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segunda-feira, 28 de outubro de 2013

POLLYANNA MOÇA


POLLYANNA MOÇA
Eleanor H. Porter.
Pollyanna cresceu. É agora uma encantadora adolescente, amada por todos os que
com ela aprenderam o famoso 'Jogo do Contente'. Sua fama de pessoa especial vai
além dos limites de Beldingsville, a cidadezinha onde vive com a Tia Polly. Pollyanna
recebe um convite especial para passar uma temporada em Boston. Alguém de lá
precisa muito dela. Nesta continuação de suas aventuras, Pollyanna não irá apenas
conviver com pessoas fascinantes e conquistar novas amizades, mas também
escontrará o amor e conhecerá a inquietação, as dúvidas e as emoções de tirar o
fôlego pelas quais passam todas as jovens apaixonadas.
Pollyanna Cresce
Eleanor H. Porter.
Colecção Azul.
Editorial Publica, Lisboa, 1991.
Infanto-Juvenil.
1 - Della diz o que pensa
2 - Amigos de longa data
3 - Uma dose de Pollyanna
4 - O jogo e Mrs. Carew
5 - Um novo conhecimento
6 - Jamie
7 - Os planos de Pollyanna
8 - No beco dos Murphys
9 - Uma surpresa para Mrs. Carew
10 - Jimmy tem ciúmes
11 - Tia Polly fica alarmada
12 - À espera de Pollyanna
13 - A chegada de Pollyanna
14 - Duas cartas
15 - Os hóspedes
16 - A decisão de Jimmy
17 - O jogo e Pollyanna
18 - John Pendleton
19 - Jimmy e Jamie
20 - Jimmy e John
21 - John Pendleton da a volta à chave
22 - Depois de muitos anos
23 - Um novo Aladin

sexta-feira, 19 de julho de 2013

POLLYANNA 2 - 1 - Della diz o que pensa


Della Wetherby dirigiu-se decididamente para casa da sua irmã, na Commonwealth Avenue, e tocou energicamente à campainha. Da cabeça aos pés irradiava saúde, competência e decisão. Até a sua voz vibrava com a alegria de viver, ao cumprimentar a criada que lhe abriu a porta.
- Bom dia, Mary. A minha irmã está em casa?
- Sim, minha senhora, Mrs. Carew está em casa - hesitou a moça -, mas deu ordens para não deixar entrar ninguém.
- Ah sim? Mas eu não sou qualquer pessoa! - sorriu Mrs. Wetherby. - Portanto ela há-de receber-me. Não se preocupe, porque eu responsabilizo-me. Onde está ela, na sala de estar?
- Sim, minha senhora, mas...
Miss Wetherby, no entanto, já ia a meio caminho das escadas, e a criada, com expressão de desespero, desistiu. Já no hall, passou através de uma porta semiaberta e bateu.
- O que é, Mary? - ouviu-se uma voz aborrecida. - Ah, é a Della! - ouviu-se a mesma voz completamente modificada, cheia de calor e surpresa. Minha querida irmã, donde vieste?
- Sim, sou eu - sorriu a jovem, já dentro da sala.
- Fui passar o Domingo com duas outras enfermeiras, e agora estou de regresso ao Sanatório. Não me demoro. Vim só dar-te um beijo.
Mrs. Carew fez uma expressão triste e retraiu-se com alguma frieza. O ar de alegria que, por momentos, se lhe espelhara no rosto, tinha desaparecido.
- Claro! Devia ter calculado, tu nunca cá páras!
Della Wetherby riu, estendendo-lhe as mãos; a seguir, de repente, a sua voz e os seus modos alteraram- se. Olhou para a irmã com seriedade e ternura e disse delicadamente:
- Querida Ruth, bem sabes que não consigo viver nesta casa.
Mrs. Carew olhou para ela irritada, protestando:
- Não sei porquê!
Della Wetherby abanou a cabeça, explicando.
- Sabes sim, querida. Sabes que não sinto afinidade nenhuma com tudo isto: o ambiente, a falta de objetivos, a tua insistência na tristeza, na amargura.
- Mas eu sou triste e amargurada.
- Mas não devias ser!
- Porque não? Que razões tenho para não ser assim?
Della Wetherby fez um gesto de impaciência e continuou:
- Olha Ruth, tens 33 anos. Tens boa saúde, devias ter, se tratasses bem de ti; dispões de muito tempo e ainda mais de dinheiro. Devias arranjar alguma coisa para fazeres nesta manhã maravilhosa ao contrário de ficares aqui sentada e encafuada em casa, ainda por cima dando ordens à criada para não deixar entrar ninguém.
- Mas eu não quero ver ninguém!
- Olha, eu havia de arranjar maneira de querer.
Mrs. Carew olhou constrangida e virou a cabeça.
- Oh! Della, porque é que nunca me compreendes? Eu não sou como tu. Não consigo esquecer...
Uma expressão compreensiva passou pelo rosto da irmã.
- Referes-te a Jamie? Se é, não me esqueço, querida, mas anichares-te em casa, não te ajudará a encontrá-lo.
- Como se eu não tivesse já tentado encontrá-lo durante oito longos anos, sem ficar metida em casa! - respondeu prontamente Mrs. Carew indignada, com um soluço na voz.
- Claro que sim, querida - atalhou a outra rapidamente - e vamos continuar a procurá-lo, as duas, até o encontrarmos ou morrermos. Realmente este ambiente não ajuda nada.
- Mas eu não quero fazer mais nada - murmurou Ruth Carew, desgostosa.
Fez-se silêncio por momentos. A irmã mais nova sentou-se a olhar para a outra com uma expressão preocupada e reprovadora.
- Ruth - disse ela por fim, com alguma impaciência -, desculpa-me, mas será que vais continuar sempre assim? Reconheço que és viúva, contudo, a tua vida de casada durou apenas um ano e o teu marido era muito mais velho que tu. Esse breve ano, agora, não pode contar muito mais do que um sonho. Decerto não vais ficar amargurada toda a vida!
- Não, não - murmurou Mrs. Carew desgostosa.
- Então vais ficar sempre assim?
- Se eu conseguisse encontrar Jamie.
- Sim, eu sei. Porém, minha querida, não haverá mais nada no mundo que te possa fazer feliz sem ser o Jamie?
- Acho que não - suspirou Mrs. Carew, com indiferença.
- Ruth! - exclamou a irmã quase zangada. Depois, riu de súbito e adiantou: - Oh! Ruth, Rute, como gostava de te dar uma dose de Pollyanna! Não conheço ninguém que precise tanto disso!
Mrs. Carew endireitou- se um pouco.
- Não faço ideia do que seja isso da Pollyanna mas, seja o que for, não quero - retorquiu ela rispidamente. - Isto não é o teu querido Sanatório e não sou uma doente tua a quem dês remédios e ordens. Por favor, lembra-te disso.
Os olhos de Della Wetherby brilharam, mas a boca manteve-se sem sorrir.
- Pollyanna não é um remédio, minha querida - disse ela com ar sério - se bem que já ouvisse algumas pessoas chamarem-lhe tónico. Pollyanna é uma menina.
- Uma criança? Como podia eu saber? - respondeu a outra, ainda com alguma amargura. - Tu tens a tua "beladona", portanto era natural que tivesses alguma "Pollyanna". Além disso, estás sempre a aconselhar-me a tomar alguma coisa, e como disseste distintamente "dose" e dose significa normalmente remédio.
- Bom, Pollyanna é uma espécie de remédio - sorriu Della. - São os médicos do Sanatório que dizem, todos, que ela é melhor do que qualquer remédio que possam receitar. É uma menina, de 12 ou 13 anos, que esteve no Sanatório durante o Verão todo e que lá passou a maior parte do Inverno. Eu só estive com ela um mês ou dois, porque se foi embora depois de eu chegar. Foi, no entanto, o suficiente para me tocar com o seu encanto. Além disso, todo o Sanatório continua a falar de Pollyanna e a jogar o jogo dela.
- Jogo?
- Sim - assentiu Della, com um sorriso curioso.
- Era o "Jogo do Contente". Nunca me hei-de esquecer desse jogo. Consiste em procurar algo que dê contentamento em tudo o que nos acontece. Pollyanna achou que era um jogo engraçadíssimo e joga-o sempre. E quanto mais difícil é encontrar alguma coisa que dê contentamento, mais divertido o jogo se torna, ainda que, por vezes, seja horrivelmente difícil.
- Mas que interessante! - murmurou Mrs. Carew que ainda não tinha compreendido bem.
- Havias de ver os resultados desse jogo no Sanatório. E o Dr. Ames diz que ela revolucionou a cidade inteira de onde veio, exatamente da mesma maneira. Ele conhece muito bem o Dr. Chilton, o homem que casou com a tia de Pollyanna. E, a propósito, creio que esse casamento foi um dos seus feitos. Ela resolveu uma velha birra de namorados que havia entre eles. Sabes, é que há dois anos ou mais, o pai de Pollyanna morreu e a menina foi enviada para o Leste, para casa da tia. Em Outubro foi atropelada por um automóvel e disseram-lhe que nunca mais poderia voltar a andar. Em Abril, o Dr. Chilton mandou-a para o Sanatório e ficou até Março, durante quase um ano. Regressou a casa praticamente curada. Ai, se visses a menina! Só houve uma coisa que ensombrou a felicidade dela. É que não pôde ir a pé até à casa. Parece que a cidade inteira a foi receber com bandeiras e fanfarras. Digo-te, é quase impossível falar de Pollyanna. É preciso conhecê-la. Por isso que te digo que devias receber uma dose de Pollyanna. Fazia-te bem, de certeza.
Mrs. Carew levantou um pouco o queixo.
- Devo dizer que estou um pouco em desacordo contigo - respondeu ela friamente. - Não estou interessada em ser "revolucionada" e não tenho nenhuma birra de namorados para resolver. E não haveria nada que me fosse mais detestável do que ter uma menina presunçosa que me dissesse o que eu devia pensar. Nunca suportaria. - e foi interrompida por uma sonante gargalhada.
- Oh! Ruth, Ruth! A Pollyanna presunçosa! Só gostava que a conhecesses agora! Eu bem sabia que era difícil falar de Pollyanna. Assim, é claro, não estás preparada para a conhecer. Mas presunçosa é que ela não é! - e desatou outra vez a rir. Porém, logo a seguir, olhando a irmã com ar preocupado, prosseguiu: - A sério, minha querida, não se pode fazer nada? Acho que não deves desperdiçar a tua vida desta maneira. Porque não sais mais e visitas outras pessoas?
- Mas porquê, se não me apetece? Estou cansada das pessoas. Sabes que a sociedade sempre me aborreceu!
- Então porque não tentas algum trabalho em prol do próximo?
Mrs. Carew fez um gesto de impaciência.
- Minha querida Della, eu já passei por isto antes. Dou muito dinheiro e isso é suficiente. Não sei bem quanto, mas se calhar até é demais. Não acredito em gente pobre.
- Eu quis dizer dares um pouco de ti própria, querida - atreveu-se Della, delicadamente. - Se te conseguisses interessar por alguma coisa exterior à tua própria vida, isso ajudar-te-ia muito!
- Olha, minha querida Della - interrompeu a irmã, gravemente -, gosto muito de ti e prezo que venhas cá, mas falta-me paciência para te ouvir dizer o que devo fazer. A ti, assenta bem fazeres o papel de anjo-da-guarda e tratares dos doentes, e talvez tu consigas esquecer o Jamie dessa maneira. Mas eu não consigo. Tudo isso me faria pensar ainda mais nele, martirizando-me por não saber se tem alguém a cuidar dele. Além disso, ser-me-ia muito desagradável o fato de ter de me misturar com todo o tipo de pessoas.
- Já alguma vez tentaste?
- Claro que não! - respondeu Mrs. Carew indignada.
- Então como podes saber sem experimentares? perguntou a jovem enfermeira, levantando-se aborrecida.
- Tenho de me ir embora. Vou ter com as minhas colegas na South Station. O nosso comboio parte ao meio-dia e meia. Desculpa se te fiz zangar - concluiu ao despedir-se.
- Não estou zangada, Della - suspirou Mrs Carew - , mas gostava que me compreendesses!
Della Wetherby saiu logo. O seu semblante, os seus passos e modos eram bem diferentes daqueles com que tinha entrado uma hora antes. Toda a vivacidade e alegria de viver tinham desaparecido. Ao longo de meio quarteirão quase arrastava os pés. Depois, de repente ergueu bem a cabeça e respirou fundo.
- Se passasse uma semana naquela casa morria. Acho que nem sequer Pollyanna conseguiria desfazer aquele ambiente! E a única coisa que arranjaria para ficar contente seria não ter de lá ficar.
Tal descrença na capacidade de Pollyanna para alterar o estado das coisas na casa de Mrs. Carew não corespondia exatamente à opinião de Della Wetherby.
Isso acabou por se revelar a curto prazo, pois a enfermeira mal tinha chegado ao Sanatório quando soube de algo que a fez percorrer de novo a viagem de 80 kms até Boston, logo no dia a seguir. Tal como anteriormente, ela percebeu que Mrs. Carew não saíra de casa desde que se tinham encontrado.
- Ruth - disse ela ansiosa, depois de ter correspondido à saudação da irmã surpreendida - eu tinha
que vir e tu, desta vez, tens de confiar em mim e fazer o que te digo. Ouve! Tu podes receber aqui a Pollyanna se quiseres.
- Mas eu não quero - retorquiu Mrs. Carew friamente.
Della Wetherby parecia não a ter ouvido e continuou entusiasmada.
- Ontem, quando voltei para o Sanatório, soube que o Dr. Ames recebeu uma carta do Dr. Chilton, o tal que casou com a tia de Pollyanna. Nessa carta, ele diz que vai passar o Inverno à Alemanha, frequentar um curso especial, e que levaria com ele a mulher se a conseguisse convencer de que Pollyanna ficaria bem durante esse tempo num colégio interno. Só que Mrs. Chilton não queria deixar Pollyanna num colégio, e por isso ele receava que ela não o pudesse acompanhar. E aí está agora, Ruth, a nossa oportunidade. Queria que tu ficasses com Pollyanna durante o Inverno, de modo a que ela pudesse ir à escola aqui perto.
- Mas que ideia tão absurda, Della! Como se eu quisesse ter aqui uma criança para me atrapalhar e aborrecer!
- Mas ela não te vai aborrecer nem um bocadinho. Deve ter quase 13anos e sabe fazer absolutamente tudo.
- Eu não gosto de crianças que sabem fazer tudo - retorquiu Mrs. Carew com uma ponta de perversidade, mas rindo-se, o que fez a irmã readquirir coragem e insistir no seu propósito.
Talvez fosse pelo carácter súbito daquele apelo ou pela sua novidade. Talvez fosse por a história de Pollyanna ter tocado de algum modo o coração de Rutt Carew. Ou talvez fosse a sua falta de vontade em recusar a defesa apaixonada da irmã. Fosse o que fosse, quando Della Wetherby se despediu apressadamente meia hora mais tarde já levava consigo a promessa de Ruth Carew em receber Pollyanna naquela casa.
- Mas lembra-te disto - avisou Mrs. Carew enquanto a irmã se despedia -, se essa menina começar a querer impor-me seja o que for, devolvo-ta logo e podes fazer com ela o que quiseres. Não ficarei mais com ela!
- Não me esquecerei disso, mas não estou nada preocupada - respondeu a irmã mais nova, despedindo-se.
E enquanto se afastava murmurava consigo própria: Metade do trabalho está feito; agora vamos à outra metade, que é a de fazer com que Pollyanna venha! hei-de conseguir! Vou escrever uma carta de modo a que eles a deixem vir!

quinta-feira, 18 de julho de 2013

POLLYANNA 2 - 2 - Amigos de longa data


Naquele dia de Agosto, em Beldingsville, Mrs. Chilton esperou que Pollyanna se fosse deitar antes de conversar com o marido sobre a carta que tinha chegado no correio da manhã. O assunto teve de esperar, porque o médico estava sempre muito ocupado com os seus doentes e não houvera tempo para conferências familiares.
Quando o médico entrou na sala eram já oito e meia. O seu rosto cansado iluminou-se ao vê-la, sem que os seus olhos deixassem de refletir interrogação.
- Que se passa, Polly querida? - perguntou ele com ar preocupado.
A mulher riu divertida.
- É uma carta... não pensei que descobrisses só por olhar para mim.
- Então não deves ficar com esse ar - disse ele a sorrir. - O que é, afinal?
Mrs. Chilton hesitou, cerrou os lábios e depois agarrou numa carta que tinha junto dela.
- Vou lê-la - disse. - É de uma tal Miss Della Wetherby, do Sanatório do Dr. Ames.
- Então lê lá - pediu ele, deitando-se ao comprido no sofá junto da mulher.
Mrs. Chilton começou então a ler a carta em voz alta:
" Cara Mrs. Chilton
Esta é a sexta vez que começo a escrever-lhe, pois das restantes cinco vezes rasguei a carta. Assim decidi não começar de todo em todo mas dizer-lhe diretamente ao que venho. Quero a Pollyanna. Posso tê-la?
Conheci-a, a si e seu marido, em Marosado, quando vieram buscar Pollyanna, mas calculo Que não se lembrem de mim. Vou pedir ao Dr. Ames, que me conhece muito bem, para escrever a seu marido de modo a que não receie confiar-me a sua querida sobrinha.
Sei que não quer ir com o seu marido à Alemanha, para não deixar Pollyanna sozinha; por isso me atrevo a pedir-lhe que nos deixe ficar com Pollyanna. Peço-lhe que a deixe ficar connosco. Vou agora dizer-lhe porquê.
A minha irmã, Mrs. Carew, é uma senhora solitária e muito infeliz. Vive num mundo de tristeza onde nem a luz do Sol penetra. Estou convencida de que se existe alguma coisa na Terra que lhe pode trazer alegria à vida, é a sua sobrinha, Pollyanna.
Quer deixá-la experimentar? Gostava de lhe contar tudo o que ela fez aqui no Sanatório, mas é impossível. Só vendo com os próprios olhos. Há muito que descobri que não conseguimos explicar tudo acerca de Pollyanna. Quando tentamos, parece que se trata de uma menina impossível, presumida e enfadonha. No entanto, sabemos bem que não é nada disso. Basta trazer Pollyanna e deixá-la falar por si. É por isso que a quero levar à minha irmã e deixá-la falar por si própria. Claro que ela frequentaria a escola e, entretanto, disso estou convencidíssima, ela seria capaz de sarar a ferida que minha irmã traz no coração.
Não sei como terminar esta carta. Creio que ainda é mais difícil do que começá-la. Penso que não desejo concluí-la. Só me apetece continuar a falar sem parar, com receio de, parando, lhe dar a oportunidade de me dizer não. Por isso, se estiver tentada a dizer essa palavra horrorosa, por favor, considere como se eu não tivesse parado de falar, dizendo-lhe como quero e preciso de Pollyanna.
Della Wetherby.
- É isto! - exclamou Mrs. Chilton, enquanto punha a carta de lado. - Já alguma vez leste uma carta assim, ou ouviste falar de um pedido tão absurdo?
- Não penso assim - disse o médico sorrindo. Não creio que seja absurdo querer Pollyanna.
- Mas. a maneira como ela expõe o assunto! Sarar a ferida no coração da irmã e tudo isso! Até parece que a criança é uma espécie de remédio!
O médico riu abertamente.
- O fato é que ela o é. Eu sempre disse que gos taria de a poder receitar e vender, como se de embalagem de comprimidos se tratasse. O Charlie Ames diz que sempre fez questão, no Sanatório, de dar rapidamente aos seus doentes uma dose de Pollyanna após a chegada deles, durante o ano inteiro que ela lá esteve internada.
- Uma dose!... - desdenhou Mrs. Chilton.
- Então não a vais deixar ir?
- Ir? Claro que não! Achas bem que deixasse ficar a criança com pessoas desconhecidas? E estranhos como estes? Ao voltarmos da Alemanha não me surpreenderia que viéssemos encontrar Pollyana já embalada e etiquetada.
O médico riu de novo, deitando a cabeça para trás, e levando as mãos ao bolso à procura de uma carta.
- Recebi notícias do Dr. Ames esta manhã - disse ele num tom algo diferente do habitual e que produziu uma expressão de estranheza no rosto da mulher.
- E se eu te lesse agora a minha carta?
" Caro Tom
Miss Della Wetherby pediu-me que lhe fizesse um favor a ela e à irmã, o que faço com prazer; Conheço as Wetherby desde crianças. São de uma família antiga e educada, e dignas do maior respeito. Por esse lado nada tem a recear.
Eram três irmãs, Doris, Ruth e Della. Doris casou com um tal John Kent, contra a vontade da família. Kent era de boa famílias, mas ele próprio não valia muito. Um excêntrico e de trato difícil.
Ficou muito zangado com a atitude dos Wetherby em relação a ele e o relacionamento entre as famílias era difícil até nascer um filho. Os Wetherby passaram a adorar aquele menino, James, ou Jamie, como lhe chamavam. Doris, a mãe, morreu quando o menino tinha quatro anos e os Wetherby fizeram todo o possível para que o pai lhes entregasse completamente a criança. Kent, porém, desapareceu de repente, levando consigo o menino. Desde então nunca mais souberam deles, embora tivessem mandado procurá-los, pelo mundo inteiro.
A perda levou praticamente à morte Mr. e Mrs. Wetherby, ocorrida a ambos pouco depois. Ruth, por sua vez casou e enviuvou. O marido, chamado Carew, era muito rico e bem mais velho do que ela.
Morreu um ano após o casamento, deixando-a com um bebé que acabou também por morrer um ano depois.
Desde que o pequeno Jamie desapareceu, Ruth e Della passaram a ter um único objectivo na vida: reencontrá-lo. Fartaram-se de gastar dinheiro e revolveram o céu e a terra, todavia sem resultados. Della acabou por se dedicar à enfermagem. Tem feito um trabalho esplêndido e tornou-se uma mulher saudável, eficiente e alegre, embora sem esquecer o sobrinho perdido e sem descuidar qualquer possível pista que a pudesse conduzir à sua descoberta.
Porém, com Mrs. Carew as coisas passaram- se de modo bastante diferente. Depois de ter perdido o seu próprio filho, concentrou todo o amor maternal no filho da irmã. Como pode imaginar, ficou completamente desesperada quando ele desapareceu. Isso sucedeu há oito anos e têm sido para ela oito longos anos de infelicidade, tristeza e amargura. Tudo o que o dinheiro pode comprar e está evidentemente ao alcance dela, mas nada lhe agrada, nada a interessa. Della acha que é a altura de fazer com que ela mude, custe o que custar, e acredita que a brilhante sobrinha da sua mulher, Pollyanna, pode ser a chave mágica que conseguirá abrir a porta de uma nova vida para ela. Sendo assim, espero que não vejam impedimento em satisfazer o pedido dela. E devo acrescentar que também eu, pessoalmente ficaria muito grato pelo favor, porque Ruth Carew e a irmã são grandes e antigas amigas minhas e de minha mulher, e o que as afeta a elas também toca a nós.
Charlie"
Concluída a leitura da carta, fez-se entre ambos um longo silêncio, tão longo que o médico perguntou:
- Então, Polly?
O silêncio manteve-se. O médico, observando atentamente o rosto da mulher, viu que os lábios dela estavam trémulos. Aguardou sem insistir até ela responder.
- Quando achas que contam com ela? - perguntou finalmente.
Surpreendido, o Dr. Chilton indagou:
- Então vais deixá-la ir?
- Mas que pergunta, Thomas Chilton! Com uma carta destas eu podia fazer outra coisa que não fosse á deixá-la ir? Sendo o próprio Dr. Ames quem pede, achas que depois de tudo o que ele fez pela Pollyanna eu podia recusar fosse o que fosse?
- Oh, minha querida, só espero que o médico não se lembre de te pedir a ti - murmurou o marido com um sorriso excêntrico.
A mulher apenas lhe concedeu um olhar de desdém, dizendo:
- Podes escrever ao Dr. Ames e dizer-lhe que deixamos ir a Pollyanna. E pede-lhe que diga a Miss Wetherby para nos escrever a dar todas as instruções. Terá de ser por volta do dia 10 do mês que vem, porque tu partes a seguir e eu quero ver a criança bem instalada antes de partir.
- Quando vais dizer a Pollyanna?
- Talvez amanhã.
- O que lhe vais dizer?
- Ainda não sei bem, mas só aquilo que tiver de dizer. Seja como for, Thomas, não devemos estragar Pollyanna e qualquer criança poderia estragar-se se metesse na cabeça que era uma espécie de... de...
- De remédio embalado com etiqueta e tudo - interrompeu o médico com um sorriso.
- Sim, é isso - suspirou Mrs. Chilton. A inconsciência dela é que salva tudo. Sabes isso muito bem.
- Sim, eu sei - assentiu o marido.
- É claro que ela sabe que tu e eu e metade da cidade estão a jogar o jogo com ela e que somos mais felizes por o jogarmos.
A voz de Mrs. Chilton vacilou um pouco, continuando depois com mais firmeza:
- Mas se ela, conscientemente, deixasse de ser como é, natural, radiosa e feliz, a jogar o jogo que o pai lhe ensinou, tornava-se exactamente aquilo que a enfermeira disse que parecia: impossível. Por isso, diga o que lhe disser, nunca lhe direi que vai para casa de Mrs. Carew para a alegrar - concluiu Mrs. Shilton, levantando- se decididamente e pondo o trabalho de lado.
- Acho que és muito sensata - aprovou o médico.
No dia seguinte disseram a Pollyanna. Foi assim que as coisas se passaram:
- Minha querida - começou a tia, quando ambas ficaram a sós nessa manhã -, gostavas de ir passar o próximo Inverno a Boston?
- Consigo?
- Não. Eu decidi ir com o teu tio à Alemanha. Mrs. Carew, uma grande amiga do Dr. Ames, convidou-te para permaneceres com ela o Inverno e acho que devo deixar-te ir.
O rosto de Pollyanna fez-se triste.
- Mas em Boston não tenho o Jimmy, ou Mr. Pendleton ou Mrs. Snow, nem ninguém conhecido.
- Não, querida, mas quando para aqui vieste também não os tinhas até os conheceres.
Pollyanna esboçou um sorriso.
- É verdade tia Polly, não os conhecia! Isso quer dizer que em Boston existem Jimmys, Mr. Pendletons e Mrs. Snows à minha espera para eu as conhecer, não é verdade?
- Sim, querida.
- Então devo ficar contente com isso. Acho que agora a tia Polly sabe jogar o jogo melhor do que eu. e nunca tinha pensado em ter pessoas à minha espera só para eu as conhecer. E há muita gente! Vi algumas pessoas, quando lá estive há dois anos com Mrs. Gray. Estivemos lá duas horas inteiras no caminho do Oeste para aqui. Na estação havia um homem simpatiquíssimo, que me disse onde eu podia beber água. A tia acha que ele ainda lá está? Gostava de o rever. E também havia uma senhora muito bonita com uma menina pequenina. Vivem em Boston, como me disseram. A menina
chamava- se Susie Smith. Talvez as venha a ver. Acha que sim? E havia um rapaz e uma outra senhora com um bebé, mas viviam em Honolulu, por isso não devo conseguir encontrá-los agora. Mas conhecerei Mrs. Carew. Quem é Mrs. Carew, tia Polly? É das suas relações?
- Querida Pollyanna! - exclamou Mrs. Chilton meio a rir meio desesperada. - Como podes querer que alguém acompanhe o que dizes e ainda menos o que pensas, quando vais a Honolulu e voltas em dois segundos! Não, Mrs. Carew não é nossa conhecida. É irmã de Miss Della Wetherby. Lembras-te de Miss Wetherby do Sanatório?
Pollyanna bateu palmas.
- É irmã de Miss Wetherby? Ah, tenho a certeza de que é muito querida! Miss Wetherby era. Adorei Miss Wetherby. Tinha pequenos vincos em redor dos olhos e da boca, quando ria, e conhecia histórias engraçadíssimas. Só a tive durante dois meses, porque só chegou um pouco antes de eu ter alta. Ao princípio tive pena por não a ter tido durante todo o tempo, mas no fim, fiquei contente, porque se eu a tivesse tido durante todo o tempo teria sido muito mais difícil despedir-me dela. Engraçado, e agora parece que a vou ter outra vez, porque vou ficar com a sua irmã.
Mrs. Chilton respirou fundo e mordeu o lábio.
- Mas Pollyanna, não podes estar à espera que elas sejam parecidas! - atreveu-se a tia a dizer.
Nos dias seguintes, enquanto se trocavam cartas sobre a permanência de Pollyanna em Boston, Pollyanna preparava-se para partir desdobrando-se em visitas aos amigos de Beldingsville.
Toda a gente da pequena cidade de Vermont conhecia agora Pollyanna e quase todos jogavam o jogo com ela. Os poucos que não o faziam era por desconhecerem o que era o Jogo do Contente.
Assim, de uma casa para a outra, Pollyanna contou as novidades sobre a sua partida para Boston, onde passaria o Inverno. Em todo o lado ouviu um clamor de lamentações e protestos, desde Nancy, cozinheira da tia Polly, até ao casarão da colina onde vivia John Pendleton.
Nancy não hesitou em dizer a toda a gente, exceto à patroa, que considerava tal viagem um disparate, e que se pudesse ficaria muito contente em levar Miss Pollyanna consigo para a sua casa na terra, podendo assim Mrs. Polly partir para a Alemanha. Na colina, John Pendleton repetiu praticamente a mesma coisa, e não hesitou em dizê-lo diretamente a Mrs. Chilton.
Quanto a Jimmy, um rapazinho de 12anos de quem John Pendleton tomara conta a pedido de Pollyanna e que entretanto adotara, ficou indignadíssimo e não demorou a manifestá-lo:
- Mas acabaste de chegar! - disse ele, reprovando Pollyanna num tom de voz que os rapazinhos usam quando querem esconder o fato de se sentirem magoados.
- Bem, estou cá desde Março. Além disso, não vou lá ficar para sempre, é só este Inverno.
- Não interessa. Estiveste fora o ano inteiro, e se eu soubesse que ias outra vez embora, não me tinha dado ao trabalho de te receber com bandeiras e "fafarras" no dia
da tua chegada do "sadatório".
- Não me digas, Jimmy Bea! - exclamou Pollyanna, em tom surpreendido e desaprovador. Depois, com um toque de superioridade, resultante do orgulho ferido, observou: - Não te pedi para me ires receber. Além disso cometeste dois erros: é fanfarras e sanatório que se diz.
- E quem se rala com isso?
Os olhos de Pollyanna abriram-se ainda mais numa expressão de reprovação.
- E também já não me chamo Jimmy Bean! redarguiu o rapaz, levantando o queixo.
- Não és? Então porquê? - perguntou a menina.
- Fui adotado legalmente. Ele tencionava há muito adotar-me, mas não conseguia. Agora já conseguiu. Chamo-me Jimmy Pendleton e passei a chamá-lo por tio John. Só que ainda não estou habituado e tenho dificuldade em chamá-lo assim.
O rapaz continuava zangado, mas os vestígios da irritação tinham-se atenuado no rosto da menina, ao ouvir as palavras dele. Bateu as palmas com alegria.
- Mas que bom! Agora tens uma família a sério, uma família que gosta de ti. E nunca mais terás que explicar o teu nome, pois agora é igual ao dele. Estou tão contente, tão CONTENTE!
O rapaz levantou-se de repente do muro onde estavam sentados e afastou-se. Estava corado e tinha os olhos cheios de lágrimas. Era a Pollyanna que ele tudo devia, todo o bem que lhe tinha acontecido, ele bem o sabia.

POLLYANNA 2 - 3 - Uma dose de Pollyanna


À medida que o dia 8 de Setembro se aproximava, data em que Pollyanna deveria chegar, Mrs. Ruth Carew tornava-se cada vez mais nervosa e exasperada consigo própria. Dizia lamentar a promessa que fizera em receber a criança. Escreveu à irmã, pedindo-lhe para a libertar do compromisso, mas Della respondeu que era demasiado tarde, pois tanto ela como o Dr. Ames já tinham escrito aos Chiltons.
Pouco tempo depois chegou a carta de Della, transmitindo-lhe que Mrs. Chilton tinha dado o seu acordo e que viria dentro de alguns dias a Boston tratar da questão da escola e de outros assuntos. Assim, não havia nada a fazer senão deixar as coisas seguir o seu curso natural. Mrs. Carew acabou por se convencer e sujeitou-se ao inevitável, mas de má vontade. Procurou ser educada quando Della e Mrs. Chilton chegaram, mas ficou satisfeita por Mrs. Chilton se demorar pouco devido à quantidade de coisas que tinha para resolver.
Felizmente, a chegada de Pollyanna não estava prevista para depois do dia 8, pois o tempo em vez de reconciliar Mrs. Carew com a ideia da nova hóspede, enchia-a antes de impaciência com aquilo a que chamava de aceitação absurda do esquema disparatado de Della.
Della também estava perfeitamente consciente do estado de espírito da irmã, e embora exteriormente ela não tivesse uma atitude decidida, no seu íntimo estava muito receosa em relação aos resultados. Depositava todas as suas esperanças em Pollyanna e decidiu apostar em deixar a menina iniciar a sua luta totalmente sozinha e sem ajuda. Arranjou, assim, as coisas de modo a que Mrs. Carew a fosse esperar à estação. E logo que as apresentações foram feitas, alegou um compromisso inadiável e despediu-se. Mrs. Carew, mal tendo tempo de observar a convidada, encontrou-se sozinha com ela.
- Della, Della, não te vás já embora - disse ela agitada na direção da enfermeira que se afastava.
Della não deu mostras de a ter ouvido. Aborrecida, Mrs. Carew virou-se para a criança a seu lado.
- Mas que pena ela não ter ouvido - disse Pollyanna, cujos olhos tristes seguiam também a enfermeira. - Preferia que ela tivesse ficado, mas agora tenho-a a si, não é? Posso ficar contente com isso.
- Ah sim, tem-me a mim e eu tenho-a a si - respondeu a senhora de maneira pouco graciosa. - Vamos por aqui - indicou ela com um gesto para a direita.
Vagarosamente, Pollyanna virou-se e caminhou ao lado de Mrs. Carew através da gigantesca estação. Olhou ainda uma ou duas vezes, preocupada, para o rosto pouco sorridente da senhora e, finalmente, disse hesitante e com voz perturbada:
- Se calhar pensava que eu era bonita.
- Bonita? - repetiu Mrs. Carew.
- Sim, com caracóis! Decerto deve ter pensado como eu era, tal como fiz em relação a si. Só que eu sabia que a senhora devia ser bonita e simpática por causa da sua irmã. Eu tinha-a a ela como referência, mas a senhora não tinha ninguém e eu sei que não sou bonita por causa das sardas e não é simpático estar-se à espera de uma menina bonita e receber uma como eu, e...
- Que disparate, menina! - interrompeu Mrs. Carew um pouco asperamente. - Vamos buscar a sua mala e depois seguimos para casa. Estava a contar que a minha irmã ficasse connosco mas parece que não pode, nem por uma noite.
Pollyanna sorriu e fez que sim com a cabeça.
- Não devia poder. Devia ter alguém à espera. Tinha sempre alguém à espera dela lá no Sanatório. É uma maçada quando as pessoas estão sempre à nossa espera, não é? Assim, nem temos tempo de estar por nossa conta; mas, apesar disso, podemos ficar contentes, porque é bom ser-se desejado, não é?
Não se ouviu resposta, talvez porque, pela primeira vez na sua vida, Mrs. Carew refletia se existia alguém algures que a desejasse realmente. Não que quisesse ser desejada, pensou para si própria, zangada, enquanto levantava mais a cabeça e franzia o sobrolho na direção da criança.
Pollyanna não a viu franzir o sobrolho. Os olhos da menina dirigiam-se agitadamente em redor.
- Que carro tão bonito! Vamos nele? - exclamou Pollyanna quando chegaram diante de uma bonita limosina, com o motorista de libré a abrir a porta.
O motorista procurou sem êxito ocultar um sorriso. Porém, Mrs. Carew respondeu com a despreocupação de alguém para quem andar de automóvel não é mais do que um meio de deslocação de um lugar aborrecido para outro tão aborrecido como o anterior.
- Sim, vamos nele. Vamos para casa, Perkins - acrescentou, dirigindo-se ao deferente motorista.
- O carro é seu? - perguntou Pollyanna, detectando um ar inegável de proprietária no comportamento da sua anfitriã. - Mas que carro tão bonito! Deve ser muito rica, mais do que os que só têm tapetes em todas as salas e sorvete aos domingos como os Whites, uma das minhas Senhoras da Caridade. Eu pensava que eles eram ricos, mas sei agora que ser realmente rico significa ter anéis de diamantes, criadas, casacos de pele de foca, vestidos de seda e veludo para mudar todos os dias e um automóvel. Tem isso tudo?
- Sim, acho que sim - admitiu Mrs. Carew, com um ligeiro sorriso.
- Então, com certeza, é rica! - concluiu Pollyanna. - A minha tia Polly também tem tudo isso, mas o carro dela é puxado por cavalos. Gosto imenso de andar nestas coisas. Nunca tinha andado antes, a não ser naquele que me atropelou. Levaram-me nele depois de me terem tirado debaixo. Mas, é claro, não dei por nada, de maneira que não pude apreciar. Desde então nunca mais estive dentro de nenhum. A tia Polly não gosta. O tio Tom gosta e quer ter um. Ele diz que precisa de um automóvel na sua profissão. É médico e todos os outros médicos da cidade já têm carro. Não sei o que irá sair dali. A tia Polly está muito incomodada com aquilo. Ela quer que o tio Tom tenha tudo o que quer, mas quer que ele queira aquilo que ela quer que ele queira, está a perceber?
Mrs. Carew riu de repente.
- Sim, minha menina, parece-me que percebo - respondeu com alguma reserva, embora o olhar refletisse uma expressão pouco habitual.
- Ainda bem - respondeu Pollyanna contente. Sabia que compreenderia, apesar de parecer um bocado confuso o que eu disse. A tia Polly diz que só não se importava de ter um automóvel se fosse o único no mundo, para que ninguém fosse contra ela... Tantas casas! - bruscamente, Pollyanna mudou de assunto, olhando em redor, com admiração. - Nunca mais acabam! Tem de haver muitas, para que tanta gente possa ter onde morar, pelo que vi na estação, para além das muitas outras que se vêem nas ruas. E, claro, onde há mais pessoas, também há mais gente para conhecer. Adoro pessoas. E a senhora?
- Adorar pessoas?
- Sim, as pessoas, toda a gente!
- Não, Pollyanna, não posso dizer que as adoro - respondeu Mrs. Carew, friamente e um pouco contrariada.
Os olhos de Mrs. Carew tinham perdido aquela expressão especial. Viravam-se desconfiadamente para Pollyanna. Mrs. Carew dizia para si própria: será que tenho agora, como arenga principal, o meu dever de me dar com o próximo, à maneira da Irmã Della!
- A senhora não gosta de pessoas? Eu gosto muito. São todas tão simpáticas e diferentes umas das outras. E aqui deve haver muitas que são simpáticas e diferentes. Nem imagina como fiquei contente ao saber que vinha para cá! Adivinhei que ia gostar logo que descobri que era a senhora, isto é, a irmã de Miss Wetherby. Adoro Miss Wetherby e, por isso, não duvidei que ia gostar muito de si, pois, com certeza, são parecidas por serem irmãs.
A limosina tinha virado para a Commonwealth Avenue e Pollyanna começou imediatamente a louvar a beleza da avenida, com um jardim tão bonito no meio e que se tornava ainda mais bonita depois de terem passado por tantas ruas estreitas.
- Acho que toda a gente devia gostar de viver aqui - comentou entusiasmada.
- É muito possível, mas seria difícil - retorquiu Mrs. Carew, com as sobrancelhas levantadas.
Pollyanna, suspeitando que a expressão reflectida no rosto da senhora era de contentamento por a casa dela não se situar naquela linda avenida, apressou-se a corrigir.
- Não, claro que não - concordou. - Eu não quis dizer que as ruas mais estreitas não sejam também bonitas. Até talvez ainda sejam melhores, pois assim podemos estar contentes por não ter que andar tanto quando precisamos de atravessar a rua para pedir um ovo emprestado. Mas vive aqui? - interrompeu ela, quando o carro se deteve defronte da porta de uma casa. - Vive aqui Mrs. Carew?
- Sim, claro que vivo aqui - respondeu a senhora, algo irritada.
- Mas que contente que se deve sentir por viver num local tão bonito - exultou a menina, correndo para o passeio e olhando excitada em redor. - Não se sente contente?
Mrs. Carew não respondeu. Sisuda e de testa franzida, saiu da limosina.
Pela segunda vez em cinco minutos Pollyanna apressou-se a corrigir.
- Claro que eu não me referia ao tipo de contentamento que seja pecado de orgulho - explicou, perscrutando ansiosa o rosto de Mrs. Carew. - Talvez pensasse que eu me referia a esse tipo de contentamento, como a tia Polly pensava às vezes. Não me refiro a esse tipo de contentamento por termos alguma coisa que os outros não têm, mas ao tipo de contentamento que nos faz apetecer gritar e bater com as portas, mesmo que não seja boa educação - concluiu, dançando e saltando em bicos dos pés.
O motorista virou-se precipitadamente e meteu-se no carro. Mrs. Carew, que continuava séria, ia à frente ensinando o caminho.
- Venha Pollyanna - limitou-se a dizer, crispadamente.
Cinco dias mais tarde, Della Wetherby recebeu uma carta da irmã e abriu-a ansiosamente. Era a primeira que chegava desde que Pollyanna estava em Boston com Mrs. Carew.
" Querida irmã
Della, porque não me informaste sobre esta criança que insististe para que tomasse conta? Estou fula e não a posso mandar embora. Já tentei por três vezes, mas, em todas elas, antes de começar a dizer o que quero, ela interrompe-me dizendo-me que está a gostar imenso de estar comigo, que se sente muito contente e que sou muito boa em ficar com ela enquanto a tia está na Alemanha. Assim, diz-me, com que cara posso virar-me para ela e dizer: por favor vai para casa, não te quero aqui. E o mais absurdo é que acho que não lhe entra na cabeça que não a quero cá e parece que também não consigo fazer-lhe compreender isso.
É claro que se ela começar a pregar e a dizer-me para pensar nos meus pecados, mando-a imediatamente embora. Eu disse-te que não permitiria isso. E não permito. Por duas ou três vezes pensei que ela ia começar com prédicas, mas até aqui não passam das histórias ridículas acerca dumas Senhoras da Caridade, com o sermão a derivar para outro lado, felizmente para ela, se quer ficar. Mas ela é realmente impossível. Eu conto.
Em primeiro lugar, está maravilhada com a casa. No primeiro dia em que aqui chegou, pediu-me para abrir todas as salas e não ficou satisfeita senão quando viu desaparecer todas as sombras da casa para que pudesse apreciar todas as coisas maravilhosas que havia, coisas essas que ela disse serem ainda mais bonitas que as de Mr. John Pendleton que creio ser alguém de Beldingsville. De qualquer forma não se trata de uma das Senhoras da Caridade. Até aí já percebi.
Depois, como se não bastasse fazer-me correr de quarto em quarto, à laia de cicerone, descobriu um vestido de noite de cetim branco que eu já não vestia há anos e suplicou-me que o vestisse. Acabei por fazê-lo, não sei porquê, mas senti-me completamente desamparada nas mãos dela.
Mas isto foi apenas o principio. Pediu-me então para ver tudo aquilo que eu tinha e era tão engraçada nas histórias que contava sobre as coletas para os missionários, que eu tive mesmo de rir, embora ao mesmo tempo quase tivesse vontade de chorar, ao pensar nas coisas horríveis que a pobre criança tinha de vestir. E, claro, dos vestidos passamos às joias. E ela fez tanto barulho ao ver dois ou três dos meus anéis, que eu, disparatadamente, acabei por abrir o cofre só para ver os olhos dela arregalados. Cheguei mesmo a pensar que a criança ficava maluca. Pôs-me todos os anéis, alfinetes de peito, pulseiras e colares que tenho e insistiu em colocar dois diademas de brilhantes na minha cabeça. Fiquei sentada com pérolas, diamantes e esmeraldas pendurados, sentindo-me qual deusa num templo hindu, principalmente quando tão disparatada criança começou a dançar à minha volta batendo as palmas e cantando: Que maravilhosa, que maravilhosa! Como eu gostava de a pendurar por um fio na janela! Daria um prisma lindíssimo!
Ia-lhe perguntar que diabo queria dizer com aquilo, quando ela caiu no chão e começou a chorar. E porque achas que estava a chorar? Calcula! Porque estava radiante por ter olhos para poder ver! Que achas tu disto?
Claro que não a aturo, isto é só o principio. Pollyanna está cá há quatro dias e trava conhecimento com toda a gente. Mas, como disse, ficarei com ela até que comece com prédicas. Então devolvo-a. Felizmente que ainda não começou com isso.
Ruth. "
- "Ainda não começou com prédicas", realmente! - murmurou Della Wetherby, dobrando as folhas da carta da irmã. - Oh, Ruth! Ruth! E ainda admites ter aberto todas as salas, escancarado todas as janelas, e que te cobriste de cetim e de joias! E Pollyanna ainda nem esteve aí, sequer, uma semana! E, de fato, sem que tenha, ainda, feito alguma prédica!

POLLYANNA 2 - 4 - O jogo e Mrs. Carew


Para Pollyanna, Boston era uma experiência nova. E decerto que também para a parte da cidade que tinha o privilégio de a conhecer, ela era igualmente uma experiência nova.
Pollyanna, ao contrário das pessoas que acham que para ver o mundo se deve começar pelos pontos mais distantes, começou por "ver Boston" através de uma exploração minuciosa do meio mais próximo, a bela residência da Commonwealth Avenue, agora a sua casa. Isso, juntamente com os trabalhos escolares, ocuparam-na completamente durante alguns dias.
Havia tanta coisa para ver e para aprender. Era tudo tão maravilhoso e tão bonito. Desde os botõezinhos na parede, os quais, ao tocar-se-lhes, inundavam as salas de luz, ao grande e silencioso salão de baile, cheio de espelhos e quadros. Também havia tanta gente encantadora para conhecer, além da própria Mrs. Carew. Havia a Mary, que limpava os quartos, respondia à campainha e acompanhava Pollyanna à escola todos os dias; a Bridget, que estava na cozinha e cozinhava; Jenny, que servia à mesa; e Perkins, que conduzia o automóvel. E eram todos tão simpáticos, apesar de tão diferentes também!
Pollyanna tinha chegado numa segunda-feira e, portanto, passara quase uma semana até ao domingo seguinte. Desceu as escadas nessa manhã com uma expressão radiosa.
- Adoro os domingos - disse alegremente.
- Adora? - a voz de Mrs. Carew soava com o aborrecimento de quem não gosta de dia nenhum.
- Sim, por causa da igreja e da catequese. De que gosta mais, da igreja ou da catequese?
- Bom, de fato... - balbuciou Mrs. Carew, que raramente ia à igreja e nunca frequentava a catequese.
- É difícil dizer, não é? - interrompeu-a Pollyanna, com olhos luminosos, mas ao mesmo tempo sérios. Eu gosto mais da igreja por causa do meu pai. Sabe, ele era pastor e deve estar mesmo no Céu com a mãe e os meus irmãos. Mas tento imaginá-lo cá em baixo e, muitas vezes, é mais fácil fazê-lo na igreja quando o padre está a pregar. Fecho os olhos e imagino que é o pai que ali está, o que me ajuda muito. Fico tão contente por conseguir imaginar coisas. A senhora não fica?
- Não sei bem, Pollyanna.
- Mas pense só como são muito mais bonitas as coisas que imaginamos do que as que são realmente verdadeiras. É claro, as suas não são, porque as reais são tão bonitas. - Mrs. Carew, zangada, começou a falar mas Pollyanna retomou apressadamente o que dizia. - E claro que as minhas coisas reais são sempre muito mais bonitas. Realmente, durante o tempo em que estive doente, sem poder andar, tive de imaginar tanto quanto podia. Talvez por isso, continuo a fazê-lo inúmeras vezes, ora sobre o pai ora sobre o que calha. Hoje vou imaginar que é o pai que está lá no púlpito. A que horas vamos?
- Vamos, onde?
- À igreja.
- Mas, Pollyanna, eu não vou, não gosto de ir... - Mrs. Carew tossiu para aclarar a voz e tentar de novo dizer que não ia à igreja e que quase nunca lá ia, mas ao ver o rosto confiante de Pollyanna e aqueles olhos alegres diante de si não conseguiu dizê-lo.
- Talvez por volta das dez e um quarto, se formos a pé - disse então, quase de mau humor. - Enfim, é perto daqui!
Aconteceu, assim, que Mrs. Carew, naquela linda manhã de Setembro, ocupou pela primeira vez desde há muitos meses o banco dos Carew na igreja muito elegante onde ia quando era moça e que continuava a auxiliar bastante no que se referia a dinheiro.
Para Pollyanna, a missa daquela manhã de domingo foi motivo de grande admiração e alegria. A música maravilhosa do coro, os vitrais iluminados pelo sol, a voz apaixonada do pastor e os rituais do culto, encheram-na de êxtase, deixando-a perplexa. Só já perto de casa, disse com fervor:
- Oh! Mrs. Carew, tenho estado a pensar como estou contente por não termos de viver senão um dia de cada vez!
Mrs. Carew franziu o sobrolho e olhou para a menina. Mrs. Carew não estava com disposição para prédicas. Tinha acabado de ser obrigada a ouvi-las, do púlpito, e não estava disposta a ouvi-las de uma criança. Além disso, essa teoria de "viver um dia de cada vez" bem sabia que era uma doutrina particularmente querida de Della. Não insistia ela, constantemente: "Mas tu só tens de viver um minuto de cada vez, Ruth, e toda a gente pode aguentar seja o que for durante um minuto de cada vez! "
- Que disseste? - inquiriu Mrs. Carew, tensa.
- Sim. Pense só o que eu faria se tivesse que viver ontem, hoje e amanhã ao mesmo tempo - disse Pollyanna. - Com tantas coisas maravilhosas. Mas tive o dia de ontem; agora, estou a viver hoje; e o de amanhã ainda está para vir e também o próximo domingo. Honestamente, Mrs. Carew, se não fosse domingo e não estivéssemos nesta rua tão simpática e calma, punha-me a dançar e a gritar. Não podia deixar de o fazer. Mas, por ser domingo, tenho de esperar até chegar a casa, para aí cantar um hino, o hino mais alegre de que me consiga lembrar. Sabe qual é o hino mais alegre que existe, Mrs. Carew?
- Não, acho que não - respondeu Mrs. Carew, com voz fraca, olhando como se estivesse à procura de alguma coisa perdida. Para uma pessoa que espera que lhe digam que só precisa de aguentar um dia de cada vez por as coisas serem tão más, é surpreendente, para não dizer outra coisa, que lhe digam que, por as coisas serem tão boas, é uma felicidade não ter de aguentar senão um dia de cada vez!
Segunda-feira, na manhã seguinte, Pollyanna foi sozinha pela primeira vez à escola, de que gostou muito. Conhecia agora perfeitamente o caminho. Ficava próximo. Tratava-se de um pequeno colégio privado para meninas e, de certo modo, constituía uma nova experiência para si, e se ela gostava de experiências novas!
Ora, Mrs. Carew não gostava de experiências novas, e o certo é que estava a tê-las nos últimos dias. Para uma pessoa que se sente cansada de tudo, ter como companhia tão íntima alguém para quem tudo constitui uma alegria fascinante, por certo tudo isso deve ser um aborrecimento. E Mrs. Carew estava mais que aborrecida, sentia-se exasperada. Ainda assim, admitia para consigo própria que, se alguém lhe perguntasse por que razão se sentia exasperada, a única razão que poderia apresentar seria "por Pollyanna estar tão contente".
A Della, porém, Mrs. Carew escreveu que a palavra "contentamento" lhe dava cabo dos nervos, e que, por vezes, preferia não voltar a ouvi-la. Continuava a admitir que Pollyanna ainda não lhe fizera nenhuma prédica, e que nem sequer tentara fazê-la jogar o jogo. O que fazia, simplesmente, era considerar o "contentamento" de Mrs. Carew como uma coisa óbvia, o que para quem não se sentia contente era quase uma provocação.
Foi durante a segunda semana da estada de Pollyanna que o aborrecimento de Mrs. Carew se manifestou com irritação. A causa imediata foi a conclusão brilhante de Pollyanna para uma história acerca de uma das suas "Senhoras da Caridade".
- Ela estava a jogar o jogo, Mrs. Carew. Mas talvez não saiba de que jogo se trata. Vou contar- lhe. É um jogo ótimo.
- Não interessa, Pollyanna - objetou Mrs. Carew. Sei tudo sobre esse jogo. A minha irmã contou-me, e devo dizer que não me interessa nada.
- Com certeza, Mrs. Carew! - exclamou Pollyanna, pedindo desculpa. - Não estava a pensar no jogo para si. A senhora, evidentemente, não o podia jogar.
- Não o podia jogar? - perguntou indignada Mrs. Carew, que, apesar de não tencionar jogar tal jogo disparatado, não estava disposta a ouvir dizer que não o conseguiria fazer.
- Creio que não! - disse Pollyanna, rindo. O jogo é para descobrir alguma coisa que nos dê contentamento e a senhora nem consegue começar a procurar, porque não há nada ao seu redor que não lhe dê contentamento. Assim, não seria jogo nenhum para si, percebeu?
Mrs. Carew corou, zangada. Com o seu habitual aborrecimento dissera porventura mais do que queria dizer.
- Bom, não quis dizer tanto - contrariou ela friamente. - O que sucede é que não encontro nada que me dê contentamento.
Por momentos Pollyanna olhou-a espantada.
- Mas porquê, Mrs. Carew?
- Ora, que quer que haja aqui que me dê contentamento? - desafiou a senhora, esquecendo-se momentaneamente que não permitiria que Pollyanna lhe "desse prédicas".
- Mas, tudo - murmurou Pollyanna ainda espantada. - Tem esta linda casa.
- É apenas um lugar onde se come e dorme e eu não gosto de comer nem de dormir.
- Mas tem tantas coisas lindas!
- Cansei-me delas!
- Mesmo o seu automóvel, que a pode levar a toda a parte?
- Mas eu não quero ir a toda a parte.
- Já pensou nas pessoas e nas coisas que podia ver, Mrs. Carew?
- Não estou interessada nelas, Pollyanna.
O espanto de Pollyanna não se dissipava. A expressão crispada do rosto da senhora ficou mais vincada.
- Mas, Mrs. Carew, não compreendo. Antes, havia sempre coisas más para as pessoas jogarem o jogo e quanto piores fossem mais divertido era descobri-las; ou seja, descobrir coisas que nos dessem contentamento. Mas quando não existem coisas más, eu própria não sei como jogar o jogo.
Houve silêncio por momentos. Mrs. Carew, sentada, olhava para a janela. O seu ar zangado transformara-se entretanto num olhar desesperado e triste. Vagarosamente virou-se e disse:
- Pollyanna, não tinha pensado dizer-lhe isto, mas decidi fazê-lo. Vou contar-lhe por que razão nada do que tenho me pode dar contentamento. - Assim começou a contar a história de Jamie, o menino de quatro anos que há oito anos desaparecera completamente sem nunca mais ter dado sinal de si.
- E nunca, nunca mais o viu? - balbuciou Pollyanna, com os olhos cheios de lágrimas quando a senhora terminou a história.
- Nunca mais!
- Mas havemos de o encontrar, Mrs. Carew. Tenho a certeza que o encontraremos.
Mrs. Carew abanou a cabeça tristemente.
- Não consigo. Já procurei por toda a parte, mesmo em países estrangeiros.
- Mas ele tem de estar em algum lugar.
- Talvez esteja morto, Pollyanna. - Pollyanna soltou um pequeno grito.
- Não, Mrs. Carew. Por favor não diga isso! Vamos imaginar que ele está vivo. Podemos fazer isso e será uma grande ajuda. Se conseguirmos imaginá-lo vivo, podemos também imaginar que o vamos encontrar. E isso ajudará ainda mais... Vê, Mrs. Carew, agora já pode jogar o jogo! Pode jogá-lo com o Jamie. Pode ficar contente todos os dias, porque cada dia a aproxima mais do momento em que o tornará a ver.

POLLYANNA 2 - 5 - Um novo conhecimento


Acompanhada de Mrs. Carew, Pollyanna assistiu a concertos e matinés e visitou a biblioteca municipal e o museu de arte.
Acompanhada de Mary, deu belos passeios para ver Boston e visitou o palácio municipal e a velha igreja do sul.
Embora gostasse imenso de andar de automóvel, Pollyanna gostava ainda mais de andar de ônibus, como Mrs. Carew, surpreendida veio a descobrir.
- Vamos de ônibus? - perguntou Pollyanna ansiosa.
- Não. Perkins leva-nos - respondeu Mrs. Carew. A seguir, ao ver o desapontamento indisfarçável estampado no rosto de Pollyanna, ela acrescentou surpreendida:
- Eu a pensar que a menina gostava mais de andar de automóvel!
- Sim, sim! - assentiu Pollyanna, apressadamente. - Eu não devia ter dito nada! Possivelmente é mais barato do que andar de ônibus e.
- Mais barato que andar de ônibus! - exclamou Mrs. Carew surpreendida.
- Sim - explicou Pollyanna, de olhos mais abertos -, de ônibus são cinco centavos por pessoa e o automóvel não custa nada porque é seu. É claro, gosto muito do automóvel - apressou-se ela a dizer antes que Mrs. Carew falasse. - É só porque no ônibus há tanta gente e é muito divertido observá-los, não acha?
- Não, Pollyanna, não acho - respondeu Mrs. Carew secamente.
Por acaso, dois dias depois, Mrs. Carew ouviu algo mais sobre Pollyanna e os ônibus, e desta vez foi Mary que lhe contou.
- Que estranho, minha senhora! - explicava Mary, em resposta a uma pergunta que a patroa lhe fez. - A prontidão com que Miss Pollyanna transforma toda a gente, sem qualquer esforço! Está nela! Transpira felicidade! Calcule, entremos num ônibus, em que todos pareciam maldispostos, e cinco minutos depois tudo era irreconhecível. Homens e mulheres tinham parado de resmungar e as crianças pararam de chorar.
- Às vezes, é por algo que Miss Pollyanna me diz e que as pessoas ouvem. Outras, é apenas o "obrigado" que ela diz quando alguém insiste em dar-nos o lugar. Outras ainda, é pela maneira como ela sorri para um bebé ou para um cão. É verdade, todos os cães abanam a cauda com ela; e todos os bebés, crescidos ou mais pequenos, sorriem e acenam para ela. Se o ônibus não para, ela faz disso uma brincadeira, e se por acaso, nos enganamos no ônibus, é a coisa mais divertida que nos pode acontecer. Ela é assim com todas as coisas. De fato, com Miss Pollyanna ninguém consegue estar mal-humorado!
- Sim, acredito - murmurou Mrs. Carew, retirando-se.
O mês de Outubro veio a revelar-se nesse ano especialmente quente e agradável. E à medida que os dias dourados passavam, tornava-se evidente que acompanhar o ritmo de Pollyanna, quando saíam de casa, era uma tarefa que consumia bastante tempo e paciência a qualquer um. Mrs. Carew dispunha de tempo, mas não de paciência; por outro lado, não estava disposta a permitir que Mary passasse tanto tempo com Pollyanna nas suas fantasias.
É claro que estava fora de questão manter a criança dentro de casa. Foi assim que, algum tempo depois, Pollyanna se veio a encontrar no grande e belo jardim, no Jardim Público de Boston, e sozinha.
Aparentemente, tinha toda a liberdade mas, na realidade, estava sujeita a uma quantidade de regras. Não devia conversar com estranhos, fossem homens ou mulheres; não devia brincar com crianças estranhas e, em circunstância nenhuma, devia sair do jardim, excepto para voltar para casa. Além disso, Mary, que a levava ao jardim, verificava primeiro se ela saberia depois regressar a casa e se sabia que a Commonwealth Avenue vinha de Arlington Street através do jardim. E o regresso a casa seria necessariamente quando o relógio da torre da igreja badalasse as quatro e meia.
Pollyanna, passou realmente a ir muitas vezes ao jardim. Muitas vezes acompanhada de algumas das colegas da escola; mas, muitas mais sozinha. Apesar das restrições serem rígidas, divertia-se muito. Podia observar as pessoas sem mesmo falar com elas; e podia também conversar com os esquilos e os pombos que vinham avidamente comer as nozes e os grãos de milho que ela sempre lhes levava.
Encontrou muitas vezes um rapaz numa cadeira de rodas, com quem gostaria de falar. Gostava de se entreter com os animais, especialmente quando eles vinham buscar-lhe as nozes aos bolsos.
Mas Pollyanna, observando à distância, notava sempre uma circunstância estranha. Apesar da satisfação do rapaz em servir o seu banquete, a reserva de comida que trazia acabava quase sempre imediatamente e apesar de ele dar mostras de desapontamento, tal como o esquilo, nunca solucionava o problema trazendo mais comida no dia seguinte. Pollyanna achava que era uma questão de vistas curtas.
Quando o rapaz não brincava com os pássaros e com os esquilos, entretinha-se a ler. Na cadeira tinha normalmente livros usados e, às vezes, uma revista ou duas. Ele estava quase sempre num lugar especial e Pollyanna intrigava-se como é que ele lá chegava. Então, num dia inesquecível, descobriu. Era feriado e fora mais cedo. Logo após ter chegado ao lugar do costume, viu trazerem-no na cadeira de rodas. Um rapaz de cabelo claro empurrava-a. Correu ao encontro deles, com contentamento.
- Não devo conversar com desconhecidos. Mas consigo posso, porque o conheço de vender jornais lá na rua e também posso conversar com ele, depois de sermos apresentados - concluiu ela, com um olhar cintilante na direção do rapaz paralítico.
O rapaz riu-se para o lado e deu umas palmadinhas no ombro do rapaz paralítico.
- Estás a ouvir? Vou apresentar-te! - e, adotando uma atitude pomposa, disse: - Minha senhora, este é o meu querido amigo Sir James, Lorde of Murphy's Alley, e... - mas o rapaz da cadeira de rodas interrompeu-o.
- Jerry, deixa-te de disparates! - exclamou zangado; depois, virando para Pollyanna o rosto radiante, disse: - Tenho-a visto aqui muitas vezes, e observo-a particularmente quando dá de comer aos pássaros e aos esquilos, pois traz sempre muita comida para eles! Até acho que prefere, como eu, o Sir Lancelot. Mas, claro, também temos a Lady Rowena, mas não acho que ela tenha sido malcriada com Guinevere, ontem, quando lhe tirou o jantar da frente.
Pollyanna, confusa, piscou os olhos e franziu a testa, olhando ora para um ora para outro rapaz. Jerry riu outra vez à socapa. Depois, com um último empurrão, colocou o carro na posição habitual e preparou-se para ir embora. Por cima do ombro ainda disse a Pollyanna:
- Olhe, menina, deixe-me avisá-la de uma coisa. Este tipo não está bêbado nem é maluco, percebe? Ele só deu os nomes aos seus amiguinhos - e fez um gesto amplo dos braços na direção das criaturas felpudas e aladas que se juntaram ali vindas de todos os lados. E nem sequer são nomes de gente. São nomes de pessoas dos livros, está a perceber? Então adeus, Sir James - despediu-se ele com uma careta para o rapaz da cadeira de rodas, e foi-se embora.
Pollyanna ainda piscava os olhos e franzia a testa quando o rapaz paralítico se virou para ela com um sorriso.
- Não ligue ao Jerry. Ele é assim. Era capaz de cortar a mão direita por minha causa, mas gosta muito de brincar. Ele não me disse o seu nome.
- Chamo-me Pollyanna Whitier.
Uma expressão de simpatia espelhou-se nos olhos de Pollyanna.
- Não consegue andar mesmo nada, Sir James? O rapaz riu divertido, para depois esclarecer:
- Com que então Sir James! Isso foi mais um dos disparates do Jerry. Não sou "sir".
Pollyanna pareceu desapontada.
- Não é? Nem é "lord", como ele disse?
- Claro que não.
- Pensava que era. Como o pequeno Lord Fauntleroy. E.
Mas o rapaz interrompeu impaciente:
- Conhece o pequeno Lord Fauntleroy? E também conhece Sir Lancelot e o Graal Sagrado, o Rei Artur e a Távola Redonda, e Lady Rowena e Ivanhoe? Conhece-os todos?
Pollyanna fez um sinal de dúvida.
- Receio não os conhecer todos - admitiu. Estão todos nos livros?
O rapaz fez que sim com a cabeça.
- Tenho-os aqui. Alguns deles já os li várias vezes. Encontro sempre algo de novo neles. Sabe, também não tenho mais. Estes eram de meu pai. Deixa isso, meu diabinho! - interrompeu ele, rindo e dirigindo-se a um esquilinho pendurado nas suas calças, que metia o nariz num dos bolsos. - Acho que é melhor dar-lhes a paparoca, senão ainda nos comem - disse o rapaz a rir. - Este é o Sir Lancelot. É sempre o primeiro.
O rapaz puxou de uma caixinha, que abriu com cuidado, protegendo-a dos inúmeros olhinhos brilhantes que observavam cada movimento. Em redor dele só se ouviam zumbidos e batidelas de asas. Sir Lancelot, atento e ávido, ocupava um dos braços da cadeira de rodas. Um outro amiguinho, de cauda farfalhuda, menos atrevido, sentava-se nos quartos traseiros a um metro de distância. E um terceiro esquilo chiava barulhento num ramo de uma árvore vizinha.
Da caixa, o rapaz tirou algumas nozes, um pãozinho e uma rosca. Olhou para esta, hesitante, e perguntou a Pollyanna:
- Traz alguma coisa?
- Sim, trago muita coisa - respondeu Pollyanna, batendo no saco que trazia.
- Então, hoje talvez a coma - disse o rapaz, guardando a rosca com ar de alívio.
Pollyanna, para quem esse gesto passou quase desapercebido, meteu os dedos no seu próprio saco e deu início ao banquete.
Foi uma hora maravilhosa. Para Pollyanna, foram os momentos mais maravilhosos que passou desde que chegara a Boston, pois tinha encontrado alguém com quem podia falar depressa e durante todo o tempo que queria. Este estranho jovem parecia dispor de uma coletânea de histórias maravilhosas sobre bravos guerreiros e lindas damas, de torneios e batalhas. Além disso, descrevia as suas imagens com tanta nitidez e vivacidade, que Pollyanna via com os seus próprios olhos os feitos valorosos dos guerreiros em armas, e as belas damas com tranças, trajando vestidos carregados de joias.
As "Senhoras da Caridade" foram esquecidas. Nem sequer pensava no "Jogo do Contente". Pollyanna, com a face corada e os olhos brilhantes, percorria aquela época encantada conduzida por um rapaz que se alimentava de romances, e que, apesar de o desconhecer, tentava meter nessa curta hora em que estava acompanhado inúmeros dias de solidão.
Quando soou o meio-dia, Pollyanna apressou-se a regressar a casa e, no caminho, lembrou-se de que nem sabia o nome do rapaz. "Só sei que não se chama Sir James", e suspirou, franzindo a testa contrariada. "Mas não faz mal, amanhã vou perguntar-lhe. "

POLLYANNA 2 - 6 - Jamie


No dia seguinte, Pollyanna não viu o rapaz. Estava a chover e não pôde ir ao jardim. No outro dia também choveu. Nem sequer no terceiro dia. Apesar de o Sol ter voltado a brilhar e embora ela tenha ido ao princípio da tarde para o jardim e ter esperado bastante, ele não apareceu. Mas no quarto dia, sim, ele lá estava no lugar do costume e Pollyanna apressou-se a ir cumprimentá-lo alegremente.
- Estou tão contente por o ver! Onde esteve? Não tem vindo.
- Não pude. Tive muitas dores - explicou o rapaz bastante pálido.
- Teve dores? - inquiriu Pollyanna cheia de pena.
- Sim, tenho-as sempre - respondeu o rapaz, com naturalidade. Quase sempre consigo suportá-las e, então, venho cá. Só quando pioro, como nestes dias, é que não venho.
- Mas como aguenta as dores sempre?
- Tenho que aguentar - respondeu o rapaz, abrindo mais os olhos. - As coisas são como são e não podem ser de outro modo. Para que serve imaginar que poderiam ser diferentes? De resto, quanto mais dói num dia, mais agradável se torna no dia seguinte, quando dói menos.
- Eu sei. É como o jogo... - ia Pollyanna a dizer, mas o rapaz interrompeu-a.
- Hoje, trouxe muita comida? - perguntou ele ansioso. - Espero que sim! Eu não consegui trazer nada. O Jerry não conseguiu poupar um centavo e esta manhã não havia comida suficiente para eu trazer.
Pollyanna olhou cada vez mais comovida.
- E o que faz quando não tem nada para comer?
- Passo fome!
- Nunca conheci ninguém que não tivesse nada para comer - disse Pollyanna com voz trémula. - É claro que o pai e eu éramos pobres, e tínhamos de comer feijões e pastéis de peixe quando o que nos apetecia era peru. Mas tínhamos sempre alguma coisa. Porque não se queixa você às pessoas que vivem aqui nestas casas?
- Ora, não servia de nada!
- Como assim, não lhe dariam alguma coisa? O rapaz voltou a rir, mas agora de modo estranho.
- Ninguém, que eu conheça, deita fora carne assada e bolos com natas! Além disso, se nunca passarmos fome, não sabemos como é bom saborear batatas e leite e não teria grande coisa para escrever no meu Livro das Alegrias.
- Escrever onde?
O rapaz riu embaraçadamente e corou.
- Esqueça! Pensava que falava com a Mumsey ou o Jerry.
- Mas o que é o seu Livro das Alegrias? - insistiu Pollyanna. - Conte-me, por favor. Os cavaleiros, os lordes e as damas entram nesse livro?
O rapaz disse que não com a cabeça. Os olhos deixaram de sorrir e assumiu uma expressão triste.
- Não, antes estivessem! - disse ele, suspirando tristemente. - Bem vê, quando não podemos andar, também não podemos combater nem ter damas que nos dêem a espada e concedam talismãs. - Os olhos do rapaz iluminaram-se com um brilho súbito. Ergueu o queixo altivamente. Depois, também com rapidez, o brilho esmoreceu e o rapaz caiu de novo na sua tristeza.
- Não podemos fazer nada - concluiu ele, desanimadamente. - Só podemos sentar-nos e pensar, às vezes até com pensamentos desagradáveis. Eu queria ir à escola e aprender mais coisas do que a Mumsey me pode ensinar. Penso muito nisso. Queria correr, e jogar à bola com os outros rapazes. Também penso nisso. Queria ir para a rua vender jornais com o Jerry. Não queria que tomassem conta de mim por toda a vida. enfim, penso nisso tudo!
- Eu também sei isso - disse Pollyanna suspirando. - Eu também perdi as minhas pernas durante algum tempo.
- Perdeu? Então deve saber alguma coisa. Mas recuperou-as. e eu não - disse o rapaz com um ar ainda mais sombrio.
- Voltando atrás: ainda não me contou sobre o Livro das Alegrias - insistiu Pollyanna.
O rapaz riu, um pouco envergonhado.
- Sabe, não é grande coisa, a não ser para mim. Para si não deve ter grande importância. Comecei a escrevê-lo há um ano. Nesse dia sentia-me especialmente mal. Nada corria bem. Não parava de me lamentar. Então, agarrei num dos livros do pai e tentei lê-lo. A primeira coisa que li, foi isto, que decorei:
"Os prazeres são mais intensos
Onde parecem não existir
Não há uma folha que caia no solo
Que não tenha uma alegria de silêncio ou de som"
(Blanchard, "Alegrias Ocultas" - in Ofertas Liricas )
- Fiquei fulo. Queria ver o tipo que escreveu aquilo no meu lugar e ver que tipo de alegria ele podia encontrar nas minhas "folhas". Estava tão zangado, que decidi demonstrar que ele não sabia o que dizia, e, assim, comecei a procurar as alegrias nas minhas "folhas". Peguei num pequeno bloco-notas vazio, que o Jerry me tinha dado, e decidi escrevê-las. Tudo o que tivesse a ver com alguma coisa de que eu gostasse, escrevia no livro. Poderia desse modo saber quantas "alegrias" eu tinha.
- Sim, sim! - exclamou Pollyanna interessadíssima, quando o rapaz fez uma pausa para respirar.
- Bem, não estava à espera de arranjar muitas, mas ainda arranjei bastantes. Em quase tudo havia sempre alguma coisa de que eu gostava um pouco e, assim, tinha quase sempre assunto para escrever. Primeiro, foi o próprio livro, o fato de o ter arranjado e ter decidido escrever nele. Depois, uma pessoa ofereceu-me uma flor num vaso, e o Jerry encontrou um bom livro no metropolitano. A partir daí tornou-se-me divertidíssimo procurar motivos de alegria e encontrava-os nos lugares mais estranhos. Um dia, o Jerry descobriu o bloco-notas e percebeu o que era. Desde então, ficou a ser o Livro das Alegrias. E é tudo.
- Tudo? - exclamou Pollyanna, deliciada e surpreendida, procurando controlar-se. - Calcule, isso é o mesmo que o meu jogo! Você está a jogar o "Jogo do Contente" sem o conhecer. Bem, talvez esteja a jogá-lo melhor do que eu! Penso que o não conseguiria jogar, se não tivesse que comer e não pudesse mesmo andar - disse ela comovida.
- Jogo? Que jogo? Não conheço jogo nenhum! disse o rapaz, franzindo a testa.
Pollyanna bateu as palmas.
- Eu sei que não conhece e é por isso que é tão bonito! Mas ouça: vou explicar-lhe o que é o jogo.
E ela explicou.
- Ah! - exclamou o rapaz, satisfeito, quando ela acabou. - Quem diria!
- E você aí está a jogar o meu jogo, melhor do que toda a gente que conheço, e eu ainda nem sequer sei o seu nome! - exclamou Pollyanna, em tom quase escandalizado. - Quero saber tudo a seu respeito e desse famoso Livro das Alegrias.
- Só que não há mais nada para saber. Além disso está aqui o pobre Sir Lancelot e os outros à espera de comida - concluiu ele.
- É verdade, aqui estão eles - disse Pollyanna, suspirando e olhando impaciente para as criaturas que se agitavam em torno deles. Com decisão, virou o saco de pernas para o ar e espalhou o que trazia aos quatro ventos. - Pronto, já está. Agora podemos conversar outra vez - disse ela, contente. - E há uma quantidade de coisas que eu quero saber. Primeiro, por favor, como se chama? Só sei que não é Sir James.
O rapaz sorriu.
- Não sou de fato, mas é assim que o Jerry quase sempre me chama. Mumsey e os outros chamam- me Jamie.
- Jamie! - Pollyanna conteve a respiração, com um brilho de esperança a cintilar-lhe nos olhos. Mas quase de seguida sentiu-se assaltada pela dúvida.
- Mumsey significa mãe?
- Claro!
Pollyanna descontraiu-se. Se Jamie tinha uma mãe, não podia ser o mesmo Jamie de Mrs. Carew, cuja mãe morrera há muito tempo. Mas se fosse ele, que interessante que era.
- Onde vive? Tem mais alguém de família, para além de sua mãe e do Jerry? Vem para aqui todos os dias? Onde está o seu Livro das Alegrias? Posso vê-lo? Os médicos já o desiludiram de voltar a andar? Onde disse que arranjou esta cadeira de rodas?
O rapaz respondeu troçando.
- Tantas perguntas! Quer que comece por qual? Bem, vou começar pela última, portanto do fim para o princípio. Assim talvez não me esqueça de nenhuma. Arranjei esta cadeira de rodas há um ano. Jerry conhece um jornalista que escreveu sobre mim, dizendo que eu não podia andar, etc. e falava do Livro das Alegrias. Logo apareceu uma quantidade de homens e mulheres com esta cadeira de rodas para mim. Disseram-me que tinham lido tudo acerca de mim e que queriam que eu ficasse com ela para me recordar deles.
- Mas que contente deve ter ficado!
- É verdade! Gastei uma página inteira do Livro das Alegrias para contar tudo sobre a cadeira.
- Mas nunca mais pode voltar a andar? - os olhos de Pollyanna estavam rasos de lágrimas.
- Infelizmente, disseram que não.
- Também me disseram isso, mas depois mandaram-me para o Dr. Ames, onde fiquei quase um ano, e ele pôs-me a andar. Talvez que ele pudesse fazer o mesmo consigo!
O rapaz fez que não com a cabeça.
- Oh, não podia! De qualquer maneira não podia lá ir tratar-me. Devia custar muito dinheiro. Já me convenci de que nunca mais voltarei a andar. Paciência! - e o rapaz atirou a cabeça para trás num gesto de impaciência. - Procuro não pensar nisso. Sabe como é quando o nosso pensamento começa a trabalhar.
- Sim, claro, e eu a falar disso! - exclamou Pollyanna, arrependida. - Já lhe disse que sabe jogar o jogo melhor do que eu. Continue, pois ainda nem sequer me contou metade. Onde vive? E o Jerry, é o único irmão que tem?
Uma expressão doce surgiu no rosto do rapaz. Os olhos brilharam-lhe.
- Ele não é da família, nem a Mumsey! Oh, mas têm sido tão bons para mim!
- O quê? - perguntou Pollyanna, imediatamente alerta. - Então essa tal "Mumsey" não é a sua mãe?
- Não.
- E não tem mãe? - perguntou Pollyanna cada vez mais agitada.
- Não, não me lembro de alguma vez ter tido mãe, e o pai morreu há seis anos.
- Que idade tinha?
- Não sei. Era pequeno. A Mumsey diz que eu tinha uns seis anos. Foi nessa altura que ficaram comigo.
- E chama-se Jamie? - Pollyanna continha a respiração.
- Sim, já lhe disse.
- Mas com certeza tem outro nome!
- Não sei.
- Não sabe?
- Não me lembro. Era demasiado pequeno e nem os Murphys sabem. Só me conheceram por Jamie.
Uma expressão de grande desapontamento surgiu no rosto de Pollyanna, mas quase de imediato um novo pensamento afastou-lhe as sombras.
- Se não sabe qual é o seu sobrenome também não pode saber se é ou não Kent! - exclamou ela.
- Kent? - perguntou o rapaz, confuso.
- Sim - respondeu Pollyanna, excitadíssima. Sabe, é que há um rapazinho chamado Jamie Kent que. - ela parou de repente e mordeu o lábio.
Ocorrera a Pollyanna que não seria simpático dar a conhecer ao rapaz a sua esperança de que ele fosse o desaparecido Jamie. Era preferível que ela se certificasse antes de suscitar quaisquer expectativas, pois de outro modo podia causar mais tristeza do que alegria.
- Bom, esqueçamos isso do Jamie Kent. Fale-me antes de si, por quem estou mais interessada.
- Não há mais nada a contar. Não sei nada de interessante - disse o rapaz hesitante. - Disseram-me que o meu pai era estranho e nunca falava. E que nem sequer sabiam como se chamava. Todos lhe chamavam "o professor". Mumsey diz que ele e eu vivíamos num pequeno quarto das traseiras, no último andar de uma casa em Lowell, e que eramos pobres, mas não tanto como agora. O pai de Jerry era vivo nessa altura e tinha um emprego.
- Sim, sim, continue - instou Pollyanna.
- Bem, a Mumsey diz que o meu pai estava bastante doente e se tornou cada vez mais estranho, de maneira que, por isso, tinham-me com eles uma boa parte do tempo. Nessa altura eu conseguia andar um pouco, mas as minhas pernas já não estavam bem. Brincava com o Jerry e com a menina que morreu. Entretanto, o meu pai morreu e não havia ninguém que tomasse conta de mim. Foi então que umas pessoas queriam pôr-me num orfanato, mas a Mumsey disse que ficava comigo e o Jerry esteve de acordo. E assim fiquei com eles. A menina tinha morrido e eles disseram que eu podia tomar o lugar dela. Desde então têm tomado conta de mim. Depois caí e fiquei pior. Agora eles são muitíssimo pobres porque o pai de Jerry morreu. Mas continuam a tomar conta de mim. Não são tão bons?
- Sim, sim - exclamou Pollyanna. - Mas hão-de ter a sua recompensa. Tenho a certeza, serão recompensados!
Pollyanna tremia agora toda de satisfação. A última dúvida tinha desaparecido. Encontrara o desaparecido Jamie. Tinha a certeza. Mas, prudentemente, não devia ainda falar. Mrs. Carew devia vê-lo primeiro. Depois... Bem, nem a imaginação de Pollyanna conseguia visualizar a imagem do feliz reencontro de Mrs. Carew com Jamie!
Pôs-se de pé de repente, com desrespeito manifesto por Sir Lancelot, que tinha voltado e estava a meter o nariz no colo dela à procura de mais nozes.
- Bom, tenho de me ir embora já, mas amanhã volto. Talvez traga comigo uma senhora que, julgo, gostará de o conhecer. Você também volta cá amanhã? - quis ela saber, ansiosa.
- Sim. Jerry traz-me cá quase todas as manhãs. Eles preparam as coisas para mim de maneira a eu trazer o meu almoço e ficar até às quatro da tarde. O Jerry é muito bom para mim!
- Eu sei, eu sei - assentiu Pollyanna. - Entretanto, talvez eu encontre outra pessoa boa para si!