À porta
da estalagem, pendurados em uma forca desgastada pelas intempéries,
os ossos de uma mulher torciam-se e chocalhavam a cada rajada de
vento.
Conheço
esta estalagem. Mas não havia forca à porta quando tinha dormido
ali com a irmã Sansa, sob o olhar vigilante da Septã Mordane.
- Não
queremos entrar - decidiu subitamente Arya pode haver fantasmas.
- Sabe
quanto tempo passou desde que eu bebi uma taça de vinho? - Sandor
saltou da sela. - Além do mais, temos de ficar sabendo quem controla
o vau rubi. Fique com os cavalos se quiser, por mim tô cagando.
- E se o
reconhecerem? - Sandor já não se incomodava em esconder o rosto. Já
não parecia se importar com quem o reconhecesse. - Podem querer
prendê-lo.
- Que
experimentem. - Soltou a espada na bainha e empurrou a porta.
Arya
nunca teria melhor oportunidade de fugir. Podia se afastar, montada
na Covarde, e levar também o Estranho. Mordeu o lábio. Então levou
os cavalos para os estábulos e entrou atrás dele. Eles conhecem-no.
Foi o silêncio que lhe contou. Mas isso não era o pior. Ela também
os conhecia. Não o estalajadeiro magricela, nem as mulheres, nem os
trabalhadores rurais que estavam junto da lareira. Mas os outros. Os
soldados. Ela conhecia os soldados.
-
Procurando o seu irmão, Sandor? - a mão de Polliver estivera
enfiada no corpete da moça que tinha no colo, mas agora a havia
tirado para fora.
-
Procurando uma taça de vinho. Estalajadeiro, um jarro de tinto. -
Clegane atirou um punhado de moedas de cobre para o chão.
- Não
quero problemas, sor - disse o estalajadeiro.
- Então
não me chame de sor - Sua boca torceu-se - Está surdo, idiota? Pedi
vinho. - Quando o homem fugiu, Clegane gritou às suas costas. - Duas
taças! A garota também tem sede!
Eles são
só três, pensou Arya. Polliver deu-lhe um breve relance e o rapaz
que estava a seu lado nem chegou a olhá-la, mas o terceiro fitou-a
longa e duramente. Era um homem de altura e constituição medianas,
com um rosto tão comum que era difícil saber que idade tinha. O
Cócegas. Cócegas e Polliver juntos. O rapaz era um escudeiro,
julgando pela idade e pelo vestuário. Tinha uma grande espinha
branca junto ao nariz e algumas vermelhas na testa.
- Este é
o cachorro perdido de que Sor Gregor falou? - perguntou ao Cócegas -
Aquele que fez xixi nas esteiras e fugiu?
Cócegas
apoiou uma mão no braço do rapaz, num aviso, e sacudiu vivamente a
cabeça. Arya compreendeu aquilo com bastante clareza.
Mas o
escudeiro não, ou então não se importou.
- Sor
disse que o seu irmão cachorro enfiou o rabo entre as pernas quando
a batalha esquentou demais em Porto Real. Disse que fugiu ganindo. -
Dirigiu ao Cão de Caça um estúpido sorriso de zombaria.
Clegane
estudou o rapaz e não disse palavra. Polliver tirou rudemente a moça
de cima de si e pôs-se em pé.
- O moço
tá bêbado - disse. O homem de armas era quase tão alto quanto o
Cão de Caça, embora não fosse tão musculoso. Uma barba
arredondada cobria-lhe o queixo e as maxilas, espessa, negra e bem
cortada, mas a cabeça estava mais calva do que coberta. - Ele não
aguenta o vinho, é só isso.
- Então
não devia beber.
- O
cachorro não assusta... - começou o rapaz, mas o Cócegas torceu
casualmente sua orelha entre o indicador e o polegar. As palavras
transformaram-se num guincho de dor.
O
estalajadeiro retornou apressadamente, trazendo duas taças de pedra
e um jarro numa bandeja de peltre. Sandor levou o jarro à boca. Arya
via os músculos do pescoço dele trabalhando enquanto engolia.
Quando bateu com ele na mesa, metade do vinho tinha desaparecido.
- Agora
já pode servir. E é melhor que apanhe aqueles cobres, que são as
únicas moedas que deve ver hoje.
- Nós
pagaremos quando acabarmos de beber - disse Polliver.
- Quando
acabar de beber, vai fazer cócegas no estalajadeiro para saber onde
ele guarda o ouro. Como faz sempre.
O
estalajadeiro lembrou-se de repente de algo que tinha na cozinha. Os
homens da terra também estavam saindo, e as garotas já tinham
desaparecido. O único som que se ouvia na sala comum era o tênue
crepitar do fogo na lareira. Também devíamos ir embora, compreendeu
Arya.
- Se anda
à procura do Sor, vem tarde demais - disse Polliver. - Ele esteve em
Harrenhal, mas já não está. A rainha mandou buscá-lo. - Arya viu
que o homem trazia três lâminas à cintura; uma espada longa na
anca esquerda e na direita um punhal e uma lâmina mais esguia, longa
demais para ser uma adaga e curta demais para ser uma espada. - O Rei
Joffrey está morto, sabe? - acrescentou. - Envenenado durante o
banquete do próprio casamento.
Arya
penetrou um pouco mais na sala. Joffrey está morto. Quase conseguia
vê-lo, com os caracóis louros, o sorriso maldoso e os lábios
grossos e moles .Joffrey está morto! Sabia que aquilo devia deixá-la
feliz, mas de algum modo ainda se sentia vazia por dentro. Joffrey
estava morto, mas se Robb também estava, que importava?
- Lá se
foram os meus bravos irmãos da Guarda Real. - Cão de Caça soltou
uma fungada de desprezo. - Quem foi que o matou?
- O
Duende, pensam. Ele e a mulherzinha.
- Que
mulher?
-
Esquecia-me de que tem estado escondido debaixo de uma pedra. A
nortenha. A filha de Winterfell. Ouvimos dizer que ela matou o rei
com um feitiço e que depois se transformou num lobo com grandes asas
de couro, como as de um morcego, e voou por uma janela de torre. Mas
deixou o anão para trás e Cersei quer cortar a cabeça dele.
Isso é
estúpido, pensou Arya. Sansa só sabe canções, e não feitiços, e
nunca casaria com o Duende.
Cão de
Caça sentou-se no banco mais próximo da porta. Sua boca torceu-se,
mas só do lado queimado.
- Ela
devia mergulhá-lo em fogovivo e cozê-lo. Ou fazer-lhe cócegas até
a lua ficar negra. - Ergueu a taça de vinho e esvaziou-a de uma só
vez.
Ele é um
deles, pensou Arya quando viu aquilo. Mordeu o lábio com tanta força
que sentiu o gosto do sangue. É igualzinho a eles. Devia matá-lo
quando dormisse.
- Então
Gregor tomou Harrenhal? - disse Sandor.
- Não
foi preciso tomar muito - disse Polliver. - Os mercenários fugiram
assim que souberam que estávamos a caminho, todos menos uns poucos.
Um dos cozinheiros abriu uma poterna para a gente entrar, para se
vingar de Hoat por lhe ter cortado o pé. - Soltou um risinho. -
Ficamos com ele para cozinhar para nós, umas meninas para aquecer
nossas camas e passamos todos os outros pela espada.
- Todos
os outros? - disse Arya antes de conseguir se segurar.
- Bem, o
Sor ficou com Hoat como passatempo.
Sandor
disse:
- O Peixe
Negro ainda está em Correrrio?
- Não
por muito tempo - disse Polliver. - Está cercado. O velho Frey vai
enforcar Edmure Tully se ele não entregar o castelo. O único local
onde se luta a sério é em volta de Corvarbor. Os Blackwood e os
Bracken. Os Bracken agora são dos nossos.
Cão de
Caça serviu uma taça de vinho a Arya e outra a si mesmo, e bebeu-a
enquanto fitava o fogo na lareira.
- O
passarinho voou, foi? Bem, ainda bem para ela. Cagou na cabeça do
Duende e voou.
- Vão
encontrá-la - disse Polliver. - Nem que seja preciso metade do ouro
de Rochedo Casterly.
- Uma
garota bonita, segundo ouvi dizer - disse o Cócegas. - Doce como o
mel. - Estalou os lábios e sorriu.
- E
cortês - concordou Cão de Caça. - Uma senhorinha como deve ser. Ao
contrário da porcaria da irmã.
- Também
a encontraram - disse Polliver. - A irmã. Ouvi dizer que é para o
bastardo de Bolton.
Arya
bebericou o vinho para que não vissem sua boca. Não compreendia o
que Polliver estava dizendo. Sansa não tem nenhuma outra irmã.
Sandor Clegane riu alto,
- O que é
tão engraçado assim? - perguntou Polliver,
Cão de
Caça não deu nem um relance a Arya,
- Se
quisesse que você soubesse, teria dito. Há navios em Salinas?
-
Salinas? Como é que eu vou saber? Os mercadores voltaram para a
Lagoa da Donzela, segundo ouvi dizer. Randyll Tarly tomou o castelo e
trancou Mooton numa cela de torre. Não ouvi porra nenhuma a respeito
de Salinas.
Cócegas
inclinou-se para a frente.
- Iria se
lançar ao mar sem se despedir de seu irmão? - Arya sentiu arrepios
ao ouvi-lo fazer uma pergunta - Sor ia preferir que voltasse a
Harrenhal com a gente, Sandor. Aposto que sim. Ou a Porto Real...
- Que
isso se foda. Que ele se foda. Que você se foda.
Cócegas
encolheu os ombros, endireitou-se e esticou uma mão para as costas,
a fim de esfregar a parte de trás do pescoço. Então tudo pareceu
acontecer ao mesmo tempo; Sandor pôs-se em pé, Polliver puxou a
espada e a mão de Cócegas chicoteou num arco borrado para enviar
qualquer coisa prateada relampejando pela sala comum. Se o Cão de
Caça não estivesse em movimento, a faca podia ter arrancado o seu
pomo de Adão; em vez disso, apenas roçou suas costelas, e acabou
espetada, tremendo, na parede perto da porta. Ele então riu, uma
gargalhada tão fria e vazia como se tivesse saído do Rindo de um
poço profundo.
- Eu
tinha esperança de que fizesse alguma coisa estúpida. - A espada
deslizou para fora da bainha bem a tempo de desviar para o lado a
primeira estocada de Polliver.
Arya deu
um passo para trás quando a longa canção de aço se iniciou.
Cócegas saltou do banco com uma espada curta numa mão e um punhal
na outra. Até o atarracado escudeiro moreno se levantara, procurando
o cabo da espada às apalpadelas. Arya pegou sua taça de vinho que
estava sobre a mesa e atirou-a na cara dele. A pontaria foi melhor do
que havia sido nas Gêmeas. A taça atingiu-o bem em cheio na grande
espinha branca e ele estatelou-se sobre o traseiro.
Polliver
era um lutador sombrio e metódico e empurrou firmemente Sandor para
trás, movendo a sua pesada espada longa com brutal precisão. Os
golpes do Cão de Caça eram mais desleixados, as paradas apressadas,
os pés lentos e desajeitados. Ele está bêbado, compreendeu Arya
com consternação. Bebeu demais, e depressa demais, sem comida na
barriga. E Cócegas estava deslizando ao longo da parede para ficar
atrás dele. Arya pegou a segunda taça de vinho e atirou-a nele, mas
o homem foi mais rápido do que o escudeiro e desviou a cabeça a
tempo. O olhar que lhe dirigiu foi frio e cheio de promessas. Há
ouro escondido na aldeia? Conseguia ouvi-lo perguntar. O estúpido do
escudeiro estava se agarrando à borda de uma mesa, apoiando-se nela
para se pôr de joelhos. Arya sentiu o sabor do início do pânico no
fundo da garganta. O medo golpeia mais profundamente do que as
espadas. O medo golpeia mais profundamente...
Sandor
soltou um grunhido de dor. O lado queimado de seu rosto escorria,
vermelho, da têmpora à bochecha, e o coto de orelha desaparecera.
Aquilo pareceu zangá-lo. Empurrou Polliver para trás com um ataque
furioso, pressionando-o com a velha espada amassada que arranjara nas
colinas. O homem barbudo cedeu terreno, mas nenhum dos golpes chegou
sequer a tocá-lo. E então o Cócegas saltou sobre um banco, rápido
como uma cobra, e golpeou a parte de trás do pescoço do Cão de
Caça com a aresta de sua espada curta.
Estão
matando-o. Arya não tinha mais taças, mas havia algo melhor para
atirar. Puxou o punhal que tinham roubado do arqueiro moribundo e
tentou arremessá-lo no Cócegas da mesma maneira que ele tinha
feito. Não era o mesmo que atirar uma pedra ou uma maçã, porém. A
faca balançou e atingiu-o no braço com o cabo. Ele nem sequer a
sentiu. Estava concentrado demais em Clegane. Enquanto apunhalava,
Clegane torceu-se violentamente para o lado, conquistando para si uma
pausa de meio segundo. Escorria sangue por seu rosto e do golpe no
pescoço. Ambos os homens da Montanha o atacavam duramente, com
Polliver golpeando a cabeça e os ombros enquanto Cócegas se
precipitava para apunhalar as costas e a barriga. O pesado jarro de
pedra continuava sobre a mesa. Arya agarrou-o com ambas as mãos, mas
no momento em que o erguia alguém a agarrou pelo braço. O jarro
escorregou de seus dedos e caiu com estrondo no chão. Obrigada a
girar com um empurrão, deu por si à distância de um nariz do
escudeiro. Sua estúpida, esqueceu completamente dele. Viu que a
grande espinha branca tinha estourado.
- É o
cachorro do cachorro? - ele tinha a espada na mão direita e o braço
dela na esquerda, mas as mãos dela estavam livres, portanto puxou a
faca do rapaz de sua bainha e voltou a embainhá-la na barriga,
torcendo-a. Ele não usava cota de malha, nem mesmo couro fervido,
por isso a faca penetrou facilmente, como a Agulha penetrara quando
Arya matou o cavalariço em Porto Real. Os olhos do escudeiro
abriram-se muito e ele largou o braço dela. Arya girou na direção
da porta e arrancou a faca do Cócegas da parede.
Polliver
e Cócegas tinham encostado Cão de Caça em um canto, por trás de
um banco, e um deles acrescentara aos seus outros ferimentos um feio
golpe vermelho na coxa superior. Sandor apoiava-se na parede,
sangrando e respirando ruidosamente. Parecia quase não conseguir
manter-se em pé, quanto mais lutar.
- Jogue a
espada fora e levamos você de volta a Harrenhal - disse-lhe
Polliver.
- Para
que Gregor possa acabar comigo em pessoa?
Cócegas
disse:
- Talvez
o dê a mim.
- Se me
quer, venha me pegar. - Sandor desencostou-se da parede e ficou
semiagachado atrás do banco, com a espada cruzada em frente do
corpo.
- Acha
que não pegamos? - disse Polliver. - Está bêbado.
- Pode
ser que sim - disse Cão de Caça mas você está morto. - Seu pé
projetou-se para a frente e apanhou o banco, atirando-o com força
contra as canelas de Polliver. De algum modo, o barbudo conseguiu
manter o equilíbrio, mas Cão de Caça abaixou-se sob a sua violenta
estocada e lançou a própria espada para cima, num traiçoeiro golpe
para trás. Sangue esguichou no teto e nas paredes. A lâmina ficou
presa no meio da cara de Polliver, e quando Cão de Caça a soltou
com uma sacudida, metade da cabeça do outro veio junto.
Cócegas
recuou. Arya conseguia sentir o medo dele. A espada curta que tinha
na mão pareceu de repente quase um brinquedo, comparada com a longa
lâmina que Cão de Caça empunhava, e além disso não tinha
armadura. Moveu-se rapidamente, ligeiro de pés, sem nunca tirar os
olhos de Sandor Clegane. Foi a coisa mais simples do mundo para Arya
aproximar-se dele por trás e apunhalá-lo.
- Há
ouro escondido na aldeia? - gritou enquanto enfiava a lâmina em suas
costas. - Há prata? Pedras preciosas? - apunhalou-o mais duas vezes.
- Há comida? Onde está Lorde Beric? - então já estava em cima
dele, ainda apunhalando-o - Para onde foi ele? Quantos homens o
acompanhavam? Quantos cavaleiros? Quantos arqueiros? Quantos,
quantos, quantos, quantos, quantos, quantos? Há ouro na aldeia?
Tinha as
mãos vermelhas e pegajosas quando Sandor a arrastou de cima dele.
- Basta -
foi tudo que disse. Ele mesmo sangrava como um porco na matança e
arrastava uma perna ao caminhar.
- Há
mais um - relembrou-lhe Arya.
O
escudeiro tinha puxado a faca da barriga e estava tentando parar o
sangue com as mãos. Quando Cão de Caça o endireitou, o rapaz
gritou e desatou a choramingar como um bebê.
-
Misericórdia - chorou - por favor. Não me mate. Mãe, misericórdia.
- Eu
pareço-me com a merda da sua mãe? - Cão de Caça não tinha nada
de humano. - Também matou este - disse a Arya. - Furou as tripas, e
isso é o fim dele. Mas vai levar muito tempo para morrer.
O rapaz
não pareceu ouvi-lo.
- Eu vim
por causa das garotas - choramingou. - ... fazer de mim um homem,
disse o Polly... oh, deuses, por favor, levem-me a um castelo... um
meistre, levem-me a um meistre, o meu pai tem ouro... foi só por
causa das garotas... misericórdia, sor.
Cão de
Caça deu-lhe uma bofetada no rosto que o fez gritar outra vez.
- Não me
chame de sor. - Virou-se novamente para Arya. - Este é seu, loba.
Trate dele.
Arya
sabia o que ele queria dizer. Dirigiu-se a Polliver e ajoelhou em seu
sangue tempo suficiente para lhe desafivelar o cinto da espada.
Pendurada junto ao punhal havia uma lâmina mais esguia, longa demais
para ser uma adaga, curta demais para ser uma espada de homem... mas
ajustava-se perfeitamente à sua mão.
-
Lembra-se de onde fica o coração? - perguntou Cão de Caça.
Ela
assentiu. O escudeiro rolou os olhos.
-
Misericórdia.
A Agulha
deslizou entre as suas costelas e deu-lhe misericórdia.
- Ótimo.
- A voz de Sandor estava pesada de dor. - Se estes três estavam aqui
nas putas, Gregor deve controlar o vau, além de Harrenhal. Podem
aparecer mais dos seus animais de estimação a qualquer momento, e
já matamos o suficiente desses malditos por um dia.
- Para
onde vamos? - perguntou ela.
-
Salinas. - Apoiou uma grande mão em seu ombro para evitar cair. -
Arranje algum vinho, loba. E leve também o dinheiro que eles
tiverem, vamos precisar dele. Se houver navios em Salinas, podemos
chegar ao Vale por mar. - A boca torceu-se para ela, enquanto mais
sangue escorria de onde tivera a orelha. - Pode ser que a Senhora
Lysa a case com o seu pequeno Robert. Essa era uma união que eu
gostaria de ver. - Começou a rir, mas em vez disso gemeu.
Quando
chegou o momento de partir, precisou da ajuda de Arya para voltar a
subir no Estranho. Atara uma tira de tecido em volta do pescoço e
outra em torno da coxa, e tirara o manto do escudeiro do gancho junto
à porta. O manto era verde, com uma flecha verde numa banda branca,
mas quando Cão de Caça o enrolou e o comprimiu contra a orelha
rapidamente se tornou vermelho, Arya teve receio de que ele caísse
no momento em que se puseram em movimento, mas de algum modo ele
permaneceu na sela.
Não
podiam se arriscar a um encontro com quem quer que controlasse o vau
rubi, portanto, em vez de seguirem a estrada do rei, desviaram-se
para sudeste, cruzando campos repletos de ervas daninhas, bosques e
pântanos. Passaram-se horas até chegarem à margem do Tridente.
Arya viu que o rio tinha voltado docilmente ao seu canal costumeiro,
com toda a sua úmida raiva marrom desaparecida com as chuvas. Ele
também está cansado, pensou.
Perto, à
beira da água, encontraram um grupo de salgueiros que cresciam numa
confusão de pedras desgastadas. Juntas, as pedras e as árvores
formavam uma espécie de forte natural onde podiam se esconder tanto
do rio como da trilha.
- Isto
aqui serve - disse Cão de Caça - Dê água aos cavalos e arranje
lenha para uma fogueira - Quando desmontou, teve de se apoiar num
galho para não cair.
- A
fumaça não será vista?
- Se
alguém quiser nos encontrar, só tem de seguir o meu sangue. Água e
lenha. Mas traga-me primeiro esse odre de vinho.
Depois de
acender a fogueira, Sandor equilibrou o elmo sobre as chamas,
despejou lá dentro metade do odre e caiu contra uma saliência de
pedra coberta de musgo como se não pretendesse voltar a se levantar.
Obrigou Arya a lavar o manto do escudeiro e a cortá-lo em faixas.
Estas também foram enfiadas no elmo.
- Se
tivesse mais vinho, bebia-o até ficar morto para o mundo. Talvez
devesse mandá-la de volta àquela maldita estalagem para trazer mais
dois ou três odres.
- Não -
disse Arya. Ele não faria isso, não é? Se fizer, eu simplesmente o
abandono e vou embora.
Sandor
riu do medo no rosto dela.
- Uma
brincadeira, lobinha. Uma merda duma brincadeira. Ache um pedaço de
madeira, mais ou menos deste tamanho e não muito grosso. E lave a
lama dele. Detesto o sabor de lama.
Não
gostou dos primeiros dois pedaços de madeira que ela lhe trouxe.
Quando encontrou um que lhe agradou, as chamas já tinham enegrecido
a cabeça de cão até os olhos. Lá dentro, o vinho fervia
furiosamente.
- Tire a
caneca do meu rolo de dormir e encha-a até metade - disse-lhe. -
Tome cuidado. Se virar aquela porcaria, mando-a mesmo buscar mais.
Pegue o vinho e despeje-o sobre as minhas feridas. Acha que consegue
fazer isso? - Arya assentiu. - Então está esperando o quê? -
rosnou.
Os nós
dos dedos dela roçaram no aço da primeira vez que encheu a caneca,
deixando-lhe uma queimadura tão grande que ficou com bolhas. Arya
teve de morder o lábio para evitar gritar. Cão de Caça usou o
pedaço de madeira para o mesmo fim, prendendo-o entre os dentes
enquanto ela despejava o vinho. Arya tratou primeiro do golpe na
coxa, e depois da ferida menos profunda na parte de trás do pescoço.
Sandor cerrou a mão direita num punho e esmurrou o chão quando ela
tratou de sua perna. Quando foi a vez do pescoço, mordeu o pedaço
de madeira com tanta força que este se quebrou, e Arya teve de lhe
arranjar outro. Conseguia ver o terror nos olhos de Cão de Caça.
- Vire a
cabeça. - Deixou pingar o vinho sobre a rubra carne viva que surgia
onde ficava sua orelha, e fios de sangue castanho e vinho tinto
escorreram sobre seu maxilar. Então ele gritou mesmo, apesar do pau.
E depois desmaiou devido às dores.
Arya
descobriu o que mais devia fazer sozinha. Pescou do fundo do elmo as
faixas que tinham feito com o manto do escudeiro e usou-as para atar
os cortes. Quando chegou ao ouvido, teve que envolver metade da
cabeça dele para estancar a hemorragia. A essa altura, o ocaso já
caía sobre o Tridente. Deixou os cavalos pastar, e então os prendeu
para a noite e instalou-se o mais confortavelmente que pôde num
nicho entre duas pedras. A fogueira ardeu durante algum tempo e
extinguiu-se. Arya observou a lua por entre os ramos, por cima de sua
cabeça.
- Sor
Gregor, a Montanha - disse em voz baixa. - Dunsen, Raff, o Querido,
Sor Ilyn, Sor Meryn, Rainha Cersei. - Deixar de fora Polliver e
Cócegas deu-lhe uma sensação estranha. E Joffrey também.
Sentia-se contente por ele estar morto, mas gostaria de ter estado lá
para vê-lo morrer, ou mesmo para ser ela a matá-lo. Polliver disse
que Sansa o matou, com o Duende. Poderia isso ser verdade? O Duende
era um Lannister, e Sansa... Gostaria de poder me transformar em lobo
e ganhar asas e voar para longe.
Se Sansa
também tinha desaparecido, já não havia Starks além dela. Jon
estava na Muralha a mil léguas de distância, mas era um Snow, e
aqueles vários tios e tias a quem o Cão de Caça queria vendê-la,
esses também não eram Starks. Não eram lobos.
Sandor
gemeu, e ela rolou sobre o flanco para olhá-lo. Percebeu que também
tinha deixado de fora o nome dele. Por que teria feito isso? Tentou
pensar em Mycah, mas era difícil lembrar-se de sua aparência. Não
o conhecera por muito tempo. Tudo o que ele fez foi brincar comigo de
espada.
- Cão de
Caça - sussurrou, e: - Valar morghulis. - Ele talvez estivesse morto
de manhã...
Mas
quando a pálida luz da aurora chegou, filtrada pelas árvores, foi
ele que a acordou com a ponta da bota. Arya sonhara de novo que era
um lobo, perseguindo um cavalo sem cavaleiro por uma colina com uma
alcateia atrás de si, mas o pé dele trouxe-a de volta exatamente no
momento em que se aproximavam para a matança.
Cão de
Caça continuava fraco, com todos os movimentos lentos e
desajeitados. Afundou-se na sela e desatou a suar, e a orelha começou
a sangrar através da atadura. Precisou de todas as suas forças para
evitar cair do Estranho. Se os homens da Montanha tivessem vindo em
seu encalço, Arya duvidava que ele fosse capaz sequer de erguer uma
espada. Arya deu um olhar de relance por sobre o ombro, mas nada
havia atrás deles além de um corvo que voava de árvore em árvore.
O único som era o do rio.
Muito
antes do meio-dia, Sandor Clegane cambaleava. Ainda restavam horas de
luz do dia quando ele decidiu fazer uma parada.
- Preciso
descansar - foi tudo o que disse. Daquela vez, quando desmontou, caiu
mesmo. Em vez de tentar ficar de pé novamente, engatinhou debilmente
para baixo de uma árvore e encostou-se no tronco. - Maldito inferno
- praguejou. - Maldito inferno - Quando viu Arya a fitá-lo, disse: -
Era capaz de esfolá-la viva por uma taça de vinho, menina.
Em vez
disso, Arya trouxe-lhe água. Ele bebeu um pouco, queixou-se de que
tinha gosto de lama e deixou-se cair num sono ruidoso e febril.
Quando Arya tocou nele, a pele ardia. Arya cheirou as ataduras como o
Meistre Luwin fazia às vezes quando lhe tratava os cortes ou
arranhões. Foi o rosto de Cão de Caça que tinha sangrado mais, mas
foi o ferimento na coxa que pareceu a Arya ter um cheiro esquisito.
Perguntou
a si mesma a que distância estaria aquele lugar, Salinas, e se seria
capaz de encontrá-lo sozinha. Não teria de matá-lo. Se apenas
fosse embora e o abandonasse, ele morreria sozinho. Morreria de
febre, e ficaria ali debaixo daquela árvore até o fim dos tempos.
Mas talvez fosse melhor se o matasse. Matara o escudeiro na estalagem
e ele nada tinha feito a não ser agarrar o braço dela. Cão de Caça
tinha matado Mycah. Mycah e mais gente. Aposto que ele matou cem
Mycahs. E provavelmente teria matado Arya também, se não fosse o
resgate.
A Agulha
cintilou quando a desembainhou. Polliver mantivera-a limpa e afiada,
pelo menos. Posicionou o corpo de lado, numa pose de dançarina de
água, sem sequer pensar nisso. Folhas mortas estalaram sob os seus
pés. Rápida como uma cobra, pensou. Suave como seda de verão. Os
olhos dele abriram-se.
-
Lembra-se de onde fica o coração? - perguntou num sussurro rouco.
E ela
ficou imóvel como pedra.
- Eu...
eu estava só...
- Não
minta - rosnou ele. - Odeio mentirosos. E odeio ainda mais
embusteiros sem culhões. Vá, trate disso. - Quando Arya não se
mexeu, ele disse: - Eu matei o seu filho de açougueiro. Cortei-o
quase ao meio e depois ri dele. - Soltou um som estranho, e Arya
precisou de um momento para perceber que o homem estava soluçando. -
E o passarinho, a sua irmã bonita, fiquei lá com o meu manto branco
e deixei que a espancassem. E arranquei a maldita canção dela, ela
não me deu. Também queria possuí-la. Devia ter feito isso. Devia
tê-la fodido até fazer sangue e devia ter arrancado seu coração
antes de deixá-la para aquele anão. - Um espasmo de dor contorceu
seu rosto. - Quer me obrigar a suplicar, cadela? Trate disso! A
dádiva da misericórdia... vingue o seu pequeno Michael...
- Mycah.
- Arya afastou-se dele. - Você não merece a dádiva da
misericórdia.
Cão de
Caça viu Arya selar a Covarde com olhos brilhantes de febre. Nem uma
vez tentou erguer-se e impedi-la. Mas quando ela montou, disse:
- Um
verdadeiro lobo acabaria com um animal ferido.
Talvez
alguns lobos verdadeiros o encontrem, pensou Arya. Talvez o farejem
quando o sol se puser. Então ficaria sabendo o que os lobos faziam
aos cães.
- Não
devia ter batido em mim com aquele machado - disse. - Devia ter salvo
a minha mãe. - Virou o cavalo e afastou-se dele, e não olhou para
trás nem uma vez.
Numa
manhã luminosa seis dias depois, chegou a um lugar onde o Tridente
começava a se alargar e o ar cheirava mais a sal do que a árvores.
Permaneceu perto da água, passando por campos de cultivo e fazendas,
e um pouco depois do meio-dia uma vila apareceu na sua frente.
Salinas, pensou, esperançosa. Um pequeno castelo dominava a vila;
não passava de uma fortaleza, na verdade, uma única fortificação
quadrada com um cercado e uma muralha exterior. A maior parte das
lojas, estalagens e cervejarias em volta do porto tinha sido saqueada
ou queimada, embora algumas casas parecessem ainda habitadas. Mas o
porto estava lá, e para leste estendia-se a Baía dos Caranguejos,
com águas que cintilavam azuis e verdes ao sol.
E havia
navios.
Três,
pensou Arya, há três. Dois eram apenas galés fluviais, barcos de
pequeno calado e fundo raso concebidos para percorrer as águas do
Tridente. O terceiro era maior, um navio mercante do mar salgado com
duas fileiras de remos, uma proa dourada e três grandes mastros com
velas roxas dobradas. O casco também estava pintado de roxo. Arya
levou a Covarde até as docas para ver melhor. Estranhos não eram
tão estranhos num porto como são nas pequenas aldeias, e ninguém
pareceu se importar com quem ela era ou com o motivo por que se
encontrava ali.
Preciso
de prata. A conclusão fez Arya morder o lábio. Tinham encontrado um
veado e uma dúzia de cobres em Polliver, oito moedas de prata no
escudeiro espinhento que ela tinha matado, e não mais do que um par
de moedas na bolsa de Cócegas. Mas Cão de Caça tinha lhe dito para
tirar as botas de Cócegas e cortar as roupas ensopadas em sangue, e
ela descobriu um veado em cada pé, e três dragões de ouro cosidos
no forro de seu gibão. Mas Sandor tinha ficado com tudo. Não foi
justo. Era tanto meu como dele. Se lhe tivesse oferecido a dádiva da
misericórdia... mas não tinha. E não podia voltar, assim como não
podia suplicar ajuda. Nunca se consegue ajuda suplicando-a. Teria de
vender a Covarde e esperar conseguir dinheiro suficiente.
Ficou
sabendo por um rapaz junto às docas que o estábulo tinha sido
queimado, mas a ex-proprietária do lugar continuava fazendo negócio
atrás do septo. Arya encontrou-a sem dificuldade; uma mulher alta e
robusta com um bom cheiro de cavalo. Gostou da Covarde à primeira
vista, perguntou a Arya como a arranjara, e sorriu com a resposta
dela.
- É um
cavalo de boa linhagem, isso é bem evidente, e não duvido que
pertenceu a um cavaleiro, querida - disse. - Mas o cavaleiro não era
nenhum irmão seu que morreu. Já faço negócio ali com o castelo há
muitos anos, e sei como se parecem os fidalgos. Esta égua é
bem-nascida, mas você não é. - Espetou um dedo no peito de Arya. -
Ou a encontrou, ou a roubou, não importa, foi o que foi. E a única
maneira de uma coisinha malvestida como você acabar montada num
palafrém.
Arya
mordeu o lábio.
- Isso
quer dizer que não vai comprá-la?
A mulher
soltou um risinho.
- Quer
dizer que aceitará o que eu lhe der, querida. Senão vamos ao
castelo, e talvez fique sem nada. Ou até acabe enforcada, por roubar
um bom cavalo de cavaleiro.
Meia
dúzia de outras pessoas de Salinas andavam por ali, cuidando de seus
assuntos, portanto Arya sabia que não podia matar a mulher. Em vez
disso teve de morder o lábio e se deixar ser tapeada. A bolsa que
recebeu era deploravelmente achatada, e quando pediu mais pela sela,
freios e manta, a mulher apenas riu na sua cara.
Ela nunca
teria tapeado o Cão de Caça, pensou durante a longa caminhada de
volta às docas. A distância parecia ter aumentado quilômetros
desde que a percorrera a cavalo. A galé roxa ainda se encontrava no
mesmo lugar. Se o navio tivesse zarpado enquanto estava sendo
assaltada, isso teria sido demais para suportar. Um barril de
hidromel estava sendo rolado pela prancha acima quando chegou. Quando
tentou segui-lo, um marinheiro no convés gritou-lhe numa língua que
não conhecia.
- Quero
falar com o capitão - disse-lhe Arya. Ele limitou-se a gritar mais
alto. Mas a agitação atraiu a atenção de um homem robusto e
grisalho vestido com um casaco de lã roxa, e ele falava o Idioma
Comum.
- Eu sou
o capitão aqui - disse ele. - O que deseja? Rápido, pequena, temos
de apanhar a maré.
- Quero
ir para o norte, para a Muralha. Olhe, posso pagar. - Deu-lhe a
bolsa. - A Patrulha da Noite tem um castelo junto ao mar.
-
Atalaialeste. - O capitão despejou a prata na palma da mão e
franziu a testa. - Isto é tudo que tem?
Não é
suficiente, compreendeu Arya sem que lhe dissessem. Conseguia ver no
rosto do homem.
- Não ia
precisar de uma cabine, nem nada disso - disse. - Eu poderia dormir
no porão, ou...
-
Aceite-a como moça de cabine - disse um remador que passava por ali,
com um fardo de lã ao ombro. - Ela pode dormir comigo.
- Tento
na língua - exclamou o capitão.
- Eu
poderia trabalhar - disse Arya. - Poderia esfregar os conveses. Eu já
esfreguei os degraus de um castelo. Ou poderia remar...
- Não -
disse ele - não poderia. - Devolveu-lhe as moedas. - E não faria
diferença se pudesse, pequena. O norte não tem nada para nós.
Gelo, guerra e piratas. Vimos uma dúzia de navios piratas rumando
para o norte quando viramos a Ponta da Garra Rachada, e não tenho
nenhuma vontade de voltar a encontrá-los. Daqui, apontamos os remos
para casa, e eu sugiro que você faça a mesma coisa.
Não
tenho casa, pensou Arya. Não tenho alcateia. E agora nem sequer
tenho um cavalo. O capitão estava se virando quando ela disse:
- Que
navio é este, senhor?
Ele parou
tempo suficiente para lhe conceder um sorriso cansado.
- Esta é
a galeota Filha do Titã, da Cidade Livre de Bravos.
- Espere
- disse subitamente Arya. - Tenho mais uma coisa. - Enfiara-a na
roupa de baixo para mantê-la em segurança, por isso teve de
procurar bem fundo para achá-la, enquanto os remadores riam e o
capitão esperava com óbvia impaciência.
- Mais
uma moeda de prata não fará diferença, pequena - disse por fim.
- Não é
prata. - Seus dedos fecharam-se sobre ela. - É ferro. Tome. -
Enfiou-a na mão dele, a pequena moeda negra de ferro que Jaqen Hghar
lhe dera, tão gasta que o homem cuja cabeça mostrava não tinha
feições. Provavelmente não tem nenhum valor, mas...
O capitão
virou-a, pestanejou, e então voltou a olhá-la.
- Isto...
como...?
Jaqen
disse para pronunciar as palavras também. Arya cruzou os braços
contra o peito.
- Valar
morghulis - disse, tão alto como se soubesse o que aquilo queria
dizer.
- Valar
dohaeris - respondeu o homem, tocando a testa com dois dedos. - É
claro que terá uma cabine.
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