-A rainha
pretende mandar o Príncipe Tommen para longe - estavam ajoelhados,
sozinhos, na escuridão calma do septo, rodeados por sombras e velas
tremeluzentes, mas mesmo assim Lancei mantinha a voz baixa. - Lorde
Gyles irá levá-lo para Rosby e escondê-lo lá, disfarçado de
pajem. Planejam escurecer seu cabelo e dizer a todo mundo que é
filho de um pequeno cavaleiro.
- Ela tem
medo do povo? Ou de mim?
- De
ambos - Lancei respondeu.
- Ah... -
Tyrion nada soubera daqueles planos. Pela primeira vez, teriam os
passarinhos de Varys falhado? Imaginava que até as aranhas tinham de
se distrair... ou será que o eunuco estaria jogando um jogo mais
profundo e sutil do que imaginara? - Tem os meus agradecimentos, sor.
- Vai me
conceder o favor que lhe pedi?
- Talvez
- Lancei queria um comando na batalha seguinte. Uma maneira magnífica
de morrer antes de acabar de cultivar aquele bigode, mas os jovens
cavaleiros sempre se julgavam invencíveis.
Tyrion
permaneceu lá depois de o primo ir sorrateiramente embora. No altar
do Guerreiro, usou uma vela para acender outra. Proteja meu irmão,
seu bastardo sangrento, ele é um dos seus. Acendeu uma segunda vela
ao Estranho, esta para si mesmo.
Nessa
noite, quando a Fortaleza Vermelha estava escura, Bronn chegou e o
encontrou selando uma carta.
- Leve
isto a Sor Jacelyn Bywater - o anão derramou cera dourada e quente
sobre o pergaminho.
- O que é
que diz? - Bronn não sabia ler, por isso fazia perguntas
impertinentes.
- Diz
para ele levar cinquenta de seus melhores espadachins e bater a
estrada das rosas - Tyrion pressionou seu selo contra a cera mole.
- É mais
provável que Stannis chegue pela estrada do rei.
- Ah, eu
sei. Diga a Bywater para desconsiderar o que a carta diz e levar seus
homens para o norte. Deverá montar uma armadilha na estrada de
Rosby. Lorde Gyles vai partir para o seu castelo dentro de um ou dois
dias, com uma dúzia de homens de armas, alguns criados e meu
sobrinho. Príncipe Tommen pode estar vestido de pajem.
- Quer o
garoto trazido de volta, é isso?
- Não.
Quero que o levem para o castelo - Tyrion chegou à conclusão de que
tirar o rapaz da cidade havia sido uma das melhores idéias da irmã.
Em Rosby, Tommen estaria a salvo do povo, e mantê-lo afastado do
irmão também tornava as coisas mais difíceis para Stannis; mesmo
se tomasse Porto Real e executasse Joffrey, ainda teria um
pretendente Lannister com quem lutar.
- Lorde
Gyles é doente demais para fugir, e covarde demais para lutar. Ele
ordenará ao castelão que abra os portões. Uma vez dentro do
castelo, Bywater deverá expulsar a guarnição e manter Tommen a
salvo lá dentro. Pergunte-lhe como soa Lorde Bywater.
- Lorde
Bronn soaria melhor. Eu podia apanhar o garoto tão bem como ele.
Embalaria-o no joelho e lhe cantaria canções de ninar se nisso
estivesse envolvido um título.
- Preciso
de você aqui - Tyrion respondeu. E não confio em você com meu
sobrinho. Se algo acontecesse a Joffrey, a pretensão Lannister ao
Trono de Ferro cairia sobre os jovens ombros de Tommen. Os homens de
manto dourado de Sor Jacelyn defenderiam o garoto; os mercenários de
Bronn eram mais capazes de vendê-lo aos seus inimigos.
- O que
deve o novo senhor fazer com o antigo?
- O que
bem entender, desde que se lembre de alimentá-lo. Não o quero
morrendo - Tyrion afastou-se da mesa. - Minha irmã enviará um
membro da Guarda Real com o príncipe.
Bronn não
se mostrou preocupado.
- Cão de
Caça é cão de Joffrey, não o abandonará. Os mantos dourados do
Mão de Ferro devem ser capazes de lidar com os outros com bastante
facilidade.
- Se as
coisas chegarem ao ponto de matar, diga a Sor Jacelyn que não quero
isso feito na frente de Tommen - Tyrion pôs um pesado manto de lã
marrom-escura. - Meu sobrinho tem bom coração.
- Tem
certeza de que é um Lannister?
- Não
tenho certeza de nada, além do Inverno e da batalha. Venha. Vou com
você até uma parte do caminho.
-
Chataya?
-
Conhece-me bem demais.
Saíram
por uma porta falsa na muralha norte. Tyrion encostou os calcanhares
no cavalo e desceu ruidosamente a Alameda da Sombra Negra. Alguns
vultos furtivos precipitaram-se para vielas ao ouvir os cascos nas
pedras do pavimento, mas ninguém se atreveu a abordá-los. O
conselho tinha estendido o toque de recolher; ser pego nas ruas
depois do toque do anoitecer significava a morte. A medida restaurara
certa paz em Porto Real e diminuíra para um quarto o número de
cadáveres encontrados nas vielas de manhã, mas Varys dizia que as
pessoas o amaldiçoavam por isso. Deviam se sentir agradecidas por
terem vida para poder lançar maldições. Um par de homens de manto
dourado confrontou-os na Ruela dos Caldeireiros, mas quando
compreenderam quem tinham intimado, pediram perdão à Mão e
mandaram-nos seguir com um gesto. Bronn virou para sul em direção
ao Portão da Lama e os dois se separaram.
Tyrion
prosseguiu na direção da casa de Chataya, mas de repente a
resignação o abandonou. Virou-se na sela, perscrutando a rua atrás
de si. Não havia sinal de perseguidores. Todas as janelas estavam
escuras ou com as venezianas bem fechadas. Nada ouviu além do vento
que passava pelas vielas. Se Cersei tiver alguém me seguindo hoje,
deve estar disfarçado de ratazana.
- Que se
dane tudo isso - resmungou. Estava farto de cuidados. Obrigando o
cavalo a se virar, esporeou-o com força, Se alguém vier atrás de
mim, vamos ver se monta bem. Voou pelas ruas iluminadas pelo luar,
estrondeando sobre o pavimento, precipitando-se por vielas estreitas
e ruelas sinuosas, correndo para o seu amor.
Ao bater
com força no portão, ouviu a música que pairava, tênue, sobre os
espigões que coroavam os muros de pedra. Um dos ibbeneses o conduziu
pela propriedade.
- Quem é
aquele? - as vidraças em forma de diamante das janelas do salão
brilhavam com a luz amarela, e Tyrion ouvia um homem cantando.
O ibbenês
encolheu os ombros.
- Cantor
barrigudo.
O som foi
se intensificando à medida que Tyrion se afastava do estábulo onde
deixara o cavalo e se aproximava da casa. Nunca gostara de cantores,
e, mesmo antes de vê-lo, gostava daquele ainda menos do que da raça
como um todo. Quando empurrou a porta, o homem interrompeu-se.
- Senhor
Mão - ajoelhou, mostrando a careca incipiente e a barriga de tacho,
murmurando: - Uma honra, uma honra.
- Senhor
- Shae sorriu ao vê-lo. Gostava daquele sorriso, e da forma rápida
e irrefletida com que vinha ao seu lindo rosto. A garota usava o
roupão de seda roxa, preso com um cinturão de fio de prata. As
cores favoreciam seu cabelo escuro e a cor creme da pele lisa.
- Querida
- disse-lhe. - E quem é este?
O cantor
levantou os olhos.
-
Chamam-me de Symon Língua de Prata, senhor. Ator, cantor, contador
de histórias...
- E um
grande idiota - Tyrion terminou. - Como foi que me chamou, quando
entrei?
- Chamar?
Eu só... - a prata na língua de Symon parecia ter se transformado
em chumbo. - Senhor Mão, eu disse, uma honra...
- Um
homem mais sensato teria fingido não me reconhecer. Não que eu
tivesse me deixado enganar, mas você devia ter tentado. Que vou
fazer agora com você? Sabe da minha querida Shae, sabe onde ela
mora, sabe que a visito à noite sozinho.
- Juro,
não direi a ninguém...
- Pelo
menos nisso concordamos. Boa noite - Tyrion subiu as escadas com
Shae.
- Meu
cantor pode agora nunca mais cantar - ela brincou. - Tirou a voz dele
com o susto.
- Um
pouco de medo pode ajudá-lo a atingir aquelas notas agudas.
Ela
fechou a porta do quarto.
- Não
vai lhe fazer mal, não é? - Shae acendeu uma vela perfumada e
ajoelhou-se para tirar suas botas. - Suas canções alegram-me nas
noites em que você não vem.
- Bem que
gostaria de poder vir todas as noites - ele disse enquanto ela
esfregava seus pés nus. - Ele canta bem?
- Melhor
do que alguns. Não tão bem quanto outros.
Tyrion
abriu seu roupão e enterrou o rosto entre seus seios. Ela sempre
cheirava limpa, mesmo naquela pocilga fedorenta de cidade.
- Fique
com ele, se quiser, mas mantenha-o por perto. Não o quero vagueando
pela cidade e espalhando histórias pelas casas de pasto.
- Ele
não... - ela começou.
Tyrion
cobriu sua boca com um beijo. Estava farto de conversas; precisava da
doce simplicidade do prazer que encontrava entre as coxas de Shae.
Ali, pelo menos, era bem-vindo, desejado. Mais tarde, puxou o braço
de debaixo da cabeça dela, enfiou-se na túnica e desceu ao jardim.
Uma
meia-lua prateava as folhas das árvores frutíferas e brilhava na
superfície da piscina para banhos esculpida em pedra, Tyrion
sentou-se junto à água. Em algum lugar, à sua direita, um grilo
cantava, um som curiosamente acolhedor. Este lugar é pacífico,
pensou, mas, por quanto tempo?
Uma
lufada de alguma coisa malcheirosa fez Tyrion virar a cabeça. Shae
estava à porta, por trás dele, vestida com o roupão prateado que
lhe dera. Amei uma donzela branca como o Inverno, com o luar nos
cabelos. Atrás dela encontrava-se um dos irmãos mendicantes, um
homem corpulento com trajes imundos e remendados, os pés descalços
cobertos com uma crosta de sujeira e uma tigela pendurada por uma
correia de couro que trazia ao pescoço, na posição em que um
septão usaria um cristal. O cheiro que exalava teria dado náuseas a
uma ratazana.
- Lorde
Varys veio vê-lo - Shae anunciou.
O irmão
mendicante a olhou, piscando os olhos, espantado. Tyrion soltou uma
gargalhada.
- Com
certeza. Como foi que o reconheceu e eu não?
Shae
encolheu os ombros.
- E ele
mesmo assim. Só que vestido de outra forma.
- Um
visual diferente, um cheiro diferente, uma maneira diferente de
caminhar - Tyrion observou. - A maior parte dos homens se enganaria.
- E a
maior parte das mulheres também, provavelmente. Mas não as
prostitutas. Uma prostituta aprende a ver o homem, não seu traje,
caso contrário acaba morta numa viela.
Varys fez
uma expressão de dor, que não era devida às falsas feridas que
tinha nos pés. Tyrion soltou um risinho.
- Shae,
traga-nos um pouco de vinho? - podia precisar de uma bebida. O que
quer que tivesse trazido o eunuco ali na calada da noite não devia
ser boa coisa.
- Quase
temo contar o motivo por que vim, senhor - Varys disse, quando Shae
saiu. - Trago notícias terríveis.
- Devia
se vestir de penas negras, Varys, é de tão mau agouro como um corvo
- desajeitadamente, Tyrion ficou de pé, meio receoso de fazer a
pergunta seguinte. - É Jaime? - se lhe fizeram mal, nada os salvará.
- Não,
senhor. É outro assunto. Sor Cortnay Penrose está morto. Ponta
Tempestade abriu os portões a Stannis Baratheon,
A
consternação varreu todos os outros pensamentos da mente de Tyrion.
Quando Shae retornou com o vinho, ele bebeu um gole e arremessou a
taça contra a parede da casa, fazendo-a explodir. Shae levantou uma
mão para se proteger dos cacos enquanto o vinho escorria pelas
pedras em longos dedos, negros à luz do luar.
- Maldito
seja! - Tyrion esbravejou.
Varys
sorriu, mostrando uma boca cheia de dentes podres.
- Quem,
senhor? Sor Cortnay ou Lorde Stannis?
- Os dois
- Ponta Tempestade era forte, devia ter sido capaz de resistir
durante meio ano ou mais... Tempo suficiente para seu pai acabar com
Robb Stark. - Como foi que isso aconteceu?
Varys
olhou de relance para Shae.
- Senhor,
temos de perturbar o sono de sua doce senhora com uma conversa tão
sombria e sangrenta?
- Uma
senhora poderia ter medo - disse Shae - mas eu não tenho.
- Deveria
ter - disse-lhe Tyrion. - Com a queda de Ponta Tempestade, Stannis
virará em breve a atenção para Porto Real - agora lamentava ter
atirado longe aquele vinho. - Lorde Varys, dê-nos um momento, e eu
voltarei com o senhor ao castelo.
-
Esperarei nos estábulos - fez uma reverência e afastou-se com
passos pesados.
Tyrion
puxou Shae para o seu lado.
- Aqui
não está segura.
- Tenho
meus muros, e os guardas que me deu.
-
Mercenários - disse Tyrion. - Gostam bastante do meu ouro, mas
morrerão por ele? Quanto a estes muros, um homem podia subir nos
ombros de outro e saltá-los num instante. Uma mansão muito parecida
com esta foi queimada durante os tumultos. Mataram o ourives que a
possuía pelo crime de ter uma despensa cheia, tal como deixaram o
Alto Septão em pedaços, estupraram Lollys meia centena de vezes, e
esmagaram o crânio de Sor Aron. O que acha que farão se puserem as
mãos na senhora da Mão?
-
Refere-se à prostituta da Mão? - ela o olhou com aqueles seus
grandes olhos corajosos. - Mas gostaria de ser sua senhora, senhor.
Vestiria todas as coisas bonitas que me deu, cetim, samito e pano de
ouro, e usaria suas joias, pegaria na sua mão e sentaria ao seu lado
nos banquetes. Poderia dar-lhe filhos, sei que poderia... e juro que
nunca o envergonharia.
Meu amor
por você já me envergonha o suficiente.
- Um
sonho lindo, Shae. Mas, agora, coloque-o de lado, estou pedindo.
Nunca poderá acontecer.
- Por
causa da rainha? Também não tenho medo dela.
- Eu
tenho.
- Então
mate-a e resolva o assunto. Não é como se houvesse algum amor entre
vocês.
Tyrion
suspirou.
- Ela é
minha irmã. O homem que mata seu próprio sangue é para sempre
maldito aos olhos dos deuses e dos homens. Além disso, seja o que
for que eu e você possamos pensar de Cersei, meu pai e meu irmão
gostam dela. Posso conspirar contra qualquer homem nos Sete Reinos,
mas os deuses não me equiparam para enfrentar Jaime de espada na
mão.
- O Jovem
Lobo e Lorde Stannis têm espadas, e não o assustam.
Como você
sabe pouco, querida.
- Contra
eles tenho todo o poder da Casa Lannister. Contra Jaime ou meu pai,
não tenho mais do que umas costas tortas e um par de pernas
atrofiadas.
- Tem a
mim - Shae o beijou, deslizando os braços em volta de seu pescoço
enquanto pressionava o corpo contra o dele.
O beijo o
excitou, como sempre acontecia com os beijos dela, mas daquela vez
Tyrion libertou-se gentilmente.
- Agora
não. Querida, eu tenho... bem, chame de semente de um plano. Acho
que posso ser capaz de levá-la para as cozinhas do castelo.
O rosto
de Shae ficou imóvel:
- As
cozinhas?
- Sim. Se
agir através de Varys, ninguém saberá de nada.
Ela
soltou um risinho:
- Senhor,
eu o envenenaria. Todos os homens que provaram minha comida
disseram-me que sou uma excelente prostituta.
- A
Fortaleza Vermelha tem cozinheiros suficientes. E açougueiros e
padeiros também. Teria de se fazer de ajudante de cozinha.
- Uma
lavadora de pratos, vestida de ráfia áspera e marrom. E assim que o
senhor quer me ver?
- O
senhor quer vê-la viva - Tyrion respondeu. - Dificilmente pode lavar
pratos vestida de seda e veludo.
- O
senhor se cansou de mim? - ela enfiou uma mão por baixo da túnica
dele e encontrou seu membro. Em duas rápidas batidas deixou-o duro.
- Ele ainda me quer - ela riu. - Gostaria de foder sua ajudante de
cozinha, senhor? Pode me encher de farinha e chupar molho de carne
das minhas maminhas, se...
- Pare
com isso - o modo como ela estava agindo lembrava-lhe Dancy, que
tentara tão intensamente ganhar sua aposta. Afastou sua mão com
força, a fim de impedir mais travessuras. - Não é hora para
brincadeiras de cama, Shae. Sua vida pode estar em risco.
O sorriso
dela desapareceu:
- Se
desagradei ao senhor, não tive intenção, só que... não podia
apenas me dar mais guardas?
Tyrion
soltou um profundo suspiro. Lembre-se de como ela é nova, disse a si
mesmo, e pegou sua mão:
- Suas
pedras preciosas podem ser substituídas, e novos vestidos podem ser
cosidos, duas vezes mais bonitos do que os velhos. Para mim, você é
a coisa mais preciosa que está dentro destes muros. A Fortaleza
Vermelha também não é segura, mas é bastante mais segura do que
aqui. Quero você lá.
- Nas
cozinhas - a voz dela não tinha expressão. - Lavando pratos.
- Por
pouco tempo.
- Meu pai
fez de mim a ajudante de cozinha dele - ela disse, com a boca se
contorcendo. - Foi por isso que fugi.
- Tinha
me dito que fugiu porque seu pai fez de você a prostituta dele -
lembrou-lhe Tyrion.
- Isso
também. Não gostava mais de lavar seus pratos do que da pica dele
em mim - sacudiu a cabeça para trás. - Por que é que não pode
ficar comigo na sua torre? Metade dos senhores da corte tem quem
aqueça suas camas.
- Fui
expressamente proibido de levá-la para a corte.
- Pelo
seu pai estúpido - Shae fez um muxoxo. - Tem idade para manter todas
as prostitutas que quiser. Será que ele o considera um garotinho
imberbe? O que ele poderia fazer, espancá-lo?
Tyrion a
estapeou. Não com força, mas com suficiente vigor.
-
Maldita. Sua maldita. Nunca caçoe de mim. Você não.
Por um
momento Shae não falou. O único som que se ouvia era o do grilo,
que cantava, cantava.
- Peço
perdão, senhor - ela disse por fim, numa voz pesada e sem vida. -
Não queria ser insolente.
E eu não
queria bater em você. Que os deuses sejam bons, estarei me
transformando em Cersei?
- Isso
foi errado. De nós dois. Shae, você não compreende - palavras que
nunca pretendera dizer saíram dele às cambalhotas, como
saltimbancos de um cavalo oco. - Quando tinha treze anos, casei com a
filha de um artesão. Pelo menos era o que pensava que ela era.
Estava cego de amor, e pensava que ela sentia o mesmo por mim, mas
meu pai esfregou a verdade na minha cara. Minha noiva era uma
prostituta que Jaime tinha contratado para me dar a primeira
experiência como homem - e eu acreditei em tudo, como o tolo que
era. - Para que a lição ficasse bem dada, Lorde Tywin deu minha
esposa a uma caserna de guardas para que a usassem como bem
entendessem, e ordenou-me que assistisse, e que a possuísse uma
última vez, depois de os outros terminarem. Uma última vez, sem que
nenhum sinal de amor ou ternura restasse. "Para que se recorde
dela como realmente é", dissera, e eu devia tê-lo desafiado,
mas meu pau me traiu e fiz o que me era pedido. Depois de ficar
satisfeito com ela, meu pai obteve a anulação do casamento. Era
como se nunca nos tivéssemos casado, disseram os septões - apertou
sua mão. - Por favor, não falemos mais da Torre da Mão. Ficará
nas cozinhas só por pouco tempo. Depois de terminarmos com Stannis,
terá outra mansão, e sedas tão suaves como as suas mãos.
Os olhos
de Shae tinham-se aberto muito, mas Tyrion não conseguiu ler o que
havia por trás.
- Minhas
mãos não serão suaves se passar o dia todo limpando fornos e
raspando panelas. Será que ainda vai querê-las tocando-o quando
estiverem vermelhas, ásperas e rachadas da água quente e da
lixívia?
- Mais do
que nunca. Quando olhar para elas, vão me lembrar de como foi
corajosa.
Não
saberia dizer se ela acreditava nele. A moça abaixou os olhos.
- Estou
às suas ordens, senhor.
Tyrion
via com clareza que aquilo era a máxima aceitação que alcançaria
naquela noite. Beijou seu rosto no lugar onde tinha batido, para
tirar alguma dor do golpe.
-
Mandarei buscá-la.
Varys
estava à espera nos estábulos, como havia prometido. O cavalo do
eunuco parecia esparavonado e meio morto. Tyrion montou; um dos
mercenários abriu os portões. Saíram em silêncio.
Que os
deuses me ajudem, por que lhe contei a respeito de Tysha? Perguntou a
si mesmo, com um medo súbito. Havia alguns segredos que nunca deviam
ser verbalizados, algumas vergonhas que um homem devia levar para o
túmulo. O que queria dela, perdão? A maneira como o olhara, o que
queria dizer? Odiaria tanto assim a idéia de limpar panelas, ou
teria sido a sua confissão? Como é que posso lhe contar aquilo e
ainda pensar que ela me ama? Disse parte dele, enquanto a outra parte
caçoou, dizendo; Anão estúpido, a única coisa que a rameira ama
são o ouro e as joias.
Seu
cotovelo cicatrizado latejava, rangendo sempre que o cavalo punha um
casco no chão. Às vezes, quase conseguia imaginar que ouvia os
ossos roçando um no outro lá dentro. Talvez devesse consultar um
meistre, obter alguma poção para as dores... Mas, desde que Pycelle
tinha revelado o que era, Tyrion desconfiava dos meistres. Só os
deuses sabiam com quem andariam conspirando, ou o que teriam
misturado naquelas poções que ministravam.
- Varys.
Tenho de trazer Shae para o castelo sem que Cersei perceba - fez um
esboço rápido de seu plano envolvendo as cozinhas.
Quando
terminou, o eunuco soltou um pequeno cacarejo:
- Farei o
que o senhor ordenar, naturalmente... Mas devo preveni-lo de que as
cozinhas estão cheias de olhos e ouvidos. Mesmo se a garota não
cair sob nenhuma suspeita propriamente dita, será alvo de mil
perguntas. Onde nasceu? Quem eram seus pais? Como veio para Porto
Real? A verdade não servirá, então ela terá de mentir... e
mentir, e mentir - olhou de relance para Tyrion.
- E uma
jovem moça de cozinha tão bonita instigará tanto desejo como
curiosidade. Será tocada, beliscada, acariciada e levará tapinhas.
Ajudantes de cozinha vão se enfiar sob as suas mantas de noite.
Algum cozinheiro solitário pode tentar se casar com ela. Padeiros
vão amassar seus seios com mãos cheias de farinha.
- Prefiro
que ela seja acariciada a que seja apunhalada - Tyrion respondeu.
Varys
avançou mais alguns passos, e disse;
- Pode
haver outra maneira. Acontece que a aia que serve a filha da Senhora
Tanda tem andado surrupiando suas joias. Se eu informasse a Senhora
Tanda disso, ela seria forçada a despedir imediatamente a moça. E a
filha precisaria de uma nova aia.
- Entendo
- Tyrion compreendeu de imediato que aquilo abria possibilidades. Uma
criada de quarto de uma senhora usava roupas melhores do que uma
ajudante de cozinha, e frequentemente até exibia uma ou duas joias,
Shae devia ficar contente com isso. E Cersei achava a Senhora Tanda
entediante e histérica, e Lollys, uma bovina imbecil. Não era
provável que lhes fizesse visitas de cortesia.
- Lollys
é tímida e confia nas pessoas - Varys acrescentou. - Acreditará em
qualquer história que lhe seja contada. Desde que sua virgindade foi
roubada pelos populares, ela tem medo de sair de seus aposentos,
portanto, Shae permanecerá fora de vista... mas convenientemente
próxima, caso você tenha necessidade de consolo,
- Sabe
tão bem como eu que a Torre da Mão está vigiada. Cersei certamente
ficaria curiosa se a aia de Lollys começasse a me visitar.
- Eu
talvez consiga introduzir a moça em seu quarto sem ser vista. A casa
de Chataya não é a única a ter uma porta escondida,
- Um
acesso secreto? Aos meus aposentos? - Tyrion sentia-se mais
aborrecido do que surpreso. Por que motivo teria Maegor, o Cruel,
ordenado a morte de todos os construtores que tinham trabalhado em
seu castelo, se não fosse para proteger tais segredos? - Sim,
suponho que teria de existir. Onde posso encontrar a porta? No
aposento privado? No quarto de dormir?
- Meu
amigo, não quer me obrigar a revelar todos os meus pequenos
segredos, não é?
- De hoje
em diante, pense neles como os nossos pequenos segredos, Varys -
Tyrion olhou de soslaio o eunuco em seu fedido traje de saltimbanco.
- Partindo do princípio de que você está do meu lado...
-
Consegue duvidar disso?
- Ora,
não, confio tacitamente em você - uma gargalhada amarga ecoou das
janelas fechadas. - Na verdade, confio em você como se fosse do meu
sangue. Agora conte-me como morreu Cortnay Penrose.
- Dizem
que se atirou de uma torre,
- Que se
atirou? Não, não vou acreditar nisso.
- Os
guardas não viram ninguém entrando em seus aposentos, nem
encontraram ninguém lá dentro depois da queda,
- Então
o assassino entrou mais cedo e se escondeu debaixo da cama - sugeriu
Tyrion. - Ou desceu do telhado por uma corda. Talvez os guardas
estejam mentindo. Quem poderá dizer que não cometeram eles mesmos o
ato?
- Sem
dúvida, tem razão, senhor.
O tom
cheio de si do eunuco dizia outra coisa.
- Mas
você tem outra opinião? Como teria acontecido então?
Durante
um longo momento Varys nada disse. O único som que se ouvia era o
solene clac que os cascos faziam no pavimento. Por fim, o eunuco
pigarreou:
- Senhor,
acredita nos antigos poderes?
- Fala de
magia? - Tyrion perguntou com impaciência, fungando. - Feitiços de
sangue, maldições, metamorfismo, esse tipo de coisa? Quer sugerir
que Sor Cortnay foi enfeitiçado até a morte?
- Sor
Cortnay tinha desafiado Lorde Stannis para um combate singular na
manhã do dia em que morreu. Pergunto: será este o ato de um homem
perdido em desespero? Depois, há a questão do assassinato
misterioso e muito fortuito de Lorde Renly, precisamente no momento
em que suas linhas de batalha estavam se formando para varrer o irmão
do campo - o eunuco fez uma pausa momentânea. - Senhor, uma vez
perguntou-me de que modo fui cortado.
-
Lembro-me disso, Não quis falar do assunto.
- E
continuo a não querer, mas... - aquela pausa foi mais longa do que a
anterior, e quando Varys voltou a falar sua voz estava de algum modo
diferente. - Era um órfão, aprendiz numa trupe errante. Nosso
mestre possuía um barco pesqueiro pequeno e largo, e viajávamos de
um lado para o outro ao longo do mar estreito, atuando em todas as
Cidades Livres e, de tempos em tempos, em Vilavelha e Porto Real. Um
dia, em Myr, um certo homem foi ao nosso espetáculo. Quando
terminou, fez uma oferta por mim que meu mestre achou tentadora
demais para recusar. Fiquei aterrorizado. Temi que o homem
pretendesse me usar como ouvira dizer que os homens usavam
garotinhos, mas, na verdade, a única parte de mim que ele queria era
meu órgão viril. Deu-me uma poção que me deixou incapaz de me
movimentar ou de falar, mas nada fez para adormecer meus sentidos.
Com uma longa lâmina em forma de gancho cortou-me raiz e caule, sem
parar de entoar cânticos. Vi-o queimar meus órgãos masculinos num
braseiro. As chamas ficaram azuis, e ouvi uma voz responder ao seu
chamado, embora não compreendesse as palavras que foram ditas.
Quando ele acabou de fazer o que queria comigo, os pantomimeiros
tinham zarpado. Depois de servir aos seus propósitos, o homem já
não tinha interesse em mim, e botou-me na rua. Quando lhe perguntei
o que devia fazer então, ele respondeu que achava que devia morrer.
Para contrariá-lo, decidi viver. Mendiguei, roubei e vendi as partes
do corpo que ainda me restavam. Em pouco tempo tornei-me um ladrão
tão bom como qualquer outro de Myr, e quando cresci aprendi que
muitas vezes o conteúdo das cartas de um homem é mais valioso do
que o conteúdo de sua bolsa. Mas ainda sonho com aquela noite,
senhor. Não com o feiticeiro, nem com a lâmina, nem mesmo com o
modo como meu membro viril contraiu-se enquanto ardia. Sonho com a
voz. A voz saída das chamas. Seria um deus, um demônio, um truque
qualquer de ilusionista? Não sei lhe dizer, e olhe que conheço
todos os truques. Tudo o que sei com toda certeza é que o homem
chamou a coisa, e ela respondeu, e desde esse dia odiei a magia e
todos aqueles que a praticam. Se Lorde Stannis for um desses homens,
desejo vê-lo morto.
Quando
terminou de falar, cavalgaram em silêncio durante algum tempo. Por
fim, Tyrion disse:
- Uma
história pungente. Lamento.
O eunuco
suspirou.
-
Lamenta, mas não acredita em mim. Não, senhor, não é necessário
pedir perdão. Eu estava drogado e com dores, e tudo se passou há
muito tempo e num lugar distante, do outro lado do mar. Sem dúvida
que sonhei aquela voz. Disse isso a mim mesmo mil vezes.
- Eu
acredito em espadas de aço, moedas de ouro e na inteligência dos
homens - Tyrion respondeu. - E acredito que um dia existiram dragões.
Afinal de contas, vi seus crânios.
-
Esperemos que essa seja a pior coisa que veja, senhor.
- Nisso
concordamos - Tyrion sorriu. - E quanto à morte de Sor Cortnay, bem,
sabemos que Stannis contratou mercenários das Cidades Livres. Talvez
também tenha comprado um assassino habilidoso.
- Um
assassino muito habilidoso.
- Há
homens assim. Costumava sonhar que um dia seria suficientemente rico
para enviar um Homem Sem Rosto contra minha querida irmã.
-
Independentemente do modo como Sor Cortnay morreu, está morto, e o
castelo caiu. Stannis está livre para marchar.
- Temos
alguma chance de convencer os homens de Dorne a cair sobre a Marca?
-
Nenhuma.
- E uma
pena. Bem, a ameaça pode pelo menos servir para manter os senhores
da Marca perto de seus castelos. Que novidades há de meu pai?
- Se
Lorde Tywin conseguiu atravessar o Ramo Vermelho, nenhuma notícia
nesse sentido me chegou ainda. Se não se apressar, pode ficar
encurralado entre os inimigos. A folha dos Oakheart e a árvore dos
Rowan foram vistas a norte do Vago.
- Não há
notícias de Mindinho?
- Talvez
não tenha chegado a Ponteamarga. Ou talvez tenha morrido lá. Lorde
Tarly tornou-se senhor das reservas de Renly e passou muitos pela
espada; em especial gente dos Florent. Lorde Caswell trancou-se em
seu castelo.
Tyrion
atirou a cabeça para trás e estourou em gargalhadas.
Varys
puxou as rédeas do cavalo, perplexo.
- Senhor?
- Não vê
a piada, Lorde Varys? - Tyrion indicou com um gesto de mão as
janelas trancadas, toda a cidade adormecida. - Ponta Tempestade caiu
e Stannis vem a caminho com fogo e aço, e só os deuses sabem que
escuros poderes, e o bom povo não tem Jaime para protegê-lo, nem
Robert, nem Renly, nem Rhaegar, nem seu precioso Cavaleiro das
Flores. Só têm a mim, aquele que odeiam - voltou a rir. - O anão,
o maligno conselheiro, o pequeno demônio simiesco e deformado. Sou
tudo o que têm entre eles e o caos.
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