segunda-feira, 9 de setembro de 2013

53 - BRAN


Os Karstark chegaram numa manhã fria e ventosa, trazendo de seu castelo em Karhold trezentos homens a cavalo e quase dois mil a pé. As pontas de aço de suas lanças tremeluziam à pálida luz do sol enquanto a coluna se aproximava. Um homem seguia à frente, marcando um ritmo de marcha lento e gutural num tambor que era maior que ele, buum, buum, buum,
Bran os viu chegar de uma torre de guarda no topo da muralha exterior, vigiando através da luneta de bronze de Meistre Luwin enquanto se equilibrava nos ombros de Hodor. Era o próprio Lorde Rickard que os liderava, com os filhos Harrion, Eddard e Tosshen cavalgando ao seu lado sob estandartes negros como a noite, adornados com o resplendor branco de sua Casa. A Velha Ama dizia que eles possuíam sangue Stark há centenas de anos, mas aos olhos de Bran não se pareciam com os Stark. Eram homens grandes e ferozes, com os rostos cobertos por barbas espessas, e usavam os cabelos soltos abaixo dos ombros. Seus mantos eram feitos de peles de urso, foca e lobo.
Sabia que eram os últimos. Os outros senhores já estavam lá com as suas tropas. Bran ansiava por cavalgar entre eles, para ver as casas da Vila de Inverno cheias até rebentar, as multidões aos encontrões no mercado todas as manhãs, as ruas rasgadas e corroídas pelas rodas e pelos cascos, Mas Robb proibira-o de deixar o castelo.
- Não temos homens que possamos dispensar para protegê-lo - seu irmão explicou.
- Eu levo Verão - Bran insistiu.
- Não aja como um garotinho comigo, Bran - Robb pediu. - Você sabe bem que não é assim tão simples. Não faz mais de dois dias que um dos homens de Lorde Bolton esfaqueou um dos de Lorde Cerwyn no Barrote Fumegante. Nossa mãe me esfolaria se deixasse que você se pusesse em risco - dissera aquilo com a voz de Robb, o Senhor; Bran sabia que isso queria dizer que não haveria apelo.
Sabia que era por causa do que acontecera na Mata de Lobos. A recordação ainda lhe causava pesadelos. Sentira-se impotente como um bebê, não tinha sido mais capaz de se defender do que Rickon o teria. Menos até... Rickon, pelo menos, os teria chutado. Isso o envergonhava. Era apenas alguns anos mais novo que Robb; se o irmão era quase um homem-feito, também ele o era. Devia ter sido capaz de proteger a si mesmo.
Um ano antes, antes, teria visitado a vila mesmo que isso significasse subir as muralhas pelos seus próprios meios. Naquela época, podia correr por escadas abaixo, subir e descer sozinho do pônei, e brandir uma espada de madeira suficientemente bem para atirar o Príncipe Tommen ao chão. Agora, só podia observar, espreitando pelo tubo das lentes de Meistre Luwin. O meistre ensinara-lhe todos os estandartes: o punho revestido de cota de malha dos Glover, prateado sobre escarlate; o urso negro da Senhora Mormont; o hediondo homem esfolado que precedia Roose Bolton, do Forte do Pavor; um alce macho para os Hornwood; um machado de batalha para os Cerwyn; três árvores-sentinelas para os Tallhart; e o temível símbolo da Casa Umber, um gigante a rugir com correntes quebradas.
E em breve ficou também conhecendo os rostos, quando os senhores e seus filhos e cavaleiros vieram a Winterfell para os banquetes. Nem o Grande Salão tinha tamanho que chegasse para que todos se sentassem ao mesmo tempo e, portanto, Robb recebeu os principais vassalos um de cada vez. A Bran era sempre dado o lugar de honra, à direita do irmão. Alguns dos senhores vassalos davam-lhe estranhos e duros olhares quando se sentava ali, como se se perguntassem com que direito um rapazinho ainda verde, e ainda por cima aleijado, era colocado acima deles.
- Quantos são agora? - perguntou Bran a Meistre Luwin quando Lorde Karstark e os filhos entraram a cavalo pelos portões da muralha exterior.
- Doze mil homens, ou tão perto disso que não faz diferença.
- Quantos cavaleiros?
- Bem poucos - disse o meistre com um ar de impaciência. - Para ser armado cavaleiro, é preciso ficar de vigília num septo e ser ungido com os sete óleos para consagrar os votos. No Norte, só um punhado das grandes Casas reza aos Sete. Os outros honram os deuses antigos e não armam cavaleiros... mas esses senhores, seus filhos e seus soldados não são menos ferozes, leais ou honrados por causa disso. O valor de um homem não se determina por um sor antes de seu nome. Tal como já vos disse cem vezes.
- Mesmo assim - disse Bran - quantos cavaleiros?
Meistre Luwin suspirou.
- Trezentos, talvez quatrocentos... entre três mil homens com armadura que não são cavaleiros.
- Lorde Karstark é o último - disse Bran, pensativo. - Robb dará um banquete em sua honra esta noite.
- Sem dúvida que sim.
- Quanto tempo falta até que... até que partam?
- Têm de marchar em breve, ou não marcharão - disse Meistre Luwin. - A Vila de Inverno está cheia até rebentar, e este exército comerá tudo o que existe nos campos se acampar aqui durante muito tempo. Há outros à espera de se juntarem a eles ao longo da Estrada do Rei, cavaleiros das Terras Acidentadas, cranogmanos e os senhores Manderly e Flint. Já se luta nas terras do rio, e seu irmão tem muitas léguas a transpor.
- Eu sei - Bran sentia-se tão infeliz como soava. Devolveu a luneta de bronze ao meistre e reparou como seus cabelos haviam se tornado finos no topo da cabeça. Conseguia ver o rosado do couro cabeludo começando a aparecer. Era estranho olhar assim de cima para ele, quando passara toda a vida a olhá-lo de baixo; mas quando se andava "de cavalinho" sobre Hodor, olhava-se de cima para todo mundo. - Não quero observar mais. Hodor, leve-me de volta à fortaleza.
- Hodor - Hodor ecoou.
Meistre Luwin enfiou a luneta na manga.
- Bran, o senhor seu irmão não terá tempo para você agora. Tem de receber Lorde Karstark e os filhos e fazer com que se sintam bem-vindos.
- Não vou incomodar Robb. Quero visitar o bosque sagrado - pousou a mão no ombro de Hodor. - Hodor.
Uma série de apoios de mão cortados a cinzel no granito formava uma escada na parede interna da torre. Hodor desceu, uma mão após outra, enquanto cantarolava sem melodia e Bran balançava de encontro às suas costas no assento de madeira que Meistre Luwin fabricara para ele.
Luwin se baseara na ideia dos cestos que as mulheres usavam para transportar lenha nas costas; depois disso, recortar buracos para as pernas e adicionar algumas correias novas para distribuir o peso de Bran mais uniformemente fora coisa simples. Não era tão bom como montar a Dançarina, mas havia lugares onde a Dançarina não podia ir, e assim Bran não ficava tão envergonhado como quando Hodor o transportava nos braços como se fosse um bebê. Hodor também parecia gostar, se bem que com ele era difícil ter certeza. A única parte complicada eram as portas. Às vezes, Hodor esquecia-se de que levava Bran nas costas, e isso podia ser doloroso quando atravessavam uma porta.
Ao longo de quase uma quinzena tinha havido tantas entradas e saídas que Robb ordenara que ambas as portas levadiças se mantivessem içadas e a ponte levadiça entre elas, descida, mesmo na noite profunda. Uma longa coluna de lanceiros cobertos de armadura atravessava o fosso entre as muralhas quando Bran saiu da torre; homens dos Karstark, seguindo seus senhores para dentro do castelo. Usavam meios elmos de ferro negro e mantos negros de lã adornados com o sol raiado branco. Hodor trotou ao lado deles, sorrindo para si mesmo, fazendo ressoar as botas na madeira da ponte levadiça. Os soldados lançaram-lhes olhares estranhos ao vê-los passar, e uma vez Bran ouviu alguém soltar uma gargalhada. Recusou-se a deixar que aquilo o perturbasse.
- Os homens olharão para você - prevenira-o Meistre Luwin da primeira vez que tinham atado o assento ao peito de Hodor. - Olharão e falarão, e alguns zombarão - pois que zombem, pensara Bran. Ninguém zombava dele no seu quarto, mas não queria viver a vida na cama.
Ao passarem sob a porta levadiça da casa da guarda, Bran pôs dois dedos na boca e assobiou. Verão veio aos saltos pelo pátio afora. De repente, os lanceiros Karstarks lutavam para manter o controle dos cavalos, enquanto os animais viravam os olhos e relinchavam de medo. Um garanhão empinou-se, gritando, enquanto o cavaleiro praguejava e se agarrava desesperadamente. O cheiro dos lobos selvagens punha os cavalos num frenesi de medo se não estivessem habituados, mas se aquietariam rapidamente quando Verão fosse embora.
- O bosque sagrado - Bran lembrou a Hodor.
Até mesmo Winterfell estava cheio de gente. O pátio ressoava com o som de espadas e machados, com o estrondear das carroças e o ladrar dos cães. As portas do armeiro estavam abertas, e Bran viu de relance Mikken na sua forja, fazendo tinir o martelo enquanto suor lhe pingava do peito nu. Bran nunca vira tantos estranhos em toda sua vida, nem mesmo quando o Rei Robert viera visitar seu pai.
Tentou não vacilar quando Hodor se abaixou para atravessar uma porta baixa. Caminharam por um longo átrio sombrio, com Verão acompanhando facilmente o passo. O lobo olhava para cima de vez em quando, com os olhos ardendo como ouro líquido. Bran teria gostado de tocá-lo, mas estava alto demais para que a mão nele chegasse.
O bosque sagrado era uma ilha de paz no mar de caos em que Winterfell tinha se transformado. Hodor abriu caminho através dos densos maciços de carvalho, pau-ferro e árvores-sentinelas até a lagoa parada junto à árvore-coração. Parou sob os ramos nodosos do represeiro cantarolando. Bran ergueu os braços acima da cabeça e alçou-se para fora do assento, fazendo passar o peso morto das pernas através dos buracos do cesto. Ficou pendurado por um momento, oscilando, com as folhas vermelho-escuras roçando-lhe no rosto, até que Hodor o pegou e o abaixou até a pedra lisa ao lado da água.
- Quero ficar um pouco sozinho - disse. - Vá se molhar. Vá até as lagoas.
- Hodor - o gigante seguiu através das árvores e desapareceu. Do outro lado do bosque sagrado, sob as janelas da Casa de Hóspedes, uma nascente quente subterrânea alimentava três pequenos charcos. Saía vapor das águas dia e noite, e o muro que se erguia ao lado estava coberto de musgo. Hodor detestava água fria e lutava como um gato selvagem refugiado numa árvore sempre que era ameaçado com sabão, mas entrava alegremente no charco mais quente e ficava lá sentado durante horas, soltando um sonoro arroto para fazer eco à nascente sempre que uma bolha se erguia das sombrias profundezas verdes e se quebrava na superfície.
Verão bebeu um pouco de água e deitou-se ao lado de Bran. Este fez um afago sob o focinho do lobo, e por um momento rapaz e animal sentiram-se em paz. Bran sempre gostara do bosque sagrado, mesmo antes, mas nos últimos tempos achara-se cada vez mais atraído para lá. Até a árvore-coração já não o assustava como costumava antes. Os profundos olhos vermelhos esculpidos no tronco claro ainda o observavam, mas, de algum modo, agora tirava conforto disso. Os deuses olhavam por ele, dizia a si mesmo, os deuses antigos, deuses dos Stark, dos Primeiros Homens e dos Filhos da Floresta, os deuses do seu pai. Sentia-se seguro à vista deles, e o profundo silêncio das árvores o ajudava a pensar. Bran tinha passado a pensar muito desde a queda; a pensar, a sonhar e a falar com os deuses.
- Por favor, façam com que Robb não vá embora - rezou em voz baixa. Moveu a mão pela água fria, criando ondinhas que atravessaram a lagoa. - Por favor, façam com que ele fique. Ou, se tiver de ir, tragam-no a salvo para casa, com a mãe e o pai e as meninas. E façam com que... façam com que Rickon compreenda.
O irmão mais novo tornara-se incontrolável como uma tempestade de inverno desde que soubera que Robb ia partir para a guerra, ora choroso, ora zangado. Recusava-se a comer, chorava e gritava noite adentro, chegara mesmo ao ponto de dar um soco na Velha Ama quando ela tentou embalá-lo com canções, e no dia seguinte desapareceu. Robb pusera metade do castelo à sua procura, e quando finalmente o encontraram lá embaixo, nas criptas, Rickon golpeara-os com uma enferrujada espada que tirara da mão de um rei morto, e Cão Felpudo saltara da escuridão, babando como um demônio de olhos verdes. O lobo estava quase tão fora de controle como Rickon; mordera Gage no braço e arrancara um pedaço da coxa de Mikken. Só o próprio Robb e Vento Cinzento tinham logrado acalmá-lo, Farlen mantinha-o agora acorrentado nos canis, e Rickon chorava ainda mais por estar sem ele.
Meistre Luwin aconselhara Robb a permanecer em Winterfell, e Bran também lhe pedira, tanto por si como por Rickon, mas o irmão limitara-se a balançar teimosamente a cabeça e a dizer:
- Não quero ir. Tenho de ir.
Era só meia mentira. Alguém tinha de ir, para defender o Gargalo e ajudar os Tully contra os Lannister, Bran compreendia isso, mas não tinha de ser Robb. O irmão podia ter dado o comando a Hal Mollen ou a Theon Greyjoy, ou a um dos senhores seus vassalos. Meistre Luwin insistiu para que fizesse isso mesmo, mas Robb não queria ouvir falar do assunto.
- O senhor meu pai nunca enviaria homens para a morte para se esconder como um covarde atrás das muralhas de Winterfell - dissera, todo ele Robb, o Senhor.
Robb agora parecia a Bran quase um estranho, transformado, um senhor de verdade, embora não tivesse ainda passado pelo décimo sexto dia do seu nome. Até os vassalos do pai pareciam senti-lo. Muitos tentavam testá-lo, cada um à sua maneira. Tanto Roose Bolton como Robett Glover exigiram a honra do comando de batalha, o primeiro de forma brusca, o segundo com um sorriso e um gracejo. A resoluta e grisalha Maege Mormont, vestida de cota de malha como se fosse um homem, disse abruptamente a Robb que ele tinha idade para ser seu neto e que não tinha nada que lhe dar ordens..., mas acontecia que tinha uma neta com a qual estava disposta a deixá-lo se casar. Lorde Cerwyn, um homem de falas mansas, tinha até mesmo trazido consigo a filha, uma donzela rechonchuda e desajeitada de trinta anos, que se sentou à esquerda do pai e nunca levantou os olhos do prato. O jovial Lorde Hornwood não tinha filhas, mas trouxe presentes, um dia um cavalo, no seguinte um quadril de veado, no outro um corno de caça com relevos de prata, e nada pediu em troca... nada exceto uma extensão de terra que fora tirada de seu avô, e direitos de caça para norte de uma certa serra, e licença para construir uma represa no Faca Branca, se agradasse ao senhor. Robb respondia a todos com fria cortesia, muito à semelhança do que o pai poderia fazer, e de alguma forma dobrava-os à sua vontade.
E quando Lorde Umber, cujos homens alcunhavam como Grande-Jon, tão alto como Hodor e duas vezes mais largo, ameaçou levar suas forças para casa se fosse colocado atrás dos Hornwood ou dos Cerwyn na ordem de marcha, Robb disse-lhe que o fizesse, se assim desejasse.
- E quando resolvermos o assunto dos Lannister - prometera, coçando Vento Cinzento atrás da orelha - marcharemos outra vez para o norte e os arrancaremos da sua fortaleza e os enforcaremos por quebra dos votos - praguejando, Grande-Jon atirara um jarro de cerveja ao fogo e berrara que Robb era tão verde que devia urinar erva. Quando Hallis Mollen se aproximara para refreá-lo, atirara-o ao chão, virara uma mesa e desembainhara a maior e mais feia espada longa que Bran jamais vira. Por toda a sala, seus filhos, irmãos e soldados puseram-se em pé de um salto, puxando seu aço.
Mas Robb dissera apenas uma palavra em voz baixa, e com um rosnido e num piscar de olhos, Lorde Umber deu por si estatelado de costas, com a espada girando no chão a um metro de distância e a mão pingando sangue no lugar de onde Vento Cinzento arrancara dois dedos.
- O senhor meu pai me ensinou que empunhar o aço contra o seu suserano significa a morte - Robb dissera - mas sem dúvida que o senhor queria apenas cortar-me a carne - as entranhas de Bran fizeram-se em água quando Grande-Jon lutara para se erguer, chupando os tocos vermelhos dos dedos... mas então, espantosamente, o enorme homem soltou uma gargalhada,
- A vossa carne - o homem rugiu - é dura como um raio.
E de algum modo, depois daquilo, Grande-Jon transformara-se no braço direito de Robb, no seu campeão mais dedicado, dizendo sonoramente a todo mundo que o senhor rapaz era afinal um Stark, e que fariam melhor em dobrar o raio dos joelhos se não quisessem vê-los arrancados à dentada. Mas, nessa mesma noite, Robb viera ao quarto de Bran, pálido e abalado, depois de os fogos se terem consumido no Grande Salão.
- Pensei que ia me matar - Robb confessara. - Viu a maneira como ele atirou o Hal ao chão, como se não fosse maior que Rickon? Deuses, fiquei tão assustado. E Grande-Jon não é o pior dentre eles, é só o mais barulhento. Lorde Roose nunca diz uma palavra, limita-se a olhar para mim, e tudo em que eu consigo pensar é naquela sala que eles têm no Forte do Pavor, onde os Bolton penduram as peles de seus inimigos.
- Isso é só uma das histórias da Velha Ama - Bran dissera. Mas uma nota de dúvida insinuara-se na sua voz. - Não é?
- Não sei - o irmão abanara a cabeça com ar cansado. - Lorde Cerwyn quer levar a filha conosco para o sul. Para cozinhar, diz ele. Theon tem certeza de que hei de encontrar uma noite a moça na minha cama. Gostaria... gostaria que nosso pai estivesse aqui.
Isso era uma coisa em que eles podiam concordar, Bran, Rickon e Robb, o Senhor; todos eles desejavam que o pai estivesse ali. Mas Lorde Eddard estava a mil léguas de distância, preso numa masmorra qualquer, fugitivo perseguido procurando manter-se vivo, ou até morto. Ninguém parecia saber ao certo; cada viajante contava uma história diferente, cada uma mais aterrorizadora que a outra.
Que as cabeças dos guardas do pai apodreciam nas muralhas da Fortaleza Vermelha, empaladas em lanças. Que o Rei Robert tinha morrido nas mãos do pai. Que os Baratheon tinham montado cerco a Porto Real. Que Lorde Eddard fugira para o sul com o irmão malvado do rei, Renly. Que Arya e Sansa tinham sido assassinadas pelo Cão de Caça. Que a mãe matara Tyrion, o Duende, e pendurara seu corpo nas muralhas de Correrrio, Que Lorde Tywin Lannister marchava sobre o Ninho da Águia, queimando e matando tudo à sua passagem. Um contador de histórias encharcado de vinho até afirmara que Rhaegar Targaryen regressara dos mortos e liderava uma vasta tropa de antigos heróis contra Pedra do Dragão para reclamar o trono do pai.
Quando o corvo chegara, trazendo uma carta marcada com o selo do pai e escrita com a letra de Sansa, a verdade cruel não parecera menos incrível. Bran nunca se esqueceria da expressão de Robb quando vira as palavras da irmã.
- Ela diz que nosso pai conspirou para cometer traição com os irmãos do rei - lera. - O Rei Robert está morto, e a mãe e eu somos convocados à Fortaleza Real para jurar fidelidade a Joffrey. Diz que devemos ser leais e que, quando casar com Joffrey, suplicará a ele que poupe a vida do senhor nosso pai - seus dedos fecharam-se em punho, esmagando a carta de Sansa. - E nada diz de Arya, nada, nem uma única palavra. Maldita seja! Que se passa com ela?
Bran sentira-se completamente frio por dentro.
- Perdeu seu lobo - ele respondeu, a voz fraca, recordando o dia em que quatro dos guardas do pai tinham regressado do sul com os ossos de Lady. Verão, Vento Cinzento e Cão Felpudo tinham começado a uivar antes de eles atravessarem a ponte levadiça, com sons arrastados e desolados. A sombra da Primeira Torre ficava um antigo cemitério, com as lajes semeadas de liquens, onde os antigos Reis do Inverno tinham enterrado seus criados fiéis. Lady fora enterrada ali, enquanto os irmãos caminhavam por entre as tumbas como sombras inquietas. Partira para o sul, mas só os ossos tinham regressado.
O avô, o velho Lorde Rickard, também partira, com o filho Brandon, que era irmão do seu pai, e duzentos de seus melhores homens. Nenhum regressara. E o pai fora para o sul, com Arya e Sansa, e Jory, Hullen, Gordo Tom e os outros, e mais tarde a mãe e Sor Rodrik tinham partido, e eles também não tinham regressado. E agora era Robb quem queria partir.
Não para Porto Real, e não para jurar fidelidade, mas para Correrrio, com uma espada na mão. E se o senhor pai de ambos fosse de fato prisioneiro, isso significaria com certeza a sua morte. Assustava Bran mais do que era capaz de exprimir.
- Se Robb tem de ir, olhem por ele - suplicou Bran aos deuses antigos enquanto o observavam com os olhos vermelhos da árvore-coração - e olhem pelos seus homens, por Hal, Quent e os outros, e por Lorde Umber, pela Senhora Mormont e pelos outros senhores. E também por Theon, acho. Observem e os mantenham a salvo, se vos agradar, deuses. Ajudem-nos a derrotar os Lannister e a salvar meu pai, e a trazê-lo para casa.
Um leve vento suspirou pelo bosque sagrado e as folhas vermelhas agitaram-se e sussurraram. Verão mostrou os dentes.
- Pode ouvi-los, rapaz? - perguntou uma voz.
Bran ergueu a cabeça. Osha estava em pé do outro lado da lagoa, sob um antigo carvalho, com o rosto obscurecido por folhas. Mesmo presa a grilhões, a selvagem movia-se silenciosamente como uma gata. Verão deu a volta na lagoa e a farejou. A mulher alta vacilou.
- Verão, a mim - chamou Bran. O lobo selvagem fungou uma última vez, girou sobre si mesmo e voltou. Bran enrolou os braços nele. - Que faz aqui? - não tinha visto Osha desde a sua captura na Mata de Lobos, embora soubesse que a tinham posto para trabalhar nas cozinhas.
- Também são os meus deuses - Osha disse. - Para lá da Muralha, são os únicos deuses - os cabelos estavam crescendo, castanhos e desgrenhados. Faziam-na parecer mais feminina, isto e o vestido simples de ráfia marrom que lhe tinham dado quando lhe tiraram a cota de malha e a roupa de couro. - Gage deixa-me orar de vez em quando, quando sinto falta, e eu o deixo fazer o que quiser debaixo da minha saia quando sente falta. Para mim não significa nada. Gosto do cheiro da farinha em suas mãos, e é mais gentil que o Stiv - fez uma reverência desajeitada. - Vou deixá-lo só. Há panelas que precisam ser esfregadas.
- Não, fique - ordenou-lhe Bran. - Explique-me o que queria dizer com ouvir os deuses.
Osha o estudou.
- Você fez um pedido e eles estão respondendo. Abra os ouvidos, escute, e ouvirá.
Bran escutou.
- É só o vento - disse após um momento, inseguro. - As folhas estão batendo.
- Quem você pensa que envia o vento, se não os deuses? - ela sentou do outro lado da lagoa, tilintando levemente enquanto se movia. Mikken prendera grilhetas de ferro em seus tornozelos, com uma corrente pesada entre elas; podia caminhar, desde que mantivesse os passos pequenos, mas não havia chance de correr, de subir ou de montar um cavalo. - Eles o veem, rapaz. Ouvem-no falar. Esse bater? Isso são eles respondendo.
- Que estão dizendo?
- Estão tristes. O senhor seu irmão não terá sua ajuda no lugar para onde vai. Os velhos deuses não têm poder no Sul. Lá, os represeiros foram todos derrubados há milhares de anos. Como poderiam vigiar seu irmão se não têm olhos?
Bran não tinha pensado naquilo. E ficou assustado. Se nem mesmo os deuses podiam ajudar o irmão, que esperança havia? Talvez Osha não estivesse ouvindo corretamente. Inclinou a cabeça e tentou escutar de novo. Julgou conseguir ouvir agora a tristeza, mas nada além disso. O bater das folhas tornou-se mais sonoro. Bran ouviu passos abafados e um cantarolar em voz baixa, e Hodor saiu desajeitadamente por entre as árvores, sorrindo e nu.
- Hodor!
- Deve ter ouvido as nossas vozes - disse Bran. - Hodor, esqueceu a roupa.
- Hodor - o gigante concordou. Estava encharcado do pescoço para baixo, fumegando no ar gelado. Tinha o corpo coberto de pelos castanhos, espessos como os da pele de um animal. Entre as pernas, o membro viril pendia, longo e pesado, Osha o olhou com um sorriso azedo.
- Ora, aí está um homem grande - disse. - Se não tem nele o sangue dos gigantes, eu sou a rainha.
- Meistre Luwin diz que já não há gigantes. Diz que estão todos mortos, como os filhos da floresta. Tudo o que resta deles são velhos ossos que os homens desenterram com arados de quando em quando.
- Que Meistre Luwin viaje até para lá da Muralha - Osha rebateu. - Encontrará então gigantes, ou será encontrado por eles. Meu irmão matou uma. Tinha três metros de altura, e mesmo assim era enfezada. Sabe-se que crescem até três metros e meio ou quatro metros. E também são criaturas ferozes, todas pelos e dentes, e as mulheres têm barbas como os maridos, de modo que não há como os distinguir. As mulheres tomam homens humanos como amantes, e é daí que vêm os mestiços. É mais duro para as mulheres que eles apanham. Os homens são tão grandes que mais depressa rasgam uma donzela em duas do que a deixam com bebê - deu-lhe um sorriso. - Mas você não sabe do que falo, não é, rapaz?
- Sei, sim - Bran insistiu. Compreendia o acasalamento; vira os cães no pátio, e observara um garanhão montando uma égua. Mas falar disso o deixava desconfortável. Olhou para Hodor.
- Volte e traga sua roupa, Hodor - ele ordenou. - Vá-se vestir.
- Hodor - o simplório voltou pelo caminho de onde tinha vindo, abaixando-se para passar sob um ramo baixo de uma árvore.
Ele era muitíssimo grande, pensou Bran enquanto o observava partir.
- Há mesmo gigantes para lá da Muralha? - perguntou a Osha, incerto.
- Há gigantes e coisas piores que gigantes, senhorzinho. Tentei dizer a seu irmão quando me interrogou, a ele, ao seu meistre e àquele rapaz sorridente, Greyjoy. Os ventos frios estão se levantando, e homens afastam-se de seus fogos e nunca mais regressam... ou, quando regressam, já não são homens, são só criaturas, com olhos azuis e mãos frias e negras. Por que você pensa que fugi para o sul com Stiv, Hali e o resto daqueles idiotas? Mance acha que vai lutar, o bravo, querido, teimoso do homem, como se os caminhantes brancos não fossem mais que patrulheiros. Mas, que sabe ele? Ele pode chamar a si próprio Rei-para-lá-da-Muralha se bem entender, mas ainda é apenas mais um dos velhos corvos negros que fugiram da Torre Sombria. Nunca experimentou o inverno. Eu nasci lá em cima, filho, tal como a minha mãe e a mãe dela antes dela, e a mãe dessa antes dela, nascida entre o Povo Livre. Nós recordamos - Osha pôs-se em pé, fazendo tinir as correntes. - Tentei dizer ao senhorzinho seu irmão. Ontem mesmo, quando o encontrei no pátio. "Senhor Stark", chamei, com todo o respeito, mas ele olhou através de mim, e aquele imbecil suado do Grande-Jon Umber afastou-me de seu caminho. Assim seja. Usarei meus ferros e terei tento na língua. Um homem que não quer escutar não pode ouvir.
- Diga-me. Robb me escutará, eu sei que sim.
- Será? Veremos. Diz isto a ele, senhor. Diz que ele está decidido a marchar na direção errada. É para o norte que ele devia levar suas espadas. Para o norte, não para o sul. Está me ouvindo?
Bran anuiu.
- Direi a ele.
Mas naquela noite, durante o banquete no Grande Salão, Robb não se encontrava lá. Em vez disso, fez sua refeição no aposento privado, com Lorde Rickard, Grande-Jon e os outros senhores vassalos, a fim de preparar os últimos planos para a longa marcha que se aproximava. Bran ficou com a tarefa de ocupar o seu lugar à cabeceira da mesa e agir como anfitrião perante os filhos e amigos de honra de Lorde Karstark. Já estavam em seus lugares quando Hodor o transportou às costas para o salão e ajoelhou ao lado do cadeirão. Dois dos criados ajudaram a erguê-lo do cesto, Bran conseguia sentir os olhos de todos os estranhos presentes no salão. O silêncio se fizera.
- Senhores - anunciou Hallis Mollen - Brandon Stark, de Winterfell.
- Dou-lhes as boas-vindas às nossas fogueiras - disse Bran rigidamente - e ofereço-lhes comida e bebida em honra da nossa amizade.
Harrion Karstark, o mais velho dos filhos de Lorde Karstark, fez uma reverência, e os irmãos seguiram o seu exemplo, mas, enquanto se instalavam em seus lugares, ouviu os dois mais novos conversando em voz baixa sobre o tinir de taças de vinho.
- ... preferia morrer a viver assim - murmurou um deles, o que tinha o nome do pai, Eddard, e o irmão Torrhen disse que era provável que o rapaz fosse tão quebrado por dentro como por fora, covarde demais para tirar a própria vida.
Quebrado, Bran pensou amargamente enquanto se agarrava à faca. Seria isso agora? Bran, o Quebrado?
- Não quero ser quebrado - sussurrou com veemência a Meistre Luwin, que estava sentado à sua direita. - Quero ser um cavaleiro.
- Há quem chame à nossa Ordem os cavaleiros da mente - respondeu Luwin. - É um rapaz extremamente inteligente quando se esforça, Bran. Alguma vez pensou na possibilidade de usar uma corrente de meistre? Não há limite para o que pode aprender.
- Quero aprender magia - disse-lhe Bran. - O corvo prometeu que eu voaria.
Meistre Luwin suspirou.
- Posso ensinar história, artes de curar, as ervas. Posso ensinar a língua dos corvos, e como construir um castelo, e o modo como um marinheiro orienta o navio pelas estrelas. Posso ensinar a medir os dias e a marcar a passagem das estações, e na Cidadela, em Vilavelha, podem lhe ensinar outras mil coisas. Mas, Bran, ninguém pode lhe ensinar magia.
- Os filhos podiam - Bran respondeu. - Os filhos da floresta - aquilo lhe lembrou a promessa que fizera a Osha no bosque sagrado, e contou a Luwin o que ela dissera.
Meistre o ouviu educadamente.
- Parece-me que a selvagem podia dar lições de contar histórias à Velha Ama - ele disse quando Bran terminou. - Voltarei a falar com ela, se desejar, mas seria melhor se não incomodasse seu irmão com esta loucura. Ele tem preocupações mais que suficientes sem se aborrecer com gigantes e mortos na floresta. São os Lannister que têm o senhor seu pai cativo, Bran, não os filhos da floresta - pousou a mão gentil no braço de Bran. - Pense no que eu disse, menino.
Dois dias mais tarde, enquanto uma alvorada vermelha surgia num céu varrido pelo vento, Bran deu por si no pátio junto ao portão, atado à Dançarina, enquanto se despedia do irmão.
- Você é agora senhor de Winterfell - disse-lhe Robb. Estava montado num hirsuto garanhão cinzento, com o escudo pendurado no seu flanco; madeira reforçada a ferro, branca e cinzenta, com o desenho de uma cabeça de um lobo gigante a rosnar. O irmão de Bran usava cota de malha cinza sobre couros branqueados, uma espada e um punhal à cintura, um manto debruado de pele sobre os ombros. - Você tem de ocupar o meu lugar, como ocupei o do nosso pai, até regressarmos.
- Eu sei - respondeu Bran em tom infeliz. Nunca se sentira tão pequeno, tão só ou tão assustado. Não sabia como ser um senhor.
- Escute os conselhos de Meistre Luwin e tome conta de Rickon. Diga a ele que volto assim que a luta acabar.
Rickon recusara-se a descer. Estava lá em cima, em seu quarto, de olhos vermelhos e rebelde.
- Não! - gritara quando Bran lhe perguntara se não queria dizer adeus a Robb. - Adeus, não!
- Eu lhe disse - Bran respondeu. - Ele diz que nunca ninguém regressa.
- Não pode ser um bebê para sempre. É um Stark, e tem quase quatro anos - Robb suspirou. - Bem, nossa mãe estará em casa em breve. E eu trarei nosso pai, prometo.
Deu meia-volta com o cavalo e afastou-se a trote. Vento Cinzento o seguiu, saltitando ao lado do cavalo de guerra, esbelto e ligeiro. Hallis Mollen atravessou o portão à frente da coluna, transportando a ondulante bandeira branca da Casa Stark no topo de um grande poste de freixo cinzento. Theon Greyjoy e Grande-Jon puseram-se ao lado de Robb, e seus cavaleiros formaram uma coluna dupla atrás deles, com lanças de ponta de aço brilhando ao sol.
De um modo desconfortável recordou as palavras de Osha, Ele marcha na direção errada, pensou. Por um instante quis galopar atrás dele e gritar o aviso, mas quando Robb desapareceu sob a porta levadiça o momento passou, Para lá das muralhas do castelo ergueu-se um rugido. Bran sabia que os soldados apeados e os habitantes da vila saudavam Robb enquanto ele passava; saudavam Lorde Stark, o Senhor de Winterfell no seu grande garanhão, com seu manto ondulante e Vento Cinzento, que corria ao seu lado. Compreendeu com uma dor surda que nunca o saudariam daquele modo. Ele podia ser Senhor de Winterfell enquanto o irmão e o pai estivessem ausentes, mas era ainda Bran, o Quebrado. Nem sequer podia sair de cima do cavalo se não fosse para cair.
Depois de as saudações distantes se reduzirem ao silêncio, e o pátio ficar por fim vazio, Winterfell pareceu deserto e morto. Bran olhou em redor, para o rosto dos que ficaram, mulheres, crianças e velhos... e Hodor. O enorme cavalariço tinha uma expressão perdida e assustada no rosto.
- Hodor? - disse ele, com voz triste.
- Hodor - concordou Bran, perguntando a si mesmo que significado teria aquilo.  

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