segunda-feira, 29 de julho de 2013

9 - TYRION


Em algum lugar no grande labirinto de pedra de Winterfell um lobo uivou. O som pairou sobre o castelo como uma bandeira de luto.
Tyrion Lannister ergueu os olhos dos seus livros e estremeceu, apesar de a biblioteca estar quente e aconchegante. Há algo no uivar de um lobo que tira um homem do seu aqui e agora e o deposita numa floresta escura da mente, correndo nu à frente da matilha.
Quando o lobo gigante voltou a uivar, Tyrion fechou o pesado livro encadernado a couro que estava lendo, um discurso com cem anos de um meistre há muito morto sobre a mudança das estações. Cobriu um bocejo com as costas da mão. Sua lanterna de leitura bruxuleava, com o óleo quase gasto, enquanto a luz da madrugada se esgueirava pelas janelas elevadas. Tinha passado a noite inteira lendo, mas nada havia de novo. Tyrion Lannister não era homem de dormir muito.
Quando deslizou do banco, sentiu as pernas rígidas e doloridas. Devolveu-lhes alguma vida com uma massagem e mancou pesadamente até a mesa onde o septão ressonava baixinho, com um livro aberto a servir-lhe de almofada.
Tyrion deitou um olhar de relance ao título. Não admirava: era uma biografia do Grande Meistre Aethelmure.
- Chayle - disse, em voz baixa. O jovem ergueu-se de um salto, pestanejando, confuso, com o cristal de sua ordem balançando vigorosamente na ponta de sua corrente de prata.
- Vou quebrar o jejum. Trate de pôr os livros de volta nas prateleiras. Tome cuidado com os rolos valirianos, porque o pergaminho está muito seco. O Máquinas de Guerra de Ayrmidon é bastante raro, e a sua é a única cópia completa que já vi - Chayle olhou-o de boca aberta, ainda meio adormecido. Pacientemente, Tyrion repetiu as instruções, depois deu ao septão uma palmada no ombro e o deixou com suas tarefas.
No exterior, Tyrion encheu os pulmões com o ar frio da manhã e começou sua laboriosa descida dos íngremes degraus de pedra que se enrolavam em torno do exterior da torre da biblioteca. Era um avanço lento; os degraus eram altos e estreitos, ao passo que as pernas eram curtas e torcidas. O sol nascente ainda não iluminava os muros de Winterfell, mas os homens já estavam muito ativos no pátio, lá embaixo. A voz áspera de Sandor Clegane vagueou até seus ouvidos.
- O rapaz leva muito tempo para morrer. Gostaria que se fosse logo.
Tyrion olhou para baixo de relance e viu o Cão de Caça em pé ao lado de Joffrey, enquanto escudeiros formigavam em redor.
- Pelo menos morre em silêncio - respondeu o príncipe. - E o lobo que faz barulho. Quase não consegui dormir esta noite.
Clegane lançou uma longa sombra sobre a terra bem batida quando seu escudeiro levantou o elmo negro sobre sua cabeça.
- Posso silenciar a criatura, se o agraciar - disse através do visor aberto. O ajudante colocou-lhe uma espada na mão.
Clegane testou o seu peso cortando o ar frio da manhã. Atrás dele, o pátio ressoava com o som estridente de aço a bater em aço.
A idéia pareceu encher o príncipe de prazer.
- Mandar um cão matar um cão! - exclamou. - Winterfell está tão infestado de lobos que os Stark nunca se darão conta da falta de um.
Tyrion saltou do último degrau para o pátio.
- Permita-me discordar, sobrinho - disse. - Os Stark são capazes de contar até seis. Ao contrário de certos príncipes que eu poderia citar.
Joffrey teve pelo menos a educação de corar.
- Uma voz vinda de lugar algum - disse Sandor. Espreitou através do elmo, olhando para um lado e para outro. - Espíritos do ar!
O príncipe riu, como ria sempre que o guarda-costas fazia aquela farsa de pantomimeiro. Tyrion já estava habituado.
- Aqui embaixo.
O homem alto espreitou para o chão e fingiu reparar nele.
- O pequeno senhor Tyrion - disse. - As minhas desculpas. Não o vi aí,
- Hoje não tenho disposição para a sua insolência - Tyrion virou-se para o sobrinho. - Joffrey, já é mais que tempo de ir falar com Lorde Eddard e sua senhora para lhes oferecer seu consolo.
Joffrey pareceu tão petulante como só um jovem príncipe podia ser.
- E que bem lhes faria o meu consolo?
- Nenhum - disse Tyrion. - Mas espera-se que faça isto. Sua ausência foi notada.
- O rapaz Stark não me é nada - disse Joffrey. - Não consigo suportar os choros das mulheres. Tyrion Lannister ergueu o braço e deu no sobrinho um forte tapa na cara. A bochecha do rapaz começou a corar.
- Uma palavra - disse Tyrion - e bato outra vez.
- Vou contar para minha mãe! - exclamou Joffrey.
Tyrion bateu-lhe de novo. Agora ambas as bochechas ardiam.
- Vai lá contar para ela - disse-lhe Tyrion. - Mas primeiro vá falar com o Senhor e a Senhora Stark, ponha-se de joelhos e lhes diga o quanto lamenta e que está a seu serviço se houver alguma coisa que possa fazer por eles nesta hora desesperada, e que lhes dedica todas as suas preces. Compreende?
O rapaz fez cara de quem ia chorar. Mas, em vez disso, deu um fraco aceno com a cabeça. Depois se virou e fugiu correndo do pátio, com as mãos cobrindo o rosto. Tyrion ficou vendo-o correr.
Uma sombra caiu-lhe sobre o rosto. Virou-se e deparou com Clegane, que se erguia acima ia sua cabeça como uma falésia.
A armadura negra como fuligem do cavaleiro parecia embotar o sol. Ele tinha baixado o visor do elmo, moldado de forma a parecer-se com a cabeça de um cão de caça negro, de dentes arreganhados, assustador ao olhar, mas Tyrion sempre o considerara uma grande melhoria comparado à cara horrivelmente queimada de Clegane.
- O príncipe se recordará disto, pequeno senhor - preveniu o Cão de Caça, e o elmo transformou sua gargalhada num estrondo oco.
- Rezo para que se recorde - respondeu Tyrion Lannister. - Caso se esqueça, seja um bom cãozinho e o relembre - passou os olhos pelo pátio. - Sabe onde posso encontrar meu irmão?
- Está no desjejum com a rainha.
- Ah - respondeu Tyrion. Inclinou negligentemente a cabeça para Sandor Clegane e afastou-se, assobiando, com tanta vivacidade quanto suas pernas deformadas permitiam. Sentia pena do primeiro cavaleiro a medir forças hoje com o Cão de Caça. O homem tinha mau gênio.
Uma refeição fria e triste tinha sido servida na sala de estar da Casa de Hóspedes. Jaime estava sentado a uma mesa com Cersei e as crianças, conversando em voz baixa e abafada.
- Robert ainda está deitado? - perguntou Tyrion ao sentar-se à mesa sem ser convidado.
A irmã o olhou com a mesma tênue expressão de desagrado que ostentava desde o dia em que ele nascera.
- O rei não chegou a dormir - informou. - Está com Lorde Eddard. O desgosto do amigo o atingiu profundamente no coração.
- Tem um grande coração o nosso Robert - disse Jaime com um sorriso indolente. Eram muito poucas as coisas que Jaime levava a sério. Tyrion conhecia essa característica do irmão, e o perdoava. Durante todos os terríveis longos anos da infância, só Jaime lhe mostrara o menor sinal de afeto ou respeito, e por isso Tyrion estava pronto a perdoar-lhe quase tudo.
Um servo aproximou-se.
- Pão - disse-lhe Tyrion - e dois daqueles peixinhos, e uma caneca daquela bela cerveja preta para empurrá-los para baixo. Ah, e algum bacon. Queime-o até ficar preto - o homem fez uma reverência e afastou-se. Tyrion voltou a virar-se para os irmãos. Gêmeos, um homem e uma mulher.
E, naquela manhã, pareciam-se muito. Ambos tinham escolhido um verde profundo que combinava com seus olhos. Os caracóis louros eram em ambos uma confusão elegante, e ornamentos de ouro brilhavam em seus pulsos, dedos e gargantas.
Tyrion perguntou a si próprio como seria ter um gêmeo, mas decidiu que preferia não saber. Já era suficientemente ruim encarar-se todos os dias no espelho. Outro dele era uma idéia terrível demais para imaginar.
Príncipe Tommen falou:
- Tem notícias de Bran, tio?
- Passei ontem à noite pela enfermaria - anunciou Tyrion. - Não havia alterações. O meistre acha que é sinal esperançoso.
- Não quero que Brandon morra - disse Tommen timidamente. Era um bom rapaz. Não era como o irmão, mas também Jaime e Tyrion não eram propriamente a imagem um do outro.
- Lorde Eddard tinha também um irmão chamado Brandon - meditou Jaime. - Um dos reféns assassinados por Targaryen. Parece ser um nome sem sorte.
- Ah, certamente não é assim tão desafortunado - disse Tyrion. O servo trouxe-lhe o prato, e ele partiu um bocado de pão escuro.
Cersei o estava estudando com prudência.
- O que quer dizer?
Tyrion deu-lhe um sorriso torto.
- Ora, apenas que Tommen pode ver realizado seu desejo. O meistre pensa que o rapaz pode sobreviver - e bebeu um trago de cerveja.
Myrcella fez um arquejo de contentamento, e Tommen sorriu nervosamente, mas Tyrion não estava observando as crianças. O olhar que Jaime e Cersei trocaram não durou mais de um segundo, mas não lhe passou despercebido. Então, a irmã deixou cair seu olhar sobre a mesa.
- Isto não é nenhuma misericórdia. Estes deuses nortenhos são cruéis ao deixar que crianças passem por tamanha dor.
- Quais foram as palavras do meistre? - Jaime perguntou.
O bacon estalou ao ser mordido. Tyrion mastigou por um momento, pensativo, e disse:
- Ele pensa que se o rapaz fosse morrer, já teria acontecido. E já se passaram quatro dias sem nenhuma alteração.
- Será que Bran ficará melhor, tio? - perguntou a pequena Myrcella, que tinha toda a beleza da mãe, mas nada da sua natureza,
- Ele quebrou a coluna, minha menina - informou Tyrion. - O meistre só tem esperança - Tyrion mastigou mais um pouco de pão. - Eu seria capaz de jurar que é aquele seu lobo que o mantém vivo. A criatura fica junto à sua janela dia e noite uivando. E sempre que o afugentam, ele volta. O meistre disse que uma vez fecharam a janela, para abafar o barulho, e Bran pareceu ficar mais fraco. Quando voltaram a abri-la, seu coração bateu com mais força.
A rainha estremeceu.
- Há qualquer coisa que não é natural nesses animais - disse. - São perigosos. Não quero que nenhum deles venha para o Sul conosco.
Jaime interveio:
- Teremos dificuldade em impedi-los de ir, irmã. Eles seguem aquelas moças para todo lado. Tyrion atacou o peixe.
- Vão então partir em breve?
- Não será breve o suficiente - disse Cersei. Então franziu a sobrancelha. - Não vamos partir? - ela disse alto. - Então, e você? Deuses, não me diga que vai ficar aqui?
Tyrion encolheu os ombros.
- Benjen Stark regressará à Patrulha da Noite com o filho bastardo do irmão. Penso em ir com eles e ver esta Muralha de que tanto ouvimos falar.
Jaime sorriu.
- Espero que não esteja pensando em vestir o negro, querido irmão.
Tyrion soltou uma gargalhada.
- O quê, eu, celibatário? As prostitutas passarão a pedintes entre Dorne e Rochedo Casterly. Não, só quero subir ao topo da Muralha e mijar do limite do mundo.
Cersei se pôs abruptamente em pé.
- As crianças não têm de ouvir esta nojeira. Tommen, Myrcella, venham - Cersei saiu da sala de estar em passo vivo, seguida pela cauda do vestido e pelas crias.
Jaime Lannister observou o irmão, pensativo, com seus frios olhos verdes,
- Stark nunca consentirá em abandonar Winterfell com o filho pairando sob as sombras da morte.
- Ele consentirá se Robert ordenar - disse Tyrion. - E Robert ordenará. De qualquer forma, não há nada que Lorde Eddard possa fazer pelo filho.
- Poderia pôr fim ao seu tormento - disse Jaime. - Era o que eu faria se fosse meu filho. Seria um ato de misericórdia.
- Aconselho-o que não sugira essa idéia a Lorde Eddard, meu querido irmão - disse Tyrion. - Ele não a receberá de bom grado.
- Mesmo que o rapaz sobreviva, será um aleijado. Pior que um aleijado. Uma coisa grotesca. Eu preferiria uma morte boa e limpa.
Tyrion respondeu com um encolher de ombros que acentuou o modo como eram torcidos.
- Falando em nome das coisas grotescas - disse - permito-me discordar. A morte é terrivelmente final, ao passo que a vida está cheia de possibilidades.
Jaime sorriu.
- Você é um duendezinho perverso, não é?
- Ah, sim - admitiu Tyrion. - Espero que o rapaz acorde. E vou ficar muito interessado em ouvir o que ele pode ter a dizer.
O sorriso do irmão coagulou como leite azedo.
- Tyrion, meu querido irmão - disse ele em tom sombrio - há momentos em que você me dá motivo para duvidar de que lado esteja.
A boca de Tyrion estava cheia de pão e de peixe. Bebeu um trago da forte cerveja preta para empurrar tudo para baixo e dirigiu a Jaime um sorriso de lobo.
- Ora, Jaime, meu querido irmão - disse - assim você me magoa. Bem sabe como amo minha família.  

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