A cela
era mais quente do que uma cela tinha direito de ser.
Sim, era
escura. Uma tremeluzente luz laranja caía através das antigas
barras de ferro, vinda do archote enfiado na arandela presa à parede
do lado de fora, mas a metade interior da cela permanecia mergulhada
em sombras. Também era úmida, como se poderia esperar de uma ilha
como Pedra do Dragão, onde o mar nunca estava longe. E havia
ratazanas, tantas quantas qualquer masmorra podia esperar ter e mais
algumas.
Mas Davos
não podia se queixar de frio. As passagens de pedra lisa sob a
grande massa de Pedra do Dragão eram sempre quentes, e Davos ouvira
dizer com frequência que ficavam mais quentes à medida que se
descia. Calculava estar muito abaixo do castelo, e sentia a parede de
sua cela quente quando encostava a palma da mão nela. As velhas
histórias talvez fossem verdadeiras, e Pedra do Dragão talvez
tivesse sido construída com pedras do inferno.
Estava
doente quando o levaram até ali. A tosse que o vinha atormentando
desde a batalha piorara, e tinha sido também atacado por uma febre.
Seus lábios racharam, enchendo-se de bolhas sangrentas, e o calor da
cela não o impedira de ter calafrios. Não resistirei por muito
tempo, lembrava-se de ter pensado. Morrerei em breve, aqui na
escuridão.
Davos
descobriu rapidamente que nisso se enganava, tal como em muitas
outras coisas.
Lembrava-se
vagamente de mãos gentis e de uma voz firme, e do jovem Meistre
Pylos a olhá-lo de cima. Deram-lhe caldo quente de alho para beber e
leite de papoula para lhe tirar as dores e os arrepios. A papoula fez
com que dormisse, e enquanto dormia colaram sanguessugas na sua pele,
para drenar o sangue ruim. Pelo menos fora isso que concluíra das
marcas de sanguessugas que tinha nos braços quando acordou. Pouco
tempo depois, a tosse parou, as bolhas desapareceram, e o caldo
começou a vir com pedaços de peixe branco, e também cenouras e
cebolas. E um dia percebeu que se sentia mais forte do que se sentira
desde que o Betha Negra havia se estilhaçado sob os seus pés e o
atirado ao rio.
Tinha
dois carcereiros para cuidar de si. Um era largo e atarracado, com
grandes ombros e mãos enormes e fortes. Usava uma brigantina de
couro pontilhada de tachões de ferro, e uma vez por dia trazia a
Davos uma tigela de mingau de aveia. Às vezes adoçava-a com mel ou
despejava nela um pouco de leite. O outro carcereiro era mais velho,
curvado e pálido, com cabelos oleosos, sujos, e pele áspera. Usava
um gibão de veludo branco com um anel de estrelas bordado no peito,
em fio de ouro. Caía mal nele, ao mesmo tempo curto e largo demais,
e estava sujo e rasgado. Esse trazia a Davos pratos de carne com
purê, ou guisado de peixe, e uma vez até tinha lhe trazido metade
de um empadão de lampreia. A lampreia estava tão condimentada que
Davos não conseguira mantê-la no estômago, mesmo assim era um raro
acepipe para um prisioneiro numa masmorra.
Nem sol
nem luz brilhavam nas masmorras; nenhuma janela perfurava as espessas
paredes de pedra. A única maneira de distinguir o dia da noite era
através dos carcereiros. Nenhum dos homens falava com ele, embora
Davos soubesse que não eram mudos; às vezes ouvia-os trocar algumas
palavras rudes na troca da guarda. Nem sequer lhe disseram como se
chamavam, por isso deu-lhes nomes inventados. Ao baixo e forte chamou
Mingau, ao curvado e pálido, Lampreia, devido ao empadão. Marcava a
passagem dos dias pelas refeições que eles traziam e pelas trocas
de archotes na arandela fora de sua cela.
Na
escuridão, um homem sente-se só e anseia pelo som da voz humana,
Davos dirigia-se aos carcereiros sempre que eles vinham à cela,
fosse para lhe trazer comida, fosse para trocar o balde dos dejetos.
Sabia que os homens seriam surdos a súplicas por liberdade ou
misericórdia; em vez disso fazia-lhes perguntas, na esperança de
que talvez um dia algum deles pudesse responder."Que notícias
há da guerra?" perguntava, e"O rei está bem?". Pedia
notícias do filho Devan, e da Princesa Shireen, e de Salladhor Saan.
"Como anda o tempo?", perguntava, e "As tempestades de
outono já começaram?" "Os navios ainda percorrem o mar
estreito?"
Não
importava o que perguntava; eles nunca respondiam, embora às vezes
Mingau lhe dirigisse um olhar, fazendo Davos pensar durante meio
segundo que ele se preparava para falar. Com o Lampreia nem isso
havia. Para ele, não sou um homem, pensou Davos, não passo de uma
pedra que come, caga e fala. Passado algum tempo, decidiu que gostava
muito mais do Mingau. Este parecia pelo menos saber que ele estava
vivo, e havia uma estranha espécie de bondade no homem. Davos
suspeitava que ele alimentava as ratazanas; era por isso que havia
tantas. Uma vez pensou ter ouvido o carcereiro falar com elas como se
fossem crianças, mas isso talvez tivesse sido apenas um sonho.
Eles não
pretendem me deixar morrer, compreendeu. Estão me mantendo vivo,
para um propósito qualquer. Não gostava de pensar no que esse
propósito poderia ser. Lorde Sunglass fora confinado nas celas sob
Pedra do Dragão durante algum tempo, tal como os filhos de Sor
Hubard Rambton; todos acabaram na pira. Devia ter me entregado ao
mar, pensou Davos, sentado, fitando o archote do outro lado das
barras. Ou deixar que a vela passasse por mim, para morrer em meu
rochedo. Prefiro alimentar caranguejos a chamas.
Então,
uma noite, enquanto terminava o jantar, Davos sentiu que um estranho
brilho o inundava. Olhou para cima por entre as barras e ali estava
ela, vestida com um cintilante tom de escarlate, com seu grande rubi
na garganta, e os olhos vermelhos brilhando tanto quanto o archote
que a banhava.
-
Melisandre - disse, com uma calma que não sentia.
-
Cavaleiro das Cebolas - respondeu ela, igualmente calma, como se os
dois tivessem se encontrado numa escada ou no pátio e trocassem
saudações delicadas. - Está bem?
- Melhor
do que já estive.
- Falta
alguma coisa a você?
- O meu
rei. O meu filho. Ambos me fazem falta. - Pôs a tigela de lado e
levantou-se - Veio me queimar?
Os
estranhos olhos vermelhos da mulher estudaram-no através das barras.
- Este é
um mau lugar, não é? Um lugar escuro e malcheiroso. O bom sol aqui
não brilha, e a lua brilhante também não. - Ergueu uma mão para o
archote na arandela da parede. - Isto é tudo que existe entre você
e as trevas, Cavaleiro das Cebolas. Este pequeno fogo, esta dádiva
de R'hllor. Devo apagá-la?
- Não. -
Davos aproximou-se das barras. - Por favor. - Não achava que
conseguisse aguentar ser deixado só na escuridão completa, sem nada
além das ratazanas para lhe fazer companhia.
Os lábios
da mulher vermelha curvaram-se para cima num sorriso.
- Então
acabou amando o fogo, ao que parece.
- Preciso
do archote. - Suas mãos se abriram e fecharam. Não lhe suplicarei.
Não suplicarei.
- Sou
como este archote, Sor Davos. Ambos somos instrumentos de R'hllor.
Fomos feitos para o mesmo fim... para manter a escuridão afastada.
Acredita nisso?
- Não. -
Talvez devesse ter mentido e dito o que ela queria ouvir, mas Davos
estava habituado demais a falar a verdade. - Você é a mãe das
trevas. Eu vi isso sob Ponta Tempestade, quando pariu diante de meus
olhos.
- Estará
o bravo Sor Cebolas assim tão assustado por uma sombra passageira?
Se é assim, anime-se. As sombras só vivem quando são geradas pela
luz, e os fogos do rei ardem tão fracos que não me atrevo a
tirar-lhe mais para fazer outro filho. Isso poderia até matá-lo. -
Melisandre aproximou-se. - Mas com outro homem... um homem cujas
chamas ainda se erguem quentes... se realmente deseja servir à causa
do seu rei, venha uma noite aos meus aposentos. Poderia dar-lhe
prazer tal como nunca conheceu e, com seu fogo da vida, poderia
gerar...
- ... um
horror. - Davos afastou-se dela. - Não quero nada com a senhora. Ou
com o seu deus. Que os Sete me protejam.
Melisandre
suspirou.
- Eles
não protegeram Guncer Sunglass. Rezava três vezes por dia, e usava
sete estrelas de sete pontas no escudo, mas quando R'hllor lhe
estendeu a mão, suas preces transformaram-se em gritos, e ele ardeu.
Por que agarrar-se a esses falsos deuses?
-
Adorei-os toda a minha vida.
- Toda a
sua vida, Davos Seaworth? Tanto faz dizer que era assim ontem. -
Sacudiu a cabeça, tristemente. - Nunca temeu dizer a verdade a reis,
por que é que mente a si mesmo? Abra os olhos, sor cavaleiro.
- O que
quer que eu veja?
- O modo
como o mundo é feito. A verdade está à sua volta, basta olhar para
ela. A noite é escura e cheia de terrores, o dia, luminoso, belo e
cheio de esperança. Uma é negra, o outro, branco. Há gelo e há
fogo. Ódio e amor. Amargor e doçura. Macho e fêmea. Dor e prazer.
Inverno e verão. Mal e bem. - Ela deu um passo em sua direção. -
Vida e morte. Em toda parte há opostos. Em toda parte há a guerra.
- A
guerra? - perguntou Davos.
- A
guerra - afirmou ela. - Existem dois, Cavaleiro das Cebolas. Nem
sete, nem um, nem cem ou mil. Dois! Acha que atravessei metade do
mundo para colocar mais um rei frívolo em mais um trono vazio? A
guerra é travada desde o começo dos tempos, e, antes de chegar ao
fim, todos os homens devem escolher de que lado se encontram. De um
lado está R'hllor, o Senhor da Luz, o Coração de Fogo, o Deus da
Chama e da Sombra. Contra ele ergue-se o Grande Outro, cujo nome não
pode ser pronunciado, o Senhor das Trevas, a Alma do Gelo, o Deus da
Noite e do Terror. A nossa escolha não é entre Baratheon e
Lannister, entre Greyjoy e Stark. O que escolhemos é a morte ou a
vida. A escuridão ou a luz. - Agarrou as barras da cela com suas
mãos esguias e brancas. O grande rubi em sua garganta pareceu pulsar
com esplendor próprio. - Portanto, diga-me, Sor Davos Seaworth, e
diga-me a verdade: o seu coração arde com a luz brilhante de
R'hllor? Ou é negro, frio e cheio de vermes? - Estendeu a mão
através das barras e pousou três dedos no peito de Davos, como que
para sentir a sua verdade através de carne, lã e couro.
- Meu
coração - disse lentamente Davos - está cheio de dúvidas.
Melisandre
suspirou.
- Ahhhh,
Davos. O bom cavaleiro é honesto até o fim, mesmo no seu dia de
trevas. É bom que não tenha mentido para mim. Eu teria sabido. Os
servos do Outro frequentemente escondem corações negros sob uma luz
vivida, por isso R'hllor dá aos seus sacerdotes o poder de ver
através das falsidades - Afastou-se da cela com um passo ligeiro. -
Por que queria me matar?
- Direi -
disse Davos - se me disser quem me traiu. - Só poderia ter sido
Salladhor Saan, mas ainda agora rezava para que não tivesse sido.
A mulher
vermelha soltou uma gargalhada.
- Ninguém
o traiu, Cavaleiro das Cebolas. Vi suas intenções nas minhas
chamas.
As
chamas.
- Se pode
ver o futuro nessas chamas, como foi que ardemos na Água Negra?
Entregou meus filhos ao fogo... meus filhos, meu navio, meus homens,
todos queimando...
Melisandre
balançou a cabeça.
-
Trata-me injustamente, Cavaleiro das Cebolas. Esses incêndios não
foram meus. Se eu estivesse com vocês, sua batalha teria tido um
final diferente. Mas Sua Graça estava rodeado de descrentes, e seu
orgulho mostrou-se mais forte do que sua fé. A punição foi severa,
mas aprendeu com o erro.
Então
meus filhos nada mais foram do que uma lição para um rei? Davos
sentiu sua boca contrair.
- Agora é
noite nos seus Sete Reinos - prosseguiu a mulher vermelha - mas logo
o sol voltará a se levantar. A guerra continua, Davos Seaworth, e
certos homens aprenderão em breve que até uma brasa entre cinzas
ainda pode causar um grande incêndio. O velho meistre olhava para
Stannis e via apenas um homem. Você vê um rei. Ambos se enganam.
Ele é o escolhido do Senhor, o guerreiro do fogo. Vi-o à frente da
luta contra a escuridão, vi-o nas chamas. As chamas não mentem,
caso contrário você não estaria aqui. Isso também está escrito
na profecia. Quando a estrela vermelha sangra e as trevas reúnem
forças, Azor Ahai renascerá por entre fumaça e sal, para acordar
dragões da pedra. A estrela sangrenta já chegou e partiu, e Pedra
do Dragão é o local de fumaça e sal. Stannis Baratheon é Azor
Ahai renascido! - Os olhos vermelhos da mulher ardiam como fogueiras
gêmeas, e pareceram fitar as profundezas da alma de Davos. - Não
acredita em mim. Até agora duvida da verdade de R'hllor... e no
entanto, serviu-o mesmo assim, e voltará a servi-lo. Vou deixá-lo
aqui para pensar em tudo o que lhe disse. E, porque R'hllor é a
fonte de todo o bem, deixarei também o archote.
Com um
sorriso e um rodopio de saias escarlates, desapareceu. Só o seu odor
permaneceu depois de ela partir. Isso e o archote. Davos abaixou-se
até o chão da cela e abraçou os joelhos. A luz inconstante do
archote varria-o. Depois que os passos de Melisandre deixaram de ser
ouvidos, o único som que ficou foi o arranhar das ratazanas. Gelo e
fogo, pensou. Branco e preto. Trevas e luz. Davos não podia negar o
poder do deus dela. Tinha visto a sombra sair do ventre de
Melisandre, e a sacerdotisa sabia coisas que não tinha como saber.
Ela viu as minhas intenções nas chamas. Era bom saber que Salla não
o vendera, mas a idéia de a mulher vermelha espiar seus segredos com
suas fogueiras inquietava-o mais do que conseguiria exprimir. E o que
ela quis dizer quando falou que eu servi seu deus e voltarei a
servi-lo? Também não tinha gostado disso.
Ergueu os
olhos para fitar o archote. Olhou-o durante muito tempo, sem piscar,
observando as chamas mudando e tremeluzindo. Tentou ver para além
delas, espreitar através da cortina de fogo e vislumbrar o que quer
que vivesse lá atrás... mas nada havia, apenas fogo, e após algum
tempo seus olhos começaram a lacrimejar.
Ofuscado
e cansado, Davos enrolou-se na palha e entregou-se ao sono.
Três
dias mais tarde - bem, o Mingau tinha vindo três vezes e o Lampreia,
duas - Davos ouviu vozes à porta de sua cela. Sentou-se de imediato,
com as costas apoiadas na parede de pedra, escutando os sons de uma
luta. Aquilo era novo, uma mudança em seu mundo imutável. O ruído
vinha do lado esquerdo, onde os degraus levavam à luz do dia.
Conseguia ouvir uma voz de homem, suplicando e gritando.
- ...
loucura'. - o homem dizia quando surgiu à vista de Davos, arrastado
entre dois guardas com corações flamejantes no peito. Mingau vinha
à frente deles, fazendo tilintar um anel cheio de chaves, e Sor
Axell Florent caminhava atrás. - Axell - disse o prisioneiro em tom
de desespero - pelo apreço que tem por mim, solte-me! Não pode
fazer isso, eu não sou nenhum traidor. - Era um homem de certa
idade, alto e esguio, com cabelos prateados, barba pontiaguda e rosto
longo e elegante retorcido de medo. - Onde está Selyse, onde está a
rainha? Exijo vê-la. Que os Outros carreguem todos vocês!
Soltem-me!
Os
guardas não prestaram atenção ao alarido que o homem fazia.
- Aqui? -
perguntou o Mingau em frente à cela. Davos ficou em pé. Por um
instante pensou em tentar precipitar-se sobre eles quando a porta
fosse aberta, mas isso era uma loucura. Eles eram muitos, os guardas
tinham espadas, e Mingau era forte como um touro.
Sor Axell
assentiu bruscamente para o carcereiro.
- Que os
traidores gozem da companhia um do outro.
- Eu não
sou traidor coisa nenhuma. - guinchou o prisioneiro enquanto Mingau
destrancava a porta. Embora estivesse vestido de forma simples, com
um gibão de lã cinza e calções pretos, sua maneira de falar
identificava-o como nobre. Seu nascimento não o beneficiará aqui,
pensou Davos.
Mingau
abriu as barras por completo, Sor Axell fez um aceno, e os guardas
atiraram seu cativo, de cabeça, para dentro da cela. O homem
tropeçou e poderia ter caído, mas Davos agarrou-o. Ele libertou-se
imediatamente com uma sacudida e correu cambaleando para a porta,
apenas para vê-la fechada na sua cara pálida e mimada.
- Não -
gritou. - Nãããããão. - Toda a força abandonou de repente suas
pernas e ele deslizou lentamente para o chão, agarrando-se às
barras de ferro. Sor Axell, Mingau e os guardas já tinham se virado
para partir. - Não podem fazer isso - gritou o prisioneiro para as
costas dos homens que se afastavam. - Eu sou a Mão do Rei!
Foi então
que Davos o reconheceu.
- E
Alester Florent.
O homem
virou a cabeça.
-
Quem...?
- Sor
Davos Seaworth.
Lorde
Alester pestanejou.
-
Seaworth... o cavaleiro das cebolas. Tentou assassinar Melisandre.
Davos não
negou.
- Em
Ponta Tempestade usou uma armadura vermelho-dourada, com flores de
lápis-lazúli incrustadas na placa de peito. - Estendeu uma mão
para ajudar o outro homem a pôr-se em pé.
Lorde
Alester sacudiu a palha imunda de suas roupas.
- Eu...
eu devo desculpar-me por minha aparência, sor. Minhas arcas foram
perdidas quando os Lannister invadiram nosso acampamento. Escapei sem
nada exceto a cota de malha que trazia no corpo e os anéis nos
dedos.
E ainda
usa esses anéis, reparou Davos, que perdera até parte de seus
dedos,
- Sem
dúvida que algum ajudante de cozinha ou palafreneiro anda agora se
pavoneando por Porto Real com o meu gibão fendido de veludo e o
manto cravejado de joias - prosseguiu Lorde Alester, absorto. - Mas a
guerra tem seus horrores, como todos sabem. Sem dúvida você também
sofreu suas próprias perdas.
- Meu
navio - disse Davos. - Todos os meus homens. Quatro de meus filhos.
- Que
o... que o Senhor da Luz os faça atravessar as trevas até um mundo
melhor - disse o outro homem.
Que o Pai
os julgue com justiça, e a Mãe lhes conceda misericórdia, pensou
Davos, mas guardou a prece para si. Os Sete não tinham mais lugar em
Pedra do Dragão.
- Meu
filho está a salvo em Águas Claras - prosseguiu o lorde - mas perdi
um sobrinho no Fúria. Sor Imry, filho de meu irmão Ryam.
Foi Sor
Imry Florent quem os levou cegamente pela Torrente da Água Negra
adentro, com todos os remos em ação, sem prestar atenção nas
pequenas torres de pedra na foz do rio. Não era provável que Davos
se esquecesse dele.
- Meu
filho Maric era mestre dos remadores de seu sobrinho. - Lembrou-se do
último vislumbre que tivera do Fúria, envolto em fogovivo. - Houve
alguma notícia de sobreviventes?
- O Fúria
queimou e afundou com toda a tripulação - disse sua senhoria. - Seu
filho e meu sobrinho perderam-se, com um número incontável de
outros bons homens. A própria guerra foi perdida nesse dia, sor.
Esse
homem está derrotado. Davos recordou a conversa de Melisandre a
respeito das brasas nas cinzas gerarem grandes incêndios. Não me
admira que tenha acabado aqui.
- Sua
Graça nunca se renderá, senhor.
- Uma
loucura, isso é uma loucura. - Lorde Alester voltou a se sentar no
chão, como se o esforço de ficar em pé por um momento tivesse sido
excessivo para ele. - Stannis Baratheon nunca ocupará o Trono de
Ferro. Será traição dizer a verdade? Uma verdade amarga, mas não
menos verdadeira por isso. Já não tem frota, à exceção dos
lisenos, e Salladhor Saan fugirá assim que avistar uma vela
Lannister. A maior parte dos senhores que apoiaram Stannis passaram
para o lado de Joffrey ou morreram...
- Até os
senhores do mar estreito? Os senhores juramentados a Pedra do Dragão?
Lorde
Alester abanou debilmente as mãos.
- Lorde
Celtigar foi capturado e rendeu-se. Monford Velaryon morreu com o seu
navio, a mulher vermelha queimou Sunglass, e Lorde Bar Emmon tem
quinze anos, é gordo e frágil. São esses os senhores do mar
estreito. Só restam a Stannis as forças da Casa Florent, contra
todo o poderio de Jardim de Cima, Lançassolar e Rochedo Casterly, e
agora também da maior parte dos senhores da tempestade. A melhor
esperança que resta é tentar salvar qualquer coisa com a paz. Foi
isso que tentei fazer. Pela bondade dos deuses, como podem chamar
isso de traição?
Davos
franziu a testa.
- Senhor,
o que fez?
-
Traição, não. Traição, nunca. Adoro Sua Graça mais do que
qualquer outro homem. Minha própria sobrinha é a rainha dele, e
permaneci fiel quando homens mais sensatos desertaram. Sou sua Mão,
a Mão do Rei, como posso ser um traidor? Só quis salvar nossas
vidas e... honra... sim. - Lambeu os lábios. - Escrevi uma carta.
Salladhor Saan jurou que tinha um homem que podia levá-la a Porto
Real, ao Lorde Tywin, Sua senhoria é um... um homem de razão, e os
meus termos... os termos eram justos... mais do que justos.
- Que
termos eram esses, senhor?
- Isto
aqui está imundo - disse de repente Lorde Alester. - E esse
cheiro... o que é esse cheiro?
- O balde
- disse Davos com um gesto. - Aqui não temos latrina. Que termos?
Sua
senhoria fitou o balde, horrorizado.
- Que
Lorde Stannis retiraria sua pretensão ao Trono de Ferro e se
retrataria de tudo o que havia dito a respeito da bastardia de
Joffrey, sob a condição de ser aceito de volta à paz do rei e
confirmado como Senhor de Pedra do Dragão e Ponta Tempestade. Jurei
fazer o mesmo, em troca da devolução da Fortaleza de Águas Claras
e de todas as nossas terras. Pensei... Lorde Tywin compreenderia o
bom senso de minha proposta. Ele ainda precisa lidar com os Stark e
também com os homens de ferro. Sugeri selarmos o acordo casando
Shireen com o irmão de Joffrey, Tommen. - Balançou a cabeça. - Os
termos... eram os melhores que poderemos alcançar. Até você
certamente compreende?
- Sim -
disse Davos - até eu. - A não ser que Stannis gerasse um filho, um
casamento assim significaria que Pedra do Dragão e Ponta Tempestade
passariam um dia para as mãos de Tommen, o que sem dúvida agradaria
a Lorde Tywin. Ao mesmo tempo, os Lannister teriam Shireen como refém
para se certificarem de que Stannis não causaria mais rebeliões. -
E o que disse Vossa Graça quando lhe propôs esses termos?
- Ele
está sempre com a mulher vermelha, e... receio que não esteja no
seu juízo completo. Essa conversa sobre um dragão de pedra...
loucura, digo eu, pura loucura. Será que não aprendemos nada com
Aerion Fogovivo, com os nove magos, com os alquimistas? Será que não
aprendemos nada com Solarestival? Nunca bem algum veio desses sonhos
de dragões, foi o que eu disse a Axell. A minha maneira era melhor.
Mais segura. E Stannis deu-me seu selo, deu-me licença para
governar. A Mão fala com a voz do rei.
- Nisso,
não. - Davos não era cortesão, e sequer tentou amaciar as
palavras. - A rendição não existe em Stannis, enquanto souber que
suas razões são justas. Da mesma forma que não pode desdizer as
palavras contra Joffrey, quando as crê verdadeiras. E, quanto ao
casamento, Tommen nasceu do mesmo incesto que Joffrey, e Sua Graça
antes gostaria de ver Shireen morta do que casada com alguém assim.
Uma veia
latejava na testa de Florent.
- Ele não
tem outra opção.
-
Engana-se, senhor. Ele pode escolher morrer como rei.
- E
levar-nos com ele? E isso que deseja, Cavaleiro das Cebolas?
- Não.
Mas sou um homem do rei, e não farei qualquer paz sem a permissão
dele.
Lorde
Alester fitou-o impotente por um longo momento e então começou a
chorar.
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