terça-feira, 6 de agosto de 2013

17 - BRAN


Era como se estivesse caindo há anos.
- Voe - sussurrou uma voz na escuridão, mas Bran não sabia voar e, portanto, tudo o que podia fazer era cair. Meistre Luwin moldou um rapazinho de barro, cozeu-o até ficar duro e quebradiço, vestiu-o com a roupa de Bran e atirou-o de um telhado. Bran recordou o modo como se estilhaçara.
- Mas eu nunca caio - disse, já caindo.
O chão estava tão longe que quase não conseguia distingui-lo através das névoas cinzentas que turbilhonavam à sua volta, mas podia sentir que caía muito depressa, e sabia o que o esperava lá embaixo. Mesmo nos sonhos, não é possível cair para sempre. Sabia que acordaria um instante antes de atingir o solo. Sempre se acorda um instante antes de atingir o solo.
- E se não acordar? - perguntou a voz. O chão estava agora mais perto, ainda distante, a um milhar de milhas de distância, mas mais perto do que estivera. Ali, na escuridão, fazia frio. Não havia sol, nem estrelas, apenas o solo, lá embaixo, que subia para esmagá-lo, e as névoas cinzentas, e a voz sussurrada. Desejou chorar.
- Não chore. Voe.
- Não posso voar - disse Bran. - Não posso, não posso...
- Como sabe? Alguma vez já tentou?
A voz era aguda e fraca. Bran olhou em volta para ver de onde vinha. Um corvo descia com ele, em espiral, longe de seu alcance, seguindo-o na queda.
- Ajude-me - disse.
- Estou tentando - respondeu o corvo. - Olha, tem algum milho?
Bran levou a mão ao bolso enquanto a escuridão girava, estonteante, à sua volta. Quando tirou a mão, grãos dourados deslizaram por entre os dedos, para o ar. E passaram a cair com ele. O corvo pousou em sua mão e pôs-se a comer.
- É mesmo um corvo? - perguntou Bran.
- Está mesmo caindo? - retorquiu o corvo.
- É só um sonho - disse Bran.
- Será? - perguntou o corvo.
- Eu acordo quando atingir o chão - Bran respondeu à ave.
- Você morre quando atingir o chão - disse o corvo. Pôs-se de novo a comer milho.
Bran olhou para baixo. Conseguia agora distinguir montanhas, com picos brancos de neve, e as fitas prateadas de rios em bosques escuros. Fechou os olhos e começou a chorar.
- Isso não serve para nada - disse o corvo. - Já te disse, a resposta é voar, não chorar. Quão difícil pode ser? Eu estou voando. - O corvo entregou-se ao ar e esvoaçou em torno da mão de Bran.
- Você tem asas - fez notar Bran.
- Talvez você também tenha.
Bran apalpou os ombros, à procura de penas.
- Há diferentes tipos de asas - disse o corvo.
Bran olhava os braços e as pernas. Era tão magro, só pele, toda esticada por cima de ossos. Teria sido sempre assim tão magro? Tentou se lembrar. Um rosto nadou até ele, saído da névoa cinzenta, brilhando, luminoso, dourado.
- As coisas que eu faço por amor - disse o rosto.
Bran gritou.
O corvo levantou vôo, grasnando.
- Isso, não - guinchou para Bran. - Esquece, não precisa disso agora, ponha-o de lado, faça-o desaparecer. - Pousou no ombro de Bran, deu-lhe bicadas, e o brilhante rosto dourado desapareceu.
Bran estava caindo mais depressa do que nunca. As névoas cinzentas uivavam em seu redor enquanto mergulhava para a terra, embaixo.
- O que você está me fazendo? - perguntou ao corvo, choroso.
- Estou lhe ensinando a voar.
- Não posso voar!
- Está voando agora mesmo.
- Estou caindo!
- Todos os vôos começam com uma queda - disse o corvo. - Olhe para baixo.
- Tenho medo...
- OLHE PARA BAIXO!
Bran olhou para baixo e sentiu as entranhas se transformarem em água. O chão corria agora em sua direção. O mundo inteiro espalhava-se por baixo dele, uma tapeçaria de brancos, marrons e verdes. Via tudo com tanta clareza que, por um momento, se esqueceu de ter medo. Conseguia ver todo o reino e toda a gente que nele havia.
Viu Winterfell como as águias o viam, as grandes torres que pareciam baixas e atarracadas vistas de cima, as muralhas do castelo transformadas em simples linhas traçadas na terra. Viu Meistre Luwin em sua varanda, estudando o céu através de um tubo de bronze polido e franzindo a testa enquanto tomava notas num livro. Viu o irmão Robb, mais alto e mais forte do que se lembrava, praticando esgrima no pátio com aço verdadeiro nas mãos. Viu Hodor, o gigante simplório dos estábulos, transportando uma bigorna para a forja de Mikken, levando-a ao ombro com tanta facilidade como outro homem levaria um fardo de palha. No coração do bosque sagrado, o grande represeiro branco pairava sobre o seu reflexo na lagoa negra, com as folhas a bater sob um vento gelado. Quando sentiu que Bran o observava, ergueu os olhos das águas paradas e devolveu-lhe um olhar sábio.
Olhou para leste e viu uma galé que se apressava através das águas da Dentada. Viu sua mãe, sentada, só, numa cabine, olhando para uma faca manchada de sangue pousada sobre a mesa à sua frente, enquanto os remadores puxavam pelos remos e Sor Rodrik se dobrava sobre uma amurada, tremendo com convulsões. Levantava-se uma tempestade à frente do barco, um vasto bramido escuro flagelado por relâmpagos, mas, de alguma maneira, eles não conseguiam vê-la.
Olhou para o sul e viu a grande corrente azul-esverdeada do Tridente. Viu o pai suplicar ao rei, com dor gravada no rosto. Viu Sansa chorar até adormecer, à noite, e Arya guardar seus segredos bem fundo no coração. Havia sombras a toda a volta. Uma das sombras era escura como cinza, com o terrível rosto de um cão de caça. Outra estava armada como o sol, dourada e bela.
Sobre ambas erguia-se um gigante numa armadura de pedra, mas, quando abriu a viseira, nada havia lá dentro a não ser escuridão e um espesso sangue negro. Ergueu os olhos e viu com clareza para lá do mar estreito, viu as Cidades Livres, o mar verde dothraki e, mais além, até Vaes Dothrak, no sopé de sua montanha, até as terras fabulosas do Mar de Jade, até Ashhai da Sombra, onde se agitam dragões ao nascer do sol.
Finalmente olhou para o norte. Viu a Muralha brilhar como cristal azul, e o irmão bastardo Jon dormir sozinho numa cama fria, com a pele ficando branca e dura à medida que a memória de todo o calor ia escapando dele. E olhou para lá da Muralha, para lá de florestas sem fim sob um manto de neve, para lá da costa gelada e dos grandes rios azuis esbranquiçados de gelo e das planícies mortas onde nada crescia nem vivia. Olhou para o norte, e para norte, e para norte, para a cortina de luz no fim do mundo, e então para lá dessa cortina. Olhou para as profundezas do coração do inverno, e então gritou, com medo, e o calor das lágrimas queimou-lhe o rosto.
- Agora você sabe - sussurrou o corvo ao pousar no seu ombro. - Agora sabe por que deve viver.
- Por quê? - disse Bran, sem compreender, e caindo, caindo.
- Porque o inverno está para chegar.
Bran olhou para o corvo em seu ombro, e o corvo devolveu-lhe o olhar. Possuía três olhos, e o terceiro estava cheio de uma terrível sabedoria. Bran olhou para baixo. Nada havia agora abaixo dele além de neve, frio e morte, um vazio gelado onde agulhas denteadas de gelo azul esbranquiçado esperavam para abraçá-lo. Voavam em sua direção como lanças. Viu os ossos de mil outros sonhadores empalados em suas pontas. Sentia um medo desesperador.
- Pode um homem continuar a ser valente se tiver medo? - ouviu sua voz dizer, uma voz pequena e distante.
E a voz de seu pai lhe respondeu.
- Essa é a única maneira de um homem ser valente.
- E agora, Bran - insistiu o corvo. - Escolhe. Voa ou morre. - A morte estendeu as mãos para ele, gritando.
Bran abriu os braços e voou. Asas invisíveis beberam o vento e encheram-se, e empurraram-no para cima. As terríveis agulhas de gelo afastaram-se lá embaixo. O céu abriu-se lá em cima. Bran pairou. Era melhor que escalar. Era melhor que qualquer outra coisa. O mundo encolheu por baixo dele.
- Estou voando! - gritou, deliciado.
- Já percebi - disse o corvo de três olhos. Levantou vôo, batendo as asas contra o rosto de Bran, reduzindo-lhe a velocidade, cegando-o. O rapaz hesitou no ar quando as asas da ave bateram no seu rosto. O bico do corvo apunhalou-o ferozmente, e Bran sentiu uma súbita dor cegante no meio da testa, entre os olhos.
- O que está fazendo? - guinchou.
O corvo abriu o bico e grasnou, um estridente grito de medo, e as névoas cinzentas estremeceram, rodopiaram à sua volta e rasgaram-se como um véu, e ele viu que o corvo era na realidade uma mulher, uma criada com longos cabelos negros, e ele a conhecia de algum lugar, de Winterfell, sim, era isso, agora se lembrava dela, e então compreendeu que estava em Winterfell, numa cama, num quarto gelado qualquer, numa torre, e a mulher de cabelos negros deixara uma bacia de água estilhaçar-se no chão e corria pelos degraus abaixo gritando: "Ele está acordado, ele está acordado, ele está acordado".
Bran levou a mão à testa, entre os olhos. O lugar onde o corvo bicara ainda ardia, mas não havia nada, nem sangue, nem ferida. Sentiu-se fraco e tonto. Tentou sair da cama, mas nada aconteceu. E então sentiu um movimento ao lado da cama, e algo pousou agilmente sobre suas pernas. Nada sentiu. Um par de olhos amarelos olhava os seus, brilhando como o sol. A janela estava aberta e fazia frio no quarto, mas o calor que vinha do lobo envolveu-o como um banho quente.
Bran compreendeu que se tratava de sua cria... ou não? O lobo estava tão grande. Estendeu a mão para lhe fazer uma festa, uma mão que tremia como uma folha. Quando o irmão Robb entrou correndo no quarto, sem fôlego por causa dos degraus da torre acima, o lobo gigante lambia o rosto de Bran.
Bran ergueu os olhos calmamente.
- O nome dele é Verão - ele disse.  

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