Naquele
dia de Agosto, em Beldingsville, Mrs. Chilton esperou que Pollyanna
se fosse deitar antes de conversar com o marido sobre a carta que
tinha chegado no correio da manhã. O assunto teve de esperar, porque
o médico estava sempre muito ocupado com os seus doentes e não
houvera tempo para conferências familiares.
Quando o
médico entrou na sala eram já oito e meia. O seu rosto cansado
iluminou-se ao vê-la, sem que os seus olhos deixassem de refletir
interrogação.
- Que se
passa, Polly querida? - perguntou ele com ar preocupado.
A mulher
riu divertida.
- É uma
carta... não pensei que descobrisses só por olhar para mim.
- Então
não deves ficar com esse ar - disse ele a sorrir. - O que é,
afinal?
Mrs.
Chilton hesitou, cerrou os lábios e depois agarrou numa carta que
tinha junto dela.
- Vou
lê-la - disse. - É de uma tal Miss Della Wetherby, do Sanatório do
Dr. Ames.
- Então
lê lá - pediu ele, deitando-se ao comprido no sofá junto da
mulher.
Mrs.
Chilton começou então a ler a carta em voz alta:
"
Cara Mrs. Chilton
Esta é a
sexta vez que começo a escrever-lhe, pois das restantes cinco vezes
rasguei a carta. Assim decidi não começar de todo em todo mas
dizer-lhe diretamente ao que venho. Quero a Pollyanna. Posso tê-la?
Conheci-a,
a si e seu marido, em Marosado, quando vieram buscar Pollyanna, mas
calculo Que não se lembrem de mim. Vou pedir ao Dr. Ames, que me
conhece muito bem, para escrever a seu marido de modo a que não
receie confiar-me a sua querida sobrinha.
Sei que
não quer ir com o seu marido à Alemanha, para não deixar Pollyanna
sozinha; por isso me atrevo a pedir-lhe que nos deixe ficar com
Pollyanna. Peço-lhe que a deixe ficar connosco. Vou agora dizer-lhe
porquê.
A minha
irmã, Mrs. Carew, é uma senhora solitária e muito infeliz. Vive
num mundo de tristeza onde nem a luz do Sol penetra. Estou convencida
de que se existe alguma coisa na Terra que lhe pode trazer alegria à
vida, é a sua sobrinha, Pollyanna.
Quer
deixá-la experimentar? Gostava de lhe contar tudo o que ela fez aqui
no Sanatório, mas é impossível. Só vendo com os próprios olhos.
Há muito que descobri que não conseguimos explicar tudo acerca de
Pollyanna. Quando tentamos, parece que se trata de uma menina
impossível, presumida e enfadonha. No entanto, sabemos bem que não
é nada disso. Basta trazer Pollyanna e deixá-la falar por si. É
por isso que a quero levar à minha irmã e deixá-la falar por si
própria. Claro que ela frequentaria a escola e, entretanto, disso
estou convencidíssima, ela seria capaz de sarar a ferida que minha
irmã traz no coração.
Não sei
como terminar esta carta. Creio que ainda é mais difícil do que
começá-la. Penso que não desejo concluí-la. Só me apetece
continuar a falar sem parar, com receio de, parando, lhe dar a
oportunidade de me dizer não. Por isso, se estiver tentada a dizer
essa palavra horrorosa, por favor, considere como se eu não tivesse
parado de falar, dizendo-lhe como quero e preciso de Pollyanna.
Della
Wetherby.
- É
isto! - exclamou Mrs. Chilton, enquanto punha a carta de lado. - Já
alguma vez leste uma carta assim, ou ouviste falar de um pedido tão
absurdo?
- Não
penso assim - disse o médico sorrindo. Não creio que seja absurdo
querer Pollyanna.
- Mas. a
maneira como ela expõe o assunto! Sarar a ferida no coração da
irmã e tudo isso! Até parece que a criança é uma espécie de
remédio!
O médico
riu abertamente.
- O fato
é que ela o é. Eu sempre disse que gos taria de a poder receitar e
vender, como se de embalagem de comprimidos se tratasse. O Charlie
Ames diz que sempre fez questão, no Sanatório, de dar rapidamente
aos seus doentes uma dose de Pollyanna após a chegada deles, durante
o ano inteiro que ela lá esteve internada.
- Uma
dose!... - desdenhou Mrs. Chilton.
- Então
não a vais deixar ir?
- Ir?
Claro que não! Achas bem que deixasse ficar a criança com pessoas
desconhecidas? E estranhos como estes? Ao voltarmos da Alemanha não
me surpreenderia que viéssemos encontrar Pollyana já embalada e
etiquetada.
O médico
riu de novo, deitando a cabeça para trás, e levando as mãos ao
bolso à procura de uma carta.
- Recebi
notícias do Dr. Ames esta manhã - disse ele num tom algo diferente
do habitual e que produziu uma expressão de estranheza no rosto da
mulher.
- E se eu
te lesse agora a minha carta?
"
Caro Tom
Miss
Della Wetherby pediu-me que lhe fizesse um favor a ela e à irmã, o
que faço com prazer; Conheço as Wetherby desde crianças. São de
uma família antiga e educada, e dignas do maior respeito. Por esse
lado nada tem a recear.
Eram três
irmãs, Doris, Ruth e Della. Doris casou com um tal John Kent, contra
a vontade da família. Kent era de boa famílias, mas ele próprio
não valia muito. Um excêntrico e de trato difícil.
Ficou
muito zangado com a atitude dos Wetherby em relação a ele e o
relacionamento entre as famílias era difícil até nascer um filho.
Os Wetherby passaram a adorar aquele menino, James, ou Jamie, como
lhe chamavam. Doris, a mãe, morreu quando o menino tinha quatro anos
e os Wetherby fizeram todo o possível para que o pai lhes entregasse
completamente a criança. Kent, porém, desapareceu de repente,
levando consigo o menino. Desde então nunca mais souberam deles,
embora tivessem mandado procurá-los, pelo mundo inteiro.
A perda
levou praticamente à morte Mr. e Mrs. Wetherby, ocorrida a ambos
pouco depois. Ruth, por sua vez casou e enviuvou. O marido, chamado
Carew, era muito rico e bem mais velho do que ela.
Morreu um
ano após o casamento, deixando-a com um bebé que acabou também por
morrer um ano depois.
Desde que
o pequeno Jamie desapareceu, Ruth e Della passaram a ter um único
objectivo na vida: reencontrá-lo. Fartaram-se de gastar dinheiro e
revolveram o céu e a terra, todavia sem resultados. Della acabou por
se dedicar à enfermagem. Tem feito um trabalho esplêndido e
tornou-se uma mulher saudável, eficiente e alegre, embora sem
esquecer o sobrinho perdido e sem descuidar qualquer possível pista
que a pudesse conduzir à sua descoberta.
Porém,
com Mrs. Carew as coisas passaram- se de modo bastante diferente.
Depois de ter perdido o seu próprio filho, concentrou todo o amor
maternal no filho da irmã. Como pode imaginar, ficou completamente
desesperada quando ele desapareceu. Isso sucedeu há oito anos e têm
sido para ela oito longos anos de infelicidade, tristeza e amargura.
Tudo o que o dinheiro pode comprar e está evidentemente ao alcance
dela, mas nada lhe agrada, nada a interessa. Della acha que é a
altura de fazer com que ela mude, custe o que custar, e acredita que
a brilhante sobrinha da sua mulher, Pollyanna, pode ser a chave
mágica que conseguirá abrir a porta de uma nova vida para ela.
Sendo assim, espero que não vejam impedimento em satisfazer o pedido
dela. E devo acrescentar que também eu, pessoalmente ficaria muito
grato pelo favor, porque Ruth Carew e a irmã são grandes e antigas
amigas minhas e de minha mulher, e o que as afeta a elas também toca
a nós.
Charlie"
Concluída
a leitura da carta, fez-se entre ambos um longo silêncio, tão longo
que o médico perguntou:
- Então,
Polly?
O
silêncio manteve-se. O médico, observando atentamente o rosto da
mulher, viu que os lábios dela estavam trémulos. Aguardou sem
insistir até ela responder.
- Quando
achas que contam com ela? - perguntou finalmente.
Surpreendido,
o Dr. Chilton indagou:
- Então
vais deixá-la ir?
- Mas que
pergunta, Thomas Chilton! Com uma carta destas eu podia fazer outra
coisa que não fosse á deixá-la ir? Sendo o próprio Dr. Ames quem
pede, achas que depois de tudo o que ele fez pela Pollyanna eu podia
recusar fosse o que fosse?
- Oh,
minha querida, só espero que o médico não se lembre de te pedir a
ti - murmurou o marido com um sorriso excêntrico.
A mulher
apenas lhe concedeu um olhar de desdém, dizendo:
- Podes
escrever ao Dr. Ames e dizer-lhe que deixamos ir a Pollyanna. E
pede-lhe que diga a Miss Wetherby para nos escrever a dar todas as
instruções. Terá de ser por volta do dia 10 do mês que vem,
porque tu partes a seguir e eu quero ver a criança bem instalada
antes de partir.
- Quando
vais dizer a Pollyanna?
- Talvez
amanhã.
- O que
lhe vais dizer?
- Ainda
não sei bem, mas só aquilo que tiver de dizer. Seja como for,
Thomas, não devemos estragar Pollyanna e qualquer criança poderia
estragar-se se metesse na cabeça que era uma espécie de... de...
- De
remédio embalado com etiqueta e tudo - interrompeu o médico com um
sorriso.
- Sim, é
isso - suspirou Mrs. Chilton. A inconsciência dela é que salva
tudo. Sabes isso muito bem.
- Sim, eu
sei - assentiu o marido.
- É
claro que ela sabe que tu e eu e metade da cidade estão a jogar o
jogo com ela e que somos mais felizes por o jogarmos.
A voz de
Mrs. Chilton vacilou um pouco, continuando depois com mais firmeza:
- Mas se
ela, conscientemente, deixasse de ser como é, natural, radiosa e
feliz, a jogar o jogo que o pai lhe ensinou, tornava-se exactamente
aquilo que a enfermeira disse que parecia: impossível. Por isso,
diga o que lhe disser, nunca lhe direi que vai para casa de Mrs.
Carew para a alegrar - concluiu Mrs. Shilton, levantando- se
decididamente e pondo o trabalho de lado.
- Acho
que és muito sensata - aprovou o médico.
No dia
seguinte disseram a Pollyanna. Foi assim que as coisas se passaram:
- Minha
querida - começou a tia, quando ambas ficaram a sós nessa manhã -,
gostavas de ir passar o próximo Inverno a Boston?
-
Consigo?
- Não.
Eu decidi ir com o teu tio à Alemanha. Mrs. Carew, uma grande amiga
do Dr. Ames, convidou-te para permaneceres com ela o Inverno e acho
que devo deixar-te ir.
O rosto
de Pollyanna fez-se triste.
- Mas em
Boston não tenho o Jimmy, ou Mr. Pendleton ou Mrs. Snow, nem ninguém
conhecido.
- Não,
querida, mas quando para aqui vieste também não os tinhas até os
conheceres.
Pollyanna
esboçou um sorriso.
- É
verdade tia Polly, não os conhecia! Isso quer dizer que em Boston
existem Jimmys, Mr. Pendletons e Mrs. Snows à minha espera para eu
as conhecer, não é verdade?
- Sim,
querida.
- Então
devo ficar contente com isso. Acho que agora a tia Polly sabe jogar o
jogo melhor do que eu. e nunca tinha pensado em ter pessoas à minha
espera só para eu as conhecer. E há muita gente! Vi algumas
pessoas, quando lá estive há dois anos com Mrs. Gray. Estivemos lá
duas horas inteiras no caminho do Oeste para aqui. Na estação havia
um homem simpatiquíssimo, que me disse onde eu podia beber água. A
tia acha que ele ainda lá está? Gostava de o rever. E também havia
uma senhora muito bonita com uma menina pequenina. Vivem em Boston,
como me disseram. A menina
chamava-
se Susie Smith. Talvez as venha a ver. Acha que sim? E havia um rapaz
e uma outra senhora com um bebé, mas viviam em Honolulu, por isso
não devo conseguir encontrá-los agora. Mas conhecerei Mrs. Carew.
Quem é Mrs. Carew, tia Polly? É das suas relações?
- Querida
Pollyanna! - exclamou Mrs. Chilton meio a rir meio desesperada. -
Como podes querer que alguém acompanhe o que dizes e ainda menos o
que pensas, quando vais a Honolulu e voltas em dois segundos! Não,
Mrs. Carew não é nossa conhecida. É irmã de Miss Della Wetherby.
Lembras-te de Miss Wetherby do Sanatório?
Pollyanna
bateu palmas.
- É irmã
de Miss Wetherby? Ah, tenho a certeza de que é muito querida! Miss
Wetherby era. Adorei Miss Wetherby. Tinha pequenos vincos em redor
dos olhos e da boca, quando ria, e conhecia histórias
engraçadíssimas. Só a tive durante dois meses, porque só chegou
um pouco antes de eu ter alta. Ao princípio tive pena por não a ter
tido durante todo o tempo, mas no fim, fiquei contente, porque se eu
a tivesse tido durante todo o tempo teria sido muito mais difícil
despedir-me dela. Engraçado, e agora parece que a vou ter outra vez,
porque vou ficar com a sua irmã.
Mrs.
Chilton respirou fundo e mordeu o lábio.
- Mas
Pollyanna, não podes estar à espera que elas sejam parecidas! -
atreveu-se a tia a dizer.
Nos dias
seguintes, enquanto se trocavam cartas sobre a permanência de
Pollyanna em Boston, Pollyanna preparava-se para partir
desdobrando-se em visitas aos amigos de Beldingsville.
Toda a
gente da pequena cidade de Vermont conhecia agora Pollyanna e quase
todos jogavam o jogo com ela. Os poucos que não o faziam era por
desconhecerem o que era o Jogo do Contente.
Assim, de
uma casa para a outra, Pollyanna contou as novidades sobre a sua
partida para Boston, onde passaria o Inverno. Em todo o lado ouviu um
clamor de lamentações e protestos, desde Nancy, cozinheira da tia
Polly, até ao casarão da colina onde vivia John Pendleton.
Nancy não
hesitou em dizer a toda a gente, exceto à patroa, que considerava
tal viagem um disparate, e que se pudesse ficaria muito contente em
levar Miss Pollyanna consigo para a sua casa na terra, podendo assim
Mrs. Polly partir para a Alemanha. Na colina, John Pendleton repetiu
praticamente a mesma coisa, e não hesitou em dizê-lo diretamente a
Mrs. Chilton.
Quanto a
Jimmy, um rapazinho de 12anos de quem John Pendleton tomara conta a
pedido de Pollyanna e que entretanto adotara, ficou indignadíssimo e
não demorou a manifestá-lo:
- Mas
acabaste de chegar! - disse ele, reprovando Pollyanna num tom de voz
que os rapazinhos usam quando querem esconder o fato de se sentirem
magoados.
- Bem,
estou cá desde Março. Além disso, não vou lá ficar para sempre,
é só este Inverno.
- Não
interessa. Estiveste fora o ano inteiro, e se eu soubesse que ias
outra vez embora, não me tinha dado ao trabalho de te receber com
bandeiras e "fafarras" no dia
da tua
chegada do "sadatório".
- Não me
digas, Jimmy Bea! - exclamou Pollyanna, em tom surpreendido e
desaprovador. Depois, com um toque de superioridade, resultante do
orgulho ferido, observou: - Não te pedi para me ires receber. Além
disso cometeste dois erros: é fanfarras e sanatório que se diz.
- E quem
se rala com isso?
Os olhos
de Pollyanna abriram-se ainda mais numa expressão de reprovação.
- E
também já não me chamo Jimmy Bean! redarguiu o rapaz, levantando o
queixo.
- Não
és? Então porquê? - perguntou a menina.
- Fui
adotado legalmente. Ele tencionava há muito adotar-me, mas não
conseguia. Agora já conseguiu. Chamo-me Jimmy Pendleton e passei a
chamá-lo por tio John. Só que ainda não estou habituado e tenho
dificuldade em chamá-lo assim.
O rapaz
continuava zangado, mas os vestígios da irritação tinham-se
atenuado no rosto da menina, ao ouvir as palavras dele. Bateu as
palmas com alegria.
- Mas que
bom! Agora tens uma família a sério, uma família que gosta de ti.
E nunca mais terás que explicar o teu nome, pois agora é igual ao
dele. Estou tão contente, tão CONTENTE!
O rapaz
levantou-se de repente do muro onde estavam sentados e afastou-se.
Estava corado e tinha os olhos cheios de lágrimas. Era a Pollyanna
que ele tudo devia, todo o bem que lhe tinha acontecido, ele bem o
sabia.
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