Com o
ruído opulento que parece caracterizar as limosinas de luxo, o
automóvel de Mrs. Carew atravessou a Commonwelth Avenue e subiu
Arlington Street, em direcção a Charles. No banco de trás sentava-
se uma menina de olhos brilhantes e uma senhora crispada e pálida. À
frente, dando indicações ao motorista pouco satisfeito, sentava- se
Jerry Murphy, orgulhoso e empavonado.
Quando a
limosina parou diante de uma porta de aspecto pobre, num pátio sujo,
o rapaz saltou para o chão e, numa imitação ridícula das
pomposidades que já observara muitas vezes, abriu a porta do
automóvel
e ficou à espera das damas.
Pollyanna
saltou imediatamente, com os olhos abertos de espanto e tristeza,
mirando em redor. Atrás dela saiu Mrs. Carew, visivelmente
incomodada pela sordidez do ambiente e pelas crianças mal vestidas
da vizinhança que acorreram imediatamente.
Jerry,
zangado, gesticulava e bravateava.
- Vão-se
embora! Isto não é cinema grátis! Desapareçam! Temos de passar,
Jamie tem visitas.
Mrs.
Carew pousou a mão trémula no ombro de Jerry.
- É
melhor não ir! - disse ela depois, recuando. O rapaz, porém, não a
ouviu. À cotovelada e empurrando, abriu caminho à força. E antes
de Mrs. Carew saber como, chegou com o rapaz e Pollyanna ao vão de
umas escadas, num hall mal iluminado e com cheiro de mofo.
Mais uma
vez Mrs. Carew estendeu a mão trémula.
- Esperem
- ordenou ela. - Lembrem-se! Não digam uma palavra sobre a
possibilidade de ele ser o rapaz que eu procuro. Tenho de o ver
primeiro com os meus próprios olhos e interrogá-lo.
- Com
certeza! - concordou Pollyanna.
- Está
bem. Concordo - disse o rapaz acenando afirmativamente. Agora, subam
com cuidado. As escadas têm buracos e há quase sempre crianças
dormindo nos degraus. O elevador não está funcionando hoje - disse
ele a brincar. - Têm que subir até ao último andar!
Mrs.
Carew deu pelos buracos nas tábuas, que rangiam assustadoramente, e
cruzou-se com uma criança, um bebé de dois anos, que brincava com
uma lata vazia dependurada num fio. As portas estavam abertas e
viam-se mulheres mal vestidas e despenteadas ou crianças de caras
sujas. Em algum lugar, ouvia-se um bebé a chorar. De outro lado, o
praguejar de um homem. Por toda a parte se sentia um cheiro
nauseabundo.
No topo
do último lance de escadas, o rapaz parou diante de uma porta
fechada.
- Estou a
pensar no que dirá Sir James quando vir as visitas que lhe trago. A
Mumsey, sei o que fará. Começará a soluçar, comovida, quando vir
o Jamie tão encantado.
Até que
escancarou a porta, dizendo alegremente:
- Aqui
estamos. Viemos de carro e tudo! Que me diz, então Sir James?
Era um
quarto pequeno, frio e triste, quase sem ; mobília mas
escrupulosamente limpo. Não havia por ali cabeças desgrenhadas, nem
crianças choramingonas, nem cheiros a uísque ou sujidade. Havia
duas camas, três cadeiras partidas, uma mesa e um fogão. Numa das
camas, um rapaz de bochechas vermelhas e olhos febris, estava
deitado. Junto dele, sentava-se uma mulher, muito pálida envergada
pelo reumatismo.
Mrs.
Carew entrou no quarto. Como se precisasse de uma pausa para se
recompor, encostou-se por momentos à parede. Pollyanna correu para o
rapaz deitado com um pequeno grito, enquanto Jerry se retirou.
- Oh,
Jamie! Como estou contente por voltar a ver-te! - exclamou Pollyanna.
- Nem imaginas como
te
procurei todos os dias! Que pena me faz estares doente!
Jamie
sorriu radiante e estendeu a mão macilenta e magra.
- Eu não
estou triste, estou contente porque assim vieste ver-me. Além disso,
já me sinto melhor. Mumsey, esta é a menina que me falou do jogo da
alegria. Sabes, a Mumsey, agora, também o joga. - disse ele
triunfante, virando-se para Pollyanna. - Antes, ela chorava, porque
lhe doíam muito as costas, impedindo-a de trabalhar. Depois, quando
eu fiquei doente, ela ficou contente por não poder trabalhar, pois
assim podia ficar aqui a tomar conta de mim.
Nesse
momento Mrs. Carew aproximou-se. Os seus olhos, meio receosos e meio
saudosos, observaram atentamente o rosto do rapaz paralítico.
- É Mrs.
Carew. Trouxe-a para te ver, Jamie - disse Pollyanna, timidamente.
A
mulherzinha, curvada, tinha-se entretanto posto de pé junto da cama.
Oferecia nervosamente a cadeira à senhora. Mrs. Carew aceitou sem
dar grande atenção. Os olhos continuavam fixados no rapaz deitado.
-
Chamas-te Jamie? - perguntou ela com dificuldade visível.
- Sim,
senhora! - Os olhos brilhantes do rapaz olhavam diretamente para os
dela.
- Qual é
o teu outro nome?
- Não
sei.
- Não é
seu filho?
Pela
primeira vez, Mrs. Carew virou-se e dirigiu-se à mulherzinha
curvada, que continuava junto à cama.
- Não,
minha senhora.
- E não
sabe como ele se chama?
- Não,
minha senhora. Nunca soube.
Com um
gesto de desespero, Mrs. Carew virou-se outra vez para o rapaz.
- Pensa
bem, não te lembras de nada para além de o teu nome ser Jamie? O
rapaz abanou a cabeça e os seus olhos espelhavam surpresa.
- Não,
mesmo nada.
- Não
tens qualquer coisa que pertencesse a teu pai e que tenha o nome dele
escrito?
- Não
havia nada que valesse a pena guardar, para além dos seus livros -
disse Mrs. Murphy. - Talvez queiram vê-los - sugeriu ela, apontando
para uma fila de livros gastos, existentes numa prateleira,
perguntando de imediato, com curiosidade incontida: - Acha que o
conhecia, minha senhora?
- Não
sei - murmurou Mrs. Carew enquanto se levantava e atravessava o
quarto dirigindo-se à prateleira dos livros.
Não eram
muitos, talvez dez ou doze. Havia um volume com peças de
Shakespeare, um de "Ivanhoe", outro da "Dama do Lago"
em muito mau estado, um livro com poemas diversos, um livro de
Tennyson sem capa, um pequeno "Lord De Fauntleroy" e mais
dois ou três de história medieval. Mas, embora Mrs. Carew
observasse minuciosamente cada um deles, não descobriu nenhuma
palavra escrita nem qualquer outra coisa que indiciasse o seu antigo
dono.
Com um
suspiro de desespero voltou-se para o rapaz e para a mulher que a
observavam surpreendidos.
- Gostava
que me contassem o que sabem sobre vocês próprios - disse ela,
hesitante, sentando-se novamente na cadeira junto da cama.
E
contaram-lhe. Era praticamente a mesma história que o Jamie já
tinha contado a Pollyanna no Jardim Público. Pouco havia de novo e
não havia nada de significativo, apesar das perguntas insistentes de
Mrs. Carew. No fim, Jamie dirigiu os olhos ansiosos para o rosto de
Mrs. Carew.
- Acha
que conhecia o meu pai? - perguntou. Mrs. Carew fechou os olhos e
levou a mão à cabeça.
- Não
sei - respondeu ela - Mas acho que não. Pollyanna soltou uma
exclamação de desaponta mento, e imediatamente levou a mão à
boca, obedecendo a um olhar reprovador de Mrs. Carew.
- Foste
tão boa em vir! - disse Jamie a Pollyanna num tom de agradecimento.
- Como está Sir Lancelot? Continuas a ir dar-lhe de comer?
Pollyanna
não respondeu imediatamente. Os olhos dele deslocavam-se entre o
rosto dela e o ramo de flores cor-de-rosa numa garrafa de gargalo
partido.
- Já
viste as minhas flores? Foi Jerry que mas trouxe. Alguém as deitou
para o chão e ele apanhou-as. Não são bonitas? E têm um bocadinho
de cheiro.
Mas
Pollyanna pareceu nem sequer ouvi-lo. Continuava a olhar
perscrutadoramente o quarto inteiro, remexendo as mãos nervosamente.
- Só não
percebo como é que podes jogar o jogo, aqui, Jamie - disse ela quase
a gaguejar. - Acho difícil existir um lugar tão horrível para
viver - disse ela tristemente.
- Havias
de ver os Pykes, no andar de baixo. O quarto deles é muito pior do
que este. Nem sabes a quantidade de coisas boas que existem neste
quarto. Se, ao menos, o pudéssemos manter... Sabes, o problema é
que temos de o largar. Isso, agora é que nos preocupa mais.
- Largar,
porquê?
- Ora,
porque temos o aluguel em atraso! A Mumsey tem estado doente e não
tem conseguido ganhar nada. - Apesar de um sorriso corajoso, a voz de
Jamie vacilou. - Miss Dolan, lá em baixo, que é a senhora onde
guardo a minha cadeira de rodas, ajudou-nos esta semana. Mas, claro,
que não pode continuar a fazer isso e, então, teremos de ir embora,
se o Jerry não arranjar dinheiro.
- Mas,
não podemos... - ia Pollyanna a dizer, mas calando-se logo, porque
Mrs. Carew se levantou, de repente, dizendo:
- Venha,
Pollyanna, temos de ir. - Depois, virou-se para a mulher e disse-lhe:
- Não precisam de sair. Vou mandar-vos comida e dinheiro
imediatamente. E vou referir o vosso caso a uma das organizações de
caridade, para que considere a vossa situação...
Surpreendida,
parou de falar. A figurinha curvada da mulher que estava diante dela,
endireitara-se quase completamente. Mrs. Murphy corara e os seus
olhos quase chispavam.
-
Obrigada, mas não, Mrs. Carew! - disse ela, trémula e orgulhosa. -
Somos pobres, Deus o sabe, mas não vivemos da caridade.
- Que
disparate! - exclamou Mrs. Carew, severa.
- Deixam
a mulher de baixo ajudar-vos... Este rapaz ainda há pouco acabou de
o dizer.
- Eu sei,
mas isso não é caridade. Mrs. Dolan é minha amiga. Ela sabe que eu
era capaz de lhe fazer o mesmo e já a ajudei antes. A ajuda dos
amigos não é caridade. Eles preocupam-se conosco. E é isso que faz
a diferença. Não fomos sempre assim tão pobres como somos agora, e
isso faz-nos sofrer muito mais. Obrigada, mas não podemos aceitar o
seu dinheiro.
Mrs.
Carew fez uma cara muito zangada. Fora uma hora de muito
desapontamento, de sofrimento e de cansaço. Fora até muito
paciente. Só que agora sentia-se irritadíssima.
- Muito
bem, como queiram - disse friamente e acrescentando em tom irritado -
nesse caso, porque não exigem que o vosso senhorio torne este local
decente enquanto aqui estão? Decerto têm direito a ter as janelas
inteiras e as escadas em condições sofríveis.
Mrs.
Murphy concordou, desanimada. A sua pequena figura tinha voltado à
mesma postura de desalento.
- Já
tentamos, só que ele nunca está disposto a fazer nada. Já falamos
em tudo isso ao procurador, e a resposta dele é que as rendas são
demasiado baixas para o proprietário gastar dinheiro em reparos.
-
Sovinice, é o que é! - exclamou Mrs. Carew, exasperada. - É uma
vergonha! Como também é uma clara violação da lei - Verão, vou
fazer com que se cumpra a lei. Qual é o nome do procurador e quem é
o proprietário deste prédio?
- Não
sei o nome do proprietário, senhora, mas o agente é Mr. Dodgge.
- Dodgge!
- Mrs. Carew virou-se estranhamente.
- Ele
chama-se Henry Dodgge?
- Sim,
senhora. É isso, também se chama Henry.
Uma
espécie de rubor aflorou no rosto de Mrs. Carew, para logo de
seguida se tornar ainda mais pálida.
- Muito
bem, vou ver o que posso fazer - murmurou ela em voz mais baixa,
preparando-se para sair.
- Venha
Pollyanna, temos de ir.
Sentada
na cama, Pollyanna despediu-se chorosa de Jamie.
- Hei-de
vir cá outra vez. Muito em breve - prometeu, enquanto se apressava a
seguir Mrs. Carew, que se adiantara a sair.
Só
depois de terem descido os três andares e atravessado o grupo de
homens, mulheres e crianças, que gesticulavam e conversavam em redor
da limosina e de Perkins, é que Pollyanna voltou a falar. Mal o
motorista, zangado, fechou as portas ela suplicou:
- Querida
Mrs. Carew, por favor, diga que é o Jamie! Seria tão bom para ele
ser o Jamie.
- Mas não
é o Jamie!
- Tem a
certeza?
Houve um
compasso de espera. Depois Mrs. Carew cobriu o rosto com as mãos.
- Não, a
certeza não tenho. Essa é a tragédia! argumentou - Eu acho que não
é, tenho quase a certeza, mas, claro, há ainda essa possibilidade,
e é isso que me atormenta.
- Então
porque não pensa já que ele é o Jamie? - suplicou Pollyanna -
Nesse caso até o podia levar para sua casa e...
- Mrs.
Carew virara-se para ela, surpreendida e irada.
- Levar
esse rapaz para minha casa, não sendo o Jamie? Nunca, Pollyanna!
- Mesmo
não sendo o Jamie, acho que a senhora ficaria muito contente se
houvesse alguém que encontrasse o verdadeiro Jamie e o ajudasse como
a senhora pode agora fazer com este. Se o seu Jamie fosse como este,
pobre e doente, não gostava que alguém tomasse conta dele, o
confortasse e.
- Pare
com isso, Pollyanna - lastimou-se Mrs. Carew, virando a cabeça de um
lado para o outro, num rito de dor. - Ai, quando penso que talvez
nalgum lado o meu Jamie possa estar nestas condições! um soluço
não a deixou concluir a frase.
- É isso
que eu quero dizer. Isso mesmo! - exclamou Pollyanna, triunfante. -
Está a perceber? Se este for o seu Jamie, é claro que o há-de
querer, se não for, não estará a fazer mal nenhum ao outro Jamie
por ficar com este. Ao mesmo tempo estaria a praticar o bem, pois
faria este muito feliz, muito feliz! E se depois acabar por encontrar
o verdadeiro Jamie, não perde nada, pois tornou dois rapazinhos
felizes em vez de um, e.
- Mrs.
Carew voltou de novo a interrompê-la.
-
Pollyanna, pare com isso! Eu quero pensar! - Chorosa, Pollyanna
refastelou-se no seu banco. Com um esforço visível, manteve-se
calada durante algum tempo. Depois, como se as palavras saíssem
sozinhas, ela disse:
- Que
lugar tão horroroso! Só queria que o senhorio tivesse que lá
viver. Sempre queria ver se vivia contente.
Mrs.
Carew sentou-se de repente muito direita. O rosto apresentava uma
mudança curiosa. Quase como um apelo, estendeu a mão na direção
de Pollyanna.
- Pare
com isso - pediu ela. - Até pode suceder que ela não saiba que é
dona de um lugar assim. Mas, agora vai ser arranjado.
- Ela?
Então o dono é uma mulher? Conhece-a? E também conhece o agente?
- Sim -
Mrs. Carew mordeu os lábios. -Conheço-a a ela e conheço o agente.
- Oh,
assim fico contente! - disse Pollyanna suspirando. - Então, tudo vai
ser melhor!
- Sim,
decerto! - respondeu Mrs. Carew, com ênfase, enquanto o carro parava
diante da porta de sua casa.
Mrs.
Carew falava como se soubesse do que estava a falar. Sabia mesmo
muito mais do que dizia a Pollyanna. Antes de se deitar, naquela
noite, escreveu uma carta a um tal Henry Dodgge, convocando-o
imediatamente para uma reunião, no sentido de se fazerem alterações
e reparos urgentes num dos prédios de que era proprietária.
Referia-se ainda a janelas partidas, escadas esburacadas. O que havia
de levar o dito Henry Dodgge a franzir a testa zangado e a praguejar,
ao mesmo tempo que empalidecia, receoso.
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