terça-feira, 30 de julho de 2013

10 - JON


Jon subiu os degraus devagar, tentando não pensar que aquela podia ser a última vez. Fantasma caminhava em silêncio ao seu lado. Lá fora, a neve rodopiava através dos portões do rasteio, e o pátio era um lugar de barulho e caos, mas dentro das espessas paredes de pedra ainda havia calor e silêncio. Muito silêncio para o gosto de Jon. Chegou ao patamar e ficou ali por um longo momento, com medo. Fantasma encostou o focinho em sua mão e Jon conseguiu coragem por causa do contato. Endireitou-se e entrou no quarto.
A Senhora Stark estava lá, junto à cama. Estivera ali, noite e dia, ao longo de quase quinze dias. Nem por um momento abandonara a cabeceira de Bran. Ordenara que as refeições lhe fossem trazidas, e também os banhos e uma pequena cama dura para dormir, embora se dissesse que quase não tinha dormido. Ela própria o alimentava com a mistura de mel, água e ervas que lhe sustentava a vida. Nem uma vez deixara o quarto. Por isso Jon mantivera-se afastado. Mas agora não havia mais tempo.
Parou à porta por um momento, com medo de falar, de se aproximar. A janela estava aberta, lá embaixo um lobo uivava. Fantasma o ouviu e ergueu a cabeça.
A Senhora Stark olhou para ele. Por um momento não pareceu reconhecê-lo. Por fim, pestanejou.
- O que você está fazendo aqui? - perguntou numa voz estranhamente monótona e despida de emoção.
- Vim ver Bran - Jon respondeu. - Dizer-lhe adeus.
O rosto dela não se alterou. Seus longos cabelos ruivos estavam opacos e emaranhados. Parecera ter envelhecido vinte anos.
- Acabou de dizer. Agora, vá embora.
Parte dele só desejava fugir, mas sabia que se o fizesse podia nunca mais ver Bran. Deu um nervoso passo para dentro do quarto.
- Por favor - ele pediu.
Algo frio se moveu nos olhos dela.
- Eu disse para sair. Não o queremos aqui.
Tempos atrás, aquilo o teria posto a correr, até talvez o tivesse feito chorar. Mas agora só o deixou zangado. Seria em breve um Irmão Juramentado da Patrulha da Noite, e enfrentaria perigos maiores que Catelyn Tully Stark.
- Ele é meu irmão - disse.
- Terei de chamar os guardas?
- Chame-os - disse Jon, em desafio. - Não pode me impedir de vê-lo - atravessou o quarto, mantendo a cama entre ele e a Senhora Stark, e olhou para Bran.
Ela segurava uma das mãos do filho. Parecia uma garra. Este não era o Bran de que Jon se lembrava. A carne tinha desaparecido toda. A pele esticava-se, apertada, sobre ossos espetados. Por baixo do cobertor, as pernas dobravam-se de uma maneira que o enchia de náusea. Os olhos estavam profundamente afundados em poços negros; abertos, mas nada viam. A queda de algum modo o encolhera. Quase parecia uma folha, como se o primeiro vento forte o fosse levar para a tumba.
E, no entanto, sob a frágil gaiola daquelas costelas estilhaçadas, o peito subia e descia a cada respiração pouco profunda.
- Bran - disse Jon - lamento não ter vindo antes. Tive medo - conseguia sentir as lágrimas rolarem pelo rosto. Já não se importava. - Não morra, Bran, Por favor. Estamos todos à espera que você acorde. Robb e eu, e as meninas, todos...
A Senhora Stark observava. Não tinha gritado pelos guardas, e Jon tomou o fato por aceitação. Fora da janela, o lobo gigante voltou a uivar. O lobo a que Bran não tivera tempo de pôr um nome.
- Tenho agora de ir embora - disse Jon. - Tio Benjen está à espera. Vou para o Norte, para a Muralha. Temos de partir hoje, antes da chegada das neves - lembrou-se de como Bran estivera excitado com a perspectiva da viagem. O pensamento de deixá-lo para trás assim era mais do que conseguia suportar. Jon limpou as lágrimas, inclinou-se e deu um beijo ligeiro nos lábios do irmão.
- Eu quis que ele ficasse aqui comigo - disse a Senhora Stark em voz baixa.
Jon a observou, desconfiado. Ela nem sequer o olhava. Não estava falando para ele, mas para uma parte de si, era como se ele nem estivesse no quarto.
- Rezei para que isso acontecesse - disse ela em voz baça. - Ele era o meu rapazinho especial. Fui até o septo e rezei sete vezes aos sete rostos de deus para que Ned mudasse de idéia e o deixasse aqui comigo. Por vezes as preces são respondidas.
Jon não sabia o que dizer.
- A culpa não foi da senhora - conseguiu falar, depois de um silêncio incômodo. Os olhos dela o encontraram. Estavam cheios de veneno.
- Não me faz falta a sua absolvição, bastardo.
Jon baixou os olhos. Ela embalava uma das mãos de Bran. Ele pegou na outra e a apertou. Dedos como ossos de pássaro.
- Adeus - ele se despediu.
Já tinha chegado à porta quando ela o chamou.
- Jon - ele devia ter continuado a andar, mas ela nunca antes o chamara pelo nome. Virou-se e a viu olhando-o no rosto, como se o visse pela primeira vez.
- Sim? - ele respondeu,
- Deveria ter sido você - ela disse, e então voltou a virar-se para Bran e começou a chorar, todo o corpo a estremecer com os soluços, Jon nunca antes a vira chorar.
Foi uma longa descida até o pátio. Lá fora, tudo era barulho e confusão. Carregavam-se carroças, homens gritavam, eram postas armaduras e selas em cavalos que eram tirados da cavalariça. Começara a cair uma neve ligeira, e toda a gente estava mergulhada no tumulto da partida.
Robb encontrava-se no meio da confusão, gritando ordens com os melhores desses homens. Parecia ter crescido ultimamente, como se a queda de Bran e o colapso da mãe o tivessem de algum modo tornado mais forte. Vento Cinzento estava a seu lado.
- Tio Benjen anda à sua procura - ele disse a Jon. - Queria ter partido há uma hora.
- Eu sei - Jon respondeu. - Em breve - olhou em volta, para todo o ruído e confusão. - Partir é mais difícil do que eu pensava.
- Para mim também - disse Robb. Tinha neve nos cabelos, que derretia com o calor do corpo. - Você o viu?
Jon fez um aceno, por não confiar na voz.
- Ele não vai morrer - disse Robb. - Eu sei.
- Vocês, os Stark, são difíceis de matar - concordou Jon. A voz saiu sem entoação e cansada. A visita tinha levado toda sua força.
Robb percebeu que havia algo de errado.
- A minha mãe,..
- Ela foi... muito amável - disse-lhe Jon. Robb pareceu aliviado.
- Ótimo - sorriu. - Da próxima vez que o vir, estará todo de negro.
Jon forçou-se a devolver o sorriso.
- Sempre foi a minha cor. Daqui a quanto tempo pensa que isso acontecerá?
- Não muito - prometeu Robb. Puxou Jon para si e lhe deu um forte abraço. - Até a vista, Snow.
Jon devolveu o abraço.
- Até a vista, Stark. Cuide de Bran.
- Cuidarei - afastaram-se e olharam um para o outro, embaraçados. - Tio Benjen disse para mandá-lo para os estábulos se o visse - disse Robb por fim.
- Tenho mais uma despedida a fazer - informou Jon.
- Então não o vi - respondeu Robb. Jon o deixou ali, na neve, rodeado de carroças, lobos e cavalos. Era uma curta caminhada até o armeiro. Recolheu seu embrulho e dirigiu-se pela ponte coberta até a Torre.
Arya estava no seu quarto, enchendo uma arca de pau-ferro polido que era maior que ela. Nymeria a ajudava. Arya só tinha de apontar, e a loba atravessava o quarto de um salto, abocanhava algum bocado de seda e o trazia de volta. Mas quando farejou Fantasma, sentou-se e soltou um ganido.
Arya olhou para trás, viu Jon e pôs-se em pé de um salto. Atirou-lhe os braços magros com torça ao pescoço.
- Temia que já tivesse partido - ela disse, com um nó na garganta. - Não me deixaram sair para dizer adeus.
- O que foi que você fez agora? - a voz de Jon soava divertida.
Arya o largou e fez uma careta.
- Nada. Estava de malas feitas e tudo - indicou com um gesto a enorme arca, que não estava mais que um terço cheia, e as roupas espalhadas por todo o quarto. - Septã Mordane diz que tenho de fazer tudo outra vez. Não tinha as coisas dobradas como deve ser, uma senhora respeitável do Sul não se limita a atirar a roupa para dentro da arca como trapos velhos, ela me disse.
- E foi isso o que você fez, irmãzinha?
- Bem, a roupa vai ficar toda bagunçada de qualquer modo - disse Arya. - Quem se importa como está dobrada?
- Septã Mordane - Jon respondeu. - E também não me parece que ela goste de ver Nymeria ajudando - a loba olhou-o em silêncio com seus escuros olhos dourados. - Mas ainda bem. Tenho uma coisa que quero que leve contigo, e tem de ser muito bem embalada.
O rosto dela iluminou-se.
- Um presente?
- Pode dar-lhe esse nome. Feche a porta.
Desconfiada, mas excitada, Arya verificou o átrio.
- Nymeria, aqui. Guarda - deixou a loba do lado de fora a fim de avisá-los se intrusos se aproximassem e fechou a porta.
Nessa altura, Jon tinha já removido os panos em que embrulhara a coisa. Apresentou-a à irmã.
Os olhos de Arya abriram-se muito. Olhos negros, como os dele.
- Uma espada - disse ela numa voz baixa e segredada.
A bainha era de suave couro cinzento, tão maleável como o pecado. Jon desembainhou a lâmina devagar, para que ela visse o profundo brilho azul do aço.
- Isto não é um brinquedo - disse-lhe. - Tenha cuidado para não se cortar. O gume é suficientemente afiado para fazer a barba.
- Moças não fazem a barba - disse Arya.
- Mas talvez devessem. Já viu as pernas da septã?
Ela riu.
- É tão fininha.
- Tal como você - disse-lhe Jon. - Mandei Mikken fazer isto especialmente para você. Os espadachins usam espadas destas em Pentos, Myr e nas outras Cidades Livres. Não arrancará a cabeça de um homem, mas pode enchê-lo de buracos se for suficientemente rápida.
- Eu posso ser rápida - disse Arya.
- Terá de treinar todos os dias - colocou a espada em suas mãos, mostrou-lhe como pegar e deu um passo para trás. - Como você a sente? Gosta do equilíbrio?
- Acho que sim - disse Arya.
- Primeira lição - disse Jon. - Espete neles a ponta aguçada.
Arya deu-lhe uma pancada no braço com a parte plana da lâmina. O golpe doeu, mas Jon começou a sorrir como um idiota.
- Eu sei qual é a ponta que se usa - disse Arya. Um olhar de dúvida atravessou-lhe o rosto. - Septã Mordane vai tirá-la de mim.
- Não, se não souber que a tem - disse Jon.
- Com quem hei de treinar?
- Há de encontrar alguém - prometeu-lhe Jon. - Porto Real é uma verdadeira cidade, mil vezes maior que Winterfell. Até encontrar um parceiro, observe como lutam no pátio. Corra, ande a cavalo, fortaleça-se. E, faça o que fizer...
Arya sabia o que vinha a seguir. Os dois disseram ao mesmo tempo:
- ... não... conte... a... Sansa!
Jon afagou-lhe os cabelos.
- Vou sentir sua falta, irmãzinha. - De súbito, ela pareceu quase chorar.
- Queria que viesse conosco.
- Por vezes, estradas diferentes vão dar no mesmo castelo. Quem sabe? - estava se sentindo melhor agora. Não ia permitir a si próprio ficar triste. - Tenho de ir. Acabarei passando o primeiro ano na Muralha a despejar penicos se deixar Tio Benjen à espera mais tempo.
Arya correu para ele para um último abraço.
- Largue a espada primeiro - Jon a preveniu, rindo. Ela pôs a arma de lado quase timidamente e o encheu de beijos.
Quando ele se virou, já na porta, ela estava de novo com a espada na mão, testando seu equilíbrio.
- Ia me esquecendo - disse. - Todas as melhores espadas têm nomes.
- Como a Gelo - disse ela. Olhou a espada que tinha na mão. - E esta, tem nome? Ah, diga-me.
- Não adivinha? - brincou Jon. - A sua coisa favorita.
Arya a princípio pareceu desorientada. Mas depois compreendeu. Era assim: rápida. Os dois disseram juntos:
- Agulha!
A memória da gargalhada dela o aqueceu ao longo da demorada viagem para o Norte.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

NÃO DÊ SPOILERS!
Encontrou algum erro ortográfico no texto? Comente aqui para que possa arrumar :)
Se quer comentar e não tem uma conta no blogger ou google, escolha a opção nome/url e coloque seu nome. Nem precisa preencher o url.
Comentários anônimos serão ignorados