quinta-feira, 18 de julho de 2013

POLLYANNA 2 - 3 - Uma dose de Pollyanna


À medida que o dia 8 de Setembro se aproximava, data em que Pollyanna deveria chegar, Mrs. Ruth Carew tornava-se cada vez mais nervosa e exasperada consigo própria. Dizia lamentar a promessa que fizera em receber a criança. Escreveu à irmã, pedindo-lhe para a libertar do compromisso, mas Della respondeu que era demasiado tarde, pois tanto ela como o Dr. Ames já tinham escrito aos Chiltons.
Pouco tempo depois chegou a carta de Della, transmitindo-lhe que Mrs. Chilton tinha dado o seu acordo e que viria dentro de alguns dias a Boston tratar da questão da escola e de outros assuntos. Assim, não havia nada a fazer senão deixar as coisas seguir o seu curso natural. Mrs. Carew acabou por se convencer e sujeitou-se ao inevitável, mas de má vontade. Procurou ser educada quando Della e Mrs. Chilton chegaram, mas ficou satisfeita por Mrs. Chilton se demorar pouco devido à quantidade de coisas que tinha para resolver.
Felizmente, a chegada de Pollyanna não estava prevista para depois do dia 8, pois o tempo em vez de reconciliar Mrs. Carew com a ideia da nova hóspede, enchia-a antes de impaciência com aquilo a que chamava de aceitação absurda do esquema disparatado de Della.
Della também estava perfeitamente consciente do estado de espírito da irmã, e embora exteriormente ela não tivesse uma atitude decidida, no seu íntimo estava muito receosa em relação aos resultados. Depositava todas as suas esperanças em Pollyanna e decidiu apostar em deixar a menina iniciar a sua luta totalmente sozinha e sem ajuda. Arranjou, assim, as coisas de modo a que Mrs. Carew a fosse esperar à estação. E logo que as apresentações foram feitas, alegou um compromisso inadiável e despediu-se. Mrs. Carew, mal tendo tempo de observar a convidada, encontrou-se sozinha com ela.
- Della, Della, não te vás já embora - disse ela agitada na direção da enfermeira que se afastava.
Della não deu mostras de a ter ouvido. Aborrecida, Mrs. Carew virou-se para a criança a seu lado.
- Mas que pena ela não ter ouvido - disse Pollyanna, cujos olhos tristes seguiam também a enfermeira. - Preferia que ela tivesse ficado, mas agora tenho-a a si, não é? Posso ficar contente com isso.
- Ah sim, tem-me a mim e eu tenho-a a si - respondeu a senhora de maneira pouco graciosa. - Vamos por aqui - indicou ela com um gesto para a direita.
Vagarosamente, Pollyanna virou-se e caminhou ao lado de Mrs. Carew através da gigantesca estação. Olhou ainda uma ou duas vezes, preocupada, para o rosto pouco sorridente da senhora e, finalmente, disse hesitante e com voz perturbada:
- Se calhar pensava que eu era bonita.
- Bonita? - repetiu Mrs. Carew.
- Sim, com caracóis! Decerto deve ter pensado como eu era, tal como fiz em relação a si. Só que eu sabia que a senhora devia ser bonita e simpática por causa da sua irmã. Eu tinha-a a ela como referência, mas a senhora não tinha ninguém e eu sei que não sou bonita por causa das sardas e não é simpático estar-se à espera de uma menina bonita e receber uma como eu, e...
- Que disparate, menina! - interrompeu Mrs. Carew um pouco asperamente. - Vamos buscar a sua mala e depois seguimos para casa. Estava a contar que a minha irmã ficasse connosco mas parece que não pode, nem por uma noite.
Pollyanna sorriu e fez que sim com a cabeça.
- Não devia poder. Devia ter alguém à espera. Tinha sempre alguém à espera dela lá no Sanatório. É uma maçada quando as pessoas estão sempre à nossa espera, não é? Assim, nem temos tempo de estar por nossa conta; mas, apesar disso, podemos ficar contentes, porque é bom ser-se desejado, não é?
Não se ouviu resposta, talvez porque, pela primeira vez na sua vida, Mrs. Carew refletia se existia alguém algures que a desejasse realmente. Não que quisesse ser desejada, pensou para si própria, zangada, enquanto levantava mais a cabeça e franzia o sobrolho na direção da criança.
Pollyanna não a viu franzir o sobrolho. Os olhos da menina dirigiam-se agitadamente em redor.
- Que carro tão bonito! Vamos nele? - exclamou Pollyanna quando chegaram diante de uma bonita limosina, com o motorista de libré a abrir a porta.
O motorista procurou sem êxito ocultar um sorriso. Porém, Mrs. Carew respondeu com a despreocupação de alguém para quem andar de automóvel não é mais do que um meio de deslocação de um lugar aborrecido para outro tão aborrecido como o anterior.
- Sim, vamos nele. Vamos para casa, Perkins - acrescentou, dirigindo-se ao deferente motorista.
- O carro é seu? - perguntou Pollyanna, detectando um ar inegável de proprietária no comportamento da sua anfitriã. - Mas que carro tão bonito! Deve ser muito rica, mais do que os que só têm tapetes em todas as salas e sorvete aos domingos como os Whites, uma das minhas Senhoras da Caridade. Eu pensava que eles eram ricos, mas sei agora que ser realmente rico significa ter anéis de diamantes, criadas, casacos de pele de foca, vestidos de seda e veludo para mudar todos os dias e um automóvel. Tem isso tudo?
- Sim, acho que sim - admitiu Mrs. Carew, com um ligeiro sorriso.
- Então, com certeza, é rica! - concluiu Pollyanna. - A minha tia Polly também tem tudo isso, mas o carro dela é puxado por cavalos. Gosto imenso de andar nestas coisas. Nunca tinha andado antes, a não ser naquele que me atropelou. Levaram-me nele depois de me terem tirado debaixo. Mas, é claro, não dei por nada, de maneira que não pude apreciar. Desde então nunca mais estive dentro de nenhum. A tia Polly não gosta. O tio Tom gosta e quer ter um. Ele diz que precisa de um automóvel na sua profissão. É médico e todos os outros médicos da cidade já têm carro. Não sei o que irá sair dali. A tia Polly está muito incomodada com aquilo. Ela quer que o tio Tom tenha tudo o que quer, mas quer que ele queira aquilo que ela quer que ele queira, está a perceber?
Mrs. Carew riu de repente.
- Sim, minha menina, parece-me que percebo - respondeu com alguma reserva, embora o olhar refletisse uma expressão pouco habitual.
- Ainda bem - respondeu Pollyanna contente. Sabia que compreenderia, apesar de parecer um bocado confuso o que eu disse. A tia Polly diz que só não se importava de ter um automóvel se fosse o único no mundo, para que ninguém fosse contra ela... Tantas casas! - bruscamente, Pollyanna mudou de assunto, olhando em redor, com admiração. - Nunca mais acabam! Tem de haver muitas, para que tanta gente possa ter onde morar, pelo que vi na estação, para além das muitas outras que se vêem nas ruas. E, claro, onde há mais pessoas, também há mais gente para conhecer. Adoro pessoas. E a senhora?
- Adorar pessoas?
- Sim, as pessoas, toda a gente!
- Não, Pollyanna, não posso dizer que as adoro - respondeu Mrs. Carew, friamente e um pouco contrariada.
Os olhos de Mrs. Carew tinham perdido aquela expressão especial. Viravam-se desconfiadamente para Pollyanna. Mrs. Carew dizia para si própria: será que tenho agora, como arenga principal, o meu dever de me dar com o próximo, à maneira da Irmã Della!
- A senhora não gosta de pessoas? Eu gosto muito. São todas tão simpáticas e diferentes umas das outras. E aqui deve haver muitas que são simpáticas e diferentes. Nem imagina como fiquei contente ao saber que vinha para cá! Adivinhei que ia gostar logo que descobri que era a senhora, isto é, a irmã de Miss Wetherby. Adoro Miss Wetherby e, por isso, não duvidei que ia gostar muito de si, pois, com certeza, são parecidas por serem irmãs.
A limosina tinha virado para a Commonwealth Avenue e Pollyanna começou imediatamente a louvar a beleza da avenida, com um jardim tão bonito no meio e que se tornava ainda mais bonita depois de terem passado por tantas ruas estreitas.
- Acho que toda a gente devia gostar de viver aqui - comentou entusiasmada.
- É muito possível, mas seria difícil - retorquiu Mrs. Carew, com as sobrancelhas levantadas.
Pollyanna, suspeitando que a expressão reflectida no rosto da senhora era de contentamento por a casa dela não se situar naquela linda avenida, apressou-se a corrigir.
- Não, claro que não - concordou. - Eu não quis dizer que as ruas mais estreitas não sejam também bonitas. Até talvez ainda sejam melhores, pois assim podemos estar contentes por não ter que andar tanto quando precisamos de atravessar a rua para pedir um ovo emprestado. Mas vive aqui? - interrompeu ela, quando o carro se deteve defronte da porta de uma casa. - Vive aqui Mrs. Carew?
- Sim, claro que vivo aqui - respondeu a senhora, algo irritada.
- Mas que contente que se deve sentir por viver num local tão bonito - exultou a menina, correndo para o passeio e olhando excitada em redor. - Não se sente contente?
Mrs. Carew não respondeu. Sisuda e de testa franzida, saiu da limosina.
Pela segunda vez em cinco minutos Pollyanna apressou-se a corrigir.
- Claro que eu não me referia ao tipo de contentamento que seja pecado de orgulho - explicou, perscrutando ansiosa o rosto de Mrs. Carew. - Talvez pensasse que eu me referia a esse tipo de contentamento, como a tia Polly pensava às vezes. Não me refiro a esse tipo de contentamento por termos alguma coisa que os outros não têm, mas ao tipo de contentamento que nos faz apetecer gritar e bater com as portas, mesmo que não seja boa educação - concluiu, dançando e saltando em bicos dos pés.
O motorista virou-se precipitadamente e meteu-se no carro. Mrs. Carew, que continuava séria, ia à frente ensinando o caminho.
- Venha Pollyanna - limitou-se a dizer, crispadamente.
Cinco dias mais tarde, Della Wetherby recebeu uma carta da irmã e abriu-a ansiosamente. Era a primeira que chegava desde que Pollyanna estava em Boston com Mrs. Carew.
" Querida irmã
Della, porque não me informaste sobre esta criança que insististe para que tomasse conta? Estou fula e não a posso mandar embora. Já tentei por três vezes, mas, em todas elas, antes de começar a dizer o que quero, ela interrompe-me dizendo-me que está a gostar imenso de estar comigo, que se sente muito contente e que sou muito boa em ficar com ela enquanto a tia está na Alemanha. Assim, diz-me, com que cara posso virar-me para ela e dizer: por favor vai para casa, não te quero aqui. E o mais absurdo é que acho que não lhe entra na cabeça que não a quero cá e parece que também não consigo fazer-lhe compreender isso.
É claro que se ela começar a pregar e a dizer-me para pensar nos meus pecados, mando-a imediatamente embora. Eu disse-te que não permitiria isso. E não permito. Por duas ou três vezes pensei que ela ia começar com prédicas, mas até aqui não passam das histórias ridículas acerca dumas Senhoras da Caridade, com o sermão a derivar para outro lado, felizmente para ela, se quer ficar. Mas ela é realmente impossível. Eu conto.
Em primeiro lugar, está maravilhada com a casa. No primeiro dia em que aqui chegou, pediu-me para abrir todas as salas e não ficou satisfeita senão quando viu desaparecer todas as sombras da casa para que pudesse apreciar todas as coisas maravilhosas que havia, coisas essas que ela disse serem ainda mais bonitas que as de Mr. John Pendleton que creio ser alguém de Beldingsville. De qualquer forma não se trata de uma das Senhoras da Caridade. Até aí já percebi.
Depois, como se não bastasse fazer-me correr de quarto em quarto, à laia de cicerone, descobriu um vestido de noite de cetim branco que eu já não vestia há anos e suplicou-me que o vestisse. Acabei por fazê-lo, não sei porquê, mas senti-me completamente desamparada nas mãos dela.
Mas isto foi apenas o principio. Pediu-me então para ver tudo aquilo que eu tinha e era tão engraçada nas histórias que contava sobre as coletas para os missionários, que eu tive mesmo de rir, embora ao mesmo tempo quase tivesse vontade de chorar, ao pensar nas coisas horríveis que a pobre criança tinha de vestir. E, claro, dos vestidos passamos às joias. E ela fez tanto barulho ao ver dois ou três dos meus anéis, que eu, disparatadamente, acabei por abrir o cofre só para ver os olhos dela arregalados. Cheguei mesmo a pensar que a criança ficava maluca. Pôs-me todos os anéis, alfinetes de peito, pulseiras e colares que tenho e insistiu em colocar dois diademas de brilhantes na minha cabeça. Fiquei sentada com pérolas, diamantes e esmeraldas pendurados, sentindo-me qual deusa num templo hindu, principalmente quando tão disparatada criança começou a dançar à minha volta batendo as palmas e cantando: Que maravilhosa, que maravilhosa! Como eu gostava de a pendurar por um fio na janela! Daria um prisma lindíssimo!
Ia-lhe perguntar que diabo queria dizer com aquilo, quando ela caiu no chão e começou a chorar. E porque achas que estava a chorar? Calcula! Porque estava radiante por ter olhos para poder ver! Que achas tu disto?
Claro que não a aturo, isto é só o principio. Pollyanna está cá há quatro dias e trava conhecimento com toda a gente. Mas, como disse, ficarei com ela até que comece com prédicas. Então devolvo-a. Felizmente que ainda não começou com isso.
Ruth. "
- "Ainda não começou com prédicas", realmente! - murmurou Della Wetherby, dobrando as folhas da carta da irmã. - Oh, Ruth! Ruth! E ainda admites ter aberto todas as salas, escancarado todas as janelas, e que te cobriste de cetim e de joias! E Pollyanna ainda nem esteve aí, sequer, uma semana! E, de fato, sem que tenha, ainda, feito alguma prédica!

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