quinta-feira, 12 de setembro de 2013

39 - CATELYN


A dois dias de viagem de Correrrio, um batedor os viu dando água aos cavalos num riacho lamacento. Catelyn nunca se sentira tão feliz por ver o símbolo da dupla torre da Casa Frey.
Quando pediu ao homem para levá-los à presença do tio, ele disse:
- Peixe Negro foi para oeste com o rei, senhora. Martyn Rivers comanda os batedores no seu lugar.
- Estou vendo - tinha conhecido Rivers nas Gêmeas; um filho ilegítimo de Lorde Walder Frey, meio-irmão de Sor Perwyn. Não a surpreendia ficar sabendo que Robb atacara o coração do poder dos Lannister; era claro que pensava em fazer exatamente isso quando a enviara para conferenciar com Renly. - Onde Rivers está agora?
- Seu acampamento fica a duas horas de viagem, senhora.
- Leve-nos até ele - ela ordenou. Brienne ajudou-a a subir na sela, e puseram-se imediatamente a caminho.
- Vem de Ponteamarga, senhora? - perguntou o batedor.
- Não.
Não se atrevera. Com Renly morto, Catelyn se sentiu insegura a respeito da recepção que poderia receber da jovem viúva e de seus protetores. Em vez disso, atravessara o coração da guerra, passando pelas férteis terras fluviais transformadas num deserto enegrecido pela fúria dos Lannister, e todas as noites seus batedores traziam histórias que a deixavam mal.
- Lorde Renly está morto - ela acrescentou.
- Tínhamos esperança de que essa história fosse alguma mentira Lannister, ou...
- Bem que eu gostaria que fosse. Meu irmão comanda em Correrrio?
- Sim, senhora. Sua Graça deixou a Sor Edmure a defesa de Correrrio e de sua retaguarda.
Que os deuses lhe concedam a força para fazer isso, pensou Catelyn. E também a sabedoria.
- Há notícias de Robb no ocidente?
- Não soube? - o homem parecia surpreso. - Sua Graça conquistou uma grande vitória em Cruzaboi. Sor Stafford Lannister está morto e sua tropa desbaratada.
Sor Wendel Manderly soltou um grito de prazer, mas Catelyn limitou-se a acenar com a cabeça. As dificuldades do amanhã interessavam-lhe mais do que os triunfos de ontem. Martyn Rivers tinha montado seu acampamento dentro do esqueleto de um castro despedaçado, ao lado de um estábulo sem telhado e de uma centena de sepulturas frescas. Ele se dobrou sobre um joelho quando Catelyn desmontou.
- E bom encontrá-la, senhora. Seu irmão nos encarregou de manter um olho atento ao seu grupo e de escoltá-los de volta para Correrrio com toda pressa, caso os encontrássemos.
Catelyn gostou pouco de como aquilo soava.
- E o meu pai?
- Não, senhora. A condição de Lorde Hoster permanece inalterada - Rivers era um homem corado, com escassa semelhança com seus meios-irmãos. - É só por temermos que pudessem acabar encontrando batedores Lannister. Lorde Tywin deixou Harrenhal e marcha para o oeste com todo o seu poder.
- Levante-se - ela disse a Rivers, franzindo a testa. Stannis Baratheon também iria se pôr em marcha em breve, que os deuses os ajudassem a todos. - Temos quanto tempo até que Lorde Tywin caia sobre nós?
- Três dias, talvez quatro; é difícil saber. Temos olhos colocados ao longo de todas as estradas, mas seria melhor não nos demorarmos.
E não demoraram. Rivers desmontou o acampamento rapidamente, subiu para a sela ao lado de Catelyn, e voltaram a partir, agora com quase cinquenta homens, voando sob o lobo gigante, a truta saltante e as torres gêmeas.
Os homens dela queriam ouvir mais a respeito da vitória de Robb em Cruzaboi, e Rivers lhes fez a vontade.
- Há um cantor que veio para Correrrio, chama a si mesmo de Rymund, o Rimante, e fez uma canção sobre a batalha. Sem dúvida que a ouvirá ser cantada esta noite, senhora. Lobo na Noite, é como esse Rymund a chama - e prosseguiu, contando como os restos da tropa de Sor Stafford se retiraram para Lanisporto. Sem máquinas de cerco, não havia como assaltar Rochedo Casterly, e o Jovem Lobo andava pagando aos Lannister na mesma moeda a devastação que eles haviam infligido às terras fluviais. Os Lordes Karstark e Glover faziam investidas ao longo da costa, a Senhora Mormont capturara milhares de cabeças de gado e agora as conduzia de volta para Correrrio, ao passo que Grande-Jon tinha se apossado das minas de ouro em Castamere, Abismo de Nunn e nos Montes Pendric. Sor Wendel soltou uma gargalhada.
- Não há nada mais capaz de fazer um Lannister correr do que uma ameaça ao seu ouro.
- Como foi que o rei tomou o Dente? - perguntou Sor Perwyn Frey ao irmão bastardo. - Essa fortaleza é dura e forte, e domina a estrada da montanha.
- Não chegou a tomá-la. Esgueirou-se em torno dela durante a noite. Dizem que foi o lobo gigante que lhe indicou o caminho, aquele seu Vento Cinzento. O animal farejou uma trilha de cabras que serpenteava por um desfiladeiro e à sombra de uma cumeada, um caminho torto e pedregoso, mas suficientemente largo para uma fila de homens a cavalo. Os Lannister, em suas torres de vigia, nem de relance os viram - Rivers abaixou a voz. - Há quem diga que, depois da batalha, o rei arrancou o coração de Stafford Lannister e o deu para o lobo comer.
- Eu não acreditaria nesse tipo de história - Catelyn disse em tom penetrante. - Meu filho não é nenhum selvagem.
- E como diz, senhora. Em todo caso, não é mais do que o animal merecia. Aquilo não é um lobo comum. Houve quem ouvisse Grande-Jon dizer que os velhos deuses do norte enviaram aqueles lobos gigantes aos seus filhos.
Catelyn lembrou-se do dia em que seus rapazes tinham encontrado os lobinhos nas neves do fim do Verão. Tinham sido cinco, três machos e duas fêmeas, para os cinco filhos legítimos da Casa Stark... e um sexto, de pelo branco e olhos vermelhos, para o filho bastardo de Ned, Jon Snow. Não são lobos comuns, pensou. Deveras que não.
Naquela noite, enquanto montavam acampamento, Brienne procurou a tenda de Catelyn.
- Senhora, está agora de volta, a salvo entre os seus, a um dia de viagem do castelo de seu irmão. Dê-me licença para partir.
Catelyn não devia ter se sentido surpresa. A modesta jovem tinha se mantido fechada em si mesma ao longo de toda a viagem, passando a maior parte do tempo com os cavalos, escovando seus pelos e tirando pedras de suas ferraduras. Também ajudara Shadd a cozinhar e a limpar a caça, e rapidamente provou que era capaz de caçar tão bem como qualquer um dos homens.
Qualquer tarefa que Catelyn lhe pedisse para realizar, Brienne tinha cumprido com habilidade e sem queixas, e quando falavam com ela, respondia educadamente, mas nunca tagarelava, nem chorava, nem ria. Cavalgara com eles todos os dias e dormira entre eles todas as noites sem nunca se tornar verdadeiramente parte do grupo.
Era a mesma coisa quando estava com Renly, Catelyn pensou. No banquete, no corpo a corpo, até no pavilhão de Renly com os irmãos da Guarda Arco-íris. Há muralhas em volta dessa moça que são mais altas do que as de Winterfell.
- Se nos deixar, para onde irá? - perguntou-lhe Catelyn.
- Voltarei - disse Brienne. - Para Ponta Tempestade.
- Sozinha - não era uma pergunta.
A cara larga era uma lagoa de águas paradas, sem revelar nenhum indício do que poderia viver nas profundezas.
- Sim.
- Pretende matar Stannis.
Brienne fechou os dedos grossos e cheios de calos em volta do cabo da espada. A espada que tinha sido dele.
- Fiz um juramento. Jurei-o três vezes. A senhora ouviu.
- Ouvi - Catelyn assentiu. Sabia que a moça tinha ficado com o manto arco-íris quando se desfizera do resto de suas roupas manchadas de sangue. Os pertences de Brienne tinham sido deixados para trás durante a fuga, e ela fora forçada a se vestir com peças desparelhadas do traje reserva de Sor Wendel, visto que nenhum outro membro do grupo tinha roupas suficientemente grandes para ela. - Os juramentos devem ser mantidos, concordo, mas Stannis tem uma grande tropa ao seu redor, e seus próprios guardas, que juraram mantê-lo a salvo.
- Não temo seus guardas. Sou tão boa como qualquer um deles. Nunca devia ter fugido.
- E isso o que a perturba, que algum idiota possa chamá-la de covarde? - Catelyn suspirou. - A morte de Renly não foi sua culpa. Serviu-lhe valentemente, mas quando procura segui-lo na morte não serve a ninguém - estendeu uma mão, para dar o conforto que um toque podia dar. - Eu sei como é duro...
Brienne afastou sua mão da dela,
- Ninguém sabe.
- Está enganada - Catelyn respondeu bruscamente. - Todas as manhãs, quando acordo, lembro-me de que Ned partiu. Não tenho habilidade com armas, mas isso não quer dizer que não sonhe em ir a cavalo até Porto Real, enrolar as mãos em volta da garganta branca de Cersei Lannister e apertá-la até que seu rosto fique preto.
Brienne levantou os olhos, sua única parte que era realmente bela.
- Se sonha com isso, por que procura me segurar? E por causa do que Stannis disse na conferência?
Será? Catelyn lançou um olhar ao acampamento. Dois homens patrulhavam, de sentinela, com lanças na mão.
- Ensinaram-me que os homens bons devem lutar contra o mal neste mundo, e a morte de Renly foi maligna, para lá de qualquer dúvida. Mas também me ensinaram que os deuses fazem os reis, não as espadas dos homens. Se Stannis for o nosso legítimo rei...
- Não é. Robert também nunca foi o rei legítimo, até Renly disse isso. Jaime Lannister assassinou o rei legítimo, depois de Robert ter matado seu legítimo herdeiro no Tridente. Onde estavam então os deuses? Os deuses não se importam mais com os homens do que os reis com os camponeses.
- Um bom rei se importa.
- Lorde Renly... Sua Graça, ele... ele teria sido o melhor dos reis, senhora, ele era tão bom, ele...
- Ele morreu, Brienne - Catelyn disse, tão gentilmente quanto podia. - Restam Stannis e Joffrey... bem como meu filho.
- Ele não... a senhora nunca faria a paz com Stannis, certo? Dobrar o joelho? Não faria isso...
- Vou lhe dizer a verdade, Brienne. Não sei. Meu filho pode ser um rei, mas eu não sou nenhuma rainha... Sou apenas uma mãe que quer manter os filhos a salvo de todas as maneiras que puder.
- Não fui feita para ser mãe. Tenho de lutar.
- Então lute... Mas pelos vivos, não pelos mortos. Os inimigos de Renly são também inimigos de Robb.
Brienne fitou o chão e arrastou os pés.
- Eu não conheço seu filho, senhora - ela ergueu os olhos. - Podia servi-la. Se me aceitar.
Catelyn ficou surpresa.
- Por que a mim?
A pergunta pareceu perturbar Brienne.
- Ajudou-me. No pavilhão... quando eles pensaram que eu tinha... que eu tinha...
- Era inocente.
- Mesmo assim, não era sua obrigação fazer o que fez. Podia ter deixado que me matassem. Eu não era nada para você.
Talvez eu não quisesse ser a única a conhecer a negra verdade do que aconteceu ali, Catelyn pensou.
- Brienne, tomei muitas senhoras bem-nascidas ao meu serviço ao longo dos anos, mas nunca nenhuma como você. Não sou comandante de batalha.
- Não, mas possui coragem. Talvez não a coragem de batalha, mas... não sei... um tipo de coragem de mulher. E eu penso que, quando o momento chegar, não tentará me prender. Faça-me essa promessa. Que não me impedirá de chegar até Stannis.
Catelyn ainda era capaz de ouvir Stannis dizer que a vez de Robb também chegaria, a seu tempo, Era como um hálito frio soprando em sua nuca.
- Quando a hora chegar, não a impedirei de chegar até Stannis.
A moça alta ajoelhou-se desajeitadamente, desembainhou a espada de Renly e depositou-a aos pés de Catelyn.
- Então sou sua, minha senhora. Seu vassalo, ou... o que quer que desejar que seja. Guardarei suas costas, aconselharei a senhora e darei minha vida pela sua, se for necessário. Juro pelos deuses, velhos e novos.
- E eu juro que terá sempre um lugar à minha lareira e comida e bebida à minha mesa, e prometo não lhe pedir qualquer serviço que possa lhe trazer desonra. Juro pelos deuses, velhos e novos. Levante-se - enquanto apertava as mãos da outra mulher entre as suas, Catelyn não conseguiu evitar sorrir. Quantas vezes assisti Ned aceitando um juramento de fidelidade de um homem? Gostaria de saber o que ele pensaria se pudesse vê-la agora.
Cruzaram o Ramo Vermelho ao fim do dia seguinte, rio acima de Correrrio, onde o rio fazia uma ampla curva e as águas se tornavam lamacentas e rasas. A travessia era guardada por uma força mista de arqueiros e piqueiros com o símbolo da águia dos Mallister. Quando viram os estandartes de Catelyn, emergiram de detrás de suas estacas afiadas e mandaram um homem da outra margem mostrar o caminho ao seu grupo.
- Devagar e com cuidado, senhora - o homem a preveniu enquanto agarrava o freio de seu cavalo. - Plantamos espigões de ferro debaixo da água, está vendo, e há estrepes espalhados entre aquelas rochas ali. E a mesma coisa em todos os vaus, segundo as ordens do seu irmão.
Edmure planeja lutar aqui. Compreender aquele fato deixou-lhe uma sensação de náusea nas entranhas, mas segurou a língua. Entre o Ramo Vermelho e o Pedregoso, juntaram-se a uma corrente de populares que se dirigia à segurança de Correrrio. Alguns conduziam animais à sua frente, outros puxavam carros, mas abriram caminho à passagem de Catelyn, saudando-a com gritos de "Tully!" ou "Stark!". A meia milha do castelo, atravessaram um grande acampamento onde o estandarte escarlate dos Blackwood ondulava sobre a tenda do senhor. Foi então que Lucas se afastou do grupo, a fim de procurar seu pai, Lorde Tytos. Os outros prosseguiram.
Catelyn vislumbrou um segundo acampamento, disposto ao longo da margem norte do Pedregoso, com estandartes familiares sacudindo ao vento... A donzela dançante de Marq Piper, o homem com arado de Darry, as serpentes enlaçadas, em vermelho e branco, dos Paege. Eram todos vassalos do pai, senhores do Tridente. A maioria tinha deixado Correrrio antes dela, a fim de defender suas terras. Se estavam de novo ali, isso só podia querer dizer que Edmure os chamara de volta. Que os deuses nos salvem. É verdade, ele pretende dar batalha a Lorde Tywin, Catelyn viu a distância que havia algo escuro oscilando contra as muralhas de Correrrio.
Quando se aproximou, viu mortos pendurados nas ameias, presos nas pontas de longas cordas por laços de cânhamo bem apertados em volta do pescoço, com o rosto inchado e preto. Os corvos já tinham se alimentado, mas os mantos carmins ainda se destacavam bem contra as muralhas de arenito.
- Enforcaram alguns Lannister - Hal Mollen observou.
- Uma bela visão - Sor Wendel Manderly disse alegremente.
- Nossos amigos começaram sem nós - brincou Perwyn Frey. Os outros riram, todos, menos Brienne, que fitou sem piscar a fileira de cadáveres, sem falar nem sorrir.
Se mataram o Regicida, então minhas filhas também estão mortas. Catelyn esporeou o cavalo até um trote largo. Hal Mollen e Robin Flint passaram por ela a galope, lançando saudações para a guarita. Os guardas nas muralhas tinham sem dúvida visto as bandeiras havia algum tempo, pois a porta levadiça estava içada quando se aproximaram.
Edmure saiu a cavalo do castelo ao seu encontro, rodeado por três dos homens juramentados a seu pai: o muito barrigudo Sor Desmond Grell, o mestre de armas; Utherydes Wayn, o intendente; e Sor Robin Ryger, o grande e calvo capitão da guarda de Correrrio. Todos eram da idade de Lorde Hoster, homens que tinham passado a vida a serviço do pai. Velhos, percebeu Catelyn.
Edmure usava um manto azul e vermelho por cima de uma túnica bordada com peixes dourados. Julgando pelo aspecto, não tinha se barbeado desde que ela partira para o sul; a barba era um matagal da cor do fogo.
- Cat, é bom tê-la de volta em segurança. Quando ouvimos a notícia da morte de Renly, tememos por sua vida. Lorde Tywin também se pôs em marcha.
- Já me disseram. Como passa nosso pai?
- Um dia parece mais forte, no seguinte... - ele balançou a cabeça. - Perguntou por você. Não soube o que lhe dizer.
- Irei até ele em breve - ela prometeu. - Há alguma notícia de Ponta Tempestade desde a morte de Renly? Ou de Ponteamarga? - os corvos não chegavam aos viajantes, e Catelyn sentia-se ansiosa por saber o que tinha acontecido depois de sua partida.
- Nada de Ponteamarga. De Ponta Tempestade, chegaram três corvos do castelão, Sor Cortnay Penrose, todos transportando o mesmo apelo. Stannis cercou-o por terra e mar. Oferece sua fidelidade a qualquer rei que quebre o cerco. Diz que teme pelo rapaz. Sabe que rapaz pode ser esse?
- Edric Storm - Brienne respondeu. - O filho bastardo de Robert.
Edmure olhou-a com curiosidade.
- Stannis jurou que a guarnição poderia partir em liberdade e sem ser molestada, desde que lhe rendesse o castelo dentro de uma quinzena e entregasse o rapaz em suas mãos, mas Sor Cortnay não quer consentir.
Arrisca tudo por um rapaz ilegítimo, cujo sangue nem sequer é o seu, pensou Catelyn.
- Enviou-lhe alguma resposta?
Edmure sacudiu a cabeça.
- Para que, se não temos ajuda nem esperança a oferecer? E Stannis não é nosso inimigo.
Sor Robin Ryger interveio:
- Senhora, pode nos contar como Lorde Renly morreu? As histórias que ouvimos têm sido estranhas.
- Cat - o irmão se adiantou. - Alguns dizem que foi você quem matou Renly. Outros afirmam que teria sido alguma mulher do sul - seu olhar deteve-se em Brienne.
- Meu rei foi assassinado - disse a mulher em voz baixa - e não pelas mãos da Senhora Catelyn, Juro-o pela minha espada, pelos deuses, antigos e novos.
- Esta é Brienne de Tarth, filha de Lorde Delwyn, a Estrela da Tarde, que servia na Guarda Arco-íris de Renly - Catelyn lhes disse. - Brienne, tenho a honra de apresentá-la ao meu irmão, Sor Edmure Tully, herdeiro de Correrrio. Seu intendente, Utherydes Wayn. Sor Robin Ryger e Sor Desmond Grell.
- A honra é minha - Sor Desmond a cumprimentou. Os outros repetiram as mesmas palavras.
A menina corou, embaraçada até com aquela cortesia comum. Se Edmure a achara um tipo curioso de senhora, pelo menos teve o cuidado de não dizer isso.
- Brienne estava com Renly quando ele foi morto, assim como eu - Catelyn começou - mas não desempenhamos nenhum papel em sua morte - não queria falar da sombra, ali, ao ar livre, com homens em toda a volta, e indicou os cadáveres com uma mão. - Quem são aqueles homens que enforcou?
Edmure lançou um relance desconfortável para cima.
- Vieram com Sor Cleos quando trouxe a resposta da rainha à nossa oferta de paz.
Catelyn ficou chocada.
- Matou enviados?
- Falsos enviados - Edmure declarou. - Prometeram-me paz e entregaram as armas. Concedi-lhes liberdade de castelo, e durante três noites comeram da minha comida e beberam da minha bebida enquanto eu conversava com Sor Cleos. Na quarta noite, tentaram libertar o Regicida - apontou para cima. - Aquele grande brutamontes matou dois guardas apenas com aquelas suas mãos de presunto, agarrou-os pelas gargantas e esmagou seus crânios um de encontro ao outro, enquanto o rapaz magricela que está na estaca ao seu lado abria a cela do Lannister com um pedaço de arame. Que os deuses o amaldiçoem. Aquele da ponta era algum maldito tipo de pantomimeiro. Usou minha voz para ordenar que o Portão do Rio fosse aberto. E o que os guardas juram, Enger, Delp e Lew Comprido, todos os três. Se quer que lhe diga, o homem não soava nada parecido comigo, e no entanto os palermas estavam içando a porta levadiça mesmo assim.
Catelyn suspeitava que aquilo devia ser trabalho do Duende; fedia ao mesmo tipo de astúcia que ele tinha exibido no Ninho da Águia. Antigamente teria indicado Tyrion como o menos perigoso dos Lannister. Agora não tinha tanta certeza.
- Como foi que os pegou?
- Ah, aconteceu que não estava no castelo. Tinha atravessado o Pedregoso para, ahn...
- Tinha ido até as prostitutas ou as meretrizes. Continue a história.
O rosto de Edmure ficou vermelho como sua barba.
- Foi na hora antes da alvorada, e só então eu voltava. Quando Lew Comprido viu meu barco e me reconheceu, finalmente se perguntou quem estaria lá embaixo ladrando ordens, e deu o alerta.
- Diga-me que o Regicida foi recapturado,
- Sim, embora não com facilidade. Jaime arranjou uma espada, matou Poul Pemford e o escudeiro de Sor Desmond, Myles, e feriu Delp com tanta gravidade que Meistre Wyman teme que também morra em breve. Foi uma sangrenta confusão. Ao som do aço, alguns dos outros homens de manto vermelho apressaram-se em se juntar a eles, com as mãos vazias ou não. Enforquei esses ao lado dos quatro que o libertaram e atirei o resto nas masmorras. Jaime também. Este não tentará mais fugir. Dessa vez está lá embaixo, no escuro, mãos e pés acorrentados, e preso à parede.
- E Cleos Frey?
- Jura que não sabia nada do esquema. Quem poderá saber? O homem é meio Lannister, meio Frey, e completamente mentiroso. Deixei-o na antiga cela de torre de Jaime.
- Disse que ele trouxe termos de paz?
- Se é que se pode chamá-los assim. Garanto que não lhe agradarão mais do que a mim.
- Não podemos esperar ajuda do sul, senhora Stark? - perguntou Utherydes Wayn, intendente do pai. - Essa acusação de incesto... Lorde Tywin não aceita uma desfeita dessas brandamente. Ele irá procurar lavar a mancha do nome da filha com o sangue do acusador, Lorde Stannis deve ver isso. Não tem escolha que não seja fazer causa comum conosco.
Stannis fez causa comum com um poder maior e mais obscuro.
- Falemos desses assuntos mais tarde.
Catelyn passou sobre a ponte levadiça a trote, deixando para trás a macabra fileira de mortos Lannister. Seu irmão a acompanhou. Enquanto penetravam na azáfama do interior da muralha de Correrrio, uma criança pequena e nua correu para a frente dos cavalos. Catelyn puxou as rédeas com força a fim de evitá-la, olhando em volta, consternada. Centenas de plebeus tinham sido admitidos no castelo e tinha-lhes sido permitido erigir rudes abrigos junto às muralhas. Seus filhos andavam por todo lado, e o pátio encontrava-se repleto de vacas, ovelhas e galinhas.
- Quem é toda essa gente?
- O meu povo - respondeu Edmure. - Estavam com medo.
Só meu querido irmão aglomeraria todas aquelas bocas inúteis num castelo que em breve pode estar sob cerco, Catelyn sabia que Edmure possuía um coração mole; às vezes pensava que sua cabeça o era ainda mais. Amava-o por isso, mas, mesmo assim...
- Robb pode ser contatado por um corvo?
- Encontra-se em campo, senhora - respondeu Sor Desmond. - A ave não teria como encontrá-lo.
Utherydes Wayn tossiu:
- Antes de nos deixar, o jovem rei deixou-nos instruções para enviá-la para as Gêmeas quando voltasse, Senhora Stark. Pede-lhe que saiba mais sobre as filhas de Lorde Walder, a fim de ajudá-lo a selecionar sua noiva quando chegar a hora.
- Forneceremos montarias novas e provisões para você - prometeu o irmão. - Vai querer restaurar as forças antes...
- Eu vou ficar - disse Catelyn, desmontando. Não tinha qualquer intenção de abandonar Correrrio e o pai moribundo para escolher a noiva de Robb por ele. Robb quer me ver em segurança, não posso me zangar com ele por isso, mas o pretexto está ficando gasto. - Garoto - ela chamou, e um garoto dos estábulos correu para pegar as rédeas de seu cavalo, Edmure saltou da sela, Era uma cabeça mais alto do que ela, mas seria sempre seu irmão menor.
- Cat - ele disse, com um ar infeliz - Lorde Tywin vem a caminho...
- Ele se dirige para o oeste, a fim de defender suas terras. Se fecharmos os portões e nos abrigarmos atrás das muralhas, podemos vê-lo passar em segurança.
- Estas são terras Tully - Edmure declarou. - Se Tywin Lannister pensa em cruzá-las sem ter o sangue derramado, pretendo ensinar-lhe uma dura lição.
A mesma lição que ensinou ao filho dele? O irmão podia ser teimoso como as pedras do rio quando tocavam no seu orgulho, mas nenhum dos dois se esqueceria do modo como Sor Jaime cortara a tropa de Sor Edmure em pedaços sangrentos da última vez em que oferecera batalha.
- Nada temos a ganhar, e tudo temos a perder em enfrentar Lorde Tywin no campo de batalha - Catelyn retrucou, com tato.
- O pátio não é lugar para discutir meus planos de batalha.
- Como quiser. Para onde vamos?
O rosto do irmão escureceu. Por um momento, Catelyn pensou que ele estava prestes a perder a calma com ela, mas por fim exclamou:
- O bosque sagrado. Se insiste.
Ela o seguiu por uma galeria até o portão do bosque sagrado. A ira de Edmure sempre tinha sido uma coisa carrancuda e rabugenta. Catelyn lamentava tê-lo ferido, mas o assunto era importante demais para se preocupar com seu orgulho. Quando ficaram sós sob as árvores, Edmure virou-se para encará-la.
- Não tem força suficiente para enfrentar os Lannister no campo de batalha - ela disse sem rodeios.
- Quando todas as minhas forças estiverem reunidas, deverei ter oito mil homens de infantaria e três mil de cavalaria - ele respondeu.
- O que quer dizer que Lorde Tywin terá quase o dobro de seus homens.
- Robb venceu suas batalhas contra vantagens maiores. E tenho um plano. Esqueceu-se de Roose Bolton. Lorde Tywin o derrotou no Ramo Verde, mas não o perseguiu. Quando Lorde Tywin foi para Harrenhal, Bolton tomou o vau rubi e a encruzilhada. Tem dez mil homens. Mandei uma mensagem a Helman Tallhart para que se junte a ele com a guarnição que Robb deixou nas Gêmeas...
- Edmure, Robb deixou esses homens para defender as Gêmeas e assegurar-se de que Lorde Walder permanecesse do nosso lado.
- Permaneceu - Edmure disse teimosamente. - Os Frey lutaram bravamente no Bosque dos Murmúrios, e o velho Sor Stevron morreu em Cruzaboi, pelo que ouvimos dizer. Sor Ryman, Walder Negro e os outros estão com Robb no oeste, Martyn tem sido de grande utilidade com os batedores, e Sor Perwyn ajudou-a a chegar a salvo até Renly. Pela bondade dos deuses, o que mais podemos lhes pedir? Robb está prometido a uma das filhas de Lorde Walder, e Roose Bolton casou-se com outra, segundo ouvi dizer. E você não recebeu dois de seus netos para serem criados em Winterfell?
- Um protegido pode facilmente ser transformado em refém, se a necessidade surgir - ela não soubera que Sor Stevron estava morto, nem do casamento de Bolton.
- Se estamos com vantagem de dois reféns, é motivo ainda maior para que Lorde Walder não nos traia. Bolton necessita dos homens dos Frey e também dos de Sor Helman. Ordenei-lhes que retomassem Harrenhal.
- E provável que isso se torne uma coisa sangrenta.
- Sim. Mas, uma vez que o castelo caia, Lorde Tywin não terá retirada segura. Meus recrutas defenderão os vaus do Ramo Vermelho contra sua travessia. Se atacar através do rio, acabará como Rhaegar quando tentou atravessar o Tridente. Se não, ficará preso entre Correrrio e Harrenhal, e quando Robb voltar do oeste podemos acabar com ele de uma vez por todas.
A voz do irmão estava cheia de uma confiança indelicada, mas Catelyn viu-se desejando que Robb não tivesse levado tio Brynden consigo para o oeste. Peixe Negro era veterano de meia centena de batalhas; Edmure era veterano de uma, e perdida.
- O plano é bom - ele concluiu. - Lorde Tytos afirma isso, e Lorde Jonos também, Quando foi que Blackwood e Bracken concordaram com qualquer coisa que não fosse certa, eu pergunto.
- Seja como for - Catelyn ficou subitamente cansada. Talvez estivesse errada em se opor ao irmão. Talvez aquele plano fosse magnífico e seus pressentimentos não passassem de temores de uma mulher. Desejou que Ned estivesse ali, ou tio Brynden, ou... - Consultou nosso pai a respeito disso?
- Nosso pai não está em estado de pesar estratégias. Há dois dias fazia planos para o seu casamento com Brandon Stark! Vá vê-lo, se não acredita em mim. Este plano vai funcionar, Cat, você verá.
- Espero que sim, Edmure. De verdade - beijou-o no rosto para que ele soubesse que falava a sério, e foi até o pai.
Lorde Hoster Tully encontrava-se num estado muito semelhante àquele em que Catelyn o deixara; acamado, abatido, com a pele pálida e úmida. O quarto cheirava a doença, um odor nauseante feito de partes iguais de suor e de remédios. Quando abriu as cortinas, o pai soltou um pequeno gemido e entreabriu os olhos. Fitou-a como se não conseguisse compreender quem ela era ou o que queria.
- Pai - beijou-o. - Voltei.
Então, pareceu reconhecê-la.
- Você veio - sussurrou de forma tênue, quase sem mover os lábios.
- Sim - ela respondeu. - Robb enviou-me para o sul, mas apressei-me em voltar.
- Sul... onde... o Ninho da Águia fica para o sul, querida? Não me lembro... Ah, querido coração, tive medo... Perdoa-me, filha? - lágrimas correram pelo seu rosto.
- Não fez nada que necessite de perdão, pai - Catelyn afagou o cabelo branco e sem energia do pai e pôs a mão na sua testa. A febre ainda o queimava por dentro, apesar de todas as poções do meistre.
- Foi o melhor - sussurrou seu pai. - Jon é um bom homem, bom... forte, bondoso... tomará conta de você... tomará... e bem-nascido, escute-me, tem de me escutar, sou seu pai... seu pai, casará quando a Cat casar, sim, senhora...
Ele pensa que sou Lysa, compreendeu Catelyn. Que os deuses sejam bons, ele fala como se ainda não estivéssemos casadas.
As mãos do pai agarraram-se às dela, tremendo como duas aves brancas e assustadas.
- Aquele moleque... maldito rapaz... não pronuncie o nome dele na minha presença, o seu dever... a sua mãe, ela teria... - Lorde Hoster gritou quando um espasmo de dor o subjugou.
- Oh, deuses, perdoem-me, perdoem-me,perdoem-me. O meu remédio...
E de repente Meistre Vyman estava ali, levando uma taça aos seus lábios. Lorde Hoster sugou a poção espessa e branca com a avidez de um bebê no seio, e Catelyn viu a paz cair de novo sobre ele.
- Ele dormirá agora, senhora - disse o meistre quando a taça ficou vazia. O leite da papoula tinha deixado uma espessa película branca em torno da boca do pai. Meistre Vyman limpou-a com a manga.
Catelyn não foi capaz de ver mais. Hoster Tully tinha sido um homem forte e orgulhoso. Doía-lhe vê-lo assim, reduzido àquilo. Saiu para a varanda. O pátio, embaixo, estava repleto de refugiados e caótico com o ruído que faziam, mas para lá das muralhas os rios fluíam limpos, puros e sem fim. Estes são os seus rios, e em breve voltará a eles, para a sua última viagem.
Meistre Wyman a tinha seguido até o exterior.
- Senhora - ele disse em voz baixa - não posso continuar muito mais tempo a afastar o fim. Devíamos mandar um cavaleiro em busca do irmão. Sor Brynden gostaria de estar aqui.
- Sim - Catelyn concordou, com a voz carregada de desgosto.
- E a Senhora Lysa também, talvez?
- Lysa não virá.
- Se escrevesse para ela em pessoa, talvez...
- Porei algumas palavras no papel, se isso lhe agrada.
Perguntou a si mesma quem teria sido o "maldito moleque" de Lysa, Algum jovem escudeiro ou pequeno cavaleiro, provavelmente... Se bem que, pela veemência com que Lorde Hoster se opusera a ele, pudesse ter sido um filho de um mercador ou um aprendiz bastardo, ou até um cantor. Lysa sempre tinha gostado demais de cantores. Não posso culpá-la. Jon Arryn era vinte anos mais velho do que nosso pai, por mais nobre que fosse.
A torre que o irmão tinha separado para seu uso era a mesma que ela e Lysa haviam dividido quando donzelas. Seria bom voltar a dormir numa cama de penas, com um fogo quente na lareira. Quando estivesse descansada, o mundo pareceria menos desolador.
Mas, à porta de seus aposentos, encontrou Utherydes Wayn esperando, na companhia de duas mulheres vestidas de cinza, com os rostos escondidos por capuzes, deixando apenas os olhos à vista. Catelyn soube imediatamente por que motivo estavam ali.
- Ned?
As irmãs abaixaram os olhos. Utherydes respondeu:
- Sor Cleos trouxe-o de Porto Real, senhora.
- Levem-me até ele - Catelyn ordenou.
Tinham-no deitado numa mesa de montar e haviam-no coberto com um estandarte, o estandarte branco da Casa Stark com seu símbolo do lobo gigante cinza.
- Quero olhar para ele - ela pediu.
- Só restam os ossos, senhora.
- Quero olhar para ele - Catelyn repetiu.
Uma das irmãs silenciosas puxou o estandarte para baixo.
Ossos, pensou Catelyn. Isto não é Ned, não é o homem que amei, o pai de meus filhos. As mãos dele estavam apertadas sobre o peito, com dedos esqueléticos dobrados em torno do cabo de uma espada longa qualquer, mas não eram as mãos de Ned, tão fortes e cheias de vida. Tinham vestido os ossos com a túnica de Ned, o veludo branco e fino com o símbolo do lobo gigante sobre o coração, mas nada restava da carne quente que tinha servido tantas noites de almofada à sua cabeça, dos braços que a tinham abraçado. A cabeça havia sido reunida ao corpo com fino fio de prata, mas um crânio é muito semelhante aos outros, e naquelas órbitas vazias não viu sinal dos olhos cinza-escuros do seu senhor, olhos que podiam ser suaves como nevoeiro ou duros como pedra. Deram seus olhos aos corvos, recordou.
Catelyn virou o rosto.
- Aquela não é a espada dele.
- Gelo não nos foi devolvida, senhora - disse Utherydes. - Só os ossos de Lorde Eddard.
- Suponho que deva agradecer à rainha até por isso.
- Agradeça ao Duende, senhora. Foi obra dele.
Um dia vou agradecer a todos eles.
- Estou grata por seus serviços, irmãs - Catelyn agradeceu - mas devo atribuir-lhes outra tarefa. Lorde Eddard era um Stark, e seus ossos devem ser postos em repouso sob Winterfell - farão uma estátua dele, um retrato de pedra que se sentará no escuro com um lobo gigante aos pés e uma espada pousada nos joelhos. - Assegurem-se de que as irmãs tenham cavalos descansados, e qualquer outra coisa de que necessitem para a viagem - ela disse a Utherydes Wayn. - Hal Mollen vai escoltá-las de volta a Winterfell, é tarefa dele como capitão dos guardas - ela desceu os olhos para os ossos que eram tudo o que restava do seu senhor e amor. - Deixem-me agora, todos vocês. Desejo ficar a sós com Ned esta noite.
As mulheres de cinza inclinaram a cabeça. As irmãs silenciosas não falam com os vivos, recordou-se Catelyn, entorpecida, mas há quem diga que são capazes de falar com os mortos. E como invejava esse poder...  

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