quarta-feira, 24 de julho de 2013

4 - EDDARD


Os visitantes entraram pelos portões do castelo como um rio de ouro e prata e aço polido, trezentos homens, um esplendor de vassalos e cavaleiros, soldados juramentados e cavaleiros livres. Sobre suas cabeças, uma dúzia de estandartes dourados abanavam de um lado para outro ao sabor do vento do Norte, adornados com o veado coroado de Baratheon.
Ned conhecia muitos dos cavaleiros. Ali vinha Sor Jaime Lannister com os cabelos tão brilhantes como ouro batido, e ali estava Sandor Clegane com a face terrivelmente queimada. O rapaz alto ao seu lado só podia ser o príncipe herdeiro, e aquele homenzinho atrofiado ao lado era certamente o Duende, Tyrion Lannister.
Mas o homem enorme que vinha à cabeça da coluna, flanqueado por dois cavaleiros que usavam os mantos brancos como a neve da Guarda Real, pareceu a Ned quase um estranho... Até saltar de cima de seu cavalo de guerra com um rugido familiar e o esmagar num abraço de partir ossos.
- Ned! Ah, como é bom ver essa sua cara congelada - o rei o observou de cima a baixo e soltou uma gargalhada. - Não mudou nem um bocadinho.
Ned gostaria de poder dizer o mesmo. Quinze anos antes, quando tinham cavalgado juntos para conquistar um trono, o Senhor de Ponta Tempestade era um homem sem barba, de olhos claros e musculoso como um sonho de donzela. Quase com dois metros de altura, erguia-se acima dos outros homens e, quando punha a armadura e o grande capacete provido de chifres de sua Casa, transformava-se num autêntico gigante.
Também tinha a força de um gigante, e sua arma predileta era um martelo de batalha com ponta aguçada que Ned quase não conseguia erguer do chão. Nesses tempos, o cheiro do couro e do sangue aderia à sua pele como perfume. Agora era perfume mesmo que aderia à sua pele, e ele tinha uma largura que se equiparava a altura. Ned tinha visto o rei pela última vez nove anos antes, durante a rebelião de Balon Greyjoy, quando o veado e o lobo gigante tinham se juntado para acabar com as pretensões do auto-proclamado Rei das Ilhas de Ferro. Desde a noite em que estiveram lado a lado no quartel-general caído de Greyjoy, quando Robert aceitara a rendição do senhor rebelde e Ned tomara seu filho Theon como refém e protegido, o rei ganhara pelo menos cinquenta quilos. Uma barba tão grosseira e negra como fio de ferro cobria-lhe a face, escondendo o duplo queixo e o descaimento das reais bochechas, mas nada conseguia esconder seu estômago ou os círculos escuros sob os olhos. Mas Robert era agora o rei de Ned, e não apenas um amigo; portanto, limitou-se a dizer:
- Vossa Graça. Winterfell é vossa.
Por essa altura já os outros estavam também a desmontar, e avançavam moços de estrebaria para lhes recolher as montadas. A rainha de Robert, Cersei Lannister, entrou a pé com seus filhos mais novos. A caravana em que tinham vindo, uma enorme carruagem de dois pisos feita de carvalho untado e metal dourado, puxada por quarenta cavalos de tração pesada, era larga demais para passar pelo portão do castelo. Ned ajoelhou-se na neve a fim de beijar o anel da rainha, enquanto Robert abraçou Catelyn como a uma irmã há muito perdida. Depois as crianças foram trazidas, apresentadas e aprovadas por ambas as partes.
Assim que aquelas formalidades de saudação se completaram, o rei disse ao anfitrião:
- Leve-me à sua cripta, Eddard. Quero apresentar os meus respeitos.
Ned o adorou por isso, por se lembrar ainda dela, depois de tantos anos. Gritou por uma lanterna. Não foram necessárias mais palavras. A rainha começara a protestar. Que tinham viajado desde a madrugada, que estavam todos cansados e com frio, que decerto deveriam descansar primeiro. Que os mortos podiam esperar. Não disse mais que isso; Robert olhou-a, o irmão gêmeo Jaime pegou-lhe calmamente no braço e ela não disse mais nada.
Desceram juntos para a cripta, Ned e seu rei, que quase não reconhecia. Os degraus de pedra em espiral eram estreitos. Ned seguiu à frente com a lanterna.
- Já começava a pensar que nunca mais chegaríamos a Winterfell - queixou-se Robert enquanto desciam. - No Sul, do modo como falam dos meus Sete Reinos, um homem se esquece de que a sua parte é tão grande quanto as outras seis juntas.
- Espero que tenha apreciado a viagem, Vossa Graça. - Robert resfolegou.
- Lodaçais, florestas e campos, e quase sem uma estalagem decente a norte do Gargalo. Nunca vi um vazio tão vasto. Onde estão todas as suas gentes?
- Provavelmente estavam muito acanhadas para sair - brincou Ned. Sentia o frio que subia as escadas, a respiração gelada vinda das profundezas da terra. - Os reis são uma visão rara no Norte.
Robert resfolegou.
- O mais certo é que estivessem escondidas debaixo da neve. Neve, Ned! - o rei pôs a mão na parede para se manter firme enquanto descia.
- As neves do fim do verão são bastante comuns - disse Ned. - Espero que não lhe tenham causado problemas. São geralmente suaves.
- Que os Outros carreguem as suas neves suaves - praguejou Robert. - Como será este lugar no inverno? Estremeço só de pensar.
- Os invernos são duros - admitiu Ned. - Mas os Stark os suportarão. Sempre os suportamos.
- Tem de vir até o Sul - disse Robert. - Precisa experimentar o verão antes que ele fuja. Em Jardim de Cima há campos de rosas douradas que se estendem até perder de vista. Os frutos estão tão maduros que explodem na boca: melões, pêssegos, ameixas-de-fogo, nunca saboreou tamanha doçura. Verá, eu trouxe algumas. Mesmo em Ponta Tempestade, com aquele bom vento da baía, os dias são tão quentes que quase não conseguimos nos mexer. E precisa ver as vilas, Ned! Flores por toda parte, os mercados a rebentar de comida, os vinhos estivais tão bons e baratos que podemos nos embebedar só de respirar o ar. Toda a gente é gorda, bêbada e rica - soltou uma gargalhada e deu uma palmada no amplo estômago. - E as moças, Ned! - exclamou com os olhos faiscando. - Juro, as mulheres perdem toda a modéstia ao calor. Nadam nuas no rio, mesmo por baixo do castelo. Até nas ruas está calor demais para lã ou peles, e elas andam por aí com aqueles vestidos curtos de seda, se tiverem prata, ou algodão, se não tiverem, mas é tudo igual quando começam a suar e o tecido lhes adere à pele, é como se andassem nuas - o rei riu, feliz.
Robert Baratheon sempre fora um homem de enormes apetites, um homem que sabia como conquistar seus prazeres. Essa não era uma acusação que alguém pudesse deixar à porta de Eddard Stark. No entanto, Ned não podia deixar de notar que esses prazeres estavam cobrando seu preço do rei. Robert respirava pesadamente quando chegaram ao fundo das escadas, e com a cara vermelha à luz da lanterna quando penetraram na escuridão da cripta.
- Vossa Graça - disse Ned respeitosamente. Moveu a lanterna num largo semicírculo. As sombras moveram-se e balançaram. A vacilante luz tocou as pedras do chão e roçou numa longa procissão de pilares de granito que marchavam em frente a eles, dois a dois, na direção das trevas. Entre os pilares sentavam-se os mortos nos seus tronos de pedra apoiados nas paredes, de costas voltadas para os sepulcros que continham seus restos mortais. - Ela está lá ao fundo, com o Pai e Brandon.
Indicou o caminho por entre os pilares e Robert seguiu-o sem uma palavra, estremecendo com o frio subterrâneo. Ali fazia sempre frio. Seus passos soavam nas pedras e ecoavam na abóbada que se erguia sobre suas cabeças enquanto caminhavam por entre os mortos da Casa Stark. Os Senhores de Winterfell viam-nos passar. Suas imagens tinham sido esculpidas nas pedras que selavam as tumbas. Sentavam-se em longas filas, olhos cegos virados para a escuridão eterna, enquanto grandes lobos gigantes de pedra se aninhavam junto aos seus pés. As sombras móveis faziam com que as figuras de pedra parecessem mover-se quando os vivos passavam por elas.
Seguindo um costume antigo, uma espada de ferro tinha sido colocada sobre o colo de todos os que tinham sido Senhores de Winterfell, a fim de manter os espíritos vingativos em suas criptas. A mais antiga já há muito enferrujara até a inexistência, deixando apenas algumas manchas vermelhas onde o metal tocara na pedra. Ned perguntou a si próprio se isso significava que aqueles espíritos estavam agora livres para passear pelo castelo. Esperava que não. Os primeiros Senhores de Winterfell tinham sido homens tão duros como a terra que governavam. Nos séculos anteriores à vinda dos Senhores do Dragão do outro lado do mar, não tinham jurado fidelidade a ninguém, fazendo tratar-se por Reis do Norte.
Ned parou, finalmente, e ergueu a lanterna de óleo, A cripta continuava à sua frente, mergulhando na escuridão, mas para lá daquele ponto as tumbas estavam vazias e por selar; buracos negros à espera de seus mortos, à espera dele e de seus filhos. Ned não gostava de pensar naquilo.
- Aqui - disse ele ao seu rei.
Robert acenou em silêncio, ajoelhou-se e inclinou a cabeça. Havia três tumbas, dispostas lado a lado. Lorde Rickard Stark, o pai de Ned, tinha um rosto longo e austero. O esculpidor conhecera-o bem. Estava sentado com uma calma dignidade, com os dedos de pedra agarrados com força à espada que tinha no colo, mas em vida todas as espadas lhe tinham falhado. Em dois sepulcros menores, de ambos os lados, estavam seus filhos.
Brandon morrera com vinte anos, estrangulado por ordem do Rei Louco Aerys Targaryen, poucos dias apenas antes de se casar com Catelyn Tully de Correrrio. O pai fora obrigado a vê-lo morrer. Era ele o verdadeiro herdeiro, o mais velho, nascido para governar. Lyanna tinha apenas dezesseis anos, uma menina-mulher de inigualável encanto. Ned amara-a de todo o coração. Robert amara-a ainda mais. Ela estava destinada a ser sua noiva.
- Era mais bela que isto - disse o rei após um silêncio. Seus olhos demoravam-se no rosto de Lyanna, como se pudesse trazê-la de volta à vida por um esforço de vontade. Por fim, ergueu-se, com o peso a torná-lo desajeitado. - Ah, maldição, Ned, tinha de enterrá-la num lugar como este? - sua voz estava enrouquecida com a lembrança do desgosto. - Ela merecia mais que trevas...
- Ela era uma Stark de Winterfell - disse Ned calmamente. - Este é seu lugar.
- Podia estar em algum lugar numa colina, sob uma árvore de fruto, com o sol e nuvens acima dela e a chuva para lavá-la.
- Eu estava com ela quando morreu - lembrou Ned ao rei. - Queria regressar à nossa casa para descansar ao lado de Brandon e do Pai - por vezes ainda conseguia ouvi-la. Promete-me, suplicara, num quarto que cheirava a sangue e a rosas. Promete-me, Ned. A febre levara-lhe as forças e a voz era tênue como um suspiro, mas quando ele lhe dera sua palavra, o medo saíra dos olhos da irmã. Ned recordava o modo como então sorrira, a força com que seus dedos agarraram os dele quando ela desistira de se agarrar à vida, as pétalas de rosa que se derramaram de sua mão, mortas e negras. Depois daquilo, não se lembrava de mais nada. Tinham-no encontrado ainda abraçado ao seu corpo, silenciado pela dor. O pequeno cranogmano, Howland Reed, retirara a mão dela da dele. Ned nada recordava.
- Trago-lhe flores sempre que posso - disse. - Lyanna era... amiga das flores.
O rei tocou o rosto da estátua, roçando os dedos na pedra áspera tão suavemente como se fosse carne viva.
- Jurei matar Rhaegar pelo que lhe fez.
- E foi o que Vossa Graça fez - lembrou-lhe Ned.
- Só uma vez - disse Robert amargamente.
Tinham chegado juntos ao baixio do Tridente enquanto a batalha rugia em seu redor, Robert com seu martelo de batalha e seu grande elmo dos chifres de veado, e o príncipe Targaryen revestido de armadura negra. No peitoral trazia o dragão de três cabeças de sua Casa, todo trabalhado com rubis que relampejavam como fogo à luz do sol. As águas do Tridente corriam vermelhas sob os cascos de seus cavalos de batalha, enquanto eles andavam em círculos e entrechocavam as armas, uma e outra vez, até que, por fim, um tremendo golpe do martelo de Robert abriu um rombo no dragão e no peito que estava por baixo. Quando Ned finalmente chegou ao local, Rhaegar jazia morto na corrente, enquanto homens de ambos os exércitos escarafunchavam as águas rodopiantes em busca de rubis que se tivessem soltado de sua armadura.
- Nos meus sonhos mato-o todas as noites - admitiu Robert. - Mil mortes ainda serão menos do que ele merece.
Não havia nada que Ned pudesse responder àquilo. Depois de uma pausa, disse:
- Devemos regressar, Vossa Graça. Sua esposa está à espera.
- Que os Outros carreguem minha esposa - murmurou Robert em tom azedo, mas encaminhou-se com passos pesados na direção de onde tinham vindo. - E se ouvir mais alguma vez "Vossa Graça", enfio sua cabeça num espeto. Somos mais que isso um para o outro.
- Não me esqueci - respondeu Ned calmamente. - Fale-me de Jon.
Robert sacudiu a cabeça.
- Nunca vi um homem adoecer tão depressa. Organizamos um torneio no dia do nome do meu filho. Se tivesse visto Jon nesse dia, poderia jurar que viveria para sempre. Uma quinzena depois, estava morto. A doença foi como um incêndio em suas tripas. Queimou-o todo por dentro - fez uma pausa junto a um pilar, em frente à tumba de um Stark há muito morto. - Adorava aquele velho.
- Ambos o adorávamos - Ned fez uma pausa momentânea. - Catelyn teme pela irmã. Como Lysa está suportando a dor?
A boca de Robert fez um trejeito amargo.
- Não muito bem, na verdade - admitiu. - Penso que a perda de Jon levou a mulher à loucura, Ned. Levou o rapaz de volta para o Ninho da Águia. Contra os meus desejos. Tinha planejado criá-lo com Tywin Lannister em Rochedo Casterly. Jon não tinha irmãos nem outros filhos. Deveria eu deixá-lo ser educado por mulheres?
Ned mais depressa confiaria uma criança a uma víbora do que ao Lorde Tywin, mas guardou para si essa opinião. Algumas velhas feridas nunca chegavam a sarar de verdade, e voltavam a sangrar à primeira palavra.
- A mulher perdeu o marido - disse cuidadosamente. - Talvez a mãe tema perder o filho. O rapaz é muito novo.
- Tem seis anos, é enfermiço e Senhor do Ninho da Águia, que os deuses o salvem - praguejou o rei. - Lorde Tywin nunca antes tinha tomado um protegido. Lysa devia se sentir honrada. Os Lannister são uma Casa grande e nobre. Ela recusou até ouvir falar do assunto. E, depois, foi-se embora na calada da noite, sem sequer um com-licença. Cersei ficou furiosa - soltou um profundo suspiro. - O rapaz é meu homônimo, sabias? "Robert Arryn". Jurei protegê-lo. Como poderei fazer isso se a mãe o rapta e o leva?
- Posso tomá-lo como protegido, se assim desejar - disse Ned. - Lysa certamente consentirá. Ela e Catelyn eram próximas quando moças, e ela própria também será aqui bem-vinda.
- Uma oferta generosa, meu amigo - disse o rei - mas chegou tarde demais. Lorde Tywin já deu seu consentimento. Criar o rapaz em outro lugar seria uma grave afronta.
- Preocupa-me mais o bem-estar do meu sobrinho que o orgulho de um Lannister - declarou Ned.
- Isto é porque não dorme com uma Lannister - Robert soltou uma gargalhada, fazendo o som chocalhar por entre as sepulturas e ressoar no teto abobadado. - Ah, Ned, continua sério demais - pôs um braço maciço em torno dos ombros de Ned. - Tinha planejado esperar alguns dias antes de falar contigo, mas agora vejo que não há necessidade. Venha, acompanhe-me.
Os dois voltaram por entre os pilares. Olhos cegos de pedra pareciam segui-los quando por eles passavam. O rei manteve o braço ao redor dos ombros de Ned.
- Deve estar curioso sobre o motivo que me fez finalmente vir para o norte até Winterfell depois de tanto tempo.
Ned tinha suas suspeitas, mas não disse nada.
- Pela alegria da minha companhia, certamente - disse, com ligeireza. - E há também a Muralha. Tem de vê-la, Vossa Graça, tem de caminhar entre suas ameias e falar com aqueles que a guarnecem. A Patrulha da Noite é uma sombra do que já foi. Benjen diz...
- Sem dúvida que ouvirei o que diz seu irmão muito em breve - respondeu Robert. - A Muralha está ali há, o quê? oito mil anos? Pode esperar mais alguns dias. Tenho preocupações mais urgentes. Estes são tempos difíceis. Necessito de bons homens ao meu redor. Homens como Jon Arryn. Ele serviu como Senhor do Ninho da Águia, como Protetor do Leste, como a Mão do Rei. Não será fácil substituí-lo.
- Seu filho... - começou Ned.
- Seu filho herdará o Ninho da Águia e todos os seus rendimentos - disse Robert bruscamente - Nada mais.
Aquilo apanhou Ned de surpresa. Parou, surpreso, e virou-se para olhar o rei. As palavras saíram-lhe espontâneas:
- Os Arryn sempre foram Protetores do Leste. O título vem com o domínio.
- Talvez quando tenha idade a honraria lhe seja restaurada - disse Robert. - Tenho este ano e o seguinte para pensar no assunto. Um rapaz de seis anos não é um líder de guerra, Ned.
- Em tempo de paz, o título é apenas uma honraria. Deixe que o rapaz o mantenha. Pelo seu pai, se não por ele. Decerto deve isto a Jon pelos seus serviços.
O rei não estava contente. Tirou o braço dos ombros de Ned.
- Os serviços de Jon constituíram seu dever para com seu senhor. Não sou ingrato, Ned. Você, de todos os homens, deveria sabê-lo. Mas o filho não é o pai. Um mero rapaz não pode defender o Leste - então o tom suavizou-se. - Basta disto. Há um cargo mais importante sobre que conversar, e não desejo discutir contigo. - Robert agarrou Ned pelo cotovelo. - Preciso de você, Ned.
- Estou às vossas ordens, Vossa Graça. Sempre – eram palavras que tinha de pronunciar, e ficou apreensivo com o que poderia vir a seguir.
Robert quase não pareceu ouvi-lo.
- Aqueles anos que passamos no Ninho da Águia... deuses, foram bons anos. Quero você de novo a meu lado, Ned. Quero-o lá embaixo, em Porto Real, e não aqui no fim do mundo, onde não tem utilidade para ninguém - Robert olhou a escuridão, por um momento tão melancólico como um Stark. - Juro-lhe, estar sentado num trono é mil vezes mais difícil que conquistar um. As leis são uma coisa entediante, e contar tostões é pior. E o povo... não tem fim. Sento-me naquela maldita cadeira de ferro e ouço-os se queixarem até ficar com a mente embotada e o rabo em carne viva. Todos querem qualquer coisa, dinheiro, terra ou justiça. As mentiras que contam... e os meus senhores e senhoras não são melhores. Estou rodeado de aduladores e idiotas. Aquilo pode levar um homem à loucura, Ned. Metade deles não se atreve a me dizer a verdade, e a outra metade não é capaz de encontrá- la. Há noites em que desejo que tivéssemos perdido no Tridente. Ah, não, não de verdade, mas...
- Compreendo - disse Ned com voz suave. Robert olhou para ele.
- Penso que compreende. E se compreende, é o único, meu velho amigo - sorriu. - Lorde Eddard Stark, é meu desejo nomeá-lo a Mão do Rei.
Ned caiu sobre um joelho. A oferta não o surpreendera; que outra razão teria Robert para viajar até tão longe? A Mão do Rei era o segundo homem mais poderoso nos Sete Reinos.
Falava com a voz do rei, comandava seus exércitos, esboçava suas leis. Por vezes até se sentava no Trono de Ferro para fazer a justiça do rei, quando este se encontrava ausente, ou doente, ou indisposto de outra maneira qualquer. Robert agora oferecia uma responsabilidade tão grande quanto o próprio reino. Era a última coisa no mundo que desejava.
- Vossa Graça, não sou merecedor de tal honra.
Robert grunhiu com uma impaciência bem-humorada.
- Se quisesse honrá-lo, deixaria que se aposentasse? Planejo fazê-lo gerir o reino e lutar as guerras enquanto eu como, bebo e fornico a caminho de uma cova antecipada - deu uma palmada no estômago e deu um sorriso. - Conhece aquele ditado sobre o rei e a sua Mão?
Ned conhecia o ditado:
- Aquilo que o rei sonha a Mão constrói.
- Uma vez dormi com uma peixeira que me disse que os de baixo nascimento têm uma versão mais refinada. O rei come, dizem eles, e a Mão recolhe a merda - atirou a cabeça para trás e rebentou em sonoras gargalhadas. Os ecos ressoaram pela escuridão, e, ao seu redor, os mortos de Winterfell pareceram observar com olhos frios e desaprovadores.
Por fim, o riso diminuiu e cessou. Ned continuava sobre o joelho, sem alegria nos olhos.
- Que diabos, Ned - queixou-se o rei. - Podia ao menos brindar-me com um sorriso.
- Dizem que fica tão frio por aqui no inverno que as gargalhadas dos homens congelam em suas gargantas e os sufocam até a morte - disse Ned em tom monocórdio. - Talvez seja por isso que os Stark possuem tão pouco humor.
- Vem comigo para o Sul e o ensino de novo a rir - prometeu o rei. - Ajudou-me a ganhar este maldito trono, ajude-me agora a mantê-lo. Estamos destinados a governar juntos. Se Lyanna tivesse sobrevivido, teríamos sido irmãos, ligados pelo afeto e também pelo sangue. Pois bem, não é tarde demais. Eu tenho um filho. Você tem uma filha. Meu Joff e sua Sansa unirão as nossas Casas, como Lyanna e eu poderíamos ter feito em tempos.
Aquela oferta o surpreendeu.
- Sansa tem apenas onze anos.
Robert fez um gesto impaciente com a mão.
- Tem idade que chegue para ficar prometida. O casamento pode esperar alguns anos - ele sorriu. - Agora, ponha-se em pé e diz que sim, maldito.
- Nada me daria maior prazer, Vossa Graça - respondeu Ned. Mas hesitou. - Todas estas honrarias são tão inesperadas. Posso ter algum tempo para refletir, Preciso contar à minha esposa...
- Sim, sim, claro, conta a Catelyn, durma sobre o assunto se for preciso - o rei estendeu a mão, agarrou a de Ned e puxou-o rudemente, pondo-o em pé. - Basta que não me deixe à espera tempo demais. Não sou o mais paciente dos homens.
Por um momento Eddard Stark sentiu-se atacado por uma terrível sensação de mau presságio. Aquele era seu lugar, ali no Norte. Olhou as figuras de pedra que o rodeavam, inspirou profundamente no silêncio gelado da cripta. Conseguia sentir os olhos dos mortos. Sabia que todos eles escutavam. E o inverno estava a caminho. 

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