Tendo a
questão dos reparaoes e dos melhoramentos sido eficientemente
resolvida, Mrs. Carew disse a si própria que tinha cumprido o seu
dever e que o assunto estava encerrado. Havia de esquecer. O rapaz
não era o Jamie, nem o podia ser. Aquele rapaz doente, ignorante e
aleijado ser o filho da sua falecida irmã? Impossível! Tinha de
afastar essa ideia da cabeça.
Foi aí,
porém, que Mrs. Carew se encontrou perante uma barreira
inultrapassável. Tudo aquilo persistia em não lhe sair da cabeça.
Diante dos olhos via sempre a imagem daquele quartinho úmido e do
rapazinho triste. Aos seus ouvidos soava constantemente aquela frase
comovedora: "E se fosse o Jamie?". Além disso, estava
sempre ali Pollyanna, e mesmo que Mrs. Carew mandasse calar as
queixas e as perguntas da menina, não havia maneira de lhe acabar
com o olhar reprovador.
Outras
duas vezes, desesperada, Mrs. Carew foi ver o rapaz, dizendo a si
própria que apenas precisava de mais uma visita para se convencer de
que ele não era quem suspeitava. Quando estava na presença do
rapaz, ela dizia a si própria estar convencida, mas, depois de se
afastar dele, as mesmas dúvidas voltavam a assaltá-la. Finalmente,
em estado de grande desespero, escreveu à irmã e contou-lhe a
história toda.
"
Querida Della
Não
tencionava contar-te, pois achava que não valia a pena
entusiasmar-te nem suscitar falsas esperanças. Tenho a certeza de
que não é ele e, no entanto, ao escrever estas palavras, sei que
não estou certa. É por isso que quero que venhas cá. Tens que vir
depressa. Quero que o vejas.
Estou
desejosa de saber o que vais dizer. É claro que não vemos o nosso
Jamie desde os quatro anos. Teria agora doze. Este rapaz tem doze,
creio eu (ele não sabe a sua idade ao certo). Os olhos e os cabelos
não são diferentes dos do nosso Jamie. É aleijado, mas ficou assim
depois de uma queda, há seis anos, e ficou ainda pior a seguir a
outra queda quatro anos mais tarde. É impossível obter uma
descrição completa do pai, mas, daquilo que sei, não há nada de
conclusivo a favor ou contra ofato de ele ser o marido da Doris.
Chamavam-lhe professor, era um homem estranho e parecia não ter mais
nada senão livros. Isto, pode ou não significar nada. O Kent, era
decerto estranho e boêmio nos seus gostos. Se ele se preocupava ou
não com livros, não me lembro. Lembras-te? E, é claro, que o
título de professor pode ter sido assumido por ele, ou apenas
ter-lhe sido dado por outras pessoas. Quanto a este rapaz, não sei.
Mas tenho esperanças que tu consigas descobrir.
Ruth. "
Della
veio imediatamente e foi logo ver o rapaz. Mas também ela ficou
indecisa. Achou que não devia ser o Jamie, mas, ao mesmo tempo,
havia a possibilidade de ser ele. Tal como Pollyanna, porém, ela
tinha uma saída bastante satisfatória para o dilema.
- Porque
não tomas conta dele, querida? - propôs à irmã. - Até o poderias
adotar? Seria bom para ele, pobre pequeno, e...
Mrs.
Carew não a deixou concluir.
- Não,
não posso - lastimou- se. - Quero é o meu Jamie. O meu Jamie e mais
ninguém.
Della em
nada contribuiu e regressou ao seu trabalho.
Se Mrs.
Carew pensou que o assunto tinha ficado encerrado, voltou de novo a
enganar-se. Realmente, os dias e as noites continuavam a ser-lhe
penosos. Além disso, estava em dificuldades com Pollyanna, cada vez
mais perturbada, face à verdadeira pobreza que enfrentara pela
primeira vez. Ela conhecera pessoas que não tinham comida, que
vestiam roupas esfarrapadas e que viviam em quartos minúsculos,
escuros e sujos. O seu primeiro impulso foi, evidentemente, ajudar.
Com Mrs. Carew fez duas visitas a Jamie e ficou muito contente com a
alteração das condições da casa depois de o tal Dodgge ter feito
as melhorias. Mas, para Pollyanna, isso era apenas uma gota de água
no oceano. Havia naquele local muito mais miséria. Confiadamente,
ela esperava que Mrs. Carew ajudasse também todos os outros
infelizes.
- Ah sim?
- exclamou Mrs. Carew ao ouvir o que Pollyanna esperava dela. - Quer
então toda a rua com pinturas e escadas novas! Não quer mais nada?
- Sim,
mais coisas! - disse Pollyanna contente.
- Tanto
que eles precisam! E que divertido era dar-lhas! Ai, como eu gostava
de ser rica para os poder ajudar! Nem calcula como fico contente por
poder estar consigo quando os ajudar.
Mrs.
Carew quase gaguejou, tal o seu espanto. Mas não perdeu tempo a
explicar que não tinha intenção de fazer mais nada no pátio dos
Murphys. Já tinha sido bastante generosa com o que fizera no andar
onde vivia o Jamie com os Murphys (entendera não precisar de dizer a
ninguém que era dona do prédio inteiro). Explicou, sim, a
Pollyanna, que existiam numerosas instituições de caridade que
tinham exatamente por atividade ajudar as pessoas pobres, e que ela
já doava bastante dinheiro a essas instituições.
Mesmo
assim, porém, Pollyanna não ficou convencida.
- Mas não
percebo por que razão é melhor uma série de pessoas juntarem-se e
fazer aquilo que toda a gente gostaria de fazer por si própria. Acho
que preferia ser eu a dar a Jamie um livro bonito do que ser uma
sociedade qualquer a fazê-lo. Ele, com certeza, gostaria muito mais
que fosse eu.
- É
provável - respondeu Mrs. Carew, com indiferença, mas um tanto
irritada. - Mas também é provável que esse livro não fosse tão
bom para Jamie, como o seria se o livro fosse oferecido por um
conjunto de pessoas habilitadas a escolher o livro mais conveniente.
Isto
levou-a a dizer também outras coisas que Pollyanna não percebeu bem
sobre "a pauperização dos pobres", "os malefícios
da oferta indiscriminada" e "o pernicioso efeito da
caridade desorganizada".
Além
disso, também acrescentou, em resposta à expressão de perplexidade
de Pollyanna:
- É
muito possível que, se me oferecesse para ajudar essas pessoas, elas
não aceitassem. Lembra- se de Mrs. Murphy ter recusado deixar-me
enviar-lhe comida e roupas?
- Se
lembro! - respondeu Pollyanna, com um suspiro. - Mas há outra coisa
que não compreendo. Não me parece certo que nós tenhamos direito a
ter tanta coisa bonita e que eles não tenham nada!
Com o
decorrer do tempo, este sentimento de Pollyanna aumentou em vez de
diminuir e as suas perguntas e comentários acabavam por ser um
alívio para o estado de espírito da própria Mrs. Carew. Até o
teste do "Jogo do Contente". Só que, neste caso, Pollyanna
achava que era quase um falhanço. Dizia ela:
- Não
vejo como podemos encontrar seja o que for que nos dê contentamento
nesta coisa dos pobres. Podemos ficar contentes com nós próprios
por não sermos pobres como eles, mas sempre que penso assim, fico
com tanta pena deles que não posso continuar contente. Podíamos
ficar contentes ajudando os pobres, mas se não os ajudarmos, de onde
nos pode vir o contenta mento?
A estas
perguntas, Pollyanna nem sempre tinha resposta satisfatória.
Especialmente
de Mrs. Carew, que continuava a ser perseguida por visões do
verdadeiro Jamie e do Jamie possível, que ficou muito mais
desassossegada e desesperada com a chegada do Natal. Tudo lhe
lembrava a possibilidade do seu Jamie ter um sapatinho sem prendas.
Foi
exatamente na quadra do Natal que se desenrolou consigo a última
batalha. Resolutamente, todavia sem uma verdadeira alegria no rosto.
Foi então que deu ordens rigorosas a Mary e chamou Pollyanna.
-
Pollyanna - disse ela, quase a segredar -, decidi tomar conta do
Jamie. O carro virá imediatamente e vou buscá-lo agora. Se quiser,
pode vir comigo.
O rosto
de Pollyanna transfigurou-se naturalmente de alegria.
- Oh, Que
feliz eu sou! Até me apetece chorar! Mrs. Carew, porque será que
quando nos sentimos tão felizes, nos apetece chorar?
- Não
sei, Pollyanna - respondeu Mrs. Carew sem convicção. O rosto de
Mrs. Carew continuava porém sem alegria.
Quando
chegou ao pequeno quarto dos Murphys, não perdeu muito tempo a dizer
ao que ia. Em poucas palavras contou a história do desaparecido
Jamie. Não manifestou todavia as suas dúvidas quanto ao fato de ele
ser o verdadeiro Jamie, dizendo que decidira levá-lo para casa dela
para lhe proporcionar todas as comodidades. Depois, com um ar um
tanto desprendido, fez saber que aqueles eram os planos que tinha
traçado para ele. Aos pés da cama, Mrs. Murphy ouvia, chorando
baixinho. Do outro lado do quarto, Jerry Murphy, de olhos muito
abertos, soltava exclamações de espanto. Quanto ao Jamie, deitado,
ouviu tudo aquilo com ar de quem tinha visto abrir-se diante de si a
porta do paraíso. Ainda que, gradualmente, enquanto Mrs. Carew
falava, os seus olhos fossem denunciando outra expressão, ao ponto
de os fechar, virando a cara.
Quando
Mrs. Carew concluiu, fez-se um silêncio antes de Jamie voltar de
novo a cara para ela e falar. Estava lívido e dos olhos caíam-lhe
lágrimas.
-
Obrigado, Mrs. Carew, mas não posso ir! disse, simplesmente.
- Não
pode o quê? - exclamou Mrs. Carew, como se duvidasse do que ouvia.
- Jamie!
- exclamou Pollyanna.
- Então
garoto, que se passa? - perguntou Jerry, troçando e aproximando-se
dele. - Não sabes ver o que é bom para ti?
- Sei,
mas não posso ir - insistiu o rapaz.
- Mas,
Jamie... Jamie, pensa no que poderia significar para ti! - insistiu
Mrs. Murphy.
- Já
pensei. Julgam que não sei o que estou a fazer e do que estou a
desistir? - depois, para Mrs. Carew, virou os olhos cheios de
lágrimas e disse: - Não posso, não posso deixá-la fazer isso tudo
por mim. Se gostasse realmente de mim, era diferente, mas a senhora
não me quer a mim. Quer o verdadeiro Jamie e eu não sou o
verdadeiro Jamie. A senhora não pensa que eu o seja, posso vê-lo no
seu rosto.
- Mas...
mas... - começou Mrs. Carew, sem concluir.
- Além
disso, não sou como os outros rapazes, não posso andar -
interrompeu o rapazinho nervoso. - Acabava por se cansar de mim. Não
podia suportar ser um fardo assim. É claro, se a senhora gostasse de
mim como a Mumsey. - disse ele, levando a mão à boca para conter um
soluço. Depois, voltou outra vez a cabeça, continuou.
- Não
sou o Jamie que quer.
Fez-se
novo silêncio. Depois, muito calmamente, Mrs. Carew pôs-se de pé.
O seu rosto estava sem cor, havendo algo nela que silenciou um soluço
vindo dos lábios de Pollyanna.
- Venha,
Pollyanna! - foi tudo que disse.
- Tu és
mesmo maluco! - barafustou Jerry Murphy, falando para o rapaz
deitado, quando a porta se fechou.
O rapaz
paralítico ficou a chorar, como se a porta que se acabara de fechar
fosse a que o poderia ter conduzido ao paraíso e se fechasse para
sempre.
Passaram-se
os meses de Fevereiro, Março e Abril e depois o Maio, aproximando-se
a data do regresso de Pollyanna a casa. Mrs. Carew despertou então,
subitamente, para a realidade do que representaria para si o regresso
de Pollyanna a casa.
Sentiu-se
surpreendida e perturbada porque até ali só tinha encarado com
satisfação a partida dela. Quantas vezes dissera a si própria, e
desejara, que a casa voltasse a ser sossegada, a ter paz e a poder
esconder-se dos aborrecimentos do mundo exterior. Como tanto desejara
poder dedicar a atenção à sua consciência pungente e às memórias
do menino desaparecido. É verdade, em tudo isso pensara, como
possível, quando Pollyanna regressasse a casa.
Mrs.
Carew sabia agora, muito bem, que sem Pollyanna a casa ficaria vazia
e que sem o Jamie seria ainda pior. A consciência desta realidade
não era agradável para o seu orgulho. Era uma tortura para o seu
coração, visto que o rapaz já se tinha recusado duas vezes a ir
viver com ela. Durante os últimos dias da estada de Pollyanna, a
luta foi difícil, embora o orgulho acabasse sempre por predominar.
Então, no dia em que Mrs. Carew sabia que seria a última visita de
Jamie, o coração triunfou e pediu mais uma vez ao rapaz que fosse
para ela o seu desaparecido Jamie.
Aquilo
que disse exatamente nunca se conseguiu lembrar depois, mas o que o
rapaz disse nunca esqueceu. Foram seis breves palavras.
Durante
um longo minuto, os olhos dele perscrutaram o rosto dela. Depois, a
sua cara iluminou-se, enquanto lhe respondeu:
- Oh,
sim! Agora a senhora gosta mesmo de mim!
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