sábado, 27 de julho de 2013

7 - ARYA


Os pontos de Arya estavam de novo tortos. Franziu a sobrancelha, desapontada, e olhou de relance para onde a irmã Sansa estava entre as outras moças. Os bordados de Sansa eram magníficos. Todos assim diziam. "O trabalho de Sansa é tão belo como ela" dissera uma vez Septã Mordane à senhora sua mãe. "Ela tem mãos tão bonitas e delicadas." Quando a Senhora Catelyn lhe perguntara por Arya, a septã fungara: "Arya tem as mãos de um ferreiro".
Arya atravessou a sala com um olhar furtivo, com receio de que Septã Mordane pudesse ter lido seus pensamentos, mas hoje a septã não lhe prestava atenção. Estava sentada junto da Princesa Myrcella, toda sorrisos e admiração. Não era frequente que a septã fosse privilegiada com a instrução de uma princesa real nas artes femininas, como ela própria afirmara quando a rainha trouxera Myrcella, a Arya pareceu que os pontos de Myrcella também estavam um pouco tortos, mas ninguém o adivinharia pelo modo como a Septã Mordane tanto elogiava.
Voltou a estudar o trabalho, procurando alguma maneira de salvá-lo, mas então suspirou e pousou a agulha. Olhou, carrancuda, para a irmã. Sansa tagarelava enquanto trabalhava, feliz. Beth Cassei, a filha mais nova de Sor Rodrik, estava sentada a seus pés, escutando cada palavra que ela dizia, e Jeyne Poole inclinava-se para lhe segredar qualquer coisa ao ouvido.
- De que vocês falam? - perguntou Arya de súbito.
Jeyne olhou-a com ar sobressaltado, e depois soltou um risinho. Sansa pareceu atrapalhada. Beth corou. Ninguém respondeu.
- Digam-me - disse Arya.
Jeyne olhou de relance para a Septã Mordane, a fim de se assegurar de que não a ouviria. Myrcella disse então qualquer coisa, e a septã riu como o resto das damas.
- Estávamos falando do príncipe - disse Sansa, com a voz suave como um beijo.
Arya sabia a que príncipe se referia: Joffrey, claro. O alto e bonito. Sansa pudera sentar-se a seu lado no banquete. Arya tivera que se sentar ao lado do pequeno e gordo. Naturalmente.
-Joffrey gosta da sua irmã - segredou Jeyne, tão orgulhosa como se tivesse alguma coisa a ver com o assunto. Era filha do intendente de Winterfell e a melhor amiga de Sansa. - Disse-lhe que é muito bonita.
- Vai casar com ela - disse a pequena Beth em tom sonhador, abraçando-se ao ar. - Depois Sansa será rainha de todo o reino.
Sansa teve a delicadeza de corar, E corava lindamente. Fazia tudo lindamente, pensou Arya com um ressentimento surdo.
- Beth, não devia inventar histórias - Sansa a censurou, afagando-lhe suavemente os cabelos para retirar a rispidez das palavras. Olhou para Arya: - Que pensa do Príncipe Joff, irmã? E muito galante, não acha?
- Jon diz que parece uma moça - Arya respondeu. Sansa suspirou enquanto dava um pesponto.
- Pobre Jon. Ele tem ciúmes porque é um bastardo.
- Ele é nosso irmão - disse Arya, alto demais. Sua voz cortou o sossego da tarde na sala da torre.
Septã Mordane ergueu os olhos. Tinha o rosto ossudo, olhos aguçados e uma fina boca sem lábios, feita para ser franzida. E agora assim estava.
- Do que estão falando, crianças?
- De nosso meio-irmão - respondeu Sansa, suave e precisa. Sorriu para a septã. - Arya e eu estávamos observando como é agradável termos a princesa hoje conosco - disse.
Septã Mordane acenou com a cabeça,
- De fato. Uma grande honra para todas nós - a Princesa Myrcella recebeu o cumprimento com um sorriso pouco firme.
- Arya, por que você não está trabalhando? - perguntou a septã. Pôs-se de pé, fazendo restolhar as saias engomadas ao atravessar a sala. - Deixe-me ver os seus pontos.
Arya quis gritar. Era mesmo do feitio de Sansa atrair a atenção da septã.
- Aqui está - disse, entregando o trabalho. A septã examinou o tecido.
- Arya, Arya, Arya - disse. - Isto não serve. Isto não serve de modo nenhum.
Todas estavam a olhá-la. Era demais. Sansa era demasiado bem-educada para sorrir da desgraça da irmã, mas havia o sorriso afetado de Jeyne no seu lugar. Até a Princesa Myrcella parecia ter pena dela, Arya sentiu que seus olhos se enchiam de lágrimas. Saltou da cadeira e correu para a porta.
Septã Mordane a chamou.
- Arya, volte aqui! Nem mais um passo! A senhora vossa mãe saberá disto. E na frente da nossa princesa real! Envergonha-nos a todos!
Arya parou à porta e voltou-se, mordendo o lábio. As lágrimas corriam-lhe agora pelo rosto. Conseguiu fazer uma pequena reverência rígida a Myrcella.
- Com a vossa licença, minha senhora.
Myrcella pestanejou e olhou para suas damas em busca de orientação. Mas onde faltava segurança à princesa, não faltava à Septã Mordane.
- Exatamente aonde pensa que vai, Arya? - quis saber a septã. Arya lançou-lhe um olhar furioso.
- Tenho de ir ferrar um cavalo - disse com doçura, obtendo uma breve satisfação da expressão chocada no rosto da septã.
Então rodopiou e saiu, correndo pelos degraus abaixo tão depressa quanto os pés a conseguiam levar. Não era justo. Sansa tinha tudo. Sansa era dois anos mais velha; talvez, quando Arya nasceu, já nada restava. Era frequente sentir-se assim. Sansa era capaz de costurar, dançar e cantar. Escrevia poesia. Sabia como vestir-se. Tocava harpa e sinos. Pior: era bela. Sansa recebera as belas maçãs do rosto altas da mãe e os espessos cabelos arruivados dos Tully. Arya saía ao senhor seu pai. Os cabelos eram de um castanho sem lustro, e o rosto, longo e solene. Jeyne costumava chamá-la Arya Cara de Cavalo, e relinchava sempre que ela se aproximava. A única coisa que Arya fazia melhor que a irmã era andar a cavalo, e isso doía. Bem, andar a cavalo e gerir uma casa. Sansa nunca tivera grande cabeça para números.
Se se casasse com o Príncipe Joff, Arya esperava, para o bem dele, que o príncipe tivesse um bom intendente. Nymeria estava à sua espera na casa da guarda que se erguia na base da escadaria, e pôs-se em pé de um salto assim que a viu. Arya sorriu. A cria de lobo a amava, mesmo se ninguém mais o fizesse. Iam juntas para todo o lado, e Nymeria dormia no seu quarto, aos pés da cama. Se a Mãe não o tivesse proibido, Arya teria levado de bom grado a loba para a sala de costura. Gostaria de ver então Septã Mordane queixar-se de seus pontos.
Nymeria mordiscou-lhe a mão, ansiosa, enquanto Arya a desatava. O animal possuía olhos amarelos. Quando capturavam a luz do sol, cintilavam como duas moedas de ouro. Arya dera-lhe o nome da rainha guerreira dos roinares, que levara seu povo para atravessar o mar estreito. Também isso fora um grande escândalo. Sansa, naturalmente, chamara à sua cria "Lady". Arya fez uma careta e abraçou a lobinha com força. Nymeria lambeu-lhe a orelha e ela soltou um risinho.
Àquela altura, Septã Mordane já teria por certo mandado uma mensagem à senhora sua mãe. Se fosse para o quarto, a encontrariam. Arya não queria ser encontrada. Teve uma ideia melhor. Os rapazes estavam treinando no pátio. Queria ver Robb atirar o galante Príncipe Joffrey ao chão. "Anda", sussurrou a Nymeria. Levantou-se e correu, com a loba a morder-lhe os calcanhares.
Havia uma janela, na ponte coberta entre o armeiro e a Torre Grande, de onde se podia ver rodo o pátio. Foi para lá que se dirigiram.
Chegaram, coradas e sem fôlego, e foram encontrar Jon sentado no parapeito, com um joelho languidamente erguido até o queixo. Observava a ação tão absorvido que pareceu não se dar conta da aproximação da irmã até que o lobo branco foi ao encontro delas. Nymeria aproximou-se em patas cautelosas. Fantasma, já maior que os companheiros de ninhada, farejou-a, deu-lhe uma dentada cuidadosa na orelha, e voltou a instalar-se.
Jon deitou-lhe uma olhadela curiosa.
- Não devia estar trabalhando nos seus pontos, irmãzinha?
Arya fez-lhe uma careta.
- Queria vê-los lutar.
Ele sorriu.
- Então vem para cá.
Arya trepou na janela e sentou-se ao lado do irmão, no meio de um coro de estrondos e grunhidos vindos do pátio, lá embaixo.
Para sua desilusão, eram os rapazes mais novos que se exercitavam. Bran estava tão almofadado que parecia que tinha se afivelado a um colchão de penas, e Príncipe Tommen, que já era naturalmente rechonchudo, parecia definitivamente redondo. Fanfarronavam, ofegavam e atacavam-se um ao outro com espadas almofadadas de madeira, sob o olhar vigilante de Sor Rodrik Cassei, o mestre de armas, um robusto homem em forma de barril, com magníficas suíças brancas. Uma dúzia de espectadores, homens e rapazes, os encorajavam, e, entre todas, a voz de Robb era a mais forte. Arya reconheceu Theon Greyjoy ao lado do irmão, de gibão negro ornamentado com a lula gigante dourada de sua Casa, ostentando no rosto um ar de retorcido desprezo. Ambos os combatentes cambaleavam.
Arya concluiu que já lutavam havia algum tempo.
- É um nadinha mais cansativo que o trabalho de agulhas - observou Jon.
- É um nadinha mais divertido que o trabalho de agulhas - Arya retorquiu. Jon sorriu, esticou o braço e despenteou-lhe os cabelos. Arya corou. Sempre tinham sido próximos. Jon tinha o rosto do pai, tal como ela. Eram os únicos. Robb, Sansa, Bran e até o pequeno Rickon, todos saíram aos Tully, com sorrisos fáceis e fogo nos cabelos. Quando pequena, Arya tivera medo de isso querer dizer que também ela fosse bastarda. Fora a Jon que contara o medo, e fora ele quem a sossegara.
- Por que não está no pátio? - perguntou-lhe Arya.
Ele lhe deu um meio sorriso.
- Não se permite a bastardos danificar jovens príncipes - disse. - Quaisquer hematomas que recebam no pátio de treinos devem provir de espadas legítimas.
- Ah - Arya sentiu-se envergonhada. Devia ter compreendido. Pela segunda vez naquele dia pensou que a vida não era justa. Observou o irmão mais novo bater em Tommen.
- Podia sair-me tão bem como Bran - disse. - Ele tem só sete anos, Eu tenho nove. Jon olhou-a com toda sua sabedoria de catorze anos.
- Você é magra demais - disse. Pegou seu braço para apalpar o músculo. Então suspirou e abanou a cabeça. - Duvido até que conseguisse levantar uma espada, irmãzinha, quanto mais brandi-la.
Arya recolheu o braço e lançou-lhe um olhar furioso. Jon voltou a despentear-lhe os cabelos. Observaram Bran e Tommen, que andavam em círculos ao redor um do outro.
- Vê o Príncipe Joffrey? - perguntou Jon.
Ao primeiro relance não o tinha visto, mas quando voltou a olhar, descobriu-o atrás dos outros, à sombra do alto muro de pedra. Estava rodeado por homens que não reconheceu, jovens escudeiros com librés dos Lannister e dos Baratheon, todos eles estranhos. Havia entre eles alguns homens mais velhos; cavaleiros, presumiu.
- Olhe o brasão de sua capa - sugeriu Jon.
Arya olhou. Um escudo ornamentado tinha sido bordado na capa almofadada do príncipe. Não havia dúvida de que o bordado era magnífico. O brasão estava dividido ao meio: de um lado tinha o veado coroado da Casa real; do outro, o leão de Lannister.
- Os Lannister são orgulhosos - observou Jon. - Seria de se pensar que a chancela real seria suficiente, mas não. Ele faz a Casa da mãe igual em honra à do rei.
- A mulher também é importante! - protestou Arya. Jon soltou um risinho.
- Talvez devesse fazer o mesmo, irmãzinha. Casa Tully e Stark no seu brasão.
- Um lobo com um peixe na boca? - a idéia a fez rir. - Pareceria disparatado, Além disso, se uma moça não pode lutar, por que haveria de ter um brasão de armas?
Jon encolheu os ombros.
- Às moças dão as armas, mas não as espadas. Aos bastardos dão as espadas, mas não as armas, Não fui eu que fiz as regras, irmãzinha.
Ouviu-se um grito no pátio, embaixo. Príncipe Tommen rebolava na poeira, tentando sem sucesso pôr-se em pé. Todos aqueles almofadados faziam-no assemelhar-se a uma tartaruga virada de costas. Bran estava sobre ele, com a espada de madeira erguida, pronto a bater-lhe de novo assim que se levantasse. Os homens desataram a rir.
- Basta! - gritou Sor Rodrik. Ofereceu a mão ao príncipe e o pôs de novo em pé. - Uma boa luta. Lew, Donnis, ajudem-nos a tirar as armaduras - olhou em volta. - Príncipe Joffrey, Robb, querem mais um assalto?
Robb, já suado de uma luta anterior, avançou com ardor.
- De bom grado,
Joffrey saiu para o sol em resposta à chamada de Rodrik. Seus cabelos brilharam como ouro tecido. Parecia aborrecido.
- Este é um jogo para crianças, Sor Rodrik.
Theon Greyjoy soltou uma súbita gargalhada.
- Vocês são crianças - disse, com ironia,
- Robb pode ser uma criança - disse Joffrey. - Eu sou um príncipe. E já estou cansado de dar pancada nos Stark com uma espada de brincar.
- Você levou mais pancada do que deu, Joff - disse Robb. - Será que tem medo?
Príncipe Joffrey olhou para ele:
- Ah, estou apavorado - disse. - Você é tão mais velho - alguns dos Lannister deram risada. Jon afastou os olhos da cena com um olhar carrancudo.
-Joffrey é um verdadeiro merda - disse a Arya.
Sor Rodrik puxou, pensativo, pelas suíças brancas.
- O que sugere? - perguntou ao príncipe.
- Aço vivo.
- Feito - disparou Robb em resposta. - Vai se arrepender!
O mestre de armas pôs a mão no ombro de Robb, tentando acalmá-lo.
- Aço vivo é demasiado perigoso. Permitirei espadas de torneio, com gumes embotados.
Joffrey não disse nada, mas um homem que era estranho a Arya, um cavaleiro alto com cabelos negros e cicatrizes de queimaduras no rosto, avançou para a frente do príncipe.
- Este é o seu príncipe, Quem é você para lhe dizer que não pode ter um gume na espada, sor?
- Sou o mestre de armas de Winterfell, Clegane, e faria bem se não se esquecesse disto.
- Está aqui para treinar mulheres? - quis saber o homem queimado. Era musculoso como um touro.
- Treino cavaleiros - respondeu severamente Sor Rodrik. - Eles terão aço quando estiverem prontos. Quando tiverem idade.
O homem queimado olhou para Robb.
- Que idade você tem, rapaz?
- Catorze anos - disse Robb.
- Matei um homem aos doze. E pode ter certeza de que não foi com uma espada sem fio. Arya conseguia ver que Robb se irritava. Seu orgulho estava ferido. Virou-se para Sor Rodrik.
- Deixe-me fazê-lo. Posso vencê-lo.
- Então, vença-o com uma lâmina de torneio - respondeu Sor Rodrik. Joffrey encolheu os ombros.
- Venha ter comigo quando for mais velho, Stark. Se não já for velho demais - soaram gargalhadas vindas dos Lannister.
As pragas de Robb ressoaram pelo pátio. Arya cobriu a boca, chocada. Theon Greyjoy agarrou o braço de Robb a fim de mantê-lo afastado do príncipe. Sor Rodrik coçou as suíças, consternado. Joffrey fingiu um bocejo e virou-se para o irmão mais novo.
- Venha, Tommen - disse. - A hora da brincadeira terminou. Deixe as crianças com seus divertimentos.
Aquilo provocou mais risos entre os Lannister, e mais pragas de Robb. O rosto de Sor Rodrik, por baixo do branco das suíças, estava vermelho como uma beterraba em fúria. Theon manteve Robb preso com mão de ferro até que os príncipes e sua comitiva se fossem em segurança.
Jon observou-os partir, e Arya observou Jon. Seu rosto tinha ficado tão imóvel como a lagoa no coração do bosque sagrado. Por fim, ele desceu da janela.
- O espetáculo acabou - disse. Dobrou-se para coçar Fantasma atrás das orelhas. O lobo branco pôs-se em pé e esfregou-se contra ele. - E melhor correr para o seu quarto, irmãzinha. Septã Mordane está sem dúvida à espreita. Quanto mais tempo ficar escondida, mais severa a penitência. Ficará a coser durante todo o inverno. Quando chegar o degelo da primavera, encontrarão seu corpo ainda com uma agulha bem presa entre os dedos congelados.
Arya não achou graça.
- Detesto costura! - disse com paixão. - Não é justo!
- Nada é justo - disse Jon. Voltou a despentear-lhe os cabelos e afastou-se, com Fantasma a caminhar em silêncio ao seu lado. Nymeria também começou a segui-los, mas depois parou e regressou quando viu que Arya não ia. Arya virou-se relutantemente na outra direção.
Foi pior do que Jon pensara. Não era Septã Mordane quem a esperava no quarto. Eram Septã Mordane e sua mãe.  

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