Della
Wetherby dirigiu-se decididamente para casa da sua irmã, na
Commonwealth Avenue, e tocou energicamente à campainha. Da cabeça
aos pés irradiava saúde, competência e decisão. Até a sua voz
vibrava com a alegria de viver, ao cumprimentar a criada que lhe
abriu a porta.
- Bom
dia, Mary. A minha irmã está em casa?
- Sim,
minha senhora, Mrs. Carew está em casa - hesitou a moça -, mas deu
ordens para não deixar entrar ninguém.
- Ah sim?
Mas eu não sou qualquer pessoa! - sorriu Mrs. Wetherby. - Portanto
ela há-de receber-me. Não se preocupe, porque eu responsabilizo-me.
Onde está ela, na sala de estar?
- Sim,
minha senhora, mas...
Miss
Wetherby, no entanto, já ia a meio caminho das escadas, e a criada,
com expressão de desespero, desistiu. Já no hall, passou através
de uma porta semiaberta e bateu.
- O que
é, Mary? - ouviu-se uma voz aborrecida. - Ah, é a Della! - ouviu-se
a mesma voz completamente modificada, cheia de calor e surpresa.
Minha querida irmã, donde vieste?
- Sim,
sou eu - sorriu a jovem, já dentro da sala.
- Fui
passar o Domingo com duas outras enfermeiras, e agora estou de
regresso ao Sanatório. Não me demoro. Vim só dar-te um beijo.
Mrs.
Carew fez uma expressão triste e retraiu-se com alguma frieza. O ar
de alegria que, por momentos, se lhe espelhara no rosto, tinha
desaparecido.
- Claro!
Devia ter calculado, tu nunca cá páras!
Della
Wetherby riu, estendendo-lhe as mãos; a seguir, de repente, a sua
voz e os seus modos alteraram- se. Olhou para a irmã com seriedade e
ternura e disse delicadamente:
- Querida
Ruth, bem sabes que não consigo viver nesta casa.
Mrs.
Carew olhou para ela irritada, protestando:
- Não
sei porquê!
Della
Wetherby abanou a cabeça, explicando.
- Sabes
sim, querida. Sabes que não sinto afinidade nenhuma com tudo isto: o
ambiente, a falta de objetivos, a tua insistência na tristeza, na
amargura.
- Mas eu
sou triste e amargurada.
- Mas não
devias ser!
- Porque
não? Que razões tenho para não ser assim?
Della
Wetherby fez um gesto de impaciência e continuou:
- Olha
Ruth, tens 33 anos. Tens boa saúde, devias ter, se tratasses bem de
ti; dispões de muito tempo e ainda mais de dinheiro. Devias arranjar
alguma coisa para fazeres nesta manhã maravilhosa ao contrário de
ficares aqui sentada e encafuada em casa, ainda por cima dando ordens
à criada para não deixar entrar ninguém.
- Mas eu
não quero ver ninguém!
- Olha,
eu havia de arranjar maneira de querer.
Mrs.
Carew olhou constrangida e virou a cabeça.
- Oh!
Della, porque é que nunca me compreendes? Eu não sou como tu. Não
consigo esquecer...
Uma
expressão compreensiva passou pelo rosto da irmã.
-
Referes-te a Jamie? Se é, não me esqueço, querida, mas
anichares-te em casa, não te ajudará a encontrá-lo.
- Como se
eu não tivesse já tentado encontrá-lo durante oito longos anos,
sem ficar metida em casa! - respondeu prontamente Mrs. Carew
indignada, com um soluço na voz.
- Claro
que sim, querida - atalhou a outra rapidamente - e vamos continuar a
procurá-lo, as duas, até o encontrarmos ou morrermos. Realmente
este ambiente não ajuda nada.
- Mas eu
não quero fazer mais nada - murmurou Ruth Carew, desgostosa.
Fez-se
silêncio por momentos. A irmã mais nova sentou-se a olhar para a
outra com uma expressão preocupada e reprovadora.
- Ruth -
disse ela por fim, com alguma impaciência -, desculpa-me, mas será
que vais continuar sempre assim? Reconheço que és viúva, contudo,
a tua vida de casada durou apenas um ano e o teu marido era muito
mais velho que tu. Esse breve ano, agora, não pode contar muito mais
do que um sonho. Decerto não vais ficar amargurada toda a vida!
- Não,
não - murmurou Mrs. Carew desgostosa.
- Então
vais ficar sempre assim?
- Se eu
conseguisse encontrar Jamie.
- Sim, eu
sei. Porém, minha querida, não haverá mais nada no mundo que te
possa fazer feliz sem ser o Jamie?
- Acho
que não - suspirou Mrs. Carew, com indiferença.
- Ruth! -
exclamou a irmã quase zangada. Depois, riu de súbito e adiantou: -
Oh! Ruth, Rute, como gostava de te dar uma dose de Pollyanna! Não
conheço ninguém que precise tanto disso!
Mrs.
Carew endireitou- se um pouco.
- Não
faço ideia do que seja isso da Pollyanna mas, seja o que for, não
quero - retorquiu ela rispidamente. - Isto não é o teu querido
Sanatório e não sou uma doente tua a quem dês remédios e ordens.
Por favor, lembra-te disso.
Os olhos
de Della Wetherby brilharam, mas a boca manteve-se sem sorrir.
-
Pollyanna não é um remédio, minha querida - disse ela com ar sério
- se bem que já ouvisse algumas pessoas chamarem-lhe tónico.
Pollyanna é uma menina.
- Uma
criança? Como podia eu saber? - respondeu a outra, ainda com alguma
amargura. - Tu tens a tua "beladona", portanto era natural
que tivesses alguma "Pollyanna". Além disso, estás sempre
a aconselhar-me a tomar alguma coisa, e como disseste distintamente
"dose" e dose significa normalmente remédio.
- Bom,
Pollyanna é uma espécie de remédio - sorriu Della. - São os
médicos do Sanatório que dizem, todos, que ela é melhor do que
qualquer remédio que possam receitar. É uma menina, de 12 ou 13
anos, que esteve no Sanatório durante o Verão todo e que lá passou
a maior parte do Inverno. Eu só estive com ela um mês ou dois,
porque se foi embora depois de eu chegar. Foi, no entanto, o
suficiente para me tocar com o seu encanto. Além disso, todo o
Sanatório continua a falar de Pollyanna e a jogar o jogo dela.
- Jogo?
- Sim -
assentiu Della, com um sorriso curioso.
- Era o
"Jogo do Contente". Nunca me hei-de esquecer desse jogo.
Consiste em procurar algo que dê contentamento em tudo o que nos
acontece. Pollyanna achou que era um jogo engraçadíssimo e joga-o
sempre. E quanto mais difícil é encontrar alguma coisa que dê
contentamento, mais divertido o jogo se torna, ainda que, por vezes,
seja horrivelmente difícil.
- Mas que
interessante! - murmurou Mrs. Carew que ainda não tinha compreendido
bem.
- Havias
de ver os resultados desse jogo no Sanatório. E o Dr. Ames diz que
ela revolucionou a cidade inteira de onde veio, exatamente da mesma
maneira. Ele conhece muito bem o Dr. Chilton, o homem que casou com a
tia de Pollyanna. E, a propósito, creio que esse casamento foi um
dos seus feitos. Ela resolveu uma velha birra de namorados que havia
entre eles. Sabes, é que há dois anos ou mais, o pai de Pollyanna
morreu e a menina foi enviada para o Leste, para casa da tia. Em
Outubro foi atropelada por um automóvel e disseram-lhe que nunca
mais poderia voltar a andar. Em Abril, o Dr. Chilton mandou-a para o
Sanatório e ficou até Março, durante quase um ano. Regressou a
casa praticamente curada. Ai, se visses a menina! Só houve uma coisa
que ensombrou a felicidade dela. É que não pôde ir a pé até à
casa. Parece que a cidade inteira a foi receber com bandeiras e
fanfarras. Digo-te, é quase impossível falar de Pollyanna. É
preciso conhecê-la. Por isso que te digo que devias receber uma dose
de Pollyanna. Fazia-te bem, de certeza.
Mrs.
Carew levantou um pouco o queixo.
- Devo
dizer que estou um pouco em desacordo contigo - respondeu ela
friamente. - Não estou interessada em ser "revolucionada"
e não tenho nenhuma birra de namorados para resolver. E não haveria
nada que me fosse mais detestável do que ter uma menina presunçosa
que me dissesse o que eu devia pensar. Nunca suportaria. - e foi
interrompida por uma sonante gargalhada.
- Oh!
Ruth, Ruth! A Pollyanna presunçosa! Só gostava que a conhecesses
agora! Eu bem sabia que era difícil falar de Pollyanna. Assim, é
claro, não estás preparada para a conhecer. Mas presunçosa é que
ela não é! - e desatou outra vez a rir. Porém, logo a seguir,
olhando a irmã com ar preocupado, prosseguiu: - A sério, minha
querida, não se pode fazer nada? Acho que não deves desperdiçar a
tua vida desta maneira. Porque não sais mais e visitas outras
pessoas?
- Mas
porquê, se não me apetece? Estou cansada das pessoas. Sabes que a
sociedade sempre me aborreceu!
- Então
porque não tentas algum trabalho em prol do próximo?
Mrs.
Carew fez um gesto de impaciência.
- Minha
querida Della, eu já passei por isto antes. Dou muito dinheiro e
isso é suficiente. Não sei bem quanto, mas se calhar até é
demais. Não acredito em gente pobre.
- Eu quis
dizer dares um pouco de ti própria, querida - atreveu-se Della,
delicadamente. - Se te conseguisses interessar por alguma coisa
exterior à tua própria vida, isso ajudar-te-ia muito!
- Olha,
minha querida Della - interrompeu a irmã, gravemente -, gosto muito
de ti e prezo que venhas cá, mas falta-me paciência para te ouvir
dizer o que devo fazer. A ti, assenta bem fazeres o papel de
anjo-da-guarda e tratares dos doentes, e talvez tu consigas esquecer
o Jamie dessa maneira. Mas eu não consigo. Tudo isso me faria pensar
ainda mais nele, martirizando-me por não saber se tem alguém a
cuidar dele. Além disso, ser-me-ia muito desagradável o fato de ter
de me misturar com todo o tipo de pessoas.
- Já
alguma vez tentaste?
- Claro
que não! - respondeu Mrs. Carew indignada.
- Então
como podes saber sem experimentares? perguntou a jovem enfermeira,
levantando-se aborrecida.
- Tenho
de me ir embora. Vou ter com as minhas colegas na South Station. O
nosso comboio parte ao meio-dia e meia. Desculpa se te fiz zangar -
concluiu ao despedir-se.
- Não
estou zangada, Della - suspirou Mrs Carew - , mas gostava que me
compreendesses!
Della
Wetherby saiu logo. O seu semblante, os seus passos e modos eram bem
diferentes daqueles com que tinha entrado uma hora antes. Toda a
vivacidade e alegria de viver tinham desaparecido. Ao longo de meio
quarteirão quase arrastava os pés. Depois, de repente ergueu bem a
cabeça e respirou fundo.
- Se
passasse uma semana naquela casa morria. Acho que nem sequer
Pollyanna conseguiria desfazer aquele ambiente! E a única coisa que
arranjaria para ficar contente seria não ter de lá ficar.
Tal
descrença na capacidade de Pollyanna para alterar o estado das
coisas na casa de Mrs. Carew não corespondia exatamente à opinião
de Della Wetherby.
Isso
acabou por se revelar a curto prazo, pois a enfermeira mal tinha
chegado ao Sanatório quando soube de algo que a fez percorrer de
novo a viagem de 80 kms até Boston, logo no dia a seguir. Tal como
anteriormente, ela percebeu que Mrs. Carew não saíra de casa desde
que se tinham encontrado.
- Ruth -
disse ela ansiosa, depois de ter correspondido à saudação da irmã
surpreendida - eu tinha
que vir e
tu, desta vez, tens de confiar em mim e fazer o que te digo. Ouve! Tu
podes receber aqui a Pollyanna se quiseres.
- Mas eu
não quero - retorquiu Mrs. Carew friamente.
Della
Wetherby parecia não a ter ouvido e continuou entusiasmada.
- Ontem,
quando voltei para o Sanatório, soube que o Dr. Ames recebeu uma
carta do Dr. Chilton, o tal que casou com a tia de Pollyanna. Nessa
carta, ele diz que vai passar o Inverno à Alemanha, frequentar um
curso especial, e que levaria com ele a mulher se a conseguisse
convencer de que Pollyanna ficaria bem durante esse tempo num colégio
interno. Só que Mrs. Chilton não queria deixar Pollyanna num
colégio, e por isso ele receava que ela não o pudesse acompanhar. E
aí está agora, Ruth, a nossa oportunidade. Queria que tu ficasses
com Pollyanna durante o Inverno, de modo a que ela pudesse ir à
escola aqui perto.
- Mas que
ideia tão absurda, Della! Como se eu quisesse ter aqui uma criança
para me atrapalhar e aborrecer!
- Mas ela
não te vai aborrecer nem um bocadinho. Deve ter quase 13anos e sabe
fazer absolutamente tudo.
- Eu não
gosto de crianças que sabem fazer tudo - retorquiu Mrs. Carew com
uma ponta de perversidade, mas rindo-se, o que fez a irmã readquirir
coragem e insistir no seu propósito.
Talvez
fosse pelo carácter súbito daquele apelo ou pela sua novidade.
Talvez fosse por a história de Pollyanna ter tocado de algum modo o
coração de Rutt Carew. Ou talvez fosse a sua falta de vontade em
recusar a defesa apaixonada da irmã. Fosse o que fosse, quando Della
Wetherby se despediu apressadamente meia hora mais tarde já levava
consigo a promessa de Ruth Carew em receber Pollyanna naquela casa.
- Mas
lembra-te disto - avisou Mrs. Carew enquanto a irmã se despedia -,
se essa menina começar a querer impor-me seja o que for, devolvo-ta
logo e podes fazer com ela o que quiseres. Não ficarei mais com ela!
- Não me
esquecerei disso, mas não estou nada preocupada - respondeu a irmã
mais nova, despedindo-se.
E
enquanto se afastava murmurava consigo própria: Metade do trabalho
está feito; agora vamos à outra metade, que é a de fazer com que
Pollyanna venha! hei-de conseguir! Vou escrever uma carta de modo a
que eles a deixem vir!
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