquear e violar, para esculpir reinos e escrever seus nomes em fogo, sangue e canções. Aegon, o Dragão, destruirá o Costume Antigo quando queimou o Harren Negro, devolveu o reino de Harren aos fracos homens do rio e reduziu as Ilhas de Ferro a um grotão insignificante de um reino muito maior. Mas as velhas histórias vermelhas ainda eram contadas em torno de fogueiras feitas com madeira levada à costa e lareiras fumacentas por todas as ilhas, até no interior dos altos salões de pedra de Pyke. O pai de Theon tinha entre seus títulos o de Senhor Ceifeiro, e as palavras Greyjoy gabavam-se de que Nós Não Semeamos.
Fora mais para trazer de volta o Costume Antigo do que pela vaidade vazia de uma coroa que Lorde Balon desencadeara sua grande rebelião. Robert Baratheon escreveu um fim sangrento para essa esperança, com a ajuda do seu amigo Eddard Stark, mas ambos estavam agora mortos. Meros rapazes governavam nos seus lugares, e o reino que Aegon, o Conquistador, tinha forjado encontrava-se esmagado e dividido. E esta a estação, pensou Theon, enquanto os lábios da filha do capitão deslizavam para cima e para baixo, por todo o seu comprimento, a estação, o ano, o dia, e eu sou o homem. Deu um sorriso torto, perguntando-se o que o pai falaria quando Theon lhe dissesse que ele, o caçula, o bebê e o refém, ele tinha obtido sucesso onde o próprio Lorde Balon falhara.
O clímax veio súbito como uma tempestade, e encheu a boca da moça com o seu sêmen. Surpreendida, ela tentou se afastar, mas Theon a segurou bem pelo cabelo. Depois, ela aninhou-se ao seu lado.
- Satisfiz o senhor?
- Bastante bem.
- Tinha um gosto salgado - ela murmurou.
- Como o mar?
A moça confirmou com a cabeça.
- Sempre adorei o mar, senhor.
- Como eu - ele disse, girando indolentemente o mamilo dela entre os dedos. Era verdade. O mar significava liberdade para os homens das Ilhas de Ferro. Theon havia se esquecido disso, até o Myraham desfraldar as velas em Guardamar. Os sons tinham trazido de volta velhos sentimentos; o ranger da madeira e das cordas, as ordens gritadas pelo capitão, o bater das velas quando o vento as enchia; tudo era tão familiar como o bater do seu próprio coração, e tão reconfortante quanto.
Tenho de me lembrar disto, jurou Theon a si mesmo. Nunca mais deverei me afastar do mar.
- Leve-me junto, senhor - suplicou a filha do capitão. - Não preciso ir para o seu castelo. Posso ficar em alguma vila e ser a sua esposa de sal - ela estendeu a mão para acariciar seu rosto.
Theon Greyjoy afastou a mão para o lado e desceu do beliche.
- Meu lugar é em Pyke, e o seu, neste navio.
- Agora não posso ficar aqui.
Ele amarrou os calções.
- E por que não?
- O meu pai. Depois que for embora, ele vai me castigar, senhor. Vai me chamar de nomes feios e me bater.
Theon tirou o manto do cabide e o colocou sobre os ombros.
- Os pais são assim - ele admitiu, enquanto prendia as dobras com uma fivela de prata. - Diga que ele devia ficar contente. Fodi você tantas vezes que é provável que já esteja esperando. Não é qualquer um que tem a honra de criar um bastardo real.
Ela o olhou estupidamente, e ele, simplesmente a deixou ali. O Myraham rodeava um cabo arborizado. Sob as escarpas cobertas de pinheiros, uma dúzia de barcos de pesca puxava suas redes. O grande navio mercante permaneceu bem afastado deles enquanto manobrava. Theon foi até a proa para ver melhor. Viu primeiro o castelo, o castro dos Botley, uma Casa menor juramentada a seu pai. Quando criança, o castelo era feito de madeira e vime, mas Robert Baratheon tinha arrasado essa estrutura por completo. Lorde Sawane reconstruíra-a em pedra, e agora a colina era coroada por uma pequena fortaleza quadrada.
Bandeiras verde-claras pendiam das atarracadas torres dos cantos, cada uma decorada com um cardume de peixes prateados. Sob a proteção incerta do pequeno castelo repleto de peixes ficava a aldeia de Fidalporto, com o porto apinhado de navios. Da última vez que vira Fidalporto, era um deserto fumegante, com esqueletos de galés queimadas e galés esmagadas jazendo na costa pedregosa, como os ossos de leviatãs mortos, e as casas transformadas em nada mais que paredes quebradas e cinzas frias. Dez anos depois, poucos sinais da guerra restavam. O povo tinha construído novas choupanas com as pedras dos antigos e cortara novos colmos para os telhados. Uma nova estalagem tinha sido erguida junto ao desembarcadouro, o dobro do tamanho da antiga, com um andar inferior de pedra cortada e dois superiores de madeira. Mas o septo que ficava atrás nunca foi reconstruído; só restava uma fundação com sete lados para indicar o lugar onde antes existira. A fúria de Robert Baratheon, ao que parecia, tinha azedado o gosto dos homens de ferro pelos novos deuses.
Theon estava mais interessado em navios do que em deuses. Por entre os mastros de incontáveis barcos de pesca, vislumbrou uma galé mercantil de Tyrosh, que descarregava junto de um pesado navio pesqueiro ibbenês com o casco coberto de piche negro. Um grande número de dracares, pelo menos cinquenta ou sessenta, encontravam-se ao largo ou encalhados na costa pedregosa ao norte. Algumas das velas ostentavam símbolos das outras ilhas; a lua de sangue de Á ynch, o corno de guerra negro enfaixado de Lorde Goodbrother, a foice prateada de Harlaw. Theon tentou vislumbrar o Silêncio, do tio Euron. Desse esguio e terrível navio vermelho não viu sinal, mas a Grande Lula Gigante do pai estava lá, pairando sobre embarcações menores, com a proa ornamentada por um esporão cinza de ferro esculpido na forma do monstro marinho que dava nome ao navio.
Teria Lorde Balon se antecipado e convocado os vassalos Greyjoy quando recebeu de Correrrio a mensagem de Robb? Sua mão voltou a introduzir-se no manto para tocar a bolsa de oleado. Ninguém conhecia aquela sua carta além de Robb Stark; não eram tolos, e só um tolo confiaria seus segredos a uma ave. Em todo caso, Lorde Balon também não era nenhum tolo. Podia perfeitamente ter adivinhado o motivo por que o filho regressava finalmente à casa, e agido de acordo.
A idéia não lhe agradou. A guerra do pai tinha há muito terminado, e estava perdida. Aquela era a hora de Theon; seu plano, sua glória e, a seu tempo, sua coroa. Mas se os dracares estão reunidos... Agora que pensava nisso, podia ser apenas uma precaução, Uma medida defensiva, caso a guerra se derramasse pelo mar. Os velhos eram cautelosos por natureza. Seu pai era agora velho, assim como o tio Victarion, que comandava a Frota de Ferro. Seu tio Euron tocava outra música, certamente, mas o Silêncio parecia não estar no porto. Ainda bem, disse Theon a si mesmo. Assim, poderei atacar ainda mais depressa.
Enquanto o Myraham abria caminho em direção à terra firme, Theon passeou, agitado, pelo convés, examinando a costa. Não esperava encontrar o próprio Lorde Balon à espera no cais, mas seu pai teria certamente enviado alguém ao seu encontro. O Velho Sylas Boca Azeda, o intendente, ou talvez Lorde Botley, ou até mesmo Dagmer Boca Rachada. Seria bom ver a cara horrenda de Dagmer novamente. Eles sabiam que estava chegando. Robb tinha mandado uma mensagem antes de Theon partir de Correrrio, e quando não encontraram nenhum dracar à espera em Guardamar, Lorde Jason Mallister enviara as suas próprias aves para Pyke, supondo que as de Robb tivessem se perdido.
Mas Theon não viu rostos familiares no porto, nenhuma guarda de honra de cavaleiros para escoltá-lo de Fidalporto até Pyke, só plebeus que tratavam dos seus assuntos banais. Carregadores desembarcavam cascos de vinho do navio mercante de Tyrosh, pescadores anunciavam aos gritos a mercadoria do dia, crianças corriam e brincavam. Um sacerdote com a toga marinha do Deus Afogado levava um par de cavalos ao longo da costa pedregosa, e por cima da sua cabeça uma prostituta debruçava-se de uma janela na estalagem, chamando marinheiros ibbeneses de passagem.
Um punhado de mercadores de Fidalporto havia se reunido para receber o navio. Gritaram perguntas enquanto o Myraham era amarrado.
- Viemos de Vilavelha - gritou-lhes o capitão em resposta - trazendo maçãs e laranjas, vinhos da Árvore, penas das Ilhas do Verão. Tenho pimenta, couro trançado, um rolo de renda de Myr, espelhos para as senhoras, um par de harpas de madeira de Vilavelha com um som doce como nunca ouviram - a prancha de embarque desceu com um rangido e um estrondo. - E trouxe-lhes de volta o seu herdeiro.
Os homens de Fidalporto olharam Theon com olhos vazios e bovinos, e ele percebeu que não sabiam quem era. Aquilo o deixou irritado. Enfiou um dragão de ouro na palma da mão do capitão e lhe disse:
- Mande seus homens trazerem as minhas coisas - e, sem esperar resposta, desceu a prancha a passos largos. - Estalajadeiro - ele esbravejou - quero um cavalo.
- Como quiser, senhor - respondeu o homem, sem sequer fazer uma reverência. Theon tinha se esquecido de como os homens de ferro podiam ser descarados. - Tenho um que deve servir. Para onde vai, senhor?
- Pyke - o imbecil ainda não o reconhecia. Devia ter vestido o gibão bom, com a lula gigante bordada no peito, e então não teria deixado margem a dúvidas.
- Desejará partir em breve, para chegar a Pyke antes de escurecer - disse o estalajadeiro. - Meu rapaz irá junto para lhe mostrar o caminho.
- Seu rapaz não será necessário - gritou uma voz profunda - nem seu cavalo. Eu levo meu sobrinho à casa do pai.
Quem falava era o sacerdote que Theon tinha visto levando os cavalos ao longo da costa. Quando o homem se aproximou, os plebeus fizeram reverência, e Theon ouviu o estalajadeiro murmurar:
- Cabelo Molhado...
Alto e magro, com ferozes olhos negros e um nariz em forma de bico, o sacerdote usava vestimentas em verde, cinza e azul, o torvelinho de cores do Deus Afogado. Um odre de água pendia do seu ombro, de uma correia de couro, e cordões de algas secas estavam trançados no seu cabelo negro, que chegava à cintura, e na barba por fazer, Theon franziu a testa enquanto vasculhava a memória. Numa das suas sucintas cartas, Lorde Balon havia escrito algo sobre seu irmão mais novo ter naufragado numa tempestade e se tornado um homem santo quando foi encontrado vivo na costa.
- Tio Aeron? - a voz de Theon soou incerta.
- Sobrinho Theon - respondeu o sacerdote. - O senhor seu pai pediu-me para vir buscá-lo. Venha.
- Um momento, tio - Theon se virou para o Myraham. - As minhas coisas - ordenou ao capitão.
Um marinheiro entregou-lhe o grande arco de teixo e a aljava, mas foi a filha do capitão quem lhe trouxe o pacote com a roupa boa.
- Senhor.
Os olhos da menina estavam vermelhos. Quando pegou o pacote, ela fez um gesto para abraçá-lo, ali mesmo, na frente do pai, do tio sacerdote de Theon e de metade da ilha.
Theon virou-se habilmente de lado.
- Os meus agradecimentos.
- Por favor - ela pediu. - Eu o amo, senhor.
- Tenho de ir - Theon apressou-se em seguir o tio, que já avançara bastante ao longo do cais, alcançando-o com uma dúzia de longas passadas. - Não esperava encontrá-lo, tio. Depois de dez anos, pensei que talvez o senhor meu pai ou a senhora minha mãe pudessem vir em pessoa, ou mandassem Dagmer com uma guarda de honra.
- Não cabe a você questionar as ordens do Senhor Ceifeiro de Pyke - os modos do sacerdote eram gélidos, bem diferentes dos do homem que Theon recordava. Aeron Greyjoy fora o mais amigável dos seus tios, fútil e de riso rápido, dado a canções, cerveja e mulheres. - E quanto a Dagmer, o Boca Rachada, partiu para a Velha Wyk a mando do seu pai, a fim de chamar os Stonehouse e os Drumm.
- Com que objetivo? Por que os dracares estão reunidos?
- Por que se reúnem os dracares desde sempre? - o tio tinha deixado os cavalos atados em frente à estalagem, Quando lá chegaram, virou-se para Theon: - Diga-me a verdade, sobrinho, Agora reza aos deuses dos lobos?
Theon raramente rezava, e ponto. Mas isso não era algo que se pudesse confessar a um sacerdote, mesmo ao irmão do pai.
- Ned Stark rezava a uma árvore. Não, não me importo nada com os deuses dos Stark.
- Ótimo. Ajoelhe-se.
O chão era todo de pedra e lama.
- Tio, eu...
- Ajoelha, Ou será agora orgulhoso demais um fidalgo das terras verdes que veio para junto de nós?
Theon ajoelhou-se. Tinha ali um propósito e podia necessitar da ajuda de Aeron para alcançá-lo. Supunha que uma coroa valia um pouco de lama e bosta de cavalo nos calções.
- Abaixe a cabeça.
Erguendo o odre, o tio tirou a rolha e apontou um fino jorro de água do mar para a cabeça de Theon. O fluxo da água ensopou seu cabelo e correu pela sua testa até os olhos. Escorreu pelo rosto, e um suave fluxo de água deslizou sob o manto e o gibão, e pelas costas abaixo, um riacho frio ao longo da espinha. O sal fez seus olhos arderem, até que só com grande dificuldade evitou gritar. Sentiu nos lábios o sabor do oceano.
- Que Theon, seu servo, renasça do mar, como o senhor renasceu - entoou Aeron Greyjoy. - Abençoe-o com o sal, abençoe-o com a pedra, abençoe-o com o aço. Sobrinho, ainda conhece as palavras?
- O que está morto não pode morrer - Theon respondeu, lembrando-se.
- O que está morto não pode morrer - ecoou o tio - mas volta a se erguer, mais duro e mais forte. Erga-se.
Theon ergueu-se, piscando, reprimindo lágrimas causadas pelo sal que tinha nos olhos. Sem uma palavra, o tio arrolhou o odre, desatou o cavalo e montou. Theon fez o mesmo. Arrancaram juntos, deixando a estalagem e o porto para trás, passando pelo castelo de Lorde Botley e entrando nas colinas pedregosas. O sacerdote não disse nem mais uma palavra.
- Passei metade da vida longe de casa - arriscou Theon por fim. - Vou encontrar as ilhas mudadas?
- Os homens pescam no mar, escavam na terra e morrem. As mulheres dão à luz crianças em sangue e dor, e morrem. A noite segue o dia. Os ventos e as marés permanecem. As ilhas são como nosso deus as fez.
Deuses... Agora ele se tornou sombrio, pensou Theon.
- Encontrarei minha irmã e a senhora minha mãe em Pyke?
- Não. Sua mãe mora em Harlaw com a irmã dela. É menos úmido por lá, e a tosse a atormenta. Sua irmã levou Vento Negro para Grande Wyk com mensagens do senhor seu pai. Voltará em breve, pode ter certeza disso.
Theon não precisava que lhe dissessem que Vento Negro era o dracar de Asha. Não via a irmã há dez anos, mas, pelo menos isso, sabia dela. Era estranho que tivesse dado esse nome ao navio, quando Robb Stark tinha um lobo chamado Vento Cinzento.
- Stark é cinza, e Greyjoy é negro - ele murmurou, sorrindo - mas parece que ambos somos ventosos.
O sacerdote nada tinha a responder àquilo.
- E você, tio? - perguntou Theon. - Não era nenhum sacerdote quando fui levado de Pyke. Lembro-me de como cantava as velhas canções de saque em pé sobre a mesa com um corno de cerveja na mão.
- Era jovem e frívolo - Aeron Greyjoy respondeu. - Mas o mar lavou minhas loucuras e frivolidades. Aquele homem se afogou, sobrinho. Seus pulmões encheram-se de água do mar, e os peixes comeram as escamas que cobriam seus olhos. Quando me reergui, via com clareza.
E tão louco como amargo, pensou Theon, entristecido. Gostava do que recordava do antigo Aeron Greyjoy.
- Tio, por que meu pai convocou as espadas e as velas?
- Sem dúvida ele lhe dirá, em Pyke.
- Gostaria de saber dos seus planos agora - disse Theon.
- De mim não saberá. Foi-nos ordenado que não falássemos disso com nenhum homem.
- Nem comigo?
A ira de Theon se fez notar. Comandara homens na guerra, caçara com um rei, conquistara a honra em lutas corpo a corpo de torneios, cavalgara com Brynden Peixe Negro e o Grande-Jon Umber, lutara no Bosque dos Murmúrios, dormira com mais garotas do que conseguia recordar, e mesmo assim o tio tratava-o como se ainda fosse uma criança de dez anos.
- Se meu pai faz planos para a guerra, devo conhecê-los. Não sou "um homem", mas o herdeiro de Pyke e das Ilhas de Ferro.
- Quanto a isso, veremos - o tio respondeu.
As palavras foram uma bofetada no seu rosto.
-Veremos? - Theon repetiu, em tom desdenhoso. - Ambos os meus irmãos estão mortos. Sou o único filho sobrevivente do senhor meu pai.
- Sua irmã está viva - Aeron nem sequer ofereceu a Theon a cortesia de um relance.
Asha, Theon pensou, confuso. Era três anos mais velha do que ele, mas, mesmo assim...
- Uma mulher só pode herdar se não houver nenhum herdeiro varão em linha direta - ele insistiu em voz alta. - Não aceitarei que me privem dos meus direitos, aviso.
O tio soltou um grunhido.
- Avisa um servo do Deus Afogado, rapaz? Você se esqueceu mais do que pensa. E é um grande idiota se acredita que o senhor seu pai algum dia entregará estas ilhas sagradas a um Stark. E agora cale-se. A viagem já é suficientemente longa mesmo sem a sua tagarelice de pombo.
Theon controlou a língua, embora não sem esforço. Então é assim, pensou. Quase riu. Como se dez anos em Winterfell pudessem gerar um Stark. Lorde Eddard podia tê-lo criado entre os filhos, mas Theon nunca se sentira um deles. Todo o castelo, desde a Senhora Stark ao mais baixo dos ajudantes de cozinha, sabia que ele estava ali como refém do bom comportamento do pai e tratava-o de acordo. Até o bastardo Jon Snow recebia mais honras do que ele.
Lorde Eddard tentara fazer o papel de pai algumas poucas vezes, mas, para Theon, sempre foi o homem que havia trazido sangue e fogo a Pyke e o tirado de casa. Quando garoto, tinha vivido sob o medo do rosto severo e da grande espada escura do Stark. E a senhora sua esposa era, se possível, ainda mais distante e suspeita.
Quanto aos filhos, os mais novos não tinham sido mais do que bebês chorões ao longo da maior parte da sua estada em Winterfell. Só Robb e o meio-irmão ilegítimo Jon Snow tinham idade suficiente para merecer a sua atenção. O bastardo era um rapaz carrancudo, rápido em detectar uma desfeita, invejoso do nascimento elevado de Theon e da amizade que Robb nutria por ele. Por Robb Theon tinha uma certa afeição, como a que se sente por um irmão mais novo... mas seria melhor não mencioná-la. Em Pyke, ao que parecia, as velhas guerras ainda estavam sendo travadas. Isso não devia surpreendê-lo. As Ilhas de Ferro viviam no passado; o presente era duro e amargo demais para ser suportável. Além disso, o pai e os tios eram velhos, e os velhos senhores eram assim; levavam suas contendas poeirentas para a sepultura, sem esquecer nada, e perdoando menos ainda.
Tinha sido assim com os Mallister, seus companheiros na viagem de Correrrio para Guardamar. Patrek Mallister era, não raro, um companheiro; dividiam o gosto por prostitutas, vinho e caça com falcões. Mas, quando o velho Lorde Jason viu seu herdeiro se tornando cada vez mais feliz com a companhia de Theon, puxou Patrek a um canto para lembrá-lo de que Guardamar havia sido construído para defender a costa dos saqueadores das Ilhas de Ferro, os Greyjoy de Pyke principalmente. Sua Torre Retumbante tinha esse nome por causa do imenso sino de bronze, que há muito tempo tocava para avisar o povo da vila e os agricultores no castelo quando os dracares eram avistados no horizonte a oeste.
- Não ligue, pois o sino só foi tocado uma única vez em trezentos anos - Patrek contou a Theon no dia seguinte, quando compartilhou os avisos de seu pai e um jarro de sidra.
- Quando meu irmão assaltou Guardamar - Theon respondeu. Lorde Jason matara Rodrik Greyjoy sob as muralhas do castelo e expulsara os homens de ferro de volta para a baía. - Se seu pai acha que tenho alguma inimizade em relação a ele só por causa disso, é só porque nunca conheceu Rodrik.
Eles riram muito daquilo enquanto corriam até uma afetuosa esposa de um moleiro que Patrek conhecia. Gostaria que Patrek estivesse comigo agora. Mallister ou não, era uma companhia de cavalgada mais amigável que este velho sacerdote azedo em que o tio Aeron se transformara.
O caminho que seguiam retorcia-se cada vez mais para cima, por montes nus e pedregosos. Logo estavam fora da vista do mar, embora o odor do sal ainda pairasse, vivo, no ar úmido. Mantinham um ritmo pesado e constante, passando pelo cercado de um pastor e pelas instalações abandonadas de uma mina. Este novo e santo Aeron Greyjoy não era muito de falar. Por isso avançavam numa melancolia de silêncio.
Finalmente, Theon não conseguiu suportá-la mais.
- Robb Stark é agora senhor de Winterfell - ele finalmente disse.
Aeron prosseguiu seu caminho,
- Os lobos são muito iguais uns aos outros.
- Robb quebrou a lealdade ao Trono de Ferro e se fez coroar Rei do Norte. Há guerra.
- Os corvos do meistre voam tão bem sobre o sal como sobre a rocha. Essa notícia é velha e fria.
- Significa um novo dia, tio - Theon falou em tom de promessa.
- Todas as manhãs trazem um novo dia, muito igual ao velho.
- Em Correrrio, diriam outra coisa - Theon respondeu. - Ouvi dizer que o cometa vermelho é um arauto de uma nova era. Um mensageiro dos deuses, dizem,
- E um sinal - concordou o sacerdote mas do nosso deus, não dos deles. E uma tocha ardente, como as que a nossa gente transportava nos tempos antigos. E a chama do Deus Afogado trazida do mar e proclama uma maré cheia. E tempo de içar as velas e avançar para o mundo com fogo e espada, como ele fez.
Theon sorriu.
- Concordo em gênero e número.
- Um homem concorda com deus como uma gota de chuva com a tempestade.
Esta gota de chuva será rei um dia, velho. Theon suportara mais do que conseguia a melancolia do tio. Então, enfiou as esporas no cavalo e trotou em frente, sorrindo. O sol estava prestes a se pôr quando chegaram às muralhas de Pyke, um crescente de pedra escura que corria de falésia a falésia, com a guarita ao centro e três torres quadradas de cada lado.
Theon ainda conseguia distinguir as cicatrizes deixadas pelas pedras das catapultas de Robert Baratheon. Uma nova torre sul tinha sido erguida das ruínas da antiga, feita de pedras com um tom de cinza mais claro e ainda limpa de manchas de líquens. Fora ali que Robert abrira sua brecha, subindo depois sobre o entulho e os cadáveres com o martelo de guerra na mão, e Ned Stark a seu lado. Theon observara, da segurança da Torre do Mar, e por vezes ainda via os archotes em sonhos e ouvia o estrondo abafado do colapso.
Os portões estavam abertos para ele entrar, com a porta levadiça de ferro enferrujado erguida. Os guardas no topo das ameias observaram, sem o reconhecer, quando Theon Greyjoy voltou finalmente para casa. Para lá da muralha exterior estendia-se meia centena de acres de promontório, empurrado contra o céu e o mar. Os estábulos ficavam ali, bem como os canis e alguns outros edifícios espalhados.
Ovelhas e porcos amontoavam-se nos seus currais, enquanto os cães do castelo corriam em liberdade. Ao sul ficavam as falésias e a larga ponte de pedra que levava à Grande Fortaleza. Theon conseguia ouvir o bater das ondas quando saltou da sela. Um cavalariço veio levar o cavalo.
Um par de crianças esqueléticas e alguns servos ficaram olhando-o sem expressão, mas não viu sinal do senhor seu pai nem de mais ninguém que reconhecesse da sua infância. Um retorno ao lar gelado e amargo, pensou.
O sacerdote não desmontou.
- Não vai ficar esta noite para partilhar da nossa comida e bebida, tio?
- Disseram-me traga-o. E eu o trouxe. Agora volto aos assuntos do nosso deus - Aeron Greyjoy virou o cavalo e saiu lentamente do castelo sob os espigões enlameados da porta levadiça.
Uma velha corcunda enfiada num vestido cinza sem forma aproximou-se dele com cautela:
- Senhor, mandaram-me levá-lo aos seus aposentos.
- A pedido de quem?
- Do senhor seu pai, senhor.
Theon puxou as luvas.
- Então você sabe quem eu sou. Por que meu pai não está aqui para me receber?
- Espera-o na Torre do Mar, senhor. Quando estiver descansado da viagem,
E eu achava Ned Stark frio.
- E você, quem é?
- Helya, que mantém o castelo para o senhor seu pai.
- Sylas era o intendente daqui. Chamavam-no de Boca Azeda - mesmo agora, Theon recordava o fedor de vinho do hálito do velho.
- Está morto há cinco anos, senhor.
- E Meistre Qalen, onde está?
- Dorme no mar. Wendamyr cuida agora dos corvos, mas foi para o sul, para Vilavelha, tratar de uns assuntos quaisquer de meistre.
E como se eu fosse um estranho aqui, Theon pensou. Nada mudou, mas tudo mudou.
- Leve-me aos meus aposentos, mulher - ele ordenou.
Com uma reverência rígida, ela o levou através do promontório em direção à ponte. Isso, pelo menos, era como ele recordava; as antigas pedras escorregadias com os borrifos de água do mar e manchadas por líquens, o mar espumando sob seus pés como um grande animal selvagem, o vento salgado agarrando-se à sua roupa.
Quando pensava no regresso à sua casa, sempre se imaginava voltando ao quarto confortável da Torre do Mar onde dormia quando criança. Mas, em vez disso, a velha o levou para a Fortaleza Sangrenta. Os salões eram maiores e mais bem mobilados, ainda que não fossem menos frios e úmidos. Foi-lhe dada uma suíte de salas gélidas com tetos tão altos que se perdiam na escuridão.
Poderia ter ficado mais impressionado, caso não soubesse que aqueles eram exatamente os aposentos que tinham dado nome à Fortaleza Sangrenta. Mil anos antes, os filhos do Rei do Rio tinham sido ali massacrados, cortados em pedaços nas suas camas para que as partes dos seus corpos fossem enviadas de volta ao pai, no continente.
Mas Theon era um Greyjoy, e os Greyjoy não eram assassinados em Pyke, exceto muito de vez em quando pelos irmãos, e seus irmãos estavam ambos mortos. Não era o medo de fantasmas que o fazia olhar em volta com desagrado. Os reposteiros estavam verdes de bolor, o colchão cheirava a mofo e fazia uma cova e as esteiras eram velhas e quebradiças. Tinham-se passado anos desde que aqueles aposentos tinham sido abertos pela última vez. A umidade atacava os ossos.
- Quero uma bacia de água quente e um fogo nesta lareira - disse à velha. - Mande que acendam braseiros nas outras salas para expulsar um pouco deste frio. E, que os deuses sejam bondosos, mande alguém aqui imediatamente para trocar estas esteiras.
- Sim, senhor. Às suas ordens - ela respondeu e fugiu.
Algum tempo depois, trouxeram a água quente que pedira. Estava apenas tépida, em breve esfriaria, e ainda por cima era água do mar, mas serviu para lavar a poeira da longa cavalgada da sua cara, cabelo e mãos. Enquanto dois servos corriam ao redor acendendo braseiros, Theon despiu as roupas manchadas pela viagem e vestiu-se para o encontro com o pai. Escolheu botas de couro negro flexível, calções suaves de lã de carneiro, cinza-prateados, um gibão de veludo negro com a lula gigante dourada dos Greyjoy bordada no peito. Em volta da garganta prendeu um fino fio de ouro, e em torno da cintura, um cinto de couro branco. Pendurou uma adaga de um lado da cintura e uma espada longa do outro, em bainhas com riscas negras e douradas. Puxando o punhal, testou seu fio com o polegar, pegou uma pedra de amolar da bolsa de cinto e deslizou-a algumas vezes pela lâmina.
Orgulhava-se por manter as armas afiadas.
- Quando voltar, espero encontrar uma sala quente e esteiras limpas - avisou aos servos, enquanto calçava um par de luvas pretas, cuja seda era decorada com delicados arabescos em fio de ouro.
Theon retornou à Grande Fortaleza por uma passarela de pedra coberta, ouvindo os ecos dos seus passos misturados ao incessante rumor do mar lá embaixo. Para chegar à Torre do Mar, erguida no topo do seu pilar torto, tinha de atravessar outras três pontes, cada uma mais estreita do que a anterior. A última era feita de madeira e cordas, e o vento úmido e salgado a fazia oscilar sob seus pés como se estivesse viva.
Quando chegou na metade, Theon tinha o coração na boca. Muito abaixo, as ondas atiravam grandes plumas de borrifos quando se quebravam de encontro às rochas. Ainda garoto, costumava correr por aquela ponte, mesmo quando noite cerrada. As crianças acham que nada pode machucá-las, segredavam-lhe suas dúvidas. Os homens sabem que não é assim.
A porta era feita de madeira cinza com rebites de ferro, e Theon encontrou-a trancada por dentro. Bateu com um punho e praguejou quando uma lasca rasgou a fina seda da sua luva. A madeira estava úmida e bolorenta, e os rebites, enferrujados.
Passado um momento, a porta foi aberta de dentro por um guarda com uma placa de peito e um capacete redondo de ferro negro.
- É o filho?
- Saia da frente, ou ficará sabendo quem sou para seu desgosto.
O homem abriu-lhe caminho. Theon subiu os degraus em espiral até o aposento privado de seu pai. Encontrou-o sentado ao lado de um braseiro, sob um roupão de velhas peles de foca que o cobria dos pés até o queixo. Ao ouvir o som das botas na pedra, o Senhor das Ilhas de Ferro ergueu os olhos para contemplar seu último filho homem sobrevivente. Era mais baixo do que Theon recordava. E tão descarnado. Balon Greyjoy sempre fora magro, mas agora parecia que os deuses o tinham depositado num caldeirão, fervendo cada grama de carne não imprescindível e arrancando-a dos ossos, até que nada restasse, a não ser cabelo e pele. Era magro e duro como um osso, com um rosto que podia ter sido esculpido em sílex. Seus olhos eram também de sílex, negros e penetrantes, mas os anos e os ventos salgados tinham deixado seu cabelo cinza como um mar de inverno, salpicado de espuma branca, e, quando solto, caía abaixo da cintura.
- Nove anos, é isso? - disse por fim Lorde Balon.
- Dez - Theon respondeu, descalçando as luvas rasgadas.
- Levaram um garoto - o pai falou. - O que você é agora?
- Um homem. Do seu sangue, e seu herdeiro.
Lorde Balon soltou um grunhido.
- Veremos.
- Verás - Theon prometeu.
- Dez anos, diz você. Stark teve você durante tanto tempo quanto eu. E agora chega como seu enviado.
- Dele, não - Theon o corrigiu. - Lorde Eddard está morto, decapitado pela rainha Lannister.
- Estão ambos mortos - Lorde Balon recordou. - O Stark e aquele Robert que quebrou minhas muralhas com as suas pedras. Um dia jurei que viveria para ver ambos sepultados, e vivi - fez uma careta. - E, no entanto, o frio e a umidade ainda fazem minhas articulações doerem, como quando eram vivos. Portanto, de que serve?
- Serve - Theon aproximou-se. - Trago uma carta...
- Foi Ned Stark quem o vestiu assim? - seu pai o interrompeu, olhando-o de soslaio de dentro do roupão. - Era desejo dele enfiá-lo em veludos e sedas e fazer de você sua querida filha?
Theon sentiu o sangue subir ao seu rosto.
- Não sou filha de ninguém. Se não gosta do meu traje, vou trocá-lo.
- Trocará - concordou Lorde Balon. Libertando-se do roupão de peles, ficou de pé. Não era tão alto como Theon recordava. - Essa porcaria em volta do seu pescoço... Comprou-a com ouro ou com ferro?
Theon tocou o fio de ouro, sem encontrar palavras. Tinha esquecido. Foi há tanto tempo... Pelo Costume Antigo, só as mulheres se decoravam com ornamentos comprados com moeda. Um guerreiro usava apenas as joias que tirasse dos cadáveres de inimigos mortos pelas suas mãos. Chamava-se isso de pagar o preço de ferro.
- Fica vermelho como uma donzela, Theon - seu pai ralhou. - Foi feita uma pergunta. Foi o preço de ouro que pagou ou o de ferro?
- O de ouro - Theon admitiu.
O pai enfiou os dedos sob o colar e deu um puxão tão forte, que poderia ter arrancado a cabeça de Theon se a corrente não tivesse se quebrado primeiro.
- Minha filha tomou um machado como amante. Não permitirei que meu filho se enfeite como uma prostituta - deixou o fio partido cair no braseiro, onde desapareceu por entre os carvões. - E como eu temia. As terras verdes tornaram-no mole, e os Stark transformaram-no em um deles.
- Engana-se - Theon reagiu. - Ned Stark era meu carcereiro, mas meu sangue ainda é de sal e ferro.
Lorde Balon virou-se e aqueceu as mãos ossudas sobre o braseiro.
- E, no entanto, o filhote Stark manda você até mim como um corvo bem treinado, agarrado à sua pequena mensagem.
- Não há nada de pequeno na carta que trago. E a oferta que faz foi a que eu lhe sugeri.
- Então, este rei lobo presta atenção aos seus conselhos? - a idéia parecia divertir Lorde Balon.
- Sim, ele presta atenção em mim. Cacei e treinei com ele, partilhei comida e bebida com ele, guerreei ao seu lado. Conquistei a sua confiança. Olha para mim como a um irmão mais velho, ele...
- Não - seu pai brandiu um dedo em frente dos seus olhos. - Não aqui, não em Pyke, não onde eu puder ouvir, não vai chamá-lo de irmão, este filho do homem que passou seus verdadeiros irmãos na espada. Ou terá se esquecido de Rodrik e de Maron, que eram do seu sangue?
- Não me esqueci de nada.
Ned Stark, na verdade, não havia matado nenhum dos seus filhos. Rodrik fora morto por Lorde Jason Mallister em Guardamar, e Maron morrera esmagado no colapso da antiga torre sul... Mas Stark teria acabado com eles com a mesma facilidade, caso a maré da batalha tivesse calhado de juntá-los.
- Lembro-me muito bem dos meus irmãos - Theon continuou. Lembrava-se principalmente das bofetadas que Rodrik lhe dava quando se embebedava e das brincadeiras cruéis e mentiras sem fim de Maron. - Também me lembro de quando meu pai era um rei - tirou a carta que Robb tinha lhe dado e a apresentou.
- Aqui está. Leia-a... Vossa Graça.
Lorde Balon quebrou o selo e desdobrou o pergaminho. Seus olhos negros saltitaram de um lado para outro.
- Então o rapaz quer me dar uma coroa de volta. E tudo o que tenho de fazer é destruir os seus inimigos - seus lábios finos retorceram-se num sorriso.
- A esta altura, Robb deve estar montando cerco ao Dente Dourado - Theon disse. - Quando o Dente cair, atravessará os montes em um dia. Lorde Tywin e sua tropa estão em Harrenhal, separados do oeste. O Regicida é mantido cativo em Correrrio. Só resta Sor Stafford Lannister e os recrutas inexperientes, que tem andado reunindo para enfrentar Robb no oeste. Sor Stafford não terá alternativa a não ser colocar-se entre o exército de Robb e Lanisporto... O que significa que a cidade estará indefesa quando cairmos sobre ela vindos do mar. Se os deuses estiverem conosco, até o próprio Rochedo Casterly poderá cair antes que os Lannister consigam sequer perceber que estamos em cima deles.
Lorde Balon soltou um grunhido,
- Rochedo Casterly nunca caiu.
- Até agora - Theon sorriu. E como isso seria bom.
Seu pai não devolveu o sorriso.
- Então é para isso que Robb Stark manda você de volta para mim depois de tanto tempo? Para que ganhe meu consentimento para este seu plano?
- O plano é meu, não de Robb - Theon falou orgulhosamente. Meu, tal como a vitória será minha, e, a seu tempo, a coroa. - Eu mesmo vou dirigir o ataque, se lhe agradar. Como recompensa, gostaria de pedir que me conceda domínio sobre Rochedo Casterly, depois de tomarmos o castelo dos Lannister - com o Rochedo, poderia dominar Lanisporto e as terras verdes do oeste, bem como os montes ricos em ouro que as rodeavam. Significaria riqueza e poder tais como a Casa Greyjoy nunca conhecera.
- Você se recompensa bem, por uma idéia e umas poucas linhas de garranchos - seu pai voltou a ler a carta. - O lobinho não diz nada sobre uma recompensa. Diz só que fala em seu nome, que devo escutá-lo e lhe dar minhas velas e espadas, e que, em troca, me dará uma coroa - seus olhos de sílex levantaram-se até encontrar os do filho. - Que me dará uma coroa - ele repetiu, com a voz tornando-se ríspida.
- Uma escolha ruim de palavras. O que quer dizer é...
- O que se quer dizer é o que se diz. O rapaz quer me dar uma coroa. E o que é dado pode ser tirado.
Lorde Balon atirou a carta no braseiro, juntando-a ao colar. O pergaminho encurvou-se, enegreceu e queimou-se. Theon ficou horrorizado.
- Enlouqueceu?
Seu pai lhe deu um forte tapa na cara com as costas da mão.
- Cuidado com a língua. Agora não está em Winterfell, e eu não sou Robb, o Rapaz, para que possa falar assim comigo. Sou Greyjoy, Senhor Ceifeiro de Pyke, Rei do Sal e Rocha, Filho do Vento Marinho e ninguém me dá uma coroa. Eu pago o preço de ferro. Tomarei a minha coroa, como Urron Redhand fez há cinco mil anos.
Theon recuou, afastando-se da fúria súbita no tom da voz de seu pai:
- Tome-a, então - cuspiu, sua face ainda formigando. - Proclame-se Rei das Ilhas de Ferro, ninguém vai se importar... Até que a guerra acabe, e o vencedor procure e encontre o velho tolo empoleirado em sua costa com uma coroa de ferro na cabeça.
Lorde Balon riu.
- Bem, pelo menos você não é um covarde. Não mais do que eu sou um tolo. Você acha que juntei meus navios para vê-los ancorar? Pretendo burilar um reino com fogo e espada... Mas não do oeste, e não a pedido do Rei Robb, o Rapaz. Rochedo Casterly é forte demais, e Lorde Tywin, muito astuto. Ah, podemos tomar Lannisporto, mas jamais o manteríamos. Não. Desejo uma ameixa diferente... Não tão suculenta nem doce, para ser sincero, mas que está lá no pé, madura e indefesa.
Onde? Theon podia ter perguntado, mas então já sabia.  

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