quinta-feira, 18 de julho de 2013

POLLYANNA 2 - 9 - Uma surpresa para Mrs. Carew


Tendo a questão dos reparaoes e dos melhoramentos sido eficientemente resolvida, Mrs. Carew disse a si própria que tinha cumprido o seu dever e que o assunto estava encerrado. Havia de esquecer. O rapaz não era o Jamie, nem o podia ser. Aquele rapaz doente, ignorante e aleijado ser o filho da sua falecida irmã? Impossível! Tinha de afastar essa ideia da cabeça.
Foi aí, porém, que Mrs. Carew se encontrou perante uma barreira inultrapassável. Tudo aquilo persistia em não lhe sair da cabeça. Diante dos olhos via sempre a imagem daquele quartinho úmido e do rapazinho triste. Aos seus ouvidos soava constantemente aquela frase comovedora: "E se fosse o Jamie?". Além disso, estava sempre ali Pollyanna, e mesmo que Mrs. Carew mandasse calar as queixas e as perguntas da menina, não havia maneira de lhe acabar com o olhar reprovador.
Outras duas vezes, desesperada, Mrs. Carew foi ver o rapaz, dizendo a si própria que apenas precisava de mais uma visita para se convencer de que ele não era quem suspeitava. Quando estava na presença do rapaz, ela dizia a si própria estar convencida, mas, depois de se afastar dele, as mesmas dúvidas voltavam a assaltá-la. Finalmente, em estado de grande desespero, escreveu à irmã e contou-lhe a história toda.
" Querida Della
Não tencionava contar-te, pois achava que não valia a pena entusiasmar-te nem suscitar falsas esperanças. Tenho a certeza de que não é ele e, no entanto, ao escrever estas palavras, sei que não estou certa. É por isso que quero que venhas cá. Tens que vir depressa. Quero que o vejas.
Estou desejosa de saber o que vais dizer. É claro que não vemos o nosso Jamie desde os quatro anos. Teria agora doze. Este rapaz tem doze, creio eu (ele não sabe a sua idade ao certo). Os olhos e os cabelos não são diferentes dos do nosso Jamie. É aleijado, mas ficou assim depois de uma queda, há seis anos, e ficou ainda pior a seguir a outra queda quatro anos mais tarde. É impossível obter uma descrição completa do pai, mas, daquilo que sei, não há nada de conclusivo a favor ou contra ofato de ele ser o marido da Doris. Chamavam-lhe professor, era um homem estranho e parecia não ter mais nada senão livros. Isto, pode ou não significar nada. O Kent, era decerto estranho e boêmio nos seus gostos. Se ele se preocupava ou não com livros, não me lembro. Lembras-te? E, é claro, que o título de professor pode ter sido assumido por ele, ou apenas ter-lhe sido dado por outras pessoas. Quanto a este rapaz, não sei. Mas tenho esperanças que tu consigas descobrir.
Ruth. "
Della veio imediatamente e foi logo ver o rapaz. Mas também ela ficou indecisa. Achou que não devia ser o Jamie, mas, ao mesmo tempo, havia a possibilidade de ser ele. Tal como Pollyanna, porém, ela tinha uma saída bastante satisfatória para o dilema.
- Porque não tomas conta dele, querida? - propôs à irmã. - Até o poderias adotar? Seria bom para ele, pobre pequeno, e...
Mrs. Carew não a deixou concluir.
- Não, não posso - lastimou- se. - Quero é o meu Jamie. O meu Jamie e mais ninguém.
Della em nada contribuiu e regressou ao seu trabalho.
Se Mrs. Carew pensou que o assunto tinha ficado encerrado, voltou de novo a enganar-se. Realmente, os dias e as noites continuavam a ser-lhe penosos. Além disso, estava em dificuldades com Pollyanna, cada vez mais perturbada, face à verdadeira pobreza que enfrentara pela primeira vez. Ela conhecera pessoas que não tinham comida, que vestiam roupas esfarrapadas e que viviam em quartos minúsculos, escuros e sujos. O seu primeiro impulso foi, evidentemente, ajudar. Com Mrs. Carew fez duas visitas a Jamie e ficou muito contente com a alteração das condições da casa depois de o tal Dodgge ter feito as melhorias. Mas, para Pollyanna, isso era apenas uma gota de água no oceano. Havia naquele local muito mais miséria. Confiadamente, ela esperava que Mrs. Carew ajudasse também todos os outros infelizes.
- Ah sim? - exclamou Mrs. Carew ao ouvir o que Pollyanna esperava dela. - Quer então toda a rua com pinturas e escadas novas! Não quer mais nada?
- Sim, mais coisas! - disse Pollyanna contente.
- Tanto que eles precisam! E que divertido era dar-lhas! Ai, como eu gostava de ser rica para os poder ajudar! Nem calcula como fico contente por poder estar consigo quando os ajudar.
Mrs. Carew quase gaguejou, tal o seu espanto. Mas não perdeu tempo a explicar que não tinha intenção de fazer mais nada no pátio dos Murphys. Já tinha sido bastante generosa com o que fizera no andar onde vivia o Jamie com os Murphys (entendera não precisar de dizer a ninguém que era dona do prédio inteiro). Explicou, sim, a Pollyanna, que existiam numerosas instituições de caridade que tinham exatamente por atividade ajudar as pessoas pobres, e que ela já doava bastante dinheiro a essas instituições.
Mesmo assim, porém, Pollyanna não ficou convencida.
- Mas não percebo por que razão é melhor uma série de pessoas juntarem-se e fazer aquilo que toda a gente gostaria de fazer por si própria. Acho que preferia ser eu a dar a Jamie um livro bonito do que ser uma sociedade qualquer a fazê-lo. Ele, com certeza, gostaria muito mais que fosse eu.
- É provável - respondeu Mrs. Carew, com indiferença, mas um tanto irritada. - Mas também é provável que esse livro não fosse tão bom para Jamie, como o seria se o livro fosse oferecido por um conjunto de pessoas habilitadas a escolher o livro mais conveniente.
Isto levou-a a dizer também outras coisas que Pollyanna não percebeu bem sobre "a pauperização dos pobres", "os malefícios da oferta indiscriminada" e "o pernicioso efeito da caridade desorganizada".
Além disso, também acrescentou, em resposta à expressão de perplexidade de Pollyanna:
- É muito possível que, se me oferecesse para ajudar essas pessoas, elas não aceitassem. Lembra- se de Mrs. Murphy ter recusado deixar-me enviar-lhe comida e roupas?
- Se lembro! - respondeu Pollyanna, com um suspiro. - Mas há outra coisa que não compreendo. Não me parece certo que nós tenhamos direito a ter tanta coisa bonita e que eles não tenham nada!
Com o decorrer do tempo, este sentimento de Pollyanna aumentou em vez de diminuir e as suas perguntas e comentários acabavam por ser um alívio para o estado de espírito da própria Mrs. Carew. Até o teste do "Jogo do Contente". Só que, neste caso, Pollyanna achava que era quase um falhanço. Dizia ela:
- Não vejo como podemos encontrar seja o que for que nos dê contentamento nesta coisa dos pobres. Podemos ficar contentes com nós próprios por não sermos pobres como eles, mas sempre que penso assim, fico com tanta pena deles que não posso continuar contente. Podíamos ficar contentes ajudando os pobres, mas se não os ajudarmos, de onde nos pode vir o contenta mento?
A estas perguntas, Pollyanna nem sempre tinha resposta satisfatória.
Especialmente de Mrs. Carew, que continuava a ser perseguida por visões do verdadeiro Jamie e do Jamie possível, que ficou muito mais desassossegada e desesperada com a chegada do Natal. Tudo lhe lembrava a possibilidade do seu Jamie ter um sapatinho sem prendas.
Foi exatamente na quadra do Natal que se desenrolou consigo a última batalha. Resolutamente, todavia sem uma verdadeira alegria no rosto. Foi então que deu ordens rigorosas a Mary e chamou Pollyanna.
- Pollyanna - disse ela, quase a segredar -, decidi tomar conta do Jamie. O carro virá imediatamente e vou buscá-lo agora. Se quiser, pode vir comigo.
O rosto de Pollyanna transfigurou-se naturalmente de alegria.
- Oh, Que feliz eu sou! Até me apetece chorar! Mrs. Carew, porque será que quando nos sentimos tão felizes, nos apetece chorar?
- Não sei, Pollyanna - respondeu Mrs. Carew sem convicção. O rosto de Mrs. Carew continuava porém sem alegria.
Quando chegou ao pequeno quarto dos Murphys, não perdeu muito tempo a dizer ao que ia. Em poucas palavras contou a história do desaparecido Jamie. Não manifestou todavia as suas dúvidas quanto ao fato de ele ser o verdadeiro Jamie, dizendo que decidira levá-lo para casa dela para lhe proporcionar todas as comodidades. Depois, com um ar um tanto desprendido, fez saber que aqueles eram os planos que tinha traçado para ele. Aos pés da cama, Mrs. Murphy ouvia, chorando baixinho. Do outro lado do quarto, Jerry Murphy, de olhos muito abertos, soltava exclamações de espanto. Quanto ao Jamie, deitado, ouviu tudo aquilo com ar de quem tinha visto abrir-se diante de si a porta do paraíso. Ainda que, gradualmente, enquanto Mrs. Carew falava, os seus olhos fossem denunciando outra expressão, ao ponto de os fechar, virando a cara.
Quando Mrs. Carew concluiu, fez-se um silêncio antes de Jamie voltar de novo a cara para ela e falar. Estava lívido e dos olhos caíam-lhe lágrimas.
- Obrigado, Mrs. Carew, mas não posso ir! disse, simplesmente.
- Não pode o quê? - exclamou Mrs. Carew, como se duvidasse do que ouvia.
- Jamie! - exclamou Pollyanna.
- Então garoto, que se passa? - perguntou Jerry, troçando e aproximando-se dele. - Não sabes ver o que é bom para ti?
- Sei, mas não posso ir - insistiu o rapaz.
- Mas, Jamie... Jamie, pensa no que poderia significar para ti! - insistiu Mrs. Murphy.
- Já pensei. Julgam que não sei o que estou a fazer e do que estou a desistir? - depois, para Mrs. Carew, virou os olhos cheios de lágrimas e disse: - Não posso, não posso deixá-la fazer isso tudo por mim. Se gostasse realmente de mim, era diferente, mas a senhora não me quer a mim. Quer o verdadeiro Jamie e eu não sou o verdadeiro Jamie. A senhora não pensa que eu o seja, posso vê-lo no seu rosto.
- Mas... mas... - começou Mrs. Carew, sem concluir.
- Além disso, não sou como os outros rapazes, não posso andar - interrompeu o rapazinho nervoso. - Acabava por se cansar de mim. Não podia suportar ser um fardo assim. É claro, se a senhora gostasse de mim como a Mumsey. - disse ele, levando a mão à boca para conter um soluço. Depois, voltou outra vez a cabeça, continuou.
- Não sou o Jamie que quer.
Fez-se novo silêncio. Depois, muito calmamente, Mrs. Carew pôs-se de pé. O seu rosto estava sem cor, havendo algo nela que silenciou um soluço vindo dos lábios de Pollyanna.
- Venha, Pollyanna! - foi tudo que disse.
- Tu és mesmo maluco! - barafustou Jerry Murphy, falando para o rapaz deitado, quando a porta se fechou.
O rapaz paralítico ficou a chorar, como se a porta que se acabara de fechar fosse a que o poderia ter conduzido ao paraíso e se fechasse para sempre.
Passaram-se os meses de Fevereiro, Março e Abril e depois o Maio, aproximando-se a data do regresso de Pollyanna a casa. Mrs. Carew despertou então, subitamente, para a realidade do que representaria para si o regresso de Pollyanna a casa.
Sentiu-se surpreendida e perturbada porque até ali só tinha encarado com satisfação a partida dela. Quantas vezes dissera a si própria, e desejara, que a casa voltasse a ser sossegada, a ter paz e a poder esconder-se dos aborrecimentos do mundo exterior. Como tanto desejara poder dedicar a atenção à sua consciência pungente e às memórias do menino desaparecido. É verdade, em tudo isso pensara, como possível, quando Pollyanna regressasse a casa.
Mrs. Carew sabia agora, muito bem, que sem Pollyanna a casa ficaria vazia e que sem o Jamie seria ainda pior. A consciência desta realidade não era agradável para o seu orgulho. Era uma tortura para o seu coração, visto que o rapaz já se tinha recusado duas vezes a ir viver com ela. Durante os últimos dias da estada de Pollyanna, a luta foi difícil, embora o orgulho acabasse sempre por predominar. Então, no dia em que Mrs. Carew sabia que seria a última visita de Jamie, o coração triunfou e pediu mais uma vez ao rapaz que fosse para ela o seu desaparecido Jamie.
Aquilo que disse exatamente nunca se conseguiu lembrar depois, mas o que o rapaz disse nunca esqueceu. Foram seis breves palavras.
Durante um longo minuto, os olhos dele perscrutaram o rosto dela. Depois, a sua cara iluminou-se, enquanto lhe respondeu:
- Oh, sim! Agora a senhora gosta mesmo de mim!

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