segunda-feira, 5 de agosto de 2013

16 - EDDARD


- Encontraram-na, senhor.
Ned pôs-se em pé de um salto.
- Os nossos homens ou os dos Lannister?
- Foi Jory - respondeu o intendente Vayon Poole. - Não lhe fizeram mal.
- Graças aos deuses - Ned respondeu. Seus homens andavam à procura de Arya já há quatro dias, mas os homens da rainha também participavam da busca.
- Onde ela está? Diga a Jory que a traga para cá imediatamente.
- Lamento, senhor - disse Poole. - Os guardas do portão eram homens dos Lannister e informaram a rainha quando Jory a trouxe. Ela foi levada diretamente perante o rei...
- Maldita seja aquela mulher! - Ned amaldiçoou, caminhando a passos largos para a porta. - Vá à procura de Sansa e a traga à sala de audiências. Sua versão pode ser necessária - desceu os degraus da torre submerso numa raiva rubra. Ele próprio dirigira as buscas durante os primeiros três dias, e quase não dormira uma hora desde o desaparecimento de Arya. Naquela manhã estivera tão desanimado e cansado que quase não conseguira se levantar, mas agora tinha no corpo sua fúria, enchendo-o de força.
Homens o chamaram quando atravessou o pátio do castelo, mas, em sua pressa, Ned os ignorou. Teria corrido, mas ainda era a Mão do Rei, e uma Mão deve manter a dignidade. Estava consciente dos olhares que o seguiam, das vozes murmuradas que interrogavam sobre o que ele faria.
O castelo era um modesto domínio a meio dia de viagem para sul do Tridente. A comitiva real impusera-se como um hóspede não convidado do senhor do domínio, Sor Raymun Darry, enquanto eram conduzidas as buscas por Arya e pelo filho do carniceiro em ambas as margens do rio. Não eram visitantes bem-vindos. Sor Raymun vivia sob a paz do rei, mas a família lutara no Tridente pelos estandartes do dragão de Rhaegar, e os três irmãos mais velhos tinham morrido ali, uma verdade que nem Robert nem Sor Raymun tinham esquecido.
Com os homens do rei, os de Darry, os dos Lannister e os dos Stark, todos apinhados num castelo que era muito menor que o necessário para recebê-los juntos, as tensões ardiam quentes e pesadas. O rei apropriara-se da sala de audiências de Sor Raymun, e foi aí que Ned os encontrou. A sala estava cheia de gente quando entrou num impulso.
Demasiado cheia, pensou; a sós, ele e Robert poderiam ser capazes de tratar o assunto de forma amigável. Robert estava afundado na cadeira alta de Darry, na extremidade mais distante da sala, com uma expressão fechada e carrancuda. Cersei Lannister e o filho encontravam-se em pé ao seu lado. A rainha tinha a mão pousada no ombro de Joffrey. Espessas ataduras de seda ainda cobriam o braço do rapaz. Arya estava no centro da sala, só com Jory Cassei, com todos os olhos pousados nela.
- Arya - chamou Ned em voz alta. E foi falar com ela, fazendo ressoar as botas no chão de pedra.
Quando o viu, ela gritou e começou a soluçar. Ned caiu sobre um joelho e a tomou nos braços. Ela tremia.
- Lamento - soluçou - lamento, lamento.
- Eu sei - ele disse. Ela parecia tão minúscula nos seus braços, nada mais que uma menininha magricela. Era difícil compreender como causara tantos problemas. - Está ferida?
- Não - seu rosto estava sujo, e as lágrimas deixaram trilhos cor-de-rosa nas bochechas. - Tenho alguma fome. Comi umas frutinhas, mas não havia mais nada.
- Em breve a alimentaremos - prometeu Ned, erguendo-se para encarar o rei. - O que significa isto? - seus olhos varreram a sala em busca de rostos amistosos. Sem contar com seus homens, eram muito poucos. Sor Raymun Darry reservava bem a expressão. Lorde Renly ostentava um meio sorriso que podia significar qualquer coisa, e o velho Sor Barristan tinha uma expressão grave; o resto eram homens dos Lannister, hostis. Sua única sorte era que tanto Jaime Lannister como Sandor Clegane não se encontravam ali, porque ainda dirigiam buscas a norte do Tridente. - Por que motivo não fui avisado de que minha filha foi encontrada? - Ned exigiu saber, fazendo a voz ressoar. - Por que não me foi trazida de imediato?
Falava para Robert, mas foi Cersei Lannister quem respondeu.
- Como ousa falar assim ao seu rei?
Ao ouvir aquilo, o rei agitou-se.
- Silêncio, mulher - ele a silenciou. Endireitou-se no assento. - Lamento, Ned. Não quis assustar a menina. Pareceu melhor trazê-la aqui e despachar o assunto rapidamente.
- E que assunto é este? - Ned tinha a voz gelada.
A rainha deu um passo à frente.
- Sabe perfeitamente bem, Stark. Esta sua menina atacou meu filho. Ela e o filho de carniceiro. Aquele animal que ela tem tentou arrancar o braço de Joffrey.
- Isso não é verdade - disse Arya em voz alta. - Ela só o mordeu um pouco. Ele estava fazendo mal a Mycah.
- Joff contou-nos o que aconteceu - disse a rainha. - Você e o filho do carniceiro bateram nele com paus enquanto você atiçava o lobo.
- Não foi assim que as coisas se passaram - disse Arya, de novo perto das lágrimas. Ned pôs-lhe a mão no ombro.
- Foi, sim, senhora! - insistiu Príncipe Joffrey. - Todos me atacaram, e ela atirou a Dente de Leão ao rio! - Ned reparou que ele sequer olhava para Arya enquanto falava.
- Mentiroso! - gritou Arya.
- Cale-se! - gritou o príncipe.
- Basta! - rugiu o rei, erguendo-se da cadeira, com a voz carregada de irritação. Caiu o silêncio. Robert lançou um olhar ameaçador a Arya.
- E agora, criança, vai me contar o que aconteceu. Vai contar tudo, e somente a verdade. Mentir a um rei é um grande crime - depois olhou para o filho. - Quando ela acabar, será a sua vez. Até lá, tenha cuidado com a língua.
Quando Arya começou sua história, Ned ouviu a porta abrir atrás de si, olhou de relance por cima do ombro e viu Vayon Poole entrar com Sansa. Ficaram em silêncio no fundo da sala enquanto Arya falava. Quando chegou à parte em que atirava a espada de Joffrey no meio do Tridente, Renly Baratheon desatou a rir. O rei ficou irritado.
- Sor Barristan, escolte meu irmão para fora da sala antes que se engasgue.
Lorde Renly abafou o riso.
- Meu irmão é demasiado bondoso. Eu consigo encontrar a porta sozinho - fez uma reverência a Joffrey. - Talvez mais tarde tenha oportunidade de me contar como foi que uma menina de nove anos e do tamanho de um rato-d'água conseguiu desarmá-lo com um pau de vassoura e atirar sua espada ao rio - quando a porta se fechava atrás dele, Ned o ouviu dizer: - Dente de Leão - e soltar outra gargalhada.
Príncipe Joffrey estava pálido ao iniciar sua versão muito diferente dos acontecimentos. Quando o filho acabou de falar, o rei ergueu-se pesadamente da cadeira com uma expressão de quem queria estar em qualquer lugar, menos ali.
- O que, com todos os sete infernos, devo eu pensar? Ele diz uma coisa e ela, outra.
- Eles não eram os únicos presentes - disse Ned. - Sansa, venha cá - Ned ouvira sua versão da história na noite em que Arya desaparecera. Conhecia a verdade. - Conte-nos o que se passou.
A filha mais velha deu um passo hesitante à frente. Vestia veludo azul debruado de branco e usava uma corrente de prata em volta do pescoço. Os espessos cabelos ruivos tinham sido escovados até brilharem. Olhou para a irmã, e depois para o jovem príncipe.
- Não sei - disse com voz chorosa, com uma expressão de quem queria fugir. - Não me lembro. Aconteceu tudo tão depressa, não vi...
- Sua nojenta! - Arya guinchou. Saltou sobre a irmã como uma seta, atirando Sansa ao chão, enchendo-a de socos. - Mentirosa, mentirosa, mentirosa, mentirosa.
- Arya, pare com isso! - Ned gritou. Jory a puxou de cima da irmã ainda agitando os braços. Sansa estava pálida e tremendo quando Ned a colocou de novo em pé. - Está machucada? - perguntou, mas ela estava de olhos fixos em Arya e não pareceu ouvi-lo.
- A menina é tão selvagem como aquele seu animal nojento - disse Cersei Lannister. - Robert, quero vê-la punida.
- Sete infernos - praguejou Robert. - Cersei, olhe para ela. É uma criança. Que quer que eu faça, que a chicoteie pelas ruas? Com os diabos, as crianças lutam. Já acabou. Não foi feito nenhum mal duradouro.
A rainha estava furiosa.
- Joff ficará com aquelas cicatrizes para o resto da vida.
Robert Baratheon olhou para o filho mais velho.
- Pois que fique. Talvez lhe ensinem uma lição. Ned, trate de disciplinar sua filha. Eu farei o mesmo com meu filho.
- De bom grado, Vossa Graça - Ned respondeu, bastante aliviado.
Robert começou a se afastar, mas a rainha ainda não tinha terminado.
- E o lobo gigante? - ela gritou para suas costas. - E o animal que mordeu seu filho? O rei parou, virou-se, franziu a sobrancelha.
- Tinha me esquecido do maldito lobo.
Ned pôde ver Arya ficar tensa entre os braços de Jory, que falou rapidamente.
- Não encontramos nenhum sinal do lobo gigante, Vossa Graça.
O rei não pareceu infeliz com a notícia.
- Não? Pois que assim seja.
A rainha ergueu a voz.
- Cem dragões de ouro ao homem que me trouxer sua pele!
- Uma pele bem cara - resmungou Robert. - Não tomarei parte disto, mulher. Bem pode comprar as suas peles com o ouro dos Lannister.
A rainha o olhou com frieza.
- Eu não o imaginava capaz de tamanho avaro. O rei com quem pensei casar-me teria disposto uma pele de lobo sobre a minha cama antes de o sol se pôr.
O rosto de Robert escureceu de ira.
- Isso seria um belo truque sem um lobo.
- Nós temos um lobo - disse Cersei Lannister. Sua voz estava muito calma, mas seus olhos verdes brilhavam de triunfo.
Precisaram todos de um momento para compreender suas palavras, mas, quando conseguiram, o rei encolheu os ombros, irritado.
- Como quiser. Que Sor Ilyn trate do assunto.
- Robert, não pode estar falando a sério - Ned protestou.
O rei não estava com disposição para mais discussões.
- Basta, Ned, não quero ouvir mais nada. Um lobo gigante é um animal selvagem. Mais cedo ou mais tarde teria se virado contra sua filha tal como o outro se virou contra meu filho. Arranje-lhe um cão, ela ficará mais feliz assim.
Foi então que Sansa pareceu finalmente compreender. Seus olhos estavam assustados ao dirigi-los para o pai.
- Ele não está falando da Lady, está? - ela viu a verdade no rosto de Ned.
- Não - disse. - Não, a Lady não, a Lady não mordeu ninguém, ela é boa...
- Lady não estava lá - gritou Arya em tom zangado. - Deixem-na em paz!
- Impeça-os - suplicou Sansa. - Não deixe que façam isto, por favor, por favor, não foi a Lady, foi a Nymeria, foi Arya, não podem, não foi a Lady, não deixe que eles machuquem Lady, eu faço com que ela seja boa, prometo, prometo... - começou a chorar.
Tudo o que Ned pôde fazer foi tomá-la nos braços e consolá-la enquanto chorava. Olhou para o outro lado da sala, para Robert. Seu velho amigo, mais próximo que um irmão.
- Por favor, Robert. Pelo amor que me tem. Pelo amor que tinha à minha irmã. Por favor.
O rei olhou para eles por um longo momento, depois virou-se para a mulher,
- Maldita seja, Cersei - disse com repugnância.
Ned pôs-se em pé, libertando-se gentilmente do abraço de Sansa. Todo o cansaço dos últimos quatro dias tinha regressado.
- Então o faça, Robert - disse, numa voz fria e afiada como aço. - Pelo menos, tenha a coragem de fazê-lo.
Robert olhou para Ned com olhos baços e mortos, e saiu sem uma palavra, com passos pesados como chumbo. O silêncio encheu a sala.
- Onde está o lobo gigante? - perguntou Cersei Lannister quando o marido saiu. Ao seu lado Príncipe Joffrey sorria.
- O animal está acorrentado ao lado da casa do portão, Vossa Graça - respondeu relutantemente Sor Barristan Selmy.
- Mande chamar Ilyn Payne.
- Não - disse Ned. - Jory, leve as meninas para os quartos e me traga Gelo - as palavras tinham o gosto da bílis na garganta, mas ele as forçou sair. - Se tem de ser feito, eu o farei.
Cersei Lannister olhou-o com suspeita.
- Você, Stark? Isto é algum truque? Por que faria uma coisa dessas?
Todos o olhavam, mas era o olhar de Sansa que cortava.
- Ela pertence ao Norte. Merece mais que um carrasco.
Saiu da sala com os olhos ardendo e os lamentos da filha ecoando em seus ouvidos, e encontrou a cria de lobo gigante onde a tinham acorrentado. Ned sentou-se a seu lado por um momento.
- Lady - disse, saboreando o nome. Nunca prestara grande atenção aos nomes que as crianças tinham escolhido, mas olhando-a agora compreendeu que Sansa tinha escolhido bem. Era a menor da ninhada, a mais bonita, a mais gentil e confiante. A loba o olhou com brilhantes olhos dourados, e ele afagou-lhe o espesso pelo cinzento. Pouco tempo depois, Jory trouxe-lhe Gelo.
Quando acabou, disse:
- Escolha quatro homens e ordene que transportem o corpo para o Norte. Enterrem-na em Winterfell.
- Toda essa distância? - perguntou Jory, espantado.
- Toda essa distância - Ned afirmou. - A mulher Lannister nunca terá esta pele. Regressava à torre para se abandonar por fim ao sono, quando Sandor Clegane e seus cavaleiros atravessaram com estrondo o portão do castelo, regressando de sua caçada.
Havia algo atirado sobre a garupa de seu cavalo de batalha, uma forma pesada enrolada num manto ensanguentado.
- Nenhum sinal da sua filha, Mão - disse o Cão de Caça com voz áspera - mas o dia não foi um desperdício completo. Encontramos seu animalzinho de estimação - esticou o braço para trás e atirou o fardo de cima do cavalo, fazendo-o cair com um baque surdo à frente de Ned.
Dobrando-se, Ned afastou o manto, temendo as palavras que teria de encontrar para Arya, mas afinal não se tratava de Nymeria. Era o filho do carniceiro, Mycah, com o corpo coberto de sangue seco. Tinha sido quase cortado ao meio, do ombro à cintura, por um terrível golpe dado de cima.
- Você o matou de cima do cavalo - disse Ned.
Os olhos do Cão de Caça pareceram cintilar através do aço daquele hediondo elmo em forma de cabeça de cão.
- Ele fugiu - olhou para a cara de Ned e soltou uma gargalhada. - Mas não muito depressa.  

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