quinta-feira, 18 de julho de 2013

POLLYANNA 2 - 4 - O jogo e Mrs. Carew


Para Pollyanna, Boston era uma experiência nova. E decerto que também para a parte da cidade que tinha o privilégio de a conhecer, ela era igualmente uma experiência nova.
Pollyanna, ao contrário das pessoas que acham que para ver o mundo se deve começar pelos pontos mais distantes, começou por "ver Boston" através de uma exploração minuciosa do meio mais próximo, a bela residência da Commonwealth Avenue, agora a sua casa. Isso, juntamente com os trabalhos escolares, ocuparam-na completamente durante alguns dias.
Havia tanta coisa para ver e para aprender. Era tudo tão maravilhoso e tão bonito. Desde os botõezinhos na parede, os quais, ao tocar-se-lhes, inundavam as salas de luz, ao grande e silencioso salão de baile, cheio de espelhos e quadros. Também havia tanta gente encantadora para conhecer, além da própria Mrs. Carew. Havia a Mary, que limpava os quartos, respondia à campainha e acompanhava Pollyanna à escola todos os dias; a Bridget, que estava na cozinha e cozinhava; Jenny, que servia à mesa; e Perkins, que conduzia o automóvel. E eram todos tão simpáticos, apesar de tão diferentes também!
Pollyanna tinha chegado numa segunda-feira e, portanto, passara quase uma semana até ao domingo seguinte. Desceu as escadas nessa manhã com uma expressão radiosa.
- Adoro os domingos - disse alegremente.
- Adora? - a voz de Mrs. Carew soava com o aborrecimento de quem não gosta de dia nenhum.
- Sim, por causa da igreja e da catequese. De que gosta mais, da igreja ou da catequese?
- Bom, de fato... - balbuciou Mrs. Carew, que raramente ia à igreja e nunca frequentava a catequese.
- É difícil dizer, não é? - interrompeu-a Pollyanna, com olhos luminosos, mas ao mesmo tempo sérios. Eu gosto mais da igreja por causa do meu pai. Sabe, ele era pastor e deve estar mesmo no Céu com a mãe e os meus irmãos. Mas tento imaginá-lo cá em baixo e, muitas vezes, é mais fácil fazê-lo na igreja quando o padre está a pregar. Fecho os olhos e imagino que é o pai que ali está, o que me ajuda muito. Fico tão contente por conseguir imaginar coisas. A senhora não fica?
- Não sei bem, Pollyanna.
- Mas pense só como são muito mais bonitas as coisas que imaginamos do que as que são realmente verdadeiras. É claro, as suas não são, porque as reais são tão bonitas. - Mrs. Carew, zangada, começou a falar mas Pollyanna retomou apressadamente o que dizia. - E claro que as minhas coisas reais são sempre muito mais bonitas. Realmente, durante o tempo em que estive doente, sem poder andar, tive de imaginar tanto quanto podia. Talvez por isso, continuo a fazê-lo inúmeras vezes, ora sobre o pai ora sobre o que calha. Hoje vou imaginar que é o pai que está lá no púlpito. A que horas vamos?
- Vamos, onde?
- À igreja.
- Mas, Pollyanna, eu não vou, não gosto de ir... - Mrs. Carew tossiu para aclarar a voz e tentar de novo dizer que não ia à igreja e que quase nunca lá ia, mas ao ver o rosto confiante de Pollyanna e aqueles olhos alegres diante de si não conseguiu dizê-lo.
- Talvez por volta das dez e um quarto, se formos a pé - disse então, quase de mau humor. - Enfim, é perto daqui!
Aconteceu, assim, que Mrs. Carew, naquela linda manhã de Setembro, ocupou pela primeira vez desde há muitos meses o banco dos Carew na igreja muito elegante onde ia quando era moça e que continuava a auxiliar bastante no que se referia a dinheiro.
Para Pollyanna, a missa daquela manhã de domingo foi motivo de grande admiração e alegria. A música maravilhosa do coro, os vitrais iluminados pelo sol, a voz apaixonada do pastor e os rituais do culto, encheram-na de êxtase, deixando-a perplexa. Só já perto de casa, disse com fervor:
- Oh! Mrs. Carew, tenho estado a pensar como estou contente por não termos de viver senão um dia de cada vez!
Mrs. Carew franziu o sobrolho e olhou para a menina. Mrs. Carew não estava com disposição para prédicas. Tinha acabado de ser obrigada a ouvi-las, do púlpito, e não estava disposta a ouvi-las de uma criança. Além disso, essa teoria de "viver um dia de cada vez" bem sabia que era uma doutrina particularmente querida de Della. Não insistia ela, constantemente: "Mas tu só tens de viver um minuto de cada vez, Ruth, e toda a gente pode aguentar seja o que for durante um minuto de cada vez! "
- Que disseste? - inquiriu Mrs. Carew, tensa.
- Sim. Pense só o que eu faria se tivesse que viver ontem, hoje e amanhã ao mesmo tempo - disse Pollyanna. - Com tantas coisas maravilhosas. Mas tive o dia de ontem; agora, estou a viver hoje; e o de amanhã ainda está para vir e também o próximo domingo. Honestamente, Mrs. Carew, se não fosse domingo e não estivéssemos nesta rua tão simpática e calma, punha-me a dançar e a gritar. Não podia deixar de o fazer. Mas, por ser domingo, tenho de esperar até chegar a casa, para aí cantar um hino, o hino mais alegre de que me consiga lembrar. Sabe qual é o hino mais alegre que existe, Mrs. Carew?
- Não, acho que não - respondeu Mrs. Carew, com voz fraca, olhando como se estivesse à procura de alguma coisa perdida. Para uma pessoa que espera que lhe digam que só precisa de aguentar um dia de cada vez por as coisas serem tão más, é surpreendente, para não dizer outra coisa, que lhe digam que, por as coisas serem tão boas, é uma felicidade não ter de aguentar senão um dia de cada vez!
Segunda-feira, na manhã seguinte, Pollyanna foi sozinha pela primeira vez à escola, de que gostou muito. Conhecia agora perfeitamente o caminho. Ficava próximo. Tratava-se de um pequeno colégio privado para meninas e, de certo modo, constituía uma nova experiência para si, e se ela gostava de experiências novas!
Ora, Mrs. Carew não gostava de experiências novas, e o certo é que estava a tê-las nos últimos dias. Para uma pessoa que se sente cansada de tudo, ter como companhia tão íntima alguém para quem tudo constitui uma alegria fascinante, por certo tudo isso deve ser um aborrecimento. E Mrs. Carew estava mais que aborrecida, sentia-se exasperada. Ainda assim, admitia para consigo própria que, se alguém lhe perguntasse por que razão se sentia exasperada, a única razão que poderia apresentar seria "por Pollyanna estar tão contente".
A Della, porém, Mrs. Carew escreveu que a palavra "contentamento" lhe dava cabo dos nervos, e que, por vezes, preferia não voltar a ouvi-la. Continuava a admitir que Pollyanna ainda não lhe fizera nenhuma prédica, e que nem sequer tentara fazê-la jogar o jogo. O que fazia, simplesmente, era considerar o "contentamento" de Mrs. Carew como uma coisa óbvia, o que para quem não se sentia contente era quase uma provocação.
Foi durante a segunda semana da estada de Pollyanna que o aborrecimento de Mrs. Carew se manifestou com irritação. A causa imediata foi a conclusão brilhante de Pollyanna para uma história acerca de uma das suas "Senhoras da Caridade".
- Ela estava a jogar o jogo, Mrs. Carew. Mas talvez não saiba de que jogo se trata. Vou contar- lhe. É um jogo ótimo.
- Não interessa, Pollyanna - objetou Mrs. Carew. Sei tudo sobre esse jogo. A minha irmã contou-me, e devo dizer que não me interessa nada.
- Com certeza, Mrs. Carew! - exclamou Pollyanna, pedindo desculpa. - Não estava a pensar no jogo para si. A senhora, evidentemente, não o podia jogar.
- Não o podia jogar? - perguntou indignada Mrs. Carew, que, apesar de não tencionar jogar tal jogo disparatado, não estava disposta a ouvir dizer que não o conseguiria fazer.
- Creio que não! - disse Pollyanna, rindo. O jogo é para descobrir alguma coisa que nos dê contentamento e a senhora nem consegue começar a procurar, porque não há nada ao seu redor que não lhe dê contentamento. Assim, não seria jogo nenhum para si, percebeu?
Mrs. Carew corou, zangada. Com o seu habitual aborrecimento dissera porventura mais do que queria dizer.
- Bom, não quis dizer tanto - contrariou ela friamente. - O que sucede é que não encontro nada que me dê contentamento.
Por momentos Pollyanna olhou-a espantada.
- Mas porquê, Mrs. Carew?
- Ora, que quer que haja aqui que me dê contentamento? - desafiou a senhora, esquecendo-se momentaneamente que não permitiria que Pollyanna lhe "desse prédicas".
- Mas, tudo - murmurou Pollyanna ainda espantada. - Tem esta linda casa.
- É apenas um lugar onde se come e dorme e eu não gosto de comer nem de dormir.
- Mas tem tantas coisas lindas!
- Cansei-me delas!
- Mesmo o seu automóvel, que a pode levar a toda a parte?
- Mas eu não quero ir a toda a parte.
- Já pensou nas pessoas e nas coisas que podia ver, Mrs. Carew?
- Não estou interessada nelas, Pollyanna.
O espanto de Pollyanna não se dissipava. A expressão crispada do rosto da senhora ficou mais vincada.
- Mas, Mrs. Carew, não compreendo. Antes, havia sempre coisas más para as pessoas jogarem o jogo e quanto piores fossem mais divertido era descobri-las; ou seja, descobrir coisas que nos dessem contentamento. Mas quando não existem coisas más, eu própria não sei como jogar o jogo.
Houve silêncio por momentos. Mrs. Carew, sentada, olhava para a janela. O seu ar zangado transformara-se entretanto num olhar desesperado e triste. Vagarosamente virou-se e disse:
- Pollyanna, não tinha pensado dizer-lhe isto, mas decidi fazê-lo. Vou contar-lhe por que razão nada do que tenho me pode dar contentamento. - Assim começou a contar a história de Jamie, o menino de quatro anos que há oito anos desaparecera completamente sem nunca mais ter dado sinal de si.
- E nunca, nunca mais o viu? - balbuciou Pollyanna, com os olhos cheios de lágrimas quando a senhora terminou a história.
- Nunca mais!
- Mas havemos de o encontrar, Mrs. Carew. Tenho a certeza que o encontraremos.
Mrs. Carew abanou a cabeça tristemente.
- Não consigo. Já procurei por toda a parte, mesmo em países estrangeiros.
- Mas ele tem de estar em algum lugar.
- Talvez esteja morto, Pollyanna. - Pollyanna soltou um pequeno grito.
- Não, Mrs. Carew. Por favor não diga isso! Vamos imaginar que ele está vivo. Podemos fazer isso e será uma grande ajuda. Se conseguirmos imaginá-lo vivo, podemos também imaginar que o vamos encontrar. E isso ajudará ainda mais... Vê, Mrs. Carew, agora já pode jogar o jogo! Pode jogá-lo com o Jamie. Pode ficar contente todos os dias, porque cada dia a aproxima mais do momento em que o tornará a ver.

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