No centro
da Praça do Orgulho havia uma fonte de tijolo vermelho cujas águas
cheiravam a enxofre, e no meio da fonte erguia-se uma monstruosa
harpia feita de bronze martelado.
Empinava-se
até seis metros de altura. Tinha rosto de mulher, com cabelos
dourados, olhos de marfim e dentes pontiagudos também de marfim. A
água jorrava amarela de seus seios pesados. Mas, no lugar dos
braços, possuía as asas de um morcego ou dragão; suas pernas eram
as de uma águia, e atrás tinha a cauda enrolada e venenosa de um
escorpião.
A harpia
de Gbis, pensou Dany. A Velha Ghis caíra havia cinco mil anos, se
bem se lembrava; suas legiões foram despedaçadas pelo poderio da
jovem Valíria; suas muralhas de tijolo, arrasadas; suas ruas e seus
edifícios, transformados em cinzas e brasas por fogo de dragão; os
campos, semeados com sal, enxofre e crânios. Os deuses de Ghis
estavam mortos, e seu povo também; aqueles astapori eram mestiços,
dizia Sor Jorah. Até a língua ghiscari estava quase completamente
esquecida; as cidades escravagistas falavam o Alto Valiriano de seus
conquistadores, ou aquilo em que o tinham transformado.
Mas o
símbolo do Velho Império ainda resistia ali, embora aquele monstro
de bronze tivesse uma pesada corrente pendurada das garras, com uma
algema aberta em cada extremidade. A harpia de Ghis tinha um
relâmpago nas garras. Esta é a harpia de Astapor.
- Diga à
prostituta westerosi para baixar os olhos - resmungou o senhor de
escravos Kraznys mo Nakloz para a jovem escrava que falava por ele. -
Eu negocio carne, não metal. O bronze não está à venda. Diga-lhe
para olhar para os soldados. Até os fracos olhos púrpuras de uma
selvagem do poente são certamente capazes de ver como as minhas
criaturas são magníficas.
O Alto
Valiriano de Kraznys era tortuoso e carregado com o rosnado
característico de Ghis e temperado aqui e ali com palavras de calão
de feitor. Dany compreendia-o bastante bem, mas sorriu e olhou sem
expressão para a escrava, como quem se interroga sobre o que ele
teria dito.
- O Bom
Mestre Kraznys pergunta, não são magníficos? - a garota falava bem
o Idioma Comum, para alguém que nunca estivera em Westeros. Com não
mais de dez anos, tinha o rosto redondo e achatado, pele morena e
olhos dourados de Naath. Chamavam seu povo de Povo Pacífico. Todos
eram unânimes em afirmar que davam os melhores escravos.
- Podem
ser adequados para as minhas necessidades - respondeu Dany. Tinha
sido sugestão de Sor Jorah que ela falasse apenas em dothraki e no
Idioma Comum enquanto estivesse em Astapor. O meu urso é mais
esperto do que parece. - Fale-me de seu treinamento.
- Eles
agradam à mulher westerosi, mas ela não os elogia, para manter o
preço baixo - disse a tradutora ao seu dono. - Quer saber como foram
treinados.
Kraznys
mo Nakloz inclinou a cabeça. Aquele senhor de escravos cheirava como
se tivesse tomado banho em framboesas, e sua protuberante barba
vermelha e negra brilhava de óleo. Os seios dele são maiores do que
os meus, refletiu Dany. Via-os através da seda verde-marinho do
tokar debruado de ouro que ele trazia enrolado em volta do corpo e
por cima de um ombro. A mão esquerda mantinha o tokar no lugar ao
caminhar, enquanto a direita empunhava um curto chicote de couro.
- Todos
os porcos westerosi são assim tão ignorantes? - protestou. - O
mundo inteiro sabe que os Imaculados são mestres de lança, escudo e
espada curta, - Dirigiu a Dany um largo sorriso. - Diga-lhe o que
quer saber, escrava, e depressa. O dia está quente.
Isso,
pelo menos, não é mentira nenhuma. Um par de jovens escravas
encontrava-se atrás deles, segurando por cima de suas cabeças um
toldo de seda riscado, mas, mesmo à sombra, Dany sentia-se um pouco
tonta, e Kraznys transpirava abundantemente. A Praça do Orgulho
cozia ao sol desde o nascer do dia, Dany conseguia sentir o calor dos
tijolos vermelhos sob os pés mesmo através do solado de suas
sandálias. Ondas de calor erguiam-se desses tijolos, estremecendo o
ar e fazendo com que as pirâmides de degraus de Astapor que se
erguiam ao redor da praça quase parecessem fazer parte de um sonho.
Se os
Imaculados sentiam o calor, não mostravam qualquer sinal disso. Eles
mesmos podiam ser feitos de tijolo, julgando pelo modo como estão
ali. Um milhar tinha sido trazido das casernas para a sua inspeção;
alinhados em dez formações de cem homens perante a fonte e a sua
grande harpia de bronze, estavam rigidamente em sentido, com os olhos
de pedra fixos à frente. Nada vestiam além de panos de linho branco
atados na altura dos rins e elmos cônicos de bronze rematados por um
espigão afiado com trinta centímetros de altura. Kraznys
ordenara-lhes que apoiassem as lanças e os escudos no chão e
despissem os cintos de espadas e as túnicas acolchoadas, para que a
Rainha de Westeros pudesse inspecionar melhor a rigidez esguia de
seus corpos.
- São
escolhidos ainda jovens, pelo tamanho, rapidez e força - disse-lhe a
escrava. - Iniciam o treinamento aos cinco anos. Treinam todos os
dias, da alvorada ao pôr do sol, até dominarem a espada curta, o
escudo e as três lanças. O treino é muito rigoroso, Vossa Graça.
Só um garoto em três sobrevive a ele, Isso todos sabem. Entre os
Imaculados diz-se que no dia em que ganham seu capacete de espigão o
pior ficou para trás, pois nenhum dever que for atribuído a eles
poderá ser tão duro quanto o treinamento.
Kraznys
mo Nakloz, supostamente, não falava o Idioma Comum, mas balançava a
cabeça enquanto escutava e de vez em quando empurrava a escrava com
a ponta do chicote.
-
Diga-lhe que aqueles estão ali em pé há um dia e uma noite, sem
comida nem água. Diga-lhe que ficarão ali até caírem se eu lhes
ordenar que o façam, e que quando novecentos e noventa e nove
tiverem caído e morrido sobre os tijolos, o último ainda estará
ali e não se moverá até que a própria morte o reclame. É assim a
coragem deles. Diga-lhe isso.
- Eu
chamo isso de loucura, não de coragem - disse Arstan Barba-Branca
quando a solene pequena escriba terminou. Bateu com a ponta de seu
bastão de madeira nos tijolos, tap tap, como que para afirmar seu
descontentamento. O velho não quisera viajar até Astapor; tampouco
era favorável à compra daquele exército de escravos, Uma rainha
devia escutar todos os lados antes de tomar uma decisão. Era por
isso que Dany o havia trazido consigo até a Praça do Orgulho, não
para mantê-la em segurança. Seus companheiros de sangue fariam isso
suficientemente bem.
Deixara
Sor Jorah Mormont a bordo do Balerion para proteger seu povo e seus
dragões. Muito a contragosto, havia prendido os dragões no porão.
Deixá-los voar livremente sobre a cidade era perigoso demais; o
mundo estava repleto de homens que os matariam de bom grado por
nenhum outro motivo além de poder se autodenominar matador de
dragões.
- O que
disse o velho fedorento? - perguntou o feitor à tradutora. Quando
ela lhe disse, ele sorriu e falou: - Informe os selvagens de que
chamamos isso de obediência. Outros podem ser mais fortes, mais
rápidos ou maiores do que os Imaculados. Alguns, poucos, podem até
igualar a sua perícia com a espada, a lança e o escudo. Mas em
nenhum lugar entre os mares encontrarão alguém mais obediente.
- As
ovelhas são obedientes - disse Arstan quando as palavras foram
traduzidas. Ele também sabia algum valiriano, embora não tanto
quanto Dany, mas, assim como ela, fingia ignorância.
Kraznys
mo Nakloz mostrou seus grandes dentes brancos quando aquilo lhe foi
transmitido.
- Uma
palavra minha e aquelas ovelhas derramam as velhas tripas fedorentas
dele nos tijolos - disse ele - mas não lhe diga isso. Diga-lhes que
estas criaturas são mais cães do que ovelhas. Eles comem cão ou
cavalo lá nos Sete Reinos?
-
Preferem porcos e vacas, excelência.
- Carne
de vaca. Pfuá. Comida para selvagens que não se lavam.
Ignorando-os,
Dany percorreu lentamente a fileira de soldados escravos. As mulheres
seguiram-na de perto com o toldo de seda, para mantê-la à sombra,
mas os mil homens à sua frente não desfrutavam de tal proteção.
Mais da metade possuía pele acobreada e olhos amendoados dos
dothraki e dos lhazarenos, mas Dany também viu nas fileiras homens
das Cidades Livres, bem como qarthenos de pele clara, ilhéus de
verão com rosto de ébano, e outros cuja origem não era capaz de
adivinhar. E alguns tinham pele do mesmo tom de âmbar de Kraznys mo
Nakloz, e os cabelos rijos vermelhos e negros que identificavam o
antigo povo de Ghis, aqueles que chamavam a si mesmos de filhos da
harpia. Até vendem os seus. Não a devia ter surpreendido. Os
dothraki faziam o mesmo, quando khalasar se encontrava com kbalasar
no mar de erva.
Alguns
dos soldados eram altos e outros, baixos. Dany calculou que as idades
oscilariam entre os catorze e os vinte anos. Os rostos eram lisos, e
os olhos todos iguais, fossem negros, castanhos, azuis, cinza ou
ambarinos. São como um único homem, pensou, até se lembrar de que
não eram homens coisa nenhuma. Os Imaculados eram eunucos, todos
eles.
- Por que
os cortam? - perguntou a Kraznys através da escrava. - Sempre ouvi
dizer que homens inteiros são mais fortes do que eunucos.
- Um
eunuco cortado ainda novo nunca terá a força bruta de um de seus
cavaleiros westerosi, é verdade - disse Kraznys mo Nakloz quando a
pergunta lhe foi colocada. - Um touro também é forte, mas touros
morrem todos os dias nas arenas de luta. Uma menina de nove anos
matou um há três dias na Arena de Jothiel. Os Imaculados têm algo
melhor do que a força, diga-lhe. Têm disciplina. Lutamos à maneira
do Velho Império, sim. São as legiões marchantes da Velha Ghis
regressadas, absolutamente obedientes, absolutamente leais, e
totalmente desprovidas de medo.
Dany
escutou pacientemente a tradução.
- Até os
homens mais corajosos temem a morte e a mutilação - disse Arstan
quando a garota terminou.
Kraznys
voltou a sorrir quando ouviu aquilo.
- Diga ao
velho que ele cheira a mijo e precisa de uma bengala para mantê-lo
em pé.
- Digo
mesmo, excelência?
Ele
cutucou-a com o chicote.
- Não,
não diz mesmo, é uma menina ou uma cabra para fazer uma pergunta
tão imbecil? Diga que os Imaculados não são homens. Diga que a
morte não significa nada para eles, e a mutilação menos do que
nada. - Parou perante um homem atarracado com traços de Lhazar e
ergueu violentamente o chicote, deixando uma linha de sangue em sua
face acobreada. O eunuco piscou, e ali ficou, sangrando. - Quer
outra?
- Se sua
excelência desejar.
Foi
difícil fingir não entender. Dany pousou uma mão no braço de
Kraznys antes de ele ter tempo de voltar a erguer o chicote.
- Diga ao
Bom Mestre que eu vejo como seus Imaculados são fortes e suportam
corajosamente a dor.
Kraznys
soltou um risinho quando ouviu as palavras dela em valiriano.
- Diga a
essa prostituta ignorante do ocidente que coragem não tem nada a ver
com o assunto.
- O Bom
Mestre diz que aquilo não foi coragem, Vossa Graça.
-
Diga-lhe para abrir esses olhos de cadela.
- Ele
pede-lhe que observe com atenção, Vossa Graça.
Kraznys
aproximou-se do eunuco que se seguia na fileira, um jovem muito alto
com os olhos azuis e os cabelos louros de Lys.
- A sua
espada - disse. O eunuco ajoelhou, desembainhou a arma e ofereceu-a,
com o cabo para a frente. Era uma espada curta, feita mais para
trespassar do que para cortar, mas o gume parecia afiado como uma
navalha. - Fique em pé - ordenou Kraznys.
- Sua
excelência. - O eunuco levantou-se, e Kraznys mo Nakloz deslizou
lentamente a espada por seu tronco acima, deixando uma fina linha
vermelha na barriga e entre as costelas. Depois espetou a ponta da
espada por baixo de um grande mamilo cor-de-rosa e começou a
manejá-la para trás e para a frente.
- O que
ele está fazendo? - perguntou Dany à garota, enquanto o sangue
escorria pelo peito do homem.
- Diga à
vaca que pare de mugir - disse Kraznys sem esperar pela tradução -
Isso não lhe fará grande mal. Os homens não precisam dos mamilos,
e os eunucos menos ainda - O mamilo pendeu, preso por um fio de pele.
Ele o cortou e fez com que rolasse pelos tijolos, deixando em seu
lugar um olho vermelho que chorava sangue copiosamente. O eunuco não
se mexeu, até que Kraznys entregou-lhe a espada de volta, com o cabo
para a frente. - Tome, está dispensado.
- Este
está feliz por tê-lo servido.
Kraznys
virou-se para Dany.
- Eles
não sentem dor, está vendo?
- Como
isso é possível? - ela quis saber através da escriba.
- O vinho
da coragem - foi a resposta que ele lhe deu - Não é um vinho de
verdade, mas sim uma bebida feita a partir de beladona, larvas de
mosca de sangue, raízes de lótus negra e muitas coisas secretas,
Bebem-no em todas as refeições desde o dia de seu corte, e a cada
ano que passa sentem cada vez menos. Isso torna-os destemidos em
batalha. E também não podem ser torturados. Diga à selvagem que
seus segredos estão seguros com os Imaculados. Ela pode colocá-los
de guarda em seus conselhos e até em seu quarto, sem nunca se
preocupar com o que eles possam ouvir. Em Yunkai e Meeren, os eunucos
são frequentemente gerados através da remoção dos testículos de
um rapaz, deixando o pênis. Uma criatura dessas é infértil, mas
frequentemente ainda capaz de ereção. Apenas problemas podem advir
de tal prática. Nós removemos também o pênis, sem deixar nada. Os
Imaculados são as criaturas mais puras da face da Terra. - Ofereceu
a Dany e Arstan outro largo sorriso branco. - Ouvi dizer que nos
Reinos do Poente os homens fazem votos solenes de se manterem castos
e não gerar filhos, mas viver apenas para o seu dever, E verdade?
- É -
disse Arstan, quando a pergunta foi colocada. - Há muitas ordens
dessas. Os meistres da Cidadela, os septÕes e as septãs que servem
os Sete, as irmãs silenciosas dos mortos, a Guarda Real e a Patrulha
da Noite...
- Pobres
coitados - rosnou o senhor de escravos depois da tradução. - Os
homens não deveriam viver assim. Seus dias são um tormento de
tentação, qualquer tolo pode ver isso, e não há dúvida de que a
maioria sucumbe aos seus instintos mais primários. Nossos Imaculados
não são assim. Estão casados com suas espadas de uma maneira que
seus Irmãos Juramentados não podem ter esperanças de igualar.
Nenhuma mulher poderá alguma vez tentá-los, e nenhum homem também.
A garota
transmitiu a essência do discurso, com mais delicadeza.
- Há
outras maneiras de tentar os homens, além da carne - retrucou Arstan
Barba-Branca depois de ela terminar.
- Os
homens, sim, mas os Imaculados, não. O saque não lhes interessa
mais do que a violação. Nada possuem além de suas armas. Nem
sequer permitimos que tenham nomes.
- Não
têm nomes? - Dany franziu a testa para a pequena escriba. - Poderá
ser isso que o Bom Mestre disse? Eles não têm nomes?
- E
verdade, Vossa Graça,
Kraznys
parou na frente de um ghiscari que podia ter sido um irmão seu mais
alto e em melhor forma e estalou o chicote num pequeno disco de
bronze que ele tinha preso no cinto da espada, a seus pés.
- O nome
dele está ali. Pergunte à rameira de Westeros se sabe ler glifos
ghiscari. - Quando Dany admitiu que não sabia, o feitor virou-se
para o Imaculado. - Como se chama? - quis saber. - O nome deste é
Pulga Vermelha, excelência.
A garota
repetiu a conversa no Idioma Comum.
- E
ontem, qual era?
- Rato
Preto, reverência.
- No dia
anterior?
- Pulga
Marrom, reverência.
- E antes
disso?
- Este
não se lembra, reverência. Talvez Sapo Azul. Ou Verme Azul.
-
Diga-lhe que todos os nomes deles são assim - ordenou Kraznys à
garota. - Recordam-lhes de que, por conta própria, são bichos. Os
discos com os nomes são atirados dentro de um barril vazio ao
terminarem os deveres do dia, e todas as alvoradas são de lá
sorteados.
- Mais
loucuras - disse Arstan quando ouviu aquilo. - Como um homem pode se
lembrar de um nome novo todos os dias?
- Os que
não podem são excluídos no treino, com aqueles que não são
capazes de correr o dia inteiro com a bagagem completa, escalar uma
montanha no meio da noite, caminhar sobre brasas ou matar uma
criança.
A boca de
Dany certamente se contorceu ao ouvir aquilo. Ele terá visto, ou
será tão cego quanto é cruel? Virou-se depressa, tentando manter
uma máscara no rosto até ouvir a tradução. Foi só então que se
permitiu dizer:
- De quem
são as crianças que matam?
- Para
conquistar seu capacete de espigão, um Imaculado deve ir aos
mercados de escravos com um marco de prata, encontrar um
recém-nascido qualquer e matá-lo diante dos olhos da mãe. Dessa
maneira, certificamo-nos de que não resta neles qualquer fraqueza.
Dany
sentiu-se prestes a desmaiar. O calor, tentou dizer a si própria.
-
Arrancam um bebê dos braços da mãe, matam-no com ela assistindo e
pagam por sua dor com uma moeda de prata?
Quando a
tradução lhe chegou, Kraznys mo Nakloz soltou uma sonora
gargalhada.
- Que
idiota chorona e molenga esta aí é. Diga à puta de Westeros que o
marco é para o dono da criança, não para a mãe. Os Imaculados não
estão autorizados a roubar. - Bateu com o chicote na perna. -
Diga-lhe que são poucos os que falham nesse teste. Os cães são
mais difíceis para eles, na verdade. Damos um cachorro a cada garoto
no dia em que é cortado. Ao fim do primeiro ano, ele deve
estrangulá-lo. Todos os que não conseguem fazer isso são mortos e
dados de comer aos cães sobreviventes. Achamos que isso serve como
uma boa e forte lição.
Arstan
Barba-Branca batucou com a ponta de seu bastão nos tijolos enquanto
ouvia aquilo. Tap tap tap. Lenta e regularmente. Tap tap tap. Dany
viu-o afastar os olhos, como se não conseguisse olhar mais para
Kraznys.
- O Bom
Mestre disse que esses eunucos não podem ser tentados com moedas ou
carne - disse Dany à garota - mas se algum inimigo meu lhes
oferecesse a liberdade por me traírem...
- Eles
iriam matá-lo imediatamente e trariam-lhe a cabeça, diga-lhe isso -
respondeu o feitor. - Outros escravos podem roubar e guardar prata em
segredo na esperança de comprar a liberdade, mas um Imaculado não a
aceitaria se a eguazinha a oferecesse de presente. Não têm vida
fora de seu dever. São soldados, e só.
- É de
soldados que preciso - admitiu Dany.
-
Diga-lhe que, nesse caso, fez bem em vir a Astapor. Pergunte-lhe qual
é o tamanho do exército que deseja comprar.
- Quantos
Imaculados tem para vender?
- Oito
mil completamente treinados e disponíveis de imediato. Ela deve
saber que só os vendemos em larga escala. Em milhares ou centenas.
Antes os vendíamos em dezenas, para guardas domésticos, mas isso
revelou-se um erro. Dez são poucos demais. Misturam-se com os outros
escravos, e até com homens livres e esquecem-se de quem e do que
são. - Kraznys esperou que aquilo fosse transmitido no Idioma Comum
e depois prosseguiu. - Essa rainha pedinte precisa compreender que
tais maravilhas não saem baratas. Em Yunkai e Meereen, espadachins
escravos podem ser obtidos por menos do que o preço de suas espadas,
mas os Imaculados são a melhor infantaria do mundo inteiro, e cada
um deles representa muitos anos de treino. Diga-lhe que eles são
como aço valiriano, dobrados uma e mais uma vez e martelados anos a
fio, até ficarem mais fortes e resistentes do que qualquer metal da
Terra.
- Eu
conheço o aço valiriano - disse Dany. - Pergunte ao Bom Mestre se
os Imaculados têm seus próprios oficiais.
- Precisa
pôr seus oficiais à frente deles. Nós os treinamos para obedecer,
não para pensar. Se é inteligência que ela quer, que compre
escribas.
- E o
equipamento?
- Espada,
escudo, lança, sandálias e túnica acolchoada estão incluídos -
disse Kraznys. - E os capacetes de espigão, com certeza. Eles usarão
qualquer armadura que você queira, mas quem vai fornecê-la é você.
Dany não
conseguia pensar em mais perguntas. Olhou para Arstan.
- Viveu
longo tempo no mundo, Barba-Branca. Agora que já os viu, o que diz?
- Digo
que não, Vossa Graça - o velho respondeu de imediato.
- Por
quê? - perguntou ela. - Fale livremente - Dany julgava saber o que
ele diria, mas queria que a menina escrava o escutasse, para que
Kraznys mo Nakloz ouvisse depois.
- Minha
rainha - disse Arstan - não há escravos nos Sete Reinos há
milhares de anos. Tanto os velhos deuses como os novos consideram a
escravidão uma abominação. Maligna. Se desembarcar em Westeros à
frente de um exército de escravos, muitos bons homens irão se opor
a você por nenhum outro motivo além desse. Causará grande dano à
sua causa e à honra de sua Casa.
- E, no
entanto, preciso ter algum exército - disse Dany. - O rapaz Joffrey
não me dará o Trono de Ferro se eu pedir educadamente.
- Quando
chegar o dia de içar os estandartes, metade de Westeros estará com
a senhora - prometeu Barba-Branca. - Seu irmão Rhaegar ainda é
lembrado com grande amor.
- E meu
pai? - perguntou Dany.
O velho
hesitou antes de dizer:
- O Rei
Aerys também é recordado. Deu ao reino muitos anos de paz. Vossa
Graça não tem necessidade de escravos. O Magíster Illyrio pode
mantê-la a salvo enquanto seus dragões crescem e pode mandar
enviados secretos para o outro lado do mar estreito em seu nome, para
sondar os grandes senhores a respeito de sua causa.
- Esses
mesmos grandes senhores que abandonaram o meu pai em favor do
Regicida e se curvaram a Robert, o Usurpador?
- Mesmo
aqueles que dobraram os joelhos podem ansiar no seu íntimo pelo
retorno dos dragões.
- Podem -
disse Dany. Podem era uma palavra tão escorregadia! Em qualquer
língua. Virou-se para Kraznys mo Nakloz e para sua pequena escrava.
- Tenho de refletir cuidadosamente.
O
negociante de escravos encolheu os ombros.
-
Diga-lhe para refletir depressa. Há muitos outros compradores. Não
há mais de três dias mostrei estes mesmos Imaculados a um rei
corsário que espera comprar todos eles.
- O
corsário só queria cem, excelência - Dany ouviu a pequena escrava
dizer.
Ele
cutucou-a com a ponta do chicote.
- Os
corsários são todos mentirosos. Ele vai comprar todos. Diga-lhe
isso, garota.
Dany
sabia que levaria mais de cem, se chegasse a levar algum.
- Lembre
ao Bom Mestre quem eu sou. Lembre-lhe de que sou Daenerys Nascida na
Tormenta, Mãe de Dragões, a Não Queimada, legítima rainha dos
Sete Reinos de Westeros. Meu sangue é o sangue de Aegon, o
Conquistador, e da antiga Valíria antes dele.
Mas suas
palavras não tocaram o rotundo e perfumado negociante de escravos,
mesmo depois de transmitidas em sua feia língua.
- A
antiga Ghis dominava um império quando os valirianos ainda andavam
fedendo ovelhas - rosnou para a pobre pequena escriba - e nós somos
os filhos da harpia. - Encolheu os ombros. - Tagarelar com mulheres é
um desperdício. No leste ou no oeste são todas iguais, são
incapazes de decidir até terem sido paparicadas, aduladas e
empanturradas de docinhos. Bom, se é esse o meu destino, que seja.
Diga à rameira que se quiser um guia para a nossa bela cidade,
Kraznys mo Nakloz está a seu serviço... e também pode lhe prestar
outros serviços, se for mais mulher do que parece.
- O Bom
Mestre Kraznys terá todo o gosto em mostrar-lhe Astapor enquanto a
senhora reflete, Vossa Graça - disse a tradutora.
- Dou-lhe
geleia de miolos de cão, um belo e rico guisado de polvo vermelho e
feto de cão para comer. - Passou a língua pelos lábios.
- Ele diz
que aqui é possível provar muitos pratos deliciosos,
-
Diga-lhe como as pirâmides são bonitas à noite - rosnou o
negociante de escravos. - Diga-lhe que lamberei mel dos peitos dela,
ou deixarei que lamba mel dos meus, se preferir.
- Astapor
é muito bela ao pôr do sol, Vossa Graça - disse a pequena escrava.
- Os Bons Mestres acendem lanternas de seda em todos os terraços,
para que todas as pirâmides brilhem com luzes coloridas. Barcaças
do prazer percorrem o Verme, cheias de música suave e acostando nas
pequenas ilhas para oferecer comida, vinho e outras delícias.
-
Pergunte se ela quer ver as nossas arenas de luta - acrescentou
Kraznys. - A Arena de Douquor tem um bom espetáculo marcado para
esta noite. Um urso e três garotinhos. Um menino será besuntado de
mel, outro de sangue e outro de peixe podre, e ela pode apostar qual
deles o urso comerá primeiro.
Tap tap
tap, ouviu Dany. O rosto de Arstan Barba-Branca estava imóvel, mas
seu bastão demonstrava a ira que sentia. Tap tap tap. Obrigou-se a
sorrir.
- Tenho
meu próprio urso na Balerion - disse à tradutora - e pode bem me
comer se não voltar para junto dele.
- Está
vendo - disse Kraznys quando as palavras de Dany foram traduzidas -
Não é a mulher que decide, é este homem para quem corre. Como
sempre!
-
Agradeça ao Bom Mestre por sua paciente gentileza - disse Dany - e
diga-lhe que pensarei em tudo que aprendi aqui. - Ofereceu o braço a
Arstan Barba-Branca, para que o velho escudeiro a levasse através da
praça até a liteira, Aggo e Jhogo rodearam-nos, caminhando com o
gingar de pernas arqueadas que todos os senhores dos cavalos adotavam
quando eram forçados a desmontar e caminhar pela terra como simples
mortais.
Dany
subiu na sua liteira com a expressão carregada e fez sinal a Arstan
para que subisse também. Um homem tão velho como ele não devia
andar a pé num calor tão forte. Não fechou as cortinas quando se
puseram em movimento. Com o sol castigando tão duramente aquela
cidade de tijolos vermelhos, qualquer brisa perdida era algo a ser
apreciado, mesmo se viesse acompanhada de um redemoinho de fina
poeira vermelha. Além disso, tenho de ver. Astapor era uma cidade
estranha, mesmo aos olhos de alguém que tinha andado pela Casa de
Poeira e se banhado no Ventre do Mundo à sombra da Mãe das
Montanhas. Todas as ruas eram feitas dos mesmos tijolos vermelhos que
pavimentavam a praça. E o mesmo material construíra as pirâmides
de degraus, as profundamente escavadas arenas de luta - com suas
arquibancadas em forma de anéis descendentes -, as fontes sulfurosas
e as sombrias adegas, e as antigas muralhas que os cercavam. Tantos
tijolos, pensou, e tão velhos e desgastados. A fina poeira que
soltavam encontrava-se por toda a parte, dançando pelas valetas a
cada sopro de vento. Pouco admirava que tantas mulheres de Astapor
velassem o rosto, a poeira de tijolo pinicava mais nos olhos do que a
areia.
- Abram
alas! - gritava Jhogo, do cavalo à frente da liteira. - Abram alas
para a Mãe de Dragões! - Mas quando desenrolou o grande chicote de
cabo de prata que ela lhe dera e o fez estalar no ar, Dany
debruçou-se para fora e disse-lhe que não.
- Neste
lugar, não, sangue do meu sangue - disse, na língua dele. - Estes
tijolos ouviram o som de chicotes mais do que deveriam.
As ruas
tinham estado praticamente desertas quando saíram do porto naquela
manhã, e não pareciam muito mais povoadas agora. Um elefante passou
pesadamente por eles, com uma liteira gradeada sobre o dorso. Um
garoto nu com a pele descascando estava sentado numa valeta de tijolo
seca, com o dedo enfiado no nariz e olhando, carrancudo, para um
grupo de formigas que caminhavam pela rua. Ergueu a cabeça ao ouvir
o ruído de cascos e ficou olhando de boca aberta quando uma coluna
de guardas a cavalo passou por ele a trote, numa nuvem de poeira
vermelha e gargalhadas quebradiças. Os discos de cobre cosidos aos
seus mantos de seda amarela cintilavam como outros tantos sóis, mas
suas túnicas eram de linho bordado, e abaixo da cintura usavam
sandálias e saias de linho plissadas. De cabeça nua, cada homem
tinha penteado, untado e retorcido seus rígidos cabelos vermelhos e
negros, dando-lhes uma forma fantástica qualquer, cornos, asas e
lâminas, e até mãos dadas, de modo que pareciam uma trupe de
demônios fugida do sétimo inferno, O garoto nu observou-os por um
tempo, tal como Dany, mas eles rapidamente desapareceram, e o menino
voltou às suas formigas, com um dedo no nariz.
Esta é
uma cidade antiga, refletiu, mas não tão populosa quanto foi no seu
apogeu, nem de perto tão povoada quanto Qarth, Pentos ou Lys. A
liteira parou subitamente num cruzamento, para permitir que um
comboio de escravos passasse à sua frente, arrastando os pés,
incentivado a avançar pelo estalar do chicote de um capataz. Aqueles
não eram Imaculados, reparou Dany, mas homens de um tipo mais comum,
com pele parda clara e cabelos castanhos. Havia mulheres entre eles,
mas crianças não. Estavam todos nus. Dois astapori vinham atrás
dos escravos, montados em burros brancos, um homem com um tokar de
seda vermelha e uma mulher com véu, vestida de fino linho azul,
decorado com lascas de lápis-lazúli. Em seus cabelos vermelhos e
negros trazia um pente de marfim. O homem ria enquanto lhe segredava
alguma coisa, sem prestar mais atenção em Dany do que em seus
escravos ou no capataz com o chicote retorcido de cinco pontas, um
dothraki grande e atarracado que tinha a harpia e as correntes
orgulhosamente tatuadas em seu peito musculoso.
- Tijolos
e sangue construíram Astapor - murmurou o Barba-Branca ao seu lado -
e tijolos e sangue construíram o seu povo.
- O que é
isso? - perguntou-lhe Dany, curiosa.
- Uns
versos antigos que um meistre me ensinou, quando eu era garoto. Nunca
soube como eram verdadeiros. Os tijolos de Astapor são vermelhos do
sangue dos escravos que os fizeram.
- Consigo
acreditar nisso perfeitamente - disse Dany.
- Então
abandone este lugar antes que seu coração também se transforme em
um tijolo. Zarpe hoje mesmo, na maré da noite.
Bem que
gostaria de poder fazê-lo, pensou Dany.
- Sor
Jorah diz que quando eu deixar Astapor, deverá ser com um exército.
- O
próprio Sor Jorah foi um comerciante de escravos, Vossa Graça -
recordou-lhe o velho. - Há mercenários em Pentos, Myr e Tyrosh que
você pode contratar. Um homem que mata por dinheiro não tem honra,
mas pelo menos não é escravo. Encontre lá o seu exército, suplico
à senhora.
- Meu
irmão visitou Pentos, Myr, Bravos, quase todas as Cidades Livres. Os
magísteres e arcontes alimentaram-no com vinho e promessas, mas
mataram sua alma de fome. Um homem não pode jantar da tigela de
pedinte a vida toda e continuar a ser homem. Eu experimentei isso em
Qarth e foi o bastante. Não voltarei a Pentos de tigela na mão.
- Antes
chegar como pedinte do que como senhora de escravos - disse Arstan.
- Fala
alguém que não foi nenhum dos dois. - As narinas de Dany
dilataram-se. - Sabe o que é ser vendido, escudeiro? Eu sei. Meu
irmão vendeu-me a Khal Drogo em troca da promessa de uma coroa
dourada. Bem, Drogo coroou-o de ouro, embora não da maneira que ele
havia desejado, e eu... o meu sol e estrelas fez de mim uma rainha,
mas se tivesse sido um homem diferente, as coisas poderiam ter
acontecido de uma forma totalmente distinta. Acha que me esqueci de
como é ter medo?
Barba-Branca
inclinou a cabeça.
- Vossa
Graça, não pretendi ofendê-la.
- Só as
mentiras me ofendem, nunca os conselhos honestos. - Dany deu uma
palmadinha na mão manchada de Arstan para sossegá-lo. - Tenho um
gênio de dragão, é só isso. Não pode permitir que ele o
atemorize.
-
Tentarei me lembrar disso - Barba-Branca sorriu.
Ele tem
rosto gentil e uma grande força, pensou Dany. Não conseguia
compreender por que Sor Jorah desconfiava tanto do velho. Poderá
sentir ciúmes por eu ter encontrado outro homem com quem conversar?
Sem pedir licença, seus pensamentos voltaram àquela noite, no
Balerion, em que o cavaleiro exilado a beijara. Ele nunca devia ter
feito aquilo. Ele três vezes mais velho do que eu, e de um
nascimento baixo demais para mim, e não lhe dei permissão. Nenhum
verdadeiro cavaleiro beijaria uma rainha sem a sua permissão. Depois
daquela noite, tinha tomado cuidado para nunca ficar sozinha com Sor
Jorah, mantendo as aias consigo a bordo do navio, e às vezes também
os companheiros de sangue. Ele deseja me beijar de novo, vejo em seus
olhos.
Dany nem
era capaz de começar a expressar aquilo que desejava, mas o beijo de
Jorah tinha acordado alguma coisa dentro dela, algo que estivera
adormecido desde a morte de Khal Drogo. Deitada em seu estreito
beliche, dava por si perguntando-se sobre como seria ter um homem ao
seu lado em vez de sua aia, e a idéia era mais excitante do que
deveria ser. As vezes fechava os olhos e sonhava com ele, mas nunca
era com Jorah Mormont que sonhava; seu amante era sempre mais jovem e
mais belo, embora o rosto de Sor Jorah nunca deixasse de surgir, como
uma sombra em constante mutação.
Uma
noite, tão atormentada que não conseguia dormir, Dany enfiou uma
mão entre as pernas e ficou sobressaltada quando verificou quão
molhada se encontrava. Quase sem se atrever a respirar, moveu os
dedos para a frente e para trás entre seus lábios inferiores,
lentamente para não acordar Irri, que dormia ao seu lado, até que
encontrou um local especial e se demorou ali, tocando-se levemente, a
princípio com timidez, mas depois mais depressa. Mesmo assim o
alívio que desejava parecia afastar-se à sua frente, até que os
dragões se agitaram e um deles soltou um grito na cabine, e Irri
acordou e compreendeu o que ela estava fazendo.
Dany
sabia que seu rosto estava corado, mas na escuridão Irri certamente
não conseguiria ver. Sem uma palavra, a aia pôs uma mão num seio
dela e depois debruçou-se para tomar um mamilo na boca. A outra mão
deslocou-se ao longo da suave curva da sua barriga, através do
montículo de finos pelos prateados, e começou a trabalhar entre as
coxas de Dany. Não passaram mais do que alguns momentos antes que as
suas pernas se contorcessem, seus seios se elevassem e todo o seu
corpo estremecesse. Então gritou. Ou talvez tivesse sido Drogon.
Irri não chegou a dizer nada, limitou-se a enrolar-se e a voltar ao
sono no momento em que o ato foi concluído.
No dia
seguinte, tudo aquilo tinha parecido um sonho. E o que tinha Sor
Jorah a ver com o assunto? E Drogo que eu desejo, o meu sol e
estrelas, recordou Dany a si mesma. Não Irri, e não Sor Jorah,
apenas Drogo. Mas Drogo estava morto. Julgara que aqueles sentimentos
tivessem morrido com ele, ali no deserto vermelho, mas um beijo
traiçoeiro os havia trazido de volta à vida sem que ela soubesse
como. Ele nunca devia ter me beijado. Ousou demais, e eu deixei. Não
pode nunca voltar a acontecer. Fez uma expressão sombria com a boca
e sacudiu a cabeça, e a sineta em sua trança tilintou suavemente.
Mais
perto da baía, a cidade apresentava uma aparência mais agradável.
As grandes pirâmides de tijolo margeavam a costa, a maior tinha
cento e vinte metros de altura. Todo tipo de árvores, trepadeiras e
flores cresciam em seus largos terraços, e os ventos que rodopiavam
em volta delas cheiravam a verde e a perfume. Outra harpia gigantesca
erguia-se sobre o portão, esta era feita de argila vermelha cozida,
e visivelmente se desfazia, não lhe restando mais do que um toco
onde antes estivera a cauda de escorpião. A corrente que segurava
com as garras de barro era ferro-velho, repleto de ferrugem. Mas,
perto da água, estava mais fresco. O bater das ondas contra os
pilares corroídos produzia um som curiosamente calmante.
Aggo
ajudou Dany a descer da Iiteira. Belwas, o Forte, estava sentado num
alto pilar, comendo um grande pedaço de carne assada.
-
Cachorro - disse ele em tom alegre quando viu Dany. - Bom cachorro em
Astapor, pequena rainha. Comer? - ofereceu com um sorriso gorduroso.
- É
gentil de sua parte, Belwas, mas não. - Dany tinha comido cachorro
em outros lugares, em outros tempos, mas naquele momento tudo em que
conseguia pensar era nos Imaculados e em seus estúpidos filhotes.
Passou rapidamente pelo enorme eunuco e subiu a prancha até o convés
do Balerion.
Sor Jorah
Mormont estava à sua espera.
- Vossa
Graça - disse, baixando a cabeça. - Os feitores vieram e foram
embora. Três, com uma dúzia de escribas e outros tantos escravos
para os transportes. Percorreram cada centímetro de nossos porões e
tomaram nota de tudo que possuímos. - Acompanhou-a até o fundo. -
Quantos homens eles têm à venda?
- Nenhum.
- Seria com Mormont que estava zangada, ou com aquela cidade e o seu
obstinado calor, seus fedores, suores e tijolos em ruína? - Vendem
eunucos, não homens. Eunucos feitos de tijolo, como o resto de
Astapor. Devo comprar oito mil eunucos de tijolo com olhos mortos que
nunca se movem, que matam bebês de peito por causa de um chapéu com
um espigão e estrangulam os próprios cães? Nem sequer têm nomes.
Portanto não os chame de homens, sor.
-
Khaleesi - disse ele, surpreendido com a sua fúria - os Imaculados
são escolhidos ainda garotos e treinados...
-Já ouvi
tudo que quero ouvir a respeito do treino. - Dany sentiu lágrimas
jorrando de seus olhos, súbitas e indesejadas. Sua mão saltou e
atingiu com força o rosto de Sor Jorah. Era isso ou gritar. Mormont
tocou a bochecha que ela havia estapeado.
- Se
desagradei à minha rainha...
-
Desagradou. Desagradou-me muito, sor. Se fosse meu cavaleiro leal,
nunca teria me trazido a esta vil pocilga. - Se fosse meu leal
cavaleiro, nunca teria me beijado, ou olhado meus seios como fez,
ou...
- Às
ordens de Vossa Graça. Direi ao Capitão Groleo que se prepare para
zarpar na maré da noite, rumo a uma pocilga menos vil.
- Não -
disse Dany. Groleo observava-os do castelo de proa, e sua tripulação
também assistia. Barba-Branca, seus companheiros de sangue, Jhiqui,
todos tinham parado o que estavam fazendo ao ouvir a bofetada. -
Quero zarpar agora, e não na maré, quero navegar para longe e
depressa e não olhar para trás. Mas não posso, não é? Há oito
mil eunucos de tijolo à venda, e tenho que arranjar uma maneira de
comprá-los. - E com aquilo o deixou e foi para baixo.
Atrás da
porta de madeira esculpida da cabine do capitão, seus dragões
estavam inquietos. Drogon ergueu a cabeça e soltou um grito, com
fumaça clara saindo de suas narinas, e Viserion voou para ela e
tentou se empoleirar em seu ombro, como fazia quando era menor.
- Não -
disse Dany, tentando afastá-lo com suavidade. - Agora é grande
demais para isso, querido. - Mas o dragão enrolou a sua cauda branca
e dourada em volta de um braço e enterrou garras negras no tecido de
sua manga, agarrando-se bem. Impotente, Dany afundou-se na grande
cadeira de couro de Groleo, aos risinhos
-
Estiveram agitados enquanto esteve fora, khaleesi - disse-lhe Irri. -
Viserion arrancou lascas da porta com as garras, vê? E Drogon tentou
escapar quando os feitores vieram vê-los. Quando agarrei sua cauda
para detê-lo, ele se virou e me mordeu. - Mostrou a Danv as marcas
dos dentes do dragão em sua mão.
- Algum
deles tentou libertar-se pelo fogo? - isso era o que mais assustava
Dany.
- Não,
khaleesi. Drogon soltou seu fogo, mas para o ar. Os negociantes de
escravos tiveram medo de se aproximar dele.
Beijou a
mão de Irri no local onde Drogon a mordera.
- Sinto
muito que ele a tenha machucado. Os dragões não foram feitos para
ficar trancados numa pequena cabine de navio.
- Nisso,
os dragões são como os cavalos - disse Irri. - E também como os
cavaleiros. Os cavalos relincham lá embaixo, khaleesi, e dão coices
nas paredes de madeira. Eu ouço. E Jhiqui diz que as velhas e os
pequenos também gritam quando não está aqui. Não gostam desta
carroça de água. Não gostam do negro mar salgado.
- Eu sei
- disse Dany. - Sei mesmo.
- A minha
khaleesi está triste?
- Sim -
admitiu Dany. Triste e perdida.
- Deverei
dar prazer à khaleesi?
Dany
afastou-se dela.
- Não.
Irri, não precisa fazer isso. O que aconteceu naquela noite, quando
você acordou... não é escrava de cama, eu libertei-a, lembra?
Você...
- Sou aia
da Mãe de Dragões - disse a moça. - E uma grande honra dar prazer
à minha khaleesi.
- Eu não
quero - insistiu Dany. - Não quero. - Virou-se num movimento brusco.
- Agora deixe-me. Quero ficar sozinha. Para pensar.
A
escuridão tinha começado a cair sobre as águas da Baía dos
Escravos quando Dany voltou ao convés. Parou junto à amurada e
olhou para Astapor. Daqui parece quase bela, pensou. As estrelas
estavam aparecendo, no céu, e as lanternas de seda também, na
terra, tal como a tradutora de Kraznys prometera. As pirâmides de
tijolo tremeluziam com a luz. Mas embaixo está escuro, nas ruas,
praças e arenas de luta. E onde a escuridão é maior é nas
casernas, onde algum garotinho está dando restos de comida a um
cachorro que lhe deram quando roubaram sua virilidade.
Houve um
passo suave atrás dela.
-
Khaleesi. - A voz dele. - Posso falar com franqueza?
Dany não
se virou. Não conseguia suportar olhá-lo naquele momento. Se o
fizesse, poderia voltar a estapeá-lo. Ou chorar. Ou beijá-lo. E não
chegar a saber o que era certo, o que era errado e o que era uma
loucura.
- Diga o
que quiser, sor.
- Quando
Aegon, o Dragão, pisou na costa de Westeros, os Reis do Vale, do
Rochedo e da Campina não correram para lhe entregar suas coroas. Se
quer se sentar no seu Trono de Ferro, terá de conquistá-lo, tal
como ele fez, com aço e fogo de dragão. E isso significa ter sangue
nas mãos antes de tudo acabar.
Sangue e
fogo, pensou Dany. As palavras da Casa Targaryen. Conhecera-as por
toda a vida.
-
Derramarei com satisfação o sangue de meus inimigos. O sangue de
inocentes é outra coisa. Querem me oferecer oito mil Imaculados.
Oito mil bebês mortos. Oito mil cães estrangulados.
- Vossa
Graça - disse Jorah Mormont - eu vi Porto Real depois do Saque.
Também foram massacrados bebês nesse dia, e também velhos e
crianças que brincavam. Foram violadas mais mulheres do que é
possível contar. Há um animal selvagem em todos os homens, e quando
se dá a esse homem uma espada ou uma lança e esse homem é enviado
para a guerra, o animal acorda. O cheiro de sangue é o suficiente
para acordá-lo. Mas nunca ouvi dizer que esses Imaculados tivessem
violado, ou dizimado uma cidade com a espada, ou sequer saqueado,
exceto por ordem expressa daqueles que os lideravam. Até podem ser
de tijolo, como diz, mas se os comprar, daqui em diante os únicos
cães que matarão serão aqueles que a senhora quiser mortos. E, se
bem me lembro, a senhora tem alguns cães que quer ver mortos. Os
cães do Usurpador.
- Sim. -
Dany fitou as suaves luzes coloridas e permitiu que a fresca brisa
salgada a acariciasse.
- Fala de
saquear cidades. Responda-me uma coisa, sor: por que os dothraki
nunca saquearam esta cidade? - apontou. - Olhe para as muralhas. E
possível ver onde já começaram a ruir. Ali e ali. Vê algum guarda
naquelas torres? Eu não. Estarão escondidos, sor? Vi hoje esses
filhos da harpia, todos os seus orgulhosos guerreiros de alto
nascimento. Vestem-se com saia de linho, e a coisa mais feroz neles
era os cabelos. Até um khalasar modesto conseguiria rachar esta
Astapor como uma noz e derramar seu conteúdo podre. Diga-me,
portanto, por que é que aquela feia harpia não está às margens do
caminho dos deuses em Vaes Dothrak entre os outros deuses roubados?
- Possui
um olho de dragão, khaleesi, vê-se isso claramente.
- Quero
uma resposta, não um elogio.
- Há
dois motivos. Os bravos defensores de Astapor não passam de palha,
isso é verdade. Nomes antigos e bolsas gordas que se vestem com
açoites ghiscari para fingir que ainda dominam um vasto império.
Todos eles são oficiais de elevada patente. Nos dias de festa travam
guerras de mentira nas arenas, para demonstrar como são brilhantes
comandantes, mas são os eunucos que morrem. Da mesma forma, qualquer
inimigo que quisesse saquear Astapor teria de saber que defrontaria
Imaculados. Os senhores de escravos colocariam a guarnição inteira
a serviço da defesa da cidade. Os dothraki não atacam Imaculados
desde que deixaram as tranças aos portões de Qohor.
- E o
segundo motivo?
- Quem
atacaria Astapor? - perguntou Sor Jorah. - Meereen e Yunkai são
rivais mas não inimigos, a Perdição destruiu Valíria, o povo do
interior, para oriente, é todo ghiscari, e para lá dos montes fica
Lhazar. Os Homens-Ovelhas, como os seus dothraki os chamam, são um
povo notavelmente avesso à guerra.
- Sim -
concordou ela - mas a norte das cidades dos negociantes de escravos
fica o mar dothraki, e duas dúzias de poderosos khal que apreciam
mais do que qualquer coisa saquear cidades e levar seus povos como
escravos.
-
Levá-los para onde? De que servem os escravos depois de se matar
seus negociantes? Valíria já não existe, Qarth fica do outro lado
do deserto vermelho, e as Nove Cidades Livres estão a milhares de
léguas para oeste. E pode estar certa de que os filhos da harpia são
pródigos nas ofertas a qualquer khal que por aqui passe, tal como
fazem os magísteres em Pentos, Norvos e Myr. Sabem que se
banquetearem os senhores dos cavalos e lhes derem presentes, eles em
breve partirão. É mais barato do que lutar, e bastante mais seguro.
Mais
barato do que lutar, pensou Dany. Sim, talvez seja. Se ao menos
pudesse ser assim tão fácil para ela. Como seria agradável velejar
até Porto Real com seus dragões e pagar ao rapaz Joffrey uma arca
de ouro para fazer com que fosse embora.
-
Khaleesi? - disse Sor Jorah depois de ela ficar em silêncio durante
muito tempo. Tocou ligeiramente o cotovelo dela.
Dany
afastou-o, e disse:
- Viserys
teria comprado todos os Imaculados que tivesse dinheiro para isso.
Mas você certa vez disse que eu era como Rhaegar...
-
Lembro-me disso, Daenerys.
- Vossa
Graça - corrigiu ela. - O Príncipe Rhaegar levou homens livres para
a batalha, não escravos. Barba-Branca disse que foi o próprio quem
armou os escudeiros cavaleiros e também armou muitos outros homens.
- Não
havia honra maior do que receber o grau de cavaleiro das mãos do
Príncipe de Pedra do Dragão.
- Então
diga-me: quando ele tocava um homem no ombro com a espada, o que
dizia? "Vá e mate os fracos"? Ou "Vá e defenda-os"?
No Tridente, esses homens corajosos de que Viserys falou e que
morreram sob os nossos estandartes do dragão... deram a vida porque
acreditavam na causa de Rhaegar, ou porque tinham sido comprados e
pagos? - Dany virou-se para Mormont, cruzou os braços e esperou por
uma resposta.
- Minha
rainha - disse lentamente o forte homem - tudo que diz é verdade.
Mas Rhaegar perdeu no Tridente. Perdeu a batalha, perdeu a guerra,
perdeu o reino e perdeu a vida. Seu sangue escorreu rio abaixo com os
rubis de sua placa de peito, e Robert, o Usurpador, cavalgou por cima
de seu cadáver para roubar o Trono de Ferro. Rhaegar lutou
valentemente, Rhaegar lutou com nobreza, lutou com honra. E Rhaegar
morreu.
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