sábado, 14 de setembro de 2013

60 - SANSA


Os archotes cintilavam brilhantemente no metal martelado das arandelas das paredes, enchendo o Salão de Baile da Rainha com uma luz prateada. Mas ainda havia escuridão ali. Sansa via-a nos olhos claros de Sor Ilyn Payne, que estava em pé junto à porta dos fundos, imóvel como pedra, sem ingerir nem comida nem bebida. Ouvia-a na torturante tosse de Lorde Gyles e na voz segredada de Osney Kettleblack quando entrava para trazer as notícias a Cersei.
Sansa terminava seu caldo de carne quando ele entrou da primeira vez, pelos fundos. Viu-o de relance conversando com o irmão Osfryd. Então, ele subiu ao estrado e se ajoelhou ao lado do cadeirão, cheirando a cavalo, com quatro longos arranhões na face cobertos por crostas de sangue, e com um cabelo que caía abaixo do colarinho e sobre os olhos. Apesar de todo o segredo, Sansa não pôde evitar ouvir suas palavras.
- As frotas estão travando batalha. Alguns arqueiros chegaram à margem, mas Cão de Caça os destroçou, Vossa Graça. Seu irmão está içando a corrente, ouvi o sinal. Alguns bêbados na Baixada das Pulgas andam arrombando portas e entrando nas casas pelas janelas. Lorde Bywater enviou os mantos dourados para lidar com eles. O Septo de Baelor está apinhado, com todo mundo rezando.
- E o meu filho?
- O rei foi a Baelor para obter a bênção do Alto Septão. Agora patrulha as muralhas com a Mão, dizendo aos homens para terem coragem, levantando o moral, por assim dizer.
Cersei acenou ao pajem por outra taça de vinho, uma safra de ouro da Árvore, frutada e rica. A rainha estava bebendo muito, mas o vinho só parecia torná-la mais bela; tinha as faces coradas, e nos olhos, um calor brilhante e febril ao ver o salão. Olhos de fogovivo, Sansa pensou.
Músicos tocaram, malabaristas fizeram malabarismos. O Rapaz Lua cambaleou pelo salão sobre pernas de pau, caçoando de todo mundo, enquanto Sor Dontos perseguia criadas montado em seu cavalo de cabo de vassoura. Os convidados riam, mas eram risos sem alegria, o tipo de riso que pode se transformar em soluços em meio segundo. Têm os corpos aqui, mas os pensamentos estão nas muralhas da cidade, e os corações também.
Depois do caldo foi servida uma salada de maçãs, nozes e passas. Em qualquer outra altura, poderia ter sido um prato saboroso, mas naquela noite toda a comida trazia um gosto de medo. Sansa não era a única sem apetite no salão. Lorde Gyles tossia mais do que comia; Lollys Stokeworth estava sentada, encurvada e tremendo; e a jovem noiva de um dos cavaleiros de Sor Lancei desatou a chorar incontrolavelmente. A rainha ordenou ao Meistre Frenken que a pusesse na cama com uma taça de vinho dos sonhos.
- Lágrimas - Cersei disse a Sansa em tom de escárnio enquanto a mulher era levada do salão. - A senhora minha mãe costumava chamá-las de arma da mulher. A arma do homem é uma espada. E isso diz tudo o que temos de saber, não é verdade?
- Mas os homens têm de ser muito corajosos - Sansa retrucou. - Para sair a cavalo e enfrentar espadas e machados, com todos tentando matá-los...
- Jaime disse-me um dia que só se sentia realmente vivo em batalha e na cama - levantou a taça e bebeu um longo trago. Não tinha tocado na salada. - Preferiria enfrentar qualquer número de espadas a ficar aqui assim, impotente, fingindo desfrutar da companhia desse bando de galinhas assustadas.
- Convidou-os a vir, Vossa Graça.
- Há certas coisas que se esperam de uma rainha. Serão esperadas de você, se vier a se casar com Joffrey. E melhor que aprenda - a rainha estudou as esposas, filhas e mães que enchiam os bancos. - Em si mesmas, as galinhas não são nada, mas seus galos são importantes por um motivo ou por outro, e alguns poderão sobreviver a essa batalha. Portanto, compete-me dar às suas mulheres minha proteção. Se o miserável anão do meu irmão conseguir de algum modo vencer, elas voltarão aos seus maridos e pais cheias de histórias sobre como fui brava, como minha coragem as inspirou e melhorou seus ânimos, como não duvidei de nossa vitória nem sequer por um momento.
- E se o castelo cair?
- Gostaria que isso acontecesse, não é verdade? - Cersei não esperou uma negativa. - Se não for traída por meus próprios guardas, talvez consiga aguentar aqui durante algum tempo. Então poderei ir até as muralhas e oferecer, em pessoa, a rendição a Lorde Stannis. Isso vai nos poupar do pior. Mas se a Fortaleza de Maegor cair antes que Stannis consiga chegar à cidade... diria que, nesse caso, a maior parte de minhas convidadas deve se preparar para uma pitada de estupro. E não se deve excluir a mutilação, a tortura e o assassinato em tempos como este.
Sansa estava horrorizada:
- Mas são mulheres, desarmadas e de alto nascimento.
- Seu nascimento as protege - Cersei admitiu - embora não tanto quanto possa pensar. Cada uma vale um bom resgate, mas depois da loucura da batalha, os soldados parecem muitas vezes preferir a carne ao dinheiro. Mesmo assim, um escudo dourado é melhor do que nenhum. Lá fora, nas ruas, as mulheres não serão tratadas, nem de perto, com tanta ternura. Nem as nossas criadas. Coisinhas bonitas como aquela criada da Senhora Tanda podem estar reservadas para uma noite animada, mas não pense que as velhas, as enfermas e as feias serão poupadas. Bebida suficiente pode fazer com que lavadeiras cegas e criadoras de porcos fedorentas pareçam tão agradáveis quanto você, querida.
- Eu?
- Tente não soar tanto como um rato, Sansa. Agora é uma mulher, esqueceu-se? E prometida ao meu primogênito - a rainha bebericou de seu vinho - Se estivesse qualquer outro aos portões, podia ter esperança de seduzi-lo. Mas esse homem é Stannis Baratheon. Teria mais esperança de seduzir seu cavalo - reparou na expressão de Sansa e soltou uma gargalhada. - Choquei-a, senhora? - aproximou-se. - Sua tolinha. As lágrimas não são a única arma de uma mulher. Tem outra entre as pernas, e é melhor que aprenda a usá-la. Irá descobrir que os homens usam as espadas com bastante desprendimento. Ambos os tipos de espada.
Sansa foi poupada da necessidade de responder quando os dois Kettleblack reentraram no salão. Sor Osmund e os irmãos tinham se transformado em grandes favoritos no castelo; estavam sempre prontos com um sorriso e um gracejo, e davam-se tão bem com palafreneiros e caçadores como com cavaleiros e escudeiros. Segundo diziam os mexericos, era com as criadas que se davam melhor. Nos últimos tempos, Sor Osmund tinha tomado o lugar de Sandor Clegane ao lado de Joffrey, e Sansa ouvira as mulheres no poço das lavagens dizerem que ele era tão forte como o Cão de Caça, só que mais jovem e mais rápido. Se assim era, perguntava a si mesma por que nunca tinha ouvido falar daqueles Kettleblack antes de Sor Osmund ser nomeado para a Guarda Real.
Osney era todo sorrisos quando se ajoelhou ao lado da rainha.
- Os cascos incendiaram-se, Vossa Graça. Toda a Água Negra está inundada de fogovivo. Há uma centena de navios ardendo, talvez mais.
- E o meu filho?
- Está no Portão da Lama com a Mão e a Guarda Real, Vossa Graça. Já falou com os arqueiros nas paliçadas e deu-lhes alguns conselhos sobre o manuseio de uma besta, deu sim. Todos dizem que é um rapaz reto e bravo.
- É bom que permaneça um rapaz reto e vivo - Cersei virou-se para o irmão de Osney, Osfryd, que era mais alto, mais severo, e usava um bigode preto e pendente. - Sim?
Osfryd colocara um meio elmo de aço sobre seu longo cabelo negro, e a expressão em seu rosto era sombria.
- Vossa Graça - disse em voz baixa - os rapazes apanharam um palafreneiro e duas criadas tentando escapulir por uma porta falsa com três dos cavalos do rei.
- Os primeiros traidores da noite - a rainha disse - mas temo que não serão os últimos. Mande Sor Ilyn cuidar deles, e coloque suas cabeças em espigões à porta dos estábulos como aviso - enquanto os irmãos saíam, virou-se para Sansa: - Outra lição que devia aprender, se tem esperança de se sentar no trono ao lado de meu filho. Se for branda numa noite como esta, terá traição estourando por toda a sua volta, como cogumelos depois de uma chuva forte. A única maneira de manter seu povo leal é assegurando-se de que a temem mais do que ao inimigo.
- Vou me lembrar, Vossa Graça - Sansa respondeu, se bem que sempre tivesse ouvido dizer que o amor era um caminho mais seguro para a lealdade do povo do que o medo. Se chegar a ser uma rainha, farei com que me amem.
Empadões de pata de siri seguiram-se à salada. Depois veio carneiro assado com alho-poró e cenoura, servido em tabuleiros de casca de pão. Lollys comeu depressa demais, ficou enjoada e vomitou por cima de si e da irmã. Lorde Gyles tossiu, bebeu, tossiu, bebeu e desmaiou. A rainha fitou com repugnância o local onde ele jazia, com o rosto enfiado no tabuleiro e a mão numa poça de vinho.
- Os deuses deviam estar loucos para desperdiçar virilidade em homens como ele; e eu devia estar louca quando exigi sua libertação.
Osfryd Kettleblack regressou, fazendo rodopiar o manto carmim.
- Há povo juntando-se na praça, Vossa Graça, pedindo refúgio no castelo. Não é uma multidão, são comerciantes ricos e gente assim.
- Ordene-lhes que voltem às suas casas - disse a rainha. - Se não forem, ordene que seus besteiros matem alguns. Nada de surtidas; não quero os portões abertos por nenhum motivo.
- Às suas ordens - ele fez uma reverência e saiu.
O rosto da rainha mostrava-se duro e irritado.
- Bem que eu gostaria de levar uma espada aos seus pescoços pessoalmente - a voz de Cersei começava a ficar mole. - Quando pequenos, Jaime e eu éramos tão parecidos que até nosso pai não nos conseguia distinguir. Às vezes, para fazer graça, vestíamos a roupa um do outro e passávamos um dia inteiro como o outro. Mas, mesmo assim, quando deram a Jaime a primeira espada, não havia nenhuma para mim. "O que eu ganho?", lembro-me de ter perguntado. Éramos tão parecidos que nunca entendi por que nos tratavam de forma tão diferente. Jaime aprendeu a lutar com espadas, lanças e maças, enquanto eu fui ensinada a sorrir, cantar e agradar. Ele era herdeiro de Rochedo Casterly, enquanto eu estava destinada a ser vendida a um estranho qualquer como se fosse um cavalo, para ser montada sempre que meu novo dono quisesse, espancada sempre que ele desejasse, e, com o tempo, posta de lado em favor de uma potra mais nova. O destino de Jaime seria a glória e o poder, enquanto o meu era o parto e o sangue da lua.
- Mas foi rainha de todos os Sete Reinos - Sansa lhe disse.
- Quando se trata de espadas, uma rainha é só uma mulher, no fim das contas - a taça de vinho de Cersei estava vazia. Um pajem fez tenção de voltar a enchê-la, mas ela se virou e sacudiu a cabeça. - Mais não. Tenho de manter a cabeça limpa.
O último prato foi queijo de cabra servido com maçãs cozidas. O odor da canela encheu o salão no momento em que Osney Kettleblack entrou para ir se ajoelhar mais uma vez entre as duas.
- Vossa Graça - murmurou. - Stannis desembarcou homens no terreiro dos torneios, e há mais atravessando o rio. O Portão da Lama está sob ataque, e trouxeram um aríete até o Portão do Rei. O Duende saiu para repeli-los.
- Isso vai enchê-los de medo - a rainha disse secamente. - Não levou Joff, espero.
- Não, Vossa Graça, o rei está com o meu irmão nas Rameiras, atirando Homens Chifrudos ao rio.
- Com o Portão da Lama sendo assaltado? Loucura. Diga a Sor Osmund que eu o quero aqui imediatamente, é perigoso demais. Traga-o de volta ao castelo.
- O Duende disse...
- É o que eu digo que devia lhe interessar - os olhos de Cersei estreitaram-se. - Seu irmão fará o que lhe é dito, caso contrário tratarei de que seja ele a liderar a próxima surtida, e você irá com ele.
Depois de os pratos terem sido levados, muitos dos convidados pediram licença para ir ao septo. Cersei concedeu-lhes o pedido com benevolência. A Senhora Tanda e as filhas estavam entre os que partiram. Para os que ficaram, foi trazido um cantor, a fim de encher o salão com a doce música da harpa vertical, Cantou sobre Jonquil e Florian, sobre o Príncipe Aemon, o Cavaleiro do Dragão e seu amor pela rainha do irmão, sobre os dez mil navios de Nymeria. Eram belas canções, mas terrivelmente tristes. Várias das mulheres começaram a chorar, e Sansa sentiu que seus olhos também se umedeciam.
- Muito bem, querida - a rainha inclinou-se para mais perto. - Vai querer treinar essas lágrimas. Vai precisar delas para o Rei Stannis.
Sansa mexeu-se nervosamente na cadeira.
- Vossa Graça?
- Oh, poupe-me de suas cortesias ocas. As coisas devem ter chegado a uma dificuldade desesperadora lá fora se precisam que um anão os lidere, portanto, pode perfeitamente tirar a máscara. Sei tudo sobre as suas traiçõezinhas no bosque sagrado.
- O bosque sagrado? - não olhe para Sor Dontos, não olhe, não olhe, disse Sansa a si mesma. Ela não sabe, ninguém sabe, Dontos prometeu, meu Florian nunca me decepcionaria. - Não cometi nenhuma traição. Só visito o bosque sagrado para rezar.
- Por Stannis. Ou pelo seu irmão, dá na mesma. Por que outro motivo procuraria os deuses de seu pai? Reza pela nossa derrota. Do que chamaria isso se não for traição?
- Rezo por Joffrey - ela insistiu nervosamente.
- Por quê? Por causa da gentileza com que a trata? - a rainha tirou um jarro de vinho doce de ameixa de uma criada que passava e encheu a taça de Sansa. - Beba - ordenou friamente. - Talvez lhe dê coragem para lidar com a verdade, para variar.
Sansa levou a taça aos lábios e bebeu um pequeno gole. O vinho era enjoativamente doce, mas muito forte.
- Pode fazer melhor do que isso - Cersei a desafiou. - Esvazie a taça, Sansa. É a sua rainha que ordena.
Sansa quase quis vomitar, mas esvaziou a taça, emborcando o espesso vinho doce até ficar com a cabeça flutuando.
- Mais? - Cersei perguntou.
- Não. Por favor.
A rainha pareceu aborrecida:
- Quando perguntou há pouco acerca de Sor Ilyn, menti para você. Quer ouvir a verdade, Sansa? Quer saber o motivo real de sua presença aqui?
Sansa não se atreveu a responder, mas não importava. A rainha ergueu uma mão e chamou, sem esperar resposta. Sansa nem sequer tinha visto Sor Ilyn regressar ao salão, mas de repente ali estava, saindo das sombras por trás do estrado, silencioso como um gato. Trazia Gelo desembainhada.
Sansa recordou que o pai limpava sempre a lâmina no bosque sagrado depois de cortar a cabeça de um homem, mas Sor Ilyn não era tão exigente. Havia sangue secando no aço ondulado, já com o vermelho transformando-se em marrom.
- Diga à Senhora Sansa por que o mantenho junto a nós - a rainha ordenou.
Sor Ilyn abriu a boca e emitiu um chocalhar sufocado. Seu rosto marcado pelas bexigas não tinha expressão.
- Ele diz que está aqui por nós - disse a rainha. - Stannis pode tomar a cidade e pode capturar o trono, mas eu não tolerarei que me julgue. Não pretendo que nos capture vivas.
- Nos?
- Ouviu o que eu disse. Portanto, talvez seja melhor voltar a rezar, Sansa, e por outro resultado. Os Stark não obterão nenhuma alegria da queda da Casa Lannister, prometo - estendeu a mão e tocou o cabelo de Sansa, afastando-o delicadamente de seu pescoço.  

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