sexta-feira, 19 de julho de 2013

POLLYANNA 2 - 1 - Della diz o que pensa


Della Wetherby dirigiu-se decididamente para casa da sua irmã, na Commonwealth Avenue, e tocou energicamente à campainha. Da cabeça aos pés irradiava saúde, competência e decisão. Até a sua voz vibrava com a alegria de viver, ao cumprimentar a criada que lhe abriu a porta.
- Bom dia, Mary. A minha irmã está em casa?
- Sim, minha senhora, Mrs. Carew está em casa - hesitou a moça -, mas deu ordens para não deixar entrar ninguém.
- Ah sim? Mas eu não sou qualquer pessoa! - sorriu Mrs. Wetherby. - Portanto ela há-de receber-me. Não se preocupe, porque eu responsabilizo-me. Onde está ela, na sala de estar?
- Sim, minha senhora, mas...
Miss Wetherby, no entanto, já ia a meio caminho das escadas, e a criada, com expressão de desespero, desistiu. Já no hall, passou através de uma porta semiaberta e bateu.
- O que é, Mary? - ouviu-se uma voz aborrecida. - Ah, é a Della! - ouviu-se a mesma voz completamente modificada, cheia de calor e surpresa. Minha querida irmã, donde vieste?
- Sim, sou eu - sorriu a jovem, já dentro da sala.
- Fui passar o Domingo com duas outras enfermeiras, e agora estou de regresso ao Sanatório. Não me demoro. Vim só dar-te um beijo.
Mrs. Carew fez uma expressão triste e retraiu-se com alguma frieza. O ar de alegria que, por momentos, se lhe espelhara no rosto, tinha desaparecido.
- Claro! Devia ter calculado, tu nunca cá páras!
Della Wetherby riu, estendendo-lhe as mãos; a seguir, de repente, a sua voz e os seus modos alteraram- se. Olhou para a irmã com seriedade e ternura e disse delicadamente:
- Querida Ruth, bem sabes que não consigo viver nesta casa.
Mrs. Carew olhou para ela irritada, protestando:
- Não sei porquê!
Della Wetherby abanou a cabeça, explicando.
- Sabes sim, querida. Sabes que não sinto afinidade nenhuma com tudo isto: o ambiente, a falta de objetivos, a tua insistência na tristeza, na amargura.
- Mas eu sou triste e amargurada.
- Mas não devias ser!
- Porque não? Que razões tenho para não ser assim?
Della Wetherby fez um gesto de impaciência e continuou:
- Olha Ruth, tens 33 anos. Tens boa saúde, devias ter, se tratasses bem de ti; dispões de muito tempo e ainda mais de dinheiro. Devias arranjar alguma coisa para fazeres nesta manhã maravilhosa ao contrário de ficares aqui sentada e encafuada em casa, ainda por cima dando ordens à criada para não deixar entrar ninguém.
- Mas eu não quero ver ninguém!
- Olha, eu havia de arranjar maneira de querer.
Mrs. Carew olhou constrangida e virou a cabeça.
- Oh! Della, porque é que nunca me compreendes? Eu não sou como tu. Não consigo esquecer...
Uma expressão compreensiva passou pelo rosto da irmã.
- Referes-te a Jamie? Se é, não me esqueço, querida, mas anichares-te em casa, não te ajudará a encontrá-lo.
- Como se eu não tivesse já tentado encontrá-lo durante oito longos anos, sem ficar metida em casa! - respondeu prontamente Mrs. Carew indignada, com um soluço na voz.
- Claro que sim, querida - atalhou a outra rapidamente - e vamos continuar a procurá-lo, as duas, até o encontrarmos ou morrermos. Realmente este ambiente não ajuda nada.
- Mas eu não quero fazer mais nada - murmurou Ruth Carew, desgostosa.
Fez-se silêncio por momentos. A irmã mais nova sentou-se a olhar para a outra com uma expressão preocupada e reprovadora.
- Ruth - disse ela por fim, com alguma impaciência -, desculpa-me, mas será que vais continuar sempre assim? Reconheço que és viúva, contudo, a tua vida de casada durou apenas um ano e o teu marido era muito mais velho que tu. Esse breve ano, agora, não pode contar muito mais do que um sonho. Decerto não vais ficar amargurada toda a vida!
- Não, não - murmurou Mrs. Carew desgostosa.
- Então vais ficar sempre assim?
- Se eu conseguisse encontrar Jamie.
- Sim, eu sei. Porém, minha querida, não haverá mais nada no mundo que te possa fazer feliz sem ser o Jamie?
- Acho que não - suspirou Mrs. Carew, com indiferença.
- Ruth! - exclamou a irmã quase zangada. Depois, riu de súbito e adiantou: - Oh! Ruth, Rute, como gostava de te dar uma dose de Pollyanna! Não conheço ninguém que precise tanto disso!
Mrs. Carew endireitou- se um pouco.
- Não faço ideia do que seja isso da Pollyanna mas, seja o que for, não quero - retorquiu ela rispidamente. - Isto não é o teu querido Sanatório e não sou uma doente tua a quem dês remédios e ordens. Por favor, lembra-te disso.
Os olhos de Della Wetherby brilharam, mas a boca manteve-se sem sorrir.
- Pollyanna não é um remédio, minha querida - disse ela com ar sério - se bem que já ouvisse algumas pessoas chamarem-lhe tónico. Pollyanna é uma menina.
- Uma criança? Como podia eu saber? - respondeu a outra, ainda com alguma amargura. - Tu tens a tua "beladona", portanto era natural que tivesses alguma "Pollyanna". Além disso, estás sempre a aconselhar-me a tomar alguma coisa, e como disseste distintamente "dose" e dose significa normalmente remédio.
- Bom, Pollyanna é uma espécie de remédio - sorriu Della. - São os médicos do Sanatório que dizem, todos, que ela é melhor do que qualquer remédio que possam receitar. É uma menina, de 12 ou 13 anos, que esteve no Sanatório durante o Verão todo e que lá passou a maior parte do Inverno. Eu só estive com ela um mês ou dois, porque se foi embora depois de eu chegar. Foi, no entanto, o suficiente para me tocar com o seu encanto. Além disso, todo o Sanatório continua a falar de Pollyanna e a jogar o jogo dela.
- Jogo?
- Sim - assentiu Della, com um sorriso curioso.
- Era o "Jogo do Contente". Nunca me hei-de esquecer desse jogo. Consiste em procurar algo que dê contentamento em tudo o que nos acontece. Pollyanna achou que era um jogo engraçadíssimo e joga-o sempre. E quanto mais difícil é encontrar alguma coisa que dê contentamento, mais divertido o jogo se torna, ainda que, por vezes, seja horrivelmente difícil.
- Mas que interessante! - murmurou Mrs. Carew que ainda não tinha compreendido bem.
- Havias de ver os resultados desse jogo no Sanatório. E o Dr. Ames diz que ela revolucionou a cidade inteira de onde veio, exatamente da mesma maneira. Ele conhece muito bem o Dr. Chilton, o homem que casou com a tia de Pollyanna. E, a propósito, creio que esse casamento foi um dos seus feitos. Ela resolveu uma velha birra de namorados que havia entre eles. Sabes, é que há dois anos ou mais, o pai de Pollyanna morreu e a menina foi enviada para o Leste, para casa da tia. Em Outubro foi atropelada por um automóvel e disseram-lhe que nunca mais poderia voltar a andar. Em Abril, o Dr. Chilton mandou-a para o Sanatório e ficou até Março, durante quase um ano. Regressou a casa praticamente curada. Ai, se visses a menina! Só houve uma coisa que ensombrou a felicidade dela. É que não pôde ir a pé até à casa. Parece que a cidade inteira a foi receber com bandeiras e fanfarras. Digo-te, é quase impossível falar de Pollyanna. É preciso conhecê-la. Por isso que te digo que devias receber uma dose de Pollyanna. Fazia-te bem, de certeza.
Mrs. Carew levantou um pouco o queixo.
- Devo dizer que estou um pouco em desacordo contigo - respondeu ela friamente. - Não estou interessada em ser "revolucionada" e não tenho nenhuma birra de namorados para resolver. E não haveria nada que me fosse mais detestável do que ter uma menina presunçosa que me dissesse o que eu devia pensar. Nunca suportaria. - e foi interrompida por uma sonante gargalhada.
- Oh! Ruth, Ruth! A Pollyanna presunçosa! Só gostava que a conhecesses agora! Eu bem sabia que era difícil falar de Pollyanna. Assim, é claro, não estás preparada para a conhecer. Mas presunçosa é que ela não é! - e desatou outra vez a rir. Porém, logo a seguir, olhando a irmã com ar preocupado, prosseguiu: - A sério, minha querida, não se pode fazer nada? Acho que não deves desperdiçar a tua vida desta maneira. Porque não sais mais e visitas outras pessoas?
- Mas porquê, se não me apetece? Estou cansada das pessoas. Sabes que a sociedade sempre me aborreceu!
- Então porque não tentas algum trabalho em prol do próximo?
Mrs. Carew fez um gesto de impaciência.
- Minha querida Della, eu já passei por isto antes. Dou muito dinheiro e isso é suficiente. Não sei bem quanto, mas se calhar até é demais. Não acredito em gente pobre.
- Eu quis dizer dares um pouco de ti própria, querida - atreveu-se Della, delicadamente. - Se te conseguisses interessar por alguma coisa exterior à tua própria vida, isso ajudar-te-ia muito!
- Olha, minha querida Della - interrompeu a irmã, gravemente -, gosto muito de ti e prezo que venhas cá, mas falta-me paciência para te ouvir dizer o que devo fazer. A ti, assenta bem fazeres o papel de anjo-da-guarda e tratares dos doentes, e talvez tu consigas esquecer o Jamie dessa maneira. Mas eu não consigo. Tudo isso me faria pensar ainda mais nele, martirizando-me por não saber se tem alguém a cuidar dele. Além disso, ser-me-ia muito desagradável o fato de ter de me misturar com todo o tipo de pessoas.
- Já alguma vez tentaste?
- Claro que não! - respondeu Mrs. Carew indignada.
- Então como podes saber sem experimentares? perguntou a jovem enfermeira, levantando-se aborrecida.
- Tenho de me ir embora. Vou ter com as minhas colegas na South Station. O nosso comboio parte ao meio-dia e meia. Desculpa se te fiz zangar - concluiu ao despedir-se.
- Não estou zangada, Della - suspirou Mrs Carew - , mas gostava que me compreendesses!
Della Wetherby saiu logo. O seu semblante, os seus passos e modos eram bem diferentes daqueles com que tinha entrado uma hora antes. Toda a vivacidade e alegria de viver tinham desaparecido. Ao longo de meio quarteirão quase arrastava os pés. Depois, de repente ergueu bem a cabeça e respirou fundo.
- Se passasse uma semana naquela casa morria. Acho que nem sequer Pollyanna conseguiria desfazer aquele ambiente! E a única coisa que arranjaria para ficar contente seria não ter de lá ficar.
Tal descrença na capacidade de Pollyanna para alterar o estado das coisas na casa de Mrs. Carew não corespondia exatamente à opinião de Della Wetherby.
Isso acabou por se revelar a curto prazo, pois a enfermeira mal tinha chegado ao Sanatório quando soube de algo que a fez percorrer de novo a viagem de 80 kms até Boston, logo no dia a seguir. Tal como anteriormente, ela percebeu que Mrs. Carew não saíra de casa desde que se tinham encontrado.
- Ruth - disse ela ansiosa, depois de ter correspondido à saudação da irmã surpreendida - eu tinha
que vir e tu, desta vez, tens de confiar em mim e fazer o que te digo. Ouve! Tu podes receber aqui a Pollyanna se quiseres.
- Mas eu não quero - retorquiu Mrs. Carew friamente.
Della Wetherby parecia não a ter ouvido e continuou entusiasmada.
- Ontem, quando voltei para o Sanatório, soube que o Dr. Ames recebeu uma carta do Dr. Chilton, o tal que casou com a tia de Pollyanna. Nessa carta, ele diz que vai passar o Inverno à Alemanha, frequentar um curso especial, e que levaria com ele a mulher se a conseguisse convencer de que Pollyanna ficaria bem durante esse tempo num colégio interno. Só que Mrs. Chilton não queria deixar Pollyanna num colégio, e por isso ele receava que ela não o pudesse acompanhar. E aí está agora, Ruth, a nossa oportunidade. Queria que tu ficasses com Pollyanna durante o Inverno, de modo a que ela pudesse ir à escola aqui perto.
- Mas que ideia tão absurda, Della! Como se eu quisesse ter aqui uma criança para me atrapalhar e aborrecer!
- Mas ela não te vai aborrecer nem um bocadinho. Deve ter quase 13anos e sabe fazer absolutamente tudo.
- Eu não gosto de crianças que sabem fazer tudo - retorquiu Mrs. Carew com uma ponta de perversidade, mas rindo-se, o que fez a irmã readquirir coragem e insistir no seu propósito.
Talvez fosse pelo carácter súbito daquele apelo ou pela sua novidade. Talvez fosse por a história de Pollyanna ter tocado de algum modo o coração de Rutt Carew. Ou talvez fosse a sua falta de vontade em recusar a defesa apaixonada da irmã. Fosse o que fosse, quando Della Wetherby se despediu apressadamente meia hora mais tarde já levava consigo a promessa de Ruth Carew em receber Pollyanna naquela casa.
- Mas lembra-te disto - avisou Mrs. Carew enquanto a irmã se despedia -, se essa menina começar a querer impor-me seja o que for, devolvo-ta logo e podes fazer com ela o que quiseres. Não ficarei mais com ela!
- Não me esquecerei disso, mas não estou nada preocupada - respondeu a irmã mais nova, despedindo-se.
E enquanto se afastava murmurava consigo própria: Metade do trabalho está feito; agora vamos à outra metade, que é a de fazer com que Pollyanna venha! hei-de conseguir! Vou escrever uma carta de modo a que eles a deixem vir!

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