O céu
meridional estava negro de fumaça. Erguia-se, rodopiando, de uma
centena de incêndios distantes, fazendo as estrelas desaparecerem
com seus dedos de fuligem. Do outro lado da Torrente da Água Negra,
uma linha de chamas ardia à noite, de horizonte a horizonte,
enquanto, deste lado, o Duende havia incendiado toda a zona
ribeirinha: docas e armazéns, casas e bordéis, tudo o que estivesse
fora das muralhas da cidade.
Mesmo na
Fortaleza Vermelha o ar tinha gosto de cinzas. Quando Sansa se
encontrou com Sor Dontos no sossego do Bosque Sagrado, ele perguntou
se ela estivera chorando.
- É só
da fumaça - Sansa mentiu. - Parece que metade da mata do rei está
ardendo.
- Lorde
Stannis quer obrigar os selvagens do Duende a sair da floresta com
fumaça - Dontos oscilava enquanto falava, com uma mão no tronco de
um castanheiro. Uma marca de vinho manchava o quadriculado vermelho e
amarelo de sua túnica. - Matam seus batedores e atacam a coluna dos
abastecimentos. E os selvagens também têm andado incendiando. O
Duende disse à rainha que era melhor Stannis ensinar seus cavalos a
comer cinzas, porque não iriam encontrar grama nenhuma. Eu o ouvi
dizer isso. Como bobo, ouço todos os tipos de coisa que nunca ouvi
quando era um cavaleiro. Eles falam como se eu não estivesse lá, e
- aproximou-se, soprando o hálito avinhado bem em cheio no rosto
dela - a Aranha paga em ouro por qualquer bagatela. Acho que o Rapaz
Lua é dele há anos.
Está
bêbado outra vez. Chama a si mesmo de meu pobre Florian, e é o que
é. Mas nada mais tenho.
- E
verdade que Lorde Stannis incendiou o bosque sagrado em Ponta
Tempestade?
Dontos
confirmou com a cabeça:
- Fez uma
grande pira com as árvores como oferenda ao seu novo deus. A
sacerdotisa vermelha o obrigou a fazer isso. Dizem que agora é ela
quem o governa, no corpo e na alma. Jurou queimar também o Grande
Septo de Baelor se tomar a cidade.
- Que
queime - quando Sansa tinha visto pela primeira vez o Grande Septo,
com suas paredes de mármore e as sete torres de cristal, pensou que
era o mais belo edifício do mundo, mas isso tinha sido antes de
Joffrey decapitar seu pai em seus degraus. - Quero-o queimado.
-
Silêncio, menina, os deuses vão ouvi-la.
- Por que
hão de ouvir? Nunca ouvem minhas preces,
- Ouvem,
sim. Mandaram-me até você, não mandaram?
Sansa
pegou um pedaço de casca de uma árvore. Sentia-se tonta, quase
febril.
-
Enviaram-no, mas o que fez? Prometeu me levar para casa, mas continuo
aqui.
Dontos
deu palmadinhas em seu braço.
- Falei
com um certo homem que conheço, um bom amigo meu... e seu, senhora.
Ele vai contratar um navio rápido para nos levar para um local
seguro na hora certa.
- A hora
certa é agora - Sansa insistiu. - Antes que a luta comece. Eles
esqueceram de mim. Eu sei que conseguiríamos escapar se tentássemos.
- Menina,
menina - Dontos sacudiu a cabeça. - Do castelo, sim, poderíamos,
mas os portões da cidade estão mais guardados do que nunca, e o
Duende até o rio fechou.
Era
verdade. Sansa nunca tinha visto a Torrente da Água Negra tão
vazia. Todos os barcos que faziam a travessia tinham sido recolhidos
à margem norte, e as galés mercantes, fugido ou sido confiscadas
pelo Duende para serem preparadas para a batalha. Os únicos navios
que estavam à vista eram as galés de guerra do rei. Remavam
incessantemente para baixo e para cima no meio do rio, trocando
nuvens de flechas com os arqueiros de Stannis na margem sul.
Lorde
Stannis propriamente dito ainda estava em movimento, mas sua
vanguarda surgira havia duas noites durante a lua negra. Porto Real
tinha acordado para uma paisagem cheia de suas tendas e estandartes.
Sansa ouvira dizer que eram cinco mil homens, quase tantos quanto
todos os mantos dourados da cidade. Hasteavam as maçãs verde ou
vermelha da Casa Fossoway, a tartaruga de Estermont, e a raposa e
flores de Florent, e seu comandante era Sor Guyard Morrigen, um
famoso cavaleiro do sul que os homens agora chamavam de Guyard, o
Verde. Seu estandarte exibia um corvo em voo, com as asas negras bem
abertas contra um céu verde-tempestade. Mas eram as bandeiras
amarelo-claras que preocupavam a cidade. Longas caudas esfarrapadas
flutuavam atrás delas, como chamas tremeluzentes, e em vez do
símbolo de um senhor, ostentavam o de um deus: o coração ardente
do Senhor da Luz.
- Quando
Stannis chegar, terá dez vezes mais homens do que Joffrey, todos
dizem isso - Dontos apertou seu ombro. - O tamanho de sua tropa não
importa, querida, desde que esteja do lado errado do rio, Stannis não
pode atravessar sem navios.
- Ele tem
navios. Mais do que Joffrey.
- E uma
longa viagem desde Ponta Tempestade, a frota terá de dobrar o Gancho
de Massey, atravessar a Goela e cruzar a Baía da Água Negra. Talvez
os bons deuses enviem uma tempestade para varrê-los dos mares - ele
deu um sorriso esperançoso. - Não é fácil, eu sei. Precisa ter
paciência, menina. Quando meu amigo voltar à cidade, teremos o seu
navio. Tenha fé no seu Florian, e tente não ter medo.
Sansa
cravou as unhas na palma da mão. Conseguia sentir o medo na barriga,
torcendo e apertando, pior a cada dia que passava. Pesadelos sobre o
dia em que a Princesa Myrcella tinha embarcado ainda perturbavam seu
sono; sonhos escuros e sufocantes que a acordavam no meio da noite,
lutando para respirar. Ouvia as pessoas gritando com ela, gritando
sem palavras, como animais. Tinham-na empurrado, atirado dejetos
nela, e tentado derrubá-la do cavalo, e teriam feito coisas piores
se Cão de Caça não tivesse aberto caminho até junto dela. Tinham
despedaçado o Alto Septão e esmagado a cabeça de Sor Aron com uma
pedra. Tente não ter medo! Ele lhe dizia agora.
A cidade
inteira tinha medo. Sansa podia vê-lo das muralhas do castelo. As
pessoas comuns se escondiam atrás de venezianas fechadas e portas
trancadas, como se isso as mantivesse a salvo. Da última vez que
Porto Real caíra, os Lannister tinham saqueado e violado as mulheres
a seu bel-prazer, e tinham passado centenas na espada, apesar de a
cidade ter aberto os portões.
Daquela
vez, o Duende pretendia lutar, e uma cidade que lutava não podia
esperar qualquer tipo de misericórdia.
Dontos
continuava a tagarelar:
- Se eu
ainda fosse um cavaleiro, teria de vestir uma armadura e juntar-me
aos outros na guarnição das muralhas. Devia beijar os pés do Rei
Joffrey e agradecer-lhe de todo o coração,
- Se lhe
agradecesse por ter feito de você um bobo, o transformaria de novo
em cavaleiro - Sansa disse em tom ríspido.
Dontos
soltou um risinho:
- A minha
Jonquil é uma menina inteligente, não é?
- Joffrey
e a mãe dizem que sou burra.
- Que
digam. Está mais segura assim, doçura. Rainha Cersei, Duende, Lorde
Varys e gente assim, todos se vigiam uns aos outros com uma atenção
de falcões, e pagam a este e àquele para espiar o que os outros
andam fazendo, mas ninguém se incomoda com a filha da Senhora Tanda,
não é? - Dontos cobriu a boca para abafar um arroto. - Que os
deuses a protejam, minha pequena Jonquil - estava ficando lacrimoso.
O vinho tinha esse efeito nele. - Dê agora um beijinho no seu
Florian. Um beijo para dar sorte - ele cambaleou na direção dela,
Sansa esquivou-se de seus lábios úmidos, deu-lhe um leve beijo no
rosto por barbear, e desejou-lhe boa noite. Precisou de todas as suas
forças para não chorar. Andava chorando em excesso nos últimos
tempos. Era impróprio, bem sabia, mas não parecia ser capaz de
evitar; às vezes, as lágrimas chegavam por causa de uma besteira, e
nada do que fizesse era capaz de retê-las.
A ponte
levadiça que levava à Fortaleza de Maegor não tinha guardas. O
Duende havia transferido a maior parte dos homens de manto dourado
para as muralhas da cidade, e os cavaleiros brancos da Guarda Real
tinham deveres mais importantes do que ficar se preocupando com ela.
Sansa podia ir aonde quisesse, desde que não tentasse sair do
castelo, mas não havia lugar algum aonde quisesse ir.
Passou
por cima do fosso seco com seus cruéis espigões de ferro e subiu a
estreita escada em caracol, mas quando chegou à porta de seu quarto,
não suportou a idéia de entrar. Aquelas paredes faziam-na se sentir
aprisionada; mesmo com a janela escancarada parecia não haver ar
para respirar.
Voltando
para a escada, Sansa subiu. A fumaça escondia as estrelas e o fino
crescente da lua, e assim o telhado encontrava-se escuro e pesado de
sombras. Mas dali podia ver tudo: as altas torres e os grandes
baluartes da Fortaleza Vermelha; o labirinto das ruas da cidade mais
além; para sul e oeste corria o rio, negro; a baía para leste; as
colunas de fumaça e fagulhas e incêndios. Incêndios por toda
parte. Soldados rastejavam sobre as muralhas da cidade como formigas
com archotes, e aglomeravam-se em tabiques que tinham brotado das
muralhas. Embaixo, junto ao Portão da Lama, delineadas contra a
fumaça que ascendia ao céu, conseguia distinguir a forma vaga das
três enormes catapultas, as maiores que já se tinha visto, subindo
uns bons seis metros acima da muralha. Mas nada daquilo a fazia
sentir menos medo. Uma ferroada trespassou-a, tão forte que Sansa
soluçou e se agarrou à barriga. Podia ter caído, mas uma sombra
moveu-se de repente e dedos fortes agarraram seu braço e a
equilibraram.
Apoiou-se
em um merlão, com os dedos arranhando a pedra áspera.
-
Largue-me - ela gritou. - Largue-me.
- O
passarinho pensa que tem asas, é? Ou será que quer acabar aleijada
como aquele seu irmão?
Sansa
retorceu-se nas mãos dele.
- Eu não
ia cair. Foi só... surpreendeu-me, foi só isso.
- O que
quer dizer é que a assustei. E ainda assusto.
Ela
inspirou profundamente para se acalmar.
- Pensava
que estava sozinha, eu... - afastou o olhar.
- O
passarinho ainda não suporta olhar para mim, não é? - Cão de Caça
a largou. - Mas ficou bastante satisfeita em me ver quando a multidão
a agarrou. Lembra-se?
Sansa
lembrava-se bem demais. Lembrava-se do modo como uivavam, da sensação
do sangue escorrendo por seu rosto do local onde a pedra a atingira,
e do fedor de alho no hálito do homem que tentara arrancá-la do
cavalo. Ainda conseguia sentir a cruel pressão dos dedos em seu
pulso quando tinha perdido o equilíbrio e começado a cair.
Naquela
altura, pensou que ia morrer, mas os dedos tinham se contorcido,
todos de uma vez só, e o homem guinchara alto como um cavalo. Quando
a mão dele caiu, outra, mais forte, puxou-a de volta para a sela. O
homem com o bafo de alho estava no chão, com sangue jorrando do coto
em que terminava o braço, mas havia outros por toda volta, e alguns
tinham tacos na mão.
Cão de
Caça saltou sobre eles, com a espada transformada numa mancha de aço
que deixava para trás uma névoa vermelha à medida que ia sendo
brandida. Quando tinham saído correndo diante de seus olhos, Cão de
Caça rira, com a terrível cara queimada transformada por um
momento. Obrigou-se agora a olhar para aquele rosto, olhar realmente.
Era uma cortesia, e uma senhora nunca podia se esquecer das
cortesias. A pior parte não são as cicatrizes, nem sequer a maneira
como a boca se retorce. São os olhos. Nunca tinha visto olhos tão
cheios de ira.
- Eu...
eu devia ter ido ter convosco depois - ela disse, hesitantemente. -
Para lhe agradecer, por... por me ter salvado... foi tão bravo.
- Bravo?
- a gargalhada dele era quase um rosnado. - Um cão não precisa de
coragem para botar ratazanas para correr. Eram trinta contra um, e
nem um homem entre eles se atreveu a me enfrentar.
Sansa
detestava a maneira como ele falava, sempre tão desagradável e
zangado.
-
Assustar gente o alegra?
- Não, o
que me alegra é matar gente - sua boca retorceu-se. - Enrugue a cara
quanto quiser, mas poupe-me dessa falsa piedade. E cria de um grande
senhor. Não me diga que Lorde Eddard Stark de Winterfell nunca matou
um homem.
- Era o
seu dever. Nunca gostou de fazê-lo.
- Foi
isso que lhe contou? - Clegane voltou a rir. - Seu pai mentiu. Matar
é a melhor coisa que existe - puxou a espada. - Aqui está a sua
verdade. Seu precioso pai descobriu-a nos degraus de Baelor. Senhor
de Winterfell, Mão do Rei, Protetor do Norte, o poderoso Eddard
Stark, de uma linhagem velha de oito mil anos... Mas a lâmina de
Ilyn Payne atravessou seu pescoço mesmo assim, não foi? Lembra-se
da dança que ele fez quando a cabeça saiu de cima de seus ombros?
Sansa
abraçou-se, subitamente cheia de frio.
- Por que
é sempre tão odioso? Eu estava agradecendo...
- Como se
eu fosse um desses verdadeiros cavaleiros de que gosta tanto, sim.
Para que pensa que um cavaleiro serve, menina? Acha que basta receber
favores das senhoras e ficar bem numa armadura dourada? Os cavaleiros
servem para matar - encostou o gume da espada no pescoço dela, logo
abaixo da orelha. Sansa conseguia sentir o fio do aço. - Matei meu
primeiro homem aos doze anos. Perdi a conta dos que matei desde
então. Grandes senhores com nomes antigos, homens ricos e gordos
vestidos de veludo, cavaleiros inflados com suas honrarias como
balões de ar, sim, e também mulheres e crianças... São todos
carne, e eu sou o carniceiro. Que fiquem com as suas terras, os seus
deuses e o seu ouro. Que fiquem com os seus sores - Sandor Clegane
cuspiu aos seus pés para mostrar o que pensava daquilo. - Desde que
eu tenha isto - disse, afastando a espada da sua garganta - não há
homem na terra que tenha de temer.
Exceto
seu irmão, Sansa pensou, mas tinha juízo suficiente para não dizer
isso em voz alta. Ele é um cão, como diz ser. Um cão meio louco e
de temperamento ruim que morde qualquer mão que tente lhe fazer um
agrado, e que ao mesmo tempo despedaçará qualquer homem que tente
fazer mal aos seus donos.
- Nem
sequer os homens que estão do outro lado do rio?
Os olhos
de Clegane viraram-se para os incêndios distantes.
- Todas
estas chamas... - embainhou a espada. - Só covardes lutam com fogo.
- Lorde
Stannis não é nenhum covarde.
- Também
não é o homem que o irmão era. Robert nunca deixou que uma
coisinha insignificante como um rio o parasse.
- Que irá
fazer quando ele atravessar?
- Lutar.
Matar. Talvez morrer.
- Não
tem medo? Os deuses podem enviá-lo para algum inferno terrível por
todo o mal que já fez.
- Que
mal? - soltou uma gargalhada. - Que deuses?
- Os
deuses que fizeram todos nós.
- Todos?
- ele zombou. - Diga-me, passarinho, que tipo de deus faz um monstro
como o Duende, ou uma idiota como a filha da Senhora Tanda? Se os
deuses existirem, fizeram as ovelhas para que os lobos possam comer
carneiro, e os fracos para os fortes brincarem com eles.
- Os
verdadeiros cavaleiros protegem os fracos.
Ele
fungou:
- Os
verdadeiros cavaleiros não são mais reais do que os deuses. Se não
pode se proteger por conta própria, morra e saia do caminho daqueles
que podem. É o aço afiado e os braços fortes que governam este
mundo, e nunca acredite em outra coisa.
Sansa
afastou-se dele:
- É
horrível.
- Sou
honesto. É o mundo que é horrível. Agora voe, passarinho, estou
farto de seus trinados.
Sem
palavras, Sansa fugiu. Tinha medo de Sandor Clegane... E, no entanto,
uma parte de si desejava que Sor Dontos possuísse um pouco da
ferocidade do Cão de Caça. Os deuses existem, disse a si mesma, e
verdadeiros cavaleiros também. Tantas histórias não podem ser
mentira. Naquela noite, Sansa voltou a sonhar com o tumulto. A
multidão ergueu-se em volta dela, guinchando, um animal enlouquecido
com mil caras. Para onde quer que se virasse, via faces retorcidas em
máscaras monstruosas e desumanas. Chorou, e lhes disse que nunca
lhes fizera nenhum mal, mas derrubaram-na do cavalo mesmo assim.
"Não", chorou, "não, por favor, não, não",
mas ninguém prestou atenção nela. Gritou por Sor Dontos, pelos
irmãos, por seu pai e por sua loba, mortos, pelo galante Sor Loras,
que certa vez lhe tinha dado uma rosa vermelha, mas nenhum deles
veio. Chamou pelos heróis das canções, Florian, Sor Ryam Redwyne,
Príncipe Aemon, Cavaleiro dos Dragões, mas nenhum a ouviu. Mulheres
caíram sobre ela como doninhas, beliscando suas pernas e chutando-a
na barriga; alguém bateu em seu rosto, e sentiu seus dentes
quebrando-se. Então, viu o brilhante clarão do aço. A faca
mergulhou em sua barriga e rasgou, e rasgou, e rasgou, até não
restar nada da parte de baixo de seu corpo, além de tiras brilhantes
e úmidas.
Quando
acordou, a luz pálida da manhã entrava pela janela, mas sentia-se
tão mal e dolorida como se não tivesse dormido nada. Havia alguma
coisa pegajosa em suas coxas. Quando jogou a manta para trás e viu o
sangue, tudo o que conseguiu imaginar foi que o sonho tinha de algum
modo se transformado em realidade. Lembrava-se das facas dentro dela,
torcendo-se e rasgando. Afastou-se, horrorizada, chutando os lençóis
e caindo ao chão, sua respiração entrecortada, nua, ensanguentada
e com medo. Mas ali, encolhida, apoiada nas mãos e nos joelhos, a
compreensão veio.
- Por
favor, não - lamuriou-se Sansa - por favor, não - não queria que
aquilo lhe acontecesse, não agora, não ali, agora não, agora não,
agora não, agora não.
A loucura
tomou conta dela. Levantando-se apoiada na coluna da cama, foi até a
bacia e lavou-se, esfregando toda a matéria pegajosa até
desaparecer. Quando terminou, a água estava cor-de-rosa devido ao
sangue. Se as criadas de quarto vissem aquilo, saberiam. Então
lembrou-se das roupas de cama. Correu para a cama e fitou horrorizada
com a mancha vermelho-escura e a história que ela contava. Tudo em
que conseguiu pensar foi que tinha de se ver livre daquilo, caso
contrário elas veriam. Não podia deixar que vissem, senão iriam
casá-la com Joffrey e obrigá-la a se deitar com ele.
Pegando a
faca, Sansa cortou o lençol, arrancando a mancha. Se me fizerem
perguntas sobre o buraco, o que direi? Lágrimas correram pelo seu
rosto. Arrancou o lençol rasgado da cama, e a manta manchada também.
Vou ter de queimá-los. Fez uma bola com as provas, enfiou-a na
lareira, ensopou-a com o azeite da lâmpada de cabeceira e pôs-lhe
fogo. De repente, percebeu que o sangue tinha atravessado o lençol e
manchado o colchão de penas. Enrolou-o também, mas era grande e
pesado, difícil de mover. Sansa só conseguiu pôr metade no fogo.
Estava de joelhos, lutando para enfiar o colchão nas chamas,
enquanto uma espessa fumaça cinza redemoinhava em volta dela e
enchia o quarto, quando a porta se abriu de rompante e ouviu a criada
prender a respiração.
Acabaram
sendo necessárias três para afastá-la da lareira. E tudo foi em
vão. A roupa de cama estava queimada, mas quando a levaram dali,
tinha as coxas de novo ensanguentadas. Era como se seu próprio corpo
a tivesse denunciado a Joffrey, hasteando uma bandeira do carmim
Lannister para o mundo inteiro ver.
Depois de
apagarem o fogo, levaram o colchão de penas chamuscado, afastaram a
maior parte da fumaça para fora do quarto e trouxeram uma banheira.
Mulheres andaram para lá e para cá, murmurando e olhando-a de forma
estranha. Encheram a banheira com água escaldando, banharam-na,
lavaram seu cabelo e deram-lhe um pano para usar entre as pernas.
Nessa altura, Sansa já estava calma, e envergonhada da loucura que a
acometera. A fumaça tinha estragado a maior parte de suas roupas.
Uma das mulheres saiu e voltou de lá com um vestido verde que era
quase do seu tamanho.
- Não é
tão bonito quanto as suas coisas, mas deve servir - anunciou quando
o enfiou pela cabeça de Sansa. - Seus sapatos não estragaram,
portanto, pelo menos não terá de ir descalça à presença da
rainha.
Cersei
Lannister estava tomando o desjejum quando Sansa foi introduzida em
seu aposento privado.
- Pode se
sentar - a rainha disse atenciosamente. - Está com fome? - indicou a
mesa com um gesto. Havia mingau de aveia, mel, leite, ovos cozidos e
peixe frito e crocante.
A visão
da comida encheu Sansa de náuseas. Tinha um nó na barriga.
- Não,
obrigada, Vossa Graça.
- Não a
censuro. Entre Tyrion e Lorde Stannis, tudo o que como tem gosto de
cinza. E agora também anda fazendo fogueiras. O que esperava
conseguir?
Sansa
abaixou a cabeça:
- O
sangue assustou-me.
- O
sangue é o sinal de sua condição feminina. A Senhora Catelyn
poderia tê-la preparado. Teve sua primeira floração, nada mais.
Sansa
nunca tinha se sentido menos florida.
- A
senhora minha mãe contou-me, mas eu... eu pensava que seria
diferente.
-
Diferente como?
- Não
sei. Menos... menos sujo, e mais mágico.
A Rainha
Cersei riu.
- Espere
até dar à luz um filho, Sansa. A vida de uma mulher é nove partes
de sujeira para uma de magia, deve aprender isso bem depressa... E as
partes que parecem mágicas costumam se revelar as mais sujas de
todas - ela bebeu um gole de leite. - Então agora é uma mulher.
Será que faz a menor idéia do que isso significa?
-
Significa que agora estou em condições de me casar, de dormir com o
rei - Sansa respondeu - e de lhe dar filhos.
A rainha
deu um sorriso oblíquo:
- Uma
perspectiva que já não a seduz como antes, pelo que vejo. Não a
censurarei por isso. Joffrey sempre foi difícil. Até no
nascimento... Trabalhei um dia e meio para dá-lo à luz. Não
imagina a dor, Sansa. Gritei tão alto que imaginei que Robert
conseguiria me ouvir na mata do rei.
- Sua
Graça não estava com a senhora?
- Robert?
Robert estava na caça. Era esse o seu costume. Sempre que meu tempo
se aproximava, meu real esposo fugia para o meio das árvores com
seus caçadores e cães de caça. Quando regressava, presenteava-me
com umas peles ou uma cabeça de veado, e eu o presenteava com um
bebê. Não que eu quisesse que ele ficasse, veja bem. Tinha o Grande
Meistre Pycelle e um exército de parteiras, e o meu irmão. Quando
diziam a Jaime que não lhe seria permitido acompanhar os partos, ele
sorria e perguntava quem iria mantê-lo do lado de fora. Temo que
Joffrey não lhe mostre nenhuma devoção que se assemelhe a isso.
Poderia agradecer à sua irmã por isso, se não estivesse morta. Ele
nunca conseguiu esquecer aquele dia no Tridente, quando a viu
envergonhá-lo, e por isso envergonha você como troco. Mas você é
mais forte do que parece. Confio que sobreviva a um pouco de
humilhação. Eu sobrevivi. Pode nunca amar o rei, mas amará seus
filhos.
- Eu amo
Sua Graça de todo o coração - Sansa disse.
A rainha
suspirou:
- E
melhor que aprenda algumas mentiras novas, e depressa. Lorde Stannis
não gostará dessa, garanto.
- O novo
Alto Septão disse que os deuses nunca permitirão que Lorde Stannis
vença, pois Joffrey é o legítimo herdeiro.
Um meio
sorriso tremulou no rosto da rainha:
- Filho e
herdeiro legítimo de Robert. Embora Joff chorasse sempre que Robert
o pegava. Sua Graça não gostava disso. Seus subordinados sempre
balbuciaram alegremente para ele, e chuparam seu dedo quando o punha
em suas bocas ilegítimas. Robert queria sorrisos e vivas, sempre, e
por isso ia para onde os encontrava, para junto dos amigos e das
prostitutas. Robert queria ser amado. Meu irmão Tyrion sofre da
mesma doença. Quer ser amada, Sansa?
- Todo
mundo quer ser amado.
- Vejo
que a floração não a deixou mais esperta. Sansa, permita-me
partilhar com você um pouco de sabedoria feminina neste dia tão
especial. O amor é veneno. Um doce veneno, sim, mas mata do mesmo
jeito.
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