sábado, 20 de julho de 2013

PRÓLOGO


- Deveríamos regressar - insistiu Gared quando os bosques começaram a escurecer ao redor do grupo. - Os selvagens estão mortos.
- Os mortos o assustam? - perguntou Sor Waymar Royce com não mais do que uma sugestão de sorriso no rosto.
Gared não mordeu a isca. Era um homem velho, com mais de cinquenta anos, e vira os nobres chegar e partir.
- Um morto é um morto - respondeu. - Nada temos a tratar com os mortos.
- Mas estão mortos? - perguntou Royce com suavidade. - Que prova temos disso?
- Will os viu - disse Gared. - Se ele diz que estão mortos, é prova suficiente para mim.
Will já sabia que o arrastariam para a disputa mais cedo ou mais tarde. Desejou que tivesse sido mais tarde.
- Minha mãe disse-me que os mortos não cantam – contou Will.
- Minha ama de leite disse a mesma coisa, Will – respondeu Royce. - Nunca acredite em nada do que ouvir junto à mama de uma mulher. Há coisas a aprender mesmo com os mortos - sua voz gerou ecos, alta demais na penumbra da floresta.
- Temos perante nós uma longa cavalgada - salientou Gared. - Oito dias, talvez nove. E a noite está para cair.
Sor Waymar Royce olhou o céu de relance, com desinteresse.
- Isso acontece todos os dias por esta hora. Você perde a virilidade com o escuro, Gared?
Will via o aperto em torno da boca de Gared, a ira só a custo reprimida nos olhos que espreitavam sob o espesso capuz negro de seu manto. Ele passara quarenta anos na Patrulha da Noite, em homem e em rapaz, e não estava acostumado a ser desvalorizado. Mas era mais do que isso. Will conseguia detectar no homem mais velho algo mais sob o orgulho ferido. Era possível sentir-lhe o gosto: uma tensão nervosa que se aproximava perigosamente do medo.
Will partilhava o desconforto do outro homem. Estava havia quatro anos na Muralha. Da primeira vez que fora enviado para lá, todas as velhas histórias lhe tinham acorrido ao cérebro, e suas entranhas se tinham feito em água. Era agora um veterano de cem patrulhas, e a escura e infinita terra selvagem a que os sulistas chamavam floresta assombrada já não tinha terrores para si.
Até aquela noite. Algo era diferente então. Havia naquela escuridão algo de cortante que lhe fazia eriçar os pelos da nuca. Cavalgavam havia nove dias, para norte e noroeste, e depois de novo para norte, cada vez para mais longe da Muralha, seguindo sem desvios a trilha de um bando de salteadores selvagens. Cada dia fora pior que o anterior. Aquele tinha sido o pior de todos. Um vento frio soprava do norte e fazia as árvores sussurrarem como coisas vivas.
Durante todo o dia Will tivera uma sensação que era como se alguma coisa o estivesse observando, algo frio e implacável que não gostava dele. Gared também sentira. Will nada desejava com tanta força como cavalgar a toda pressa de volta à segurança da Muralha, mas este não era um sentimento que se pudesse partilhar com um comandante. Especialmente com um comandante como aquele. Sor Waymar Royce era o filho mais novo de uma Casa antiga com demasiados herdeiros. Era um jovem bem-apessoado de dezoito anos, de olhos cinzentos, elegante e esbelto como uma faca. Montando em seu enorme corcel de batalha negro, o cavaleiro elevava-se bem acima de Will e Gared, montados nos seus garranos de menores dimensões. Trajava botas negras de couro, calças negras de lã, luvas negras de pele de toupeira e uma cintilante cota de malha negra e flexível por cima de várias camadas de lã negra e couro fervido. Sor Waymar era um Irmão Juramentado da Patrulha da Noite havia menos de meio ano, mas ninguém poderia dizer que não se preparara para a sua vocação. Pelo menos no que dizia respeito ao guarda-roupa.
O manto constituía a consumação da sua glória; zibelina, espessa e negra, suave como pele. "Aposto que foi ele próprio quem as matou todas, ah, pois aposto", dissera Gared na caserna, entre os vapores do vinho, “torceu-lhes as cabecinhas e arrancou-as, o nosso poderoso guerreiro". A gargalhada fora partilhada por todos.
"É difícil aceitar ordens de um homem de quem nos rimos de copo na mão", refletiu Will, sentado, tremendo, sobre o dorso do garrano, Gared devia sentir o mesmo.
- Mormont nos disse para os encontrarmos, e encontramos - disse Gared. - Estão mortos. Não voltarão a nos causar problemas, Temos uma dura cavalgada à nossa frente. Não gosto deste tempo. Se nevar, poderemos levar uma quinzena para regressar, e a neve é o melhor que podemos esperar. Alguma vez viu uma tempestade de gelo, senhor?
O nobre pareceu não ouvi-lo. Estudava o crepúsculo, o que aprofundava aquele seu modo meio aborrecido e meio distraído. Will já cavalgava com o cavaleiro havia tempo suficiente para compreender que era melhor não o interromper quando tinha aquela expressão.
- Diga-me de novo o que viu, Will. Todos os detalhes. Não deixe nada de fora,
Will fora um caçador antes de se juntar à Patrulha da Noite. Bem, na verdade fora um caçador furtivo. Os cavaleiros livres de Mallister tinham-no apanhado com a boca na botija nos bosques do próprio Mallister, esfolando um dos seus gamos, e apenas pudera escolher entre passar a vestir-se de negro e perder uma mão. Ninguém era capaz de se mover pela floresta tão silenciosamente como Will, e os irmãos negros não tinham demorado muito tempo para descobrir seu talento.
- O acampamento fica duas milhas mais à frente, para lá daquela cumeada, ao lado de um córrego - disse Will. - Cheguei o mais perto que me atrevi. Eles são oito, com homens e mulheres. Não vi crianças. Ergueram um abrigo contra a rocha. A neve já o cobriu bem, mas mesmo assim consegui descortiná-lo. Não vi nenhum fogo ardendo, mas a cova da fogueira ainda estava clara como o dia. Ninguém se movia. Observei durante muito tempo. Nunca um homem vivo ficou tão quieto.
- Viu algum sangue?
- Bem, não - admitiu Will.
- Viu armas?
- Algumas espadas, uns quantos arcos. Um homem tinha um machado. Com ar de ser pesado, duas lâminas, um cruel bocado de ferro. Estava no chão à seu lado, junto à sua mão.
- Prestou atenção à posição dos corpos?
Will encolheu os ombros.
- Um par deles está sentado junto ao rochedo. A maioria está no chão. Como caídos.
- Ou dormindo - sugeriu Royce.
- Caídos - insistiu Will. - Há uma mulher numa árvore de pau- ferro, meio escondida entre os ramos. Uma olhos-longos - ele deu um tênue sorriso. - Assegurei-me de que não me conseguiria ver. Quando me aproximei, vi que ela também não se movia - e sacudiu-se por um estremecimento involuntário.
- Está enregelado? - perguntou Royce.
- Um pouco - murmurou Will. - É o vento, senhor.
O jovem cavaleiro virou-se para seu grisalho homem de armas. Folhas pesadas de geada suspiravam ao passar por eles, e o corcel de batalha movia-se de forma inquieta.
- Que lhe parece que possa ter matado aqueles homens, Gared? - perguntou Sor Waymar com ar casual, ajustando a posição do longo manto de zibelina.
- Foi o frio - disse Gared com uma certeza férrea. - Vi homens congelar no inverno passado e no outro antes desse, quando eu era pequeno. Toda a gente fala de neve com doze metros de profundidade, e do modo como o vento de gelo chega do norte uivando, mas o verdadeiro inimigo é o frio. Aproxima-se em silêncio, mais furtivo do que o Will. A princípio estremece-se e os dentes batem, e bate-se com os pés no chão e sonha-se com vinho aquecido e boas e quentes fogueiras. Ele queima, ah, como queima. Nada queima como o frio. Mas só durante algum tempo. Então, penetra no corpo e começa a enchê-lo, e passado algum tempo já não se tem força suficiente para combatê-lo. E mais fácil limitarmo-nos a nos sentar ou a adormecer. Dizem que não se sente dor alguma perto do fim. Primeiro, fica-se fraco e sonolento, e tudo começa a se desvanecer, e depois é como afundar num mar de leite morno. Como que pacífico.
- Quanta eloquência, Gared - observou Sor Waymar. - Nunca suspeitei que a tivesse dentro de si.
- Também tive o frio dentro de mim, nobre - Gared puxou para trás o capuz, oferecendo a Sor Waymar um longo olhar sobre os cotos onde as orelhas tinham estado. - Duas orelhas, três dedos dos pés e o mindinho da mão esquerda. Tive sorte. Encontramos meu irmão congelado no seu posto de vigia com um sorriso no rosto.
Sor Waymar encolheu os ombros.
- Deveria vestir coisas mais quentes, Gared.
Gared lançou ao nobre um olhar feroz, e as cicatrizes em redor das suas orelhas ficaram vermelhas de fúria nos locais onde o Meistre Aemon as cortara.
- Veremos quão quente poderá se vestir quando chegar o inverno - puxou o capuz para cima e arqueou as costas sobre o garrano, silencioso e carrancudo.
- Se Gared diz que foi o frio... - começou Will.
- Você fez alguma vigia nesta última semana, Will?
- Sim, senhor - nunca havia uma semana em que ele não fizesse uma maldita dúzia de vigias. Aonde o homem queria chegar?
- E em que estado encontrou a Muralha?
- Úmida - Will respondeu, franzindo a sobrancelha. Agora que o nobre o fizera notar, via os fatos com clareza. - Eles não podem ter congelado. Se a Muralha está úmida, não podem. O frio não é suficiente.
Royce anuiu.
- Rapaz esperto. Tivemos alguns frios ligeiros na semana passada, e uma queda de neve rápida de vez em quando, mas com certeza não houve nenhum frio suficientemente forte para matar oito homens adultos. Homens vestidos de peles e couro, relembro, com um abrigo ali à mão e meios para fazer fogo - o sorriso do cavaleiro ressumava confiança. - Will, leve- nos lá. Quero ver esses mortos com meus próprios olhos.
E a partir desse momento nada mais havia a fazer. A ordem fora dada, e a honra os obrigava a obedecer.
Will seguiu à frente, com o pequeno garrano felpudo escolhendo com cuidado o caminho por entre a vegetação rasteira. Uma neve ligeira caíra na noite anterior, e havia pedras, raízes e covas escondidas por baixo da sua crosta, à espreita dos descuidados e dos imprudentes. Sor Waymar Royce vinha logo atrás, com o grande corcel negro de batalha resfolegando de impaciência. Aquele cavalo era a montaria errada para uma patrulha, mas tentem dizer isto ao nobre.
Gared fechava a retaguarda. O velho soldado resmungava para si próprio enquanto avançava. O crepúsculo aprofundava-se. O céu sem nuvens tomou um profundo tom de púrpura, a cor de uma velha nódoa negra, e depois se dissolveu em negro. As estrelas começaram a surgir. Uma meia-lua se ergueu. Will estava grato pela luz.
- Podemos decerto avançar mais depressa do que isto - disse Royce depois de a lua se erguer por completo.
- Com este cavalo, não - respondeu Will. O medo tornara-o insolente. - Talvez meu senhor deseje tomar a dianteira?
Sor Waymar Royce não se dignou a responder. Em algum lugar nos bosques um lobo uivou. Will levou o garrano para baixo de uma velha e nodosa árvore de pau-ferro e desmontou.
- Por que parou? - perguntou Sor Waymar.
- É melhor ir o resto do caminho a pé, senhor. O lugar é logo depois daquela colina.
Royce fez uma pausa momentânea, de olhos presos na distância e o rosto pensativo. Um vento frio sussurrou por entre as árvores. O grande manto de zibelina agitou-se nas costas como uma coisa semiviva.
- Há qualquer coisa de errado aqui - murmurou Gared.
O jovem cavaleiro dedicou-lhe um sorriso desdenhoso.
- Aí há?
- Não o sentiu? - perguntou Gared. - Escute a escuridão.
Will sentia. Em quatro anos na Patrulha da Noite, nunca estivera tão temeroso. O que era aquilo?
- Vento. Ruído de árvores. Um lobo. Que som te apavora tanto, Gared? - como Gared não respondeu, Royce deslizou graciosamente da sela. Atou com segurança o corcel de batalha a uma ramada baixa, bem afastado dos outros cavalos, e retirou a espada da bainha. Joias cintilaram no punho e o luar percorreu o aço brilhante. Era uma arma magnífica, forjada num castelo e, segundo aparentava, novinha em folha. Will duvidava que tivesse sido alguma vez brandida em fúria.
- O arvoredo é espesso por aqui - preveniu Will. - Essa espada o atrapalhará, senhor. Uma faca é melhor.
- Se precisar de instruções, eu as pedirei - disse o jovem senhor. - Gared, fique aqui. Guarde os cavalos.
Gared desmontou.
- Precisamos de uma fogueira. Tratarei disso.
- Quanta tolice tem nessa cabeça, velhote? Se houver inimigos nesta floresta, uma fogueira é a última coisa que queremos.
- Há alguns inimigos que uma fogueira manterá afastados - disse Gared. - Ursos, lobos gigantes e... e outras coisas...
A boca de Sor Waymar transformou-se numa linha dura.
- Não haverá fogo.
O capuz de Gared engolia-lhe o rosto, mas Will conseguia ver a cintilação dura nos olhos que se fixavam no cavaleiro. Por um momento, temeu que o homem mais velho puxasse a espada. Era uma coisa curta e feia, com o punho desbotado pelo suor e o gume denteado pelo muito uso, mas Will não daria um pendão de ferro pela vida do nobre se Gared a desembainhasse. Por fim, Gared olhou para baixo.
- Não haverá fogo - murmurou de forma quase inaudível.
Royce tomou aquilo como aquiescência e virou-se.
- Indique o caminho - disse a Will.
Will teceu um rumo através de um matagal, depois subiu o declive da colina baixa onde encontrara seu ponto de vigia, por baixo de uma árvore sentinela. Sob a fina crosta de neve o solo estava úmido e lamacento, escorregadio, com rochas e raízes escondidas, prontas para provocar tropeços.
Will não fez nenhum som enquanto subia. Atrás de si ouvia o suave roçar metálico da cota de malha do nobre, o restolhar de folhas e pragas murmuradas quando ramos espetados se agarravam à espada e puxavam o magnífico manto de zibelina do outro homem.
A grande árvore estava mesmo no topo da colina onde Will sabia que estaria, com os ramos inferiores não mais que trinta centímetros acima do solo. Will deslizou por baixo, com a barriga apoiada na neve e na lama, e olhou a clareira vazia mais abaixo.
O coração parou no seu peito. Por um momento não se atreveu a respirar. O luar brilhava sobre a clareira, sobre as cinzas na cova da fogueira, sobre o abrigo coberto de neve, sobre o grande rochedo, sobre o pequeno riacho meio congelado. Tudo estava como estivera algumas horas antes.
Eles não estavam lá. Todos os corpos tinham desaparecido.
- Deuses! - ouviu alguém dizer atrás de si. Uma espada golpeou um ramo quando Sor Waymar Royce atingiu o topo da colina. Ficou em pé ao lado da árvore, de espada na mão, com o manto a ondular nas costas, soprado pelo vento que se levantava, nobremente delineado contra as estrelas para que todos o vissem.
- Abaixem-se! - segredou Will com urgência. - Há algo de errado.
Royce não se moveu. Olhou para a clareira vazia e deu risada.
- Parece que seus mortos levantaram acampamento, Will.
A voz de Will o abandonou. Procurou palavras que não vieram. Não era possível. Seus olhos percorreram para a frente e para trás o acampamento abandonado e pararam no machado. Um enorme machado de batalha de duas lâminas, ainda caído onde o vira pela última vez, intocado. Uma arma valiosa...
- De pé, Will - ordenou Sor Waymar. - Não há ninguém aqui. Não quero vê-lo escondido por baixo de um arbusto.
Relutante, Will obedeceu.
Sor Waymar olhou-o com aberta desaprovação:
- Não vou regressar a Castelo Negro com um fracasso na minha primeira patrulha. Vamos encontrar aqueles homens - olhou de relance em volta. - Suba na árvore. Seja rápido. Procure uma fogueira.
Will virou-se, sem palavras. Não valia a pena argumentar. O vento movia-se. Trespassava-o. Dirigiu-se para a árvore, uma sentinela abobadada cinzenta esverdeada, e começou a subir. Em breve tinha as mãos pegajosas de seiva e estava perdido entre as agulhas. O medo enchia-lhe o estômago como uma refeição que fosse incapaz de digerir. Murmurou uma prece aos deuses sem nome da floresta e libertou o punhal da bainha. Colocou-o entre os dentes para manter as mãos livres para a escalada. O sabor do ferro frio na boca o confortou.
Embaixo, o nobre de repente gritou:
- Quem vem lá?
Will ouviu incerteza na chamada. Parou de escalar; escutou; observou. Os bosques deram resposta: um restolhar de folhas, o correr gelado do riacho, o pio distante de uma coruja das neves. Os Outros não faziam som algum.
Will viu movimento com o canto do olho. Sombras pálidas que deslizavam pela floresta. Virou a cabeça, viu de relance uma sombra branca na escuridão. Logo depois ela desapareceu. Ramos agitaram-se gentilmente ao vento, coçando-se uns aos outros com dedos de madeira. Will abriu a boca para gritar um aviso, mas as palavras pareceram congelar na garganta. Talvez estivesse errado. Talvez tivesse sido apenas uma ave, um reflexo na neve, um truque qualquer do luar. Afinal, o que vira?
- Will, onde está? - chamou Sor Waymar. - Vê alguma coisa? - o homem descrevia um círculo lento, de súbito cauteloso, de espada na mão. Deve tê-los pressentido, tal como Will os pressentia. Nada havia para ver. - Responda! Por que está tão frio?
E estava frio. Tremendo, Will agarrou-se com mais força ao seu poleiro. Apertou o rosto com força contra o tronco da árvore. Sentia a seiva doce e pegajosa na bochecha.
Uma sombra emergiu da escuridão da floresta. Parou na frente de Royce. Era alta, descarnada e dura como ossos velhos, com uma carne pálida como leite. Sua armadura parecia mudar de cor quando se movia; aqui era tão branca como neve recém-caída, ali, negra como uma sombra, por todo o lado sarapintada com o profundo cinzento esverdeado das árvores. Os padrões corriam como o luar na água a cada passo que dava.
Will ouviu a exalação sair de Sor Waymar Royce num longo silvo.
- Não avance mais - preveniu o nobre. A voz estava quebrada como a de um rapaz. Atirou o longo manto de zibelina para trás por sobre os ombros, a fim de libertar os braços para a batalha, e pegou na espada com ambas as mãos. O vento parara. Estava muito frio.
O Outro deslizou para a frente sobre pés silenciosos. Na mão trazia uma espada que não era como nada que Will tivesse visto. Nenhum metal humano tinha entrado na forja daquela lâmina. Estava viva de luar, translúcida, um fragmento de cristal tão fino que parecia quase desaparecer quando visto de frente. Havia naquela coisa uma tênue cintilação azul, uma luz fantasmagórica que brincava com os seus limites, e de algum modo Will soube que era mais afiada do que qualquer navalha.
Sor Waymar enfrentou o inimigo com bravura.
- Neste caso, dance comigo.
Ergueu a espada bem alto acima da cabeça, desafiador. As mãos tremiam com o peso da arma, ou talvez devido ao frio. Mas naquele momento, pensou Will, já não era um rapaz, e sim um homem da Patrulha da Noite. O Outro parou. Will viu seus olhos, azuis, mais profundos e mais azuis do que quaisquer olhos humanos, de um azul que queimava como gelo. Will fixou-se na espada que estremecia, erguida, e observou o luar que corria, frio, ao longo do metal. Durante um segundo, atreveu-se a ter esperança.
Emergiram em silêncio, das sombras, gêmeos do primeiro. Três... quatro... cinco... Sor Waymar talvez tivesse sentido o frio que vinha com eles, mas não chegou a vê-los, não chegou a ouvi-los. Will tinha de chamá-lo. Era seu dever. E sua morte, se o fizesse. Estremeceu, abraçou a árvore e manteve o silêncio.
A espada clara veio pelo ar, tremendo. Sor Waymar parou-a com o aço. Quando as lâminas se encontraram, não se ouviu nenhum ressoar de metal com metal, apenas um som agudo e fino, no limiar da audição, como um animal a guinchar de dor. Royce deteve um segundo golpe, e um terceiro, e depois recuou um passo. Outra chuva de golpes, e recuou outra vez.
Atrás dele, para a direita, para a esquerda, em seu redor, os observadores mantinham-se em pé, pacientes, sem rosto, silenciosos, com os padrões mutáveis de suas delicadas armaduras a torná-los quase invisíveis na floresta. Mas não faziam um gesto para intervir.
Uma vez e outra, as espadas encontraram-se, até Will querer tapar os ouvidos, protegendo-os do estranho e angustiado lamento de seus choques. Sor Waymar já arquejava por causa do esforço, e a respiração gerava nuvens ao luar. Sua lâmina estava branca de gelo; a do Outro dançava com uma pálida luz azul.
Então, a parada de Royce chegou um momento tarde demais. A espada cristalina trespassou a cota de malha por baixo de seu braço. O jovem senhor gritou de dor. Surgiu sangue por entre os aros, correu ao frio, e as gotas pareciam vermelhas como fogo onde tocavam a neve. Os dedos de Sor Waymar esfregaram o flanco. Sua luva de pele de toupeira veio empapada de vermelho.
O Outro disse qualquer coisa numa língua que Will não conhecia; sua voz era como o quebrar do gelo num lago de inverno, e as palavras, escarnecedoras.
Sor Waymar Royce encontrou sua fúria.
- Por Robert! - gritou, e atacou, rosnando, erguendo com ambas as mãos a espada coberta de gelo e brandindo-a num golpe lateral paralelo ao chão, carregado com todo seu peso. A parada do Outro foi quase displicente.
Quando as lâminas se tocaram, o aço despedaçou-se. Um grito ecoou pela noite da floresta, e a espada quebrou-se numa centena de pedaços quebradiços, espalhando os estilhaços como uma chuva de agulhas. Royce caiu de joelhos, guinchando, e cobriu os olhos. Sangue jorrou-lhe por entre os dedos. Os observadores aproximaram-se uns dos outros, como que em resposta a um sinal. Espadas ergueram-se e caíram, tudo num silêncio mortal.
Era um assassinato frio. As lâminas pálidas atravessaram a cota de malha como se fosse seda. Will fechou os olhos. Muito abaixo, ouviu as vozes e os risos, aguçados como pingentes. Quando reuniu coragem para voltar a olhar, um longo tempo se passara, e a colina lá embaixo estava vazia.
Ficou na árvore, quase sem se atrever a respirar, enquanto a lua foi rastejando lentamente pelo céu negro. Por fim, com os músculos cheios de cãibras e os dedos dormentes de frio, desceu.
O corpo de Royce jazia na neve de barriga para baixo, com um braço aberto. O espesso manto de zibelina tinha sido cortado numa dúzia de lugares. Jazendo assim morto, via-se como era novo. Um rapaz.
Will encontrou o que restava da espada a alguns pés de distância, com a extremidade estilhaçada e retorcida, como uma árvore atingida por um relâmpago. Ajoelhou-se, olhou em volta com cautela e a apanhou. A espada quebrada seria sua prova. Gared saberia compreendê-la, e, se não soubesse, então haveria o velho urso do Mormont ou o Meistre Aemon. Estaria Gared ainda à espera com os cavalos? Tinha de se apressar.
Will endireitou-se. Sor Waymar Royce erguia-se sobre ele. Suas belas roupas eram farrapos, o rosto, uma ruína. Um estilhaço da espada trespassara a pupila branca e cega do olho esquerdo. O olho direito estava aberto. A pupila queimava, azul. Via. A espada quebrada caiu de dedos despidos de força. Will fechou os olhos para rezar. Mãos longas e elegantes roçaram na sua bochecha e depois se fecharam em volta de sua garganta. Estavam enluvadas na mais fina pele de toupeira e pegajosas de sangue, mas seu toque era frio como gelo.


4 comentários:

  1. Meu Deus! Obrigada por postar! Mas... eh que esse fundo de estrelas preto e branco faz meus olhos doerem. Eu queria saber se sao apenas os meus olhos que tem esse problema ou voce poderia trocar o fundo/

    Mas tirando isso eh incrivel! Obrigada por postar!

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Obrigada por comentar (já estava desistindo de postar o próximo livro por falta de comentários)
      Quanto as estrelinhas, eu deixo essa parte c/ a minha sobrinha (A Tita), só ela pode responder sobre a mudança...
      Bjocas
      E Boa Leitura!!!

      Excluir
    2. Ahhh De nada *-*, como eu cuido do visual do blog já vou arrumar isso!! já já vou trocar.

      Excluir
  2. POSTA SENHOR DOS ANEÍS , POR FAVOR !!!

    ResponderExcluir

NÃO DÊ SPOILERS!
Encontrou algum erro ortográfico no texto? Comente aqui para que possa arrumar :)
Se quer comentar e não tem uma conta no blogger ou google, escolha a opção nome/url e coloque seu nome. Nem precisa preencher o url.
Comentários anônimos serão ignorados