Para
Pollyanna, Boston era uma experiência nova. E decerto que também
para a parte da cidade que tinha o privilégio de a conhecer, ela era
igualmente uma experiência nova.
Pollyanna,
ao contrário das pessoas que acham que para ver o mundo se deve
começar pelos pontos mais distantes, começou por "ver Boston"
através de uma exploração minuciosa do meio mais próximo, a bela
residência da Commonwealth Avenue, agora a sua casa. Isso,
juntamente com os trabalhos escolares, ocuparam-na completamente
durante alguns dias.
Havia
tanta coisa para ver e para aprender. Era tudo tão maravilhoso e tão
bonito. Desde os botõezinhos na parede, os quais, ao tocar-se-lhes,
inundavam as salas de luz, ao grande e silencioso salão de baile,
cheio de espelhos e quadros. Também havia tanta gente encantadora
para conhecer, além da própria Mrs. Carew. Havia a Mary, que
limpava os quartos, respondia à campainha e acompanhava Pollyanna à
escola todos os dias; a Bridget, que estava na cozinha e cozinhava;
Jenny, que servia à mesa; e Perkins, que conduzia o automóvel. E
eram todos tão simpáticos, apesar de tão diferentes também!
Pollyanna
tinha chegado numa segunda-feira e, portanto, passara quase uma
semana até ao domingo seguinte. Desceu as escadas nessa manhã com
uma expressão radiosa.
- Adoro
os domingos - disse alegremente.
- Adora?
- a voz de Mrs. Carew soava com o aborrecimento de quem não gosta de
dia nenhum.
- Sim,
por causa da igreja e da catequese. De que gosta mais, da igreja ou
da catequese?
- Bom, de
fato... - balbuciou Mrs. Carew, que raramente ia à igreja e nunca
frequentava a catequese.
- É
difícil dizer, não é? - interrompeu-a Pollyanna, com olhos
luminosos, mas ao mesmo tempo sérios. Eu gosto mais da igreja por
causa do meu pai. Sabe, ele era pastor e deve estar mesmo no Céu com
a mãe e os meus irmãos. Mas tento imaginá-lo cá em baixo e,
muitas vezes, é mais fácil fazê-lo na igreja quando o padre está
a pregar. Fecho os olhos e imagino que é o pai que ali está, o que
me ajuda muito. Fico tão contente por conseguir imaginar coisas. A
senhora não fica?
- Não
sei bem, Pollyanna.
- Mas
pense só como são muito mais bonitas as coisas que imaginamos do
que as que são realmente verdadeiras. É claro, as suas não são,
porque as reais são tão bonitas. - Mrs. Carew, zangada, começou a
falar mas Pollyanna retomou apressadamente o que dizia. - E claro que
as minhas coisas reais são sempre muito mais bonitas. Realmente,
durante o tempo em que estive doente, sem poder andar, tive de
imaginar tanto quanto podia. Talvez por isso, continuo a fazê-lo
inúmeras vezes, ora sobre o pai ora sobre o que calha. Hoje vou
imaginar que é o pai que está lá no púlpito. A que horas vamos?
- Vamos,
onde?
- À
igreja.
- Mas,
Pollyanna, eu não vou, não gosto de ir... - Mrs. Carew tossiu para
aclarar a voz e tentar de novo dizer que não ia à igreja e que
quase nunca lá ia, mas ao ver o rosto confiante de Pollyanna e
aqueles olhos alegres diante de si não conseguiu dizê-lo.
- Talvez
por volta das dez e um quarto, se formos a pé - disse então, quase
de mau humor. - Enfim, é perto daqui!
Aconteceu,
assim, que Mrs. Carew, naquela linda manhã de Setembro, ocupou pela
primeira vez desde há muitos meses o banco dos Carew na igreja muito
elegante onde ia quando era moça e que continuava a auxiliar
bastante no que se referia a dinheiro.
Para
Pollyanna, a missa daquela manhã de domingo foi motivo de grande
admiração e alegria. A música maravilhosa do coro, os vitrais
iluminados pelo sol, a voz apaixonada do pastor e os rituais do
culto, encheram-na de êxtase, deixando-a perplexa. Só já perto de
casa, disse com fervor:
- Oh!
Mrs. Carew, tenho estado a pensar como estou contente por não termos
de viver senão um dia de cada vez!
Mrs.
Carew franziu o sobrolho e olhou para a menina. Mrs. Carew não
estava com disposição para prédicas. Tinha acabado de ser obrigada
a ouvi-las, do púlpito, e não estava disposta a ouvi-las de uma
criança. Além disso, essa teoria de "viver um dia de cada vez"
bem sabia que era uma doutrina particularmente querida de Della. Não
insistia ela, constantemente: "Mas tu só tens de viver um
minuto de cada vez, Ruth, e toda a gente pode aguentar seja o que for
durante um minuto de cada vez! "
- Que
disseste? - inquiriu Mrs. Carew, tensa.
- Sim.
Pense só o que eu faria se tivesse que viver ontem, hoje e amanhã
ao mesmo tempo - disse Pollyanna. - Com tantas coisas maravilhosas.
Mas tive o dia de ontem; agora, estou a viver hoje; e o de amanhã
ainda está para vir e também o próximo domingo. Honestamente, Mrs.
Carew, se não fosse domingo e não estivéssemos nesta rua tão
simpática e calma, punha-me a dançar e a gritar. Não podia deixar
de o fazer. Mas, por ser domingo, tenho de esperar até chegar a
casa, para aí cantar um hino, o hino mais alegre de que me consiga
lembrar. Sabe qual é o hino mais alegre que existe, Mrs. Carew?
- Não,
acho que não - respondeu Mrs. Carew, com voz fraca, olhando como se
estivesse à procura de alguma coisa perdida. Para uma pessoa que
espera que lhe digam que só precisa de aguentar um dia de cada vez
por as coisas serem tão más, é surpreendente, para não dizer
outra coisa, que lhe digam que, por as coisas serem tão boas, é uma
felicidade não ter de aguentar senão um dia de cada vez!
Segunda-feira,
na manhã seguinte, Pollyanna foi sozinha pela primeira vez à
escola, de que gostou muito. Conhecia agora perfeitamente o caminho.
Ficava próximo. Tratava-se de um pequeno colégio privado para
meninas e, de certo modo, constituía uma nova experiência para si,
e se ela gostava de experiências novas!
Ora, Mrs.
Carew não gostava de experiências novas, e o certo é que estava a
tê-las nos últimos dias. Para uma pessoa que se sente cansada de
tudo, ter como companhia tão íntima alguém para quem tudo
constitui uma alegria fascinante, por certo tudo isso deve ser um
aborrecimento. E Mrs. Carew estava mais que aborrecida, sentia-se
exasperada. Ainda assim, admitia para consigo própria que, se alguém
lhe perguntasse por que razão se sentia exasperada, a única razão
que poderia apresentar seria "por Pollyanna estar tão
contente".
A Della,
porém, Mrs. Carew escreveu que a palavra "contentamento"
lhe dava cabo dos nervos, e que, por vezes, preferia não voltar a
ouvi-la. Continuava a admitir que Pollyanna ainda não lhe fizera
nenhuma prédica, e que nem sequer tentara fazê-la jogar o jogo. O
que fazia, simplesmente, era considerar o "contentamento"
de Mrs. Carew como uma coisa óbvia, o que para quem não se sentia
contente era quase uma provocação.
Foi
durante a segunda semana da estada de Pollyanna que o aborrecimento
de Mrs. Carew se manifestou com irritação. A causa imediata foi a
conclusão brilhante de Pollyanna para uma história acerca de uma
das suas "Senhoras da Caridade".
- Ela
estava a jogar o jogo, Mrs. Carew. Mas talvez não saiba de que jogo
se trata. Vou contar- lhe. É um jogo ótimo.
- Não
interessa, Pollyanna - objetou Mrs. Carew. Sei tudo sobre esse jogo.
A minha irmã contou-me, e devo dizer que não me interessa nada.
- Com
certeza, Mrs. Carew! - exclamou Pollyanna, pedindo desculpa. - Não
estava a pensar no jogo para si. A senhora, evidentemente, não o
podia jogar.
- Não o
podia jogar? - perguntou indignada Mrs. Carew, que, apesar de não
tencionar jogar tal jogo disparatado, não estava disposta a ouvir
dizer que não o conseguiria fazer.
- Creio
que não! - disse Pollyanna, rindo. O jogo é para descobrir alguma
coisa que nos dê contentamento e a senhora nem consegue começar a
procurar, porque não há nada ao seu redor que não lhe dê
contentamento. Assim, não seria jogo nenhum para si, percebeu?
Mrs.
Carew corou, zangada. Com o seu habitual aborrecimento dissera
porventura mais do que queria dizer.
- Bom,
não quis dizer tanto - contrariou ela friamente. - O que sucede é
que não encontro nada que me dê contentamento.
Por
momentos Pollyanna olhou-a espantada.
- Mas
porquê, Mrs. Carew?
- Ora,
que quer que haja aqui que me dê contentamento? - desafiou a
senhora, esquecendo-se momentaneamente que não permitiria que
Pollyanna lhe "desse prédicas".
- Mas,
tudo - murmurou Pollyanna ainda espantada. - Tem esta linda casa.
- É
apenas um lugar onde se come e dorme e eu não gosto de comer nem de
dormir.
- Mas tem
tantas coisas lindas!
-
Cansei-me delas!
- Mesmo o
seu automóvel, que a pode levar a toda a parte?
- Mas eu
não quero ir a toda a parte.
- Já
pensou nas pessoas e nas coisas que podia ver, Mrs. Carew?
- Não
estou interessada nelas, Pollyanna.
O espanto
de Pollyanna não se dissipava. A expressão crispada do rosto da
senhora ficou mais vincada.
- Mas,
Mrs. Carew, não compreendo. Antes, havia sempre coisas más para as
pessoas jogarem o jogo e quanto piores fossem mais divertido era
descobri-las; ou seja, descobrir coisas que nos dessem contentamento.
Mas quando não existem coisas más, eu própria não sei como jogar
o jogo.
Houve
silêncio por momentos. Mrs. Carew, sentada, olhava para a janela. O
seu ar zangado transformara-se entretanto num olhar desesperado e
triste. Vagarosamente virou-se e disse:
-
Pollyanna, não tinha pensado dizer-lhe isto, mas decidi fazê-lo.
Vou contar-lhe por que razão nada do que tenho me pode dar
contentamento. - Assim começou a contar a história de Jamie, o
menino de quatro anos que há oito anos desaparecera completamente
sem nunca mais ter dado sinal de si.
- E
nunca, nunca mais o viu? - balbuciou Pollyanna, com os olhos cheios
de lágrimas quando a senhora terminou a história.
- Nunca
mais!
- Mas
havemos de o encontrar, Mrs. Carew. Tenho a certeza que o
encontraremos.
Mrs.
Carew abanou a cabeça tristemente.
- Não
consigo. Já procurei por toda a parte, mesmo em países
estrangeiros.
- Mas ele
tem de estar em algum lugar.
- Talvez
esteja morto, Pollyanna. - Pollyanna soltou um pequeno grito.
- Não,
Mrs. Carew. Por favor não diga isso! Vamos imaginar que ele está
vivo. Podemos fazer isso e será uma grande ajuda. Se conseguirmos
imaginá-lo vivo, podemos também imaginar que o vamos encontrar. E
isso ajudará ainda mais... Vê, Mrs. Carew, agora já pode jogar o
jogo! Pode jogá-lo com o Jamie. Pode ficar contente todos os dias,
porque cada dia a aproxima mais do momento em que o tornará a ver.
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