quarta-feira, 7 de agosto de 2013

18 - CATELYN


- Chegaremos a Porto Real dentro de uma hora.
Catelyn afastou-se da amurada e forçou-se a sorrir.
- Vossos remadores trabalharam bem por nós, capitão. Cada um receberá um veado de prata, em sinal da minha gratidão.
Capitão Moreo Tumitis concedeu-lhe uma meia reverência.
- E demasiado generosa, Senhora Stark. A honra de transportar uma grande senhora como vós é toda a recompensa de que necessitam.
- Mas mesmo assim receberão a prata.
Moreo sorriu.
- Como desejar - falava a língua comum fluentemente, com não mais que um ligeiro sinal de sotaque tyroshi. Dissera-lhe que já percorria o mar estreito havia trinta anos, como remador, contramestre e, finalmente, capitão de suas próprias galés comerciais. O Dançarino da Tempestade era seu quarto navio, e o mais rápido, uma galé de dois mastros e sessenta remos.
Fora certamente o mais rápido dos navios disponíveis em Porto Branco quando Catelyn e Sor Rodrik Cassei chegaram do seu impetuoso galope ao longo do rio. Os tyroshis eram célebres pela sua avareza, e Sor Rodrik argumentara em favor de contratarem uma corveta de pesca vinda das Três Irmãs, mas Catelyn insistira na galé. Ainda bem. Os ventos tinham soprado contrários durante a maior parte da viagem, e sem os remos da galé ainda estariam tentando ultrapassar os Dedos, em vez de deslizarem em direção a Porto Real e ao fim da travessia.
Tão perto, pensou. Sob as ataduras de linho, seus dedos ainda latejavam nos lugares onde o punhal penetrara. Catelyn sentia a dor como seu chicote, que existia para que não esquecesse. Não conseguia dobrar os últimos dois dedos da mão esquerda, e os outros nunca mais seriam destros. Mas era um preço bem pequeno a pagar pela vida de Bran. Sor Rodrik escolheu aquele momento para aparecer no convés.
- Meu bom amigo - disse Moreo através da barba verde e bifurcada. Os tyroshis adoravam cores vivas, mesmo nos pelos faciais. - É tão bom vê-lo com melhor aspecto.
- Sim - concordou Sor Rodrik. - Já há quase dois dias que não desejo morrer - fez uma reverência a Catelyn. - Minha senhora.
E estava com melhor aspecto. Um pouco mais magro do que era quando partiram de Porto Branco, mas quase ele próprio de novo. Os ventos fortes da Dentada e a dureza do mar estreito não se conjugavam com ele, e quase fora atirado borda afora quando a tempestade os apanhara inesperadamente ao largo de Pedra do Dragão, mas de algum modo conseguira agarrar-se a uma corda, até que três dos homens de Moreo lograram salvá-lo e o levaram em segurança para o interior do navio.
- O capitão acaba de dizer-me que a nossa viagem está quase no fim - disse ela. Sor Rodrik conseguiu lhe dar um sorriso fatigado.
- Tão depressa? - parecia estranho sem as grandes suíças brancas; de certo modo menor, menos feroz e dez anos mais velho. Mas na Dentada parecera prudente submetê-las à navalha de um tripulante depois de terem se sujado irremediavelmente, pela terceira vez, quando ele se inclinou sobre a amurada para vomitar contra os turbilhões de vento.
- Vou deixá-los discutindo seus assuntos - disse o capitão Moreo. Fez uma mesura e afastou-se. A galé deslizava sobre a água como uma libélula, com os remos subindo e descendo em perfeita cadência. Sor Rodrik apoiou-se na amurada e observou a costa que ia passando.
- Não tenho sido o mais valente dos protetores.
Catelyn tocou-lhe o braço.
- Estamos aqui, Sor Rodrik, e em segurança. É tudo o que realmente importa - sua mão tateou sob o manto, com os dedos rígidos e desajeitados. Ainda trazia o punhal junto a si. Descobrira que precisava tocá-lo de vez em quando para se tranquilizar. - Agora temos de encontrar o mestre de armas do rei e rezar para que ele seja de confiança.
- Sor Aron Santagar é um homem vaidoso, mas honesto - a mão de Sor Rodrik subiu ao rosto para afagar as suíças e descobriu uma vez mais que elas tinham desaparecido. Pareceu atrapalhado. - Ele pode conhecer a lâmina, sim..., mas, minha senhora, no momento em que desembarcarmos, ficaremos em risco. E há quem, na corte, a reconheça à primeira vista.
A boca de Catelyn apertou-se.
- Mindinho - murmurou. Seu rosto surgiu-lhe em frente aos olhos; um rosto de rapaz, embora já não o fosse. Seu pai morrera havia vários anos, e ele era agora Lorde Baelish, mas ainda o chamavam Mindinho. O irmão de Catelyn, Edmure, dera-lhe esse nome, há muito tempo, em Correrrio. Os modestos domínios da família de Petyr ficavam no menor dos Dedos, e ele tinha sido baixo e magro para sua idade.
Sor Rodrik limpou a garganta.
- Uma vez, Lorde Baelish, ah... - seu pensamento partiu, incerto, em busca das palavras delicadas. Mas Catelyn parecia buscar mais que delicadeza. - Ele foi protegido de meu pai. Crescemos juntos em Correrrio. Eu pensava nele como um irmão, mas seus sentimentos por mim eram... mais do que fraternais. Quando foi anunciado que eu deveria me casar com Brandon Stark, Petyr lançou um desafio pelo direito à minha mão. Era uma loucura. Brandon tinha vinte anos, Petyr, pouco mais de quinze. Tive de suplicar a Brandon que poupasse a vida de Petyr. Mas ele o deixou com uma cicatriz. Depois disso, meu pai o mandou embora. Nunca mais o vi - ergueu o rosto contra os borrifos das ondas, como se o vento fresco pudesse levar as recordações para longe. - Escreveu-me para Correrrio depois de Brandon ser morto, mas queimei a carta sem ler. Já então sabia que Ned casaria comigo no lugar do irmão.
Os dedos de Sor Rodrik tatearam uma vez mais em busca das suíças inexistentes.
- Hoje Mindinho tem assento no pequeno conselho.
- Eu sabia que ele iria longe - disse Catelyn. - Sempre foi inteligente, mesmo ainda rapaz, mas uma coisa é ser inteligente, e outra é ser sábio. Pergunto a mim mesma o que os anos lhe terão feito.
Bem acima de suas cabeças, os vigias cantaram do topo das velas. Capitão Moreo precipitou-se pelo convés, dando ordens, e o Dançarino da Tempestade rebentou numa atividade frenética enquanto Porto Real surgia à vista em cima de suas três grandes colinas.
Catelyn sabia que trezentos anos antes aquelas elevações estavam cobertas por florestas, e só um punhado de pescadores vivia na margem norte da Torrente da Água Negra, onde esse rio rápido e profundo desaguava no mar. Então, Aegon, o Conquistador, zarpara de Pedra do Dragão. Fora ali que seu exército desembarcara, e no topo da colina mais alta construíra seu primeiro e rude baluarte de madeira e terra.
Agora a cidade cobria a costa até tão longe quanto Catelyn conseguia ver; mansões, caramanchões e celeiros, armazéns feitos de tijolo e estalagens e estábulos comerciais de madeira, tabernas, cemitérios e bordéis, tudo empilhado, uns edifícios sobre os outros. Mesmo àquela distância, conseguia ouvir o clamor do mercado de peixe. Entre os edifícios, estendiam-se estradas largas debruadas de árvores, sinuosas ruas vazias e vielas tão estreitas que dois homens não poderiam nelas caminhar lado a lado. A colina de Visenya estava coroada pelo Grande Septo de Baelor, com suas sete torres de cristal. Do outro lado da cidade, na colina de Rhaenys, erguiam-se os muros enegrecidos do Poço dos Dragões, com sua enorme cúpula caída em ruína, as portas de bronze fechadas havia já um século. A Rua das Irmãs corria entre os dois edifícios, reta como uma seta. As muralhas da cidade erguiam-se a distância, altas e fortes.
Uma centena de desembarcadouros cobria a margem da cidade, e o porto estava repleto de navios. Barcos de pesca de águas profundas e correios do rio chegavam e partiam, barqueiros remavam de um lado para o outro na Torrente da Água Negra, galés comerciais descarregavam produtos vindos de Bravos, Pentos e Lys. Catelyn espiou a ornamentada barcaça da rainha, amarrada ao lado de um gordo baleeiro vindo do Porto de Ibben, com o casco enegrecido de piche, enquanto a montante uma dúzia de esbeltos navios de guerra dourados repousava em suas docas, com as velas enroladas e os cruéis esporões de ferro a afagar a água, E acima de tudo, lançando um olhar carrancudo da grande colina de Aegon, estava a Fortaleza Vermelha, sete enormes torres cilíndricas coroadas por baluartes de ferro, um imenso e sombrio contraforte, salões abobadados e pontes cobertas, casernas, masmorras e celeiros, maciças muralhas de barragem cravejadas de guaritas para arqueiros, tudo construído de pedra vermelha-clara, Aegon, o Conquistador, ordenara sua construção. Seu filho, Maegor, o Cruel, a completara, E depois exigira a cabeça de todos os pedreiros, carpinteiros e construtores que nela trabalharam. Jurara que só o sangue do dragão podia conhecer os segredos da fortaleza que os Senhores do Dragão tinham construído.
E, no entanto, os estandartes que agora esvoaçavam em suas ameias eram dourados, não negros, e onde o dragão de três cabeças antes exalara fogo, agora curveteava o veado coroado da Casa Baratheon. Um navio de grandes mastros das Ilhas do Verão estava saindo do porto com suas velas brancas enormes. O Dançarino da Tempestade passou por ele, aproximando-se firmemente da costa.
- Minha senhora - disse Sor Rodrik - enquanto estive acamado, planejei a melhor forma de proceder. Não deve entrar no castelo. Eu irei em vosso lugar e trarei Sor Aron até algum lugar seguro.
Ela estudou o velho cavaleiro enquanto a galé se aproximava do cais. Moreo gritava no valiriano vulgar das Cidades Livres.
- Correrá tantos riscos como eu.
Sor Rodrik sorriu.
- Julgo que não. Há pouco olhei meu reflexo na água e quase não reconheci a mim mesmo. Minha mãe foi a última pessoa a me ver sem suíças, e está morta há quarenta anos. Acredito que estou suficientemente seguro, minha senhora.
Moreo berrou uma ordem. Como se fossem um único, sessenta remos ergueram-se do rio, depois inverteram a rotação, e caíram. A galé perdeu velocidade. Outro grito. Os remos deslizaram para dentro do casco. No momento em que o navio esbarrava na doca, marinheiros tyroshis saltaram para terra a fim de amarrá-lo. Moreo aproximou-se em grande azáfama, todo sorrisos.
- Porto Real, minha senhora, tal como havia ordenado, e nunca nenhum navio fez viagem mais rápida e segura. Necessitará de assistência no transporte de vossas coisas para o castelo?
- Não vamos para o castelo. Talvez me possa sugerir uma estalagem, um lugar limpo e confortável, e não muito longe do rio.
O tyroshi passou os dedos pela barba verde e bifurcada.
- Com certeza. Conheço vários estabelecimentos que podem lhe convir. Mas primeiro, se me permite a ousadia, há o assunto da segunda parte do pagamento que acordamos. E, bem entendido, a prata extra que teve a bondade de prometer. Sessenta veados, julgo que era esse o montante.
- Para os remadores - lembrou-lhe Catelyn.
- Ah, com certeza - disse Moreo. - Embora eu talvez deva guardá-los para eles até regressarmos a Tyrosh. Para o bem de suas esposas e filhos. Se a prata lhes for dada aqui, minha senhora, irão perdê-la para os dados ou gastá-la por completo numa noite de prazer.
- Há coisas piores em que gastar dinheiro - interveio Sor Rodrik. - O inverno está para chegar.
- Um homem deve fazer as suas próprias escolhas - disse Catelyn. - Eles ganharam a prata. Como a gastam não me diz respeito.
- Como desejar, minha senhora - respondeu Moreo, fazendo uma reverência e sorrindo.
Para se assegurar de que o dinheiro chegaria ao destino, Catelyn pagou ela própria aos remadores, um veado para cada homem e uma moeda de cobre para os dois homens que transportaram suas arcas até o meio da encosta de Visenya, onde ficava a estalagem que Moreo sugerira. Era um velho edifício de perfil irregular que se erguia na Viela das Enguias. A dona era uma velha enrugada com um olho preguiçoso, que os mirou com suspeita e mordeu a moeda que Catelyn lhe ofereceu a fim de se certificar de que era verdadeira. Mas seus quartos eram grandes e arejados, e Moreo jurava que seu guisado de peixe era o mais saboroso em todos os Sete Reinos. O melhor de tudo era que não tinha nenhum interesse em seus nomes.
- Julgo ser melhor que se mantenha afastada da sala comum - disse Sor Rodrik, depois de terem se instalado. - Mesmo num lugar como este, nunca se sabe quem pode estar à espreita - usava cota de malha, um punhal e uma espada sob um manto escuro com capuz que podia puxar sobre a cabeça. - Estarei de volta antes de cair a noite com Sor Aron - prometeu. - Agora descanse, minha senhora.
Catelyn estava cansada. A viagem fora longa e fatigante, e já não era tão jovem. As janelas de seu quarto davam para a viela e para telhados, com uma vista do Água Negra por cima deles. Observou Sor Rodrik partir e caminhar em passo vivo pelas ruas movimentadas até se perder na multidão, e depois decidiu seguir seu conselho. O colchão era de palha, não de penas, mas não teve dificuldade em adormecer.
Acordou com um toque na porta. Catelyn sentou-se de repente. Da janela viam-se os telhados de Porto Real, vermelhos à luz do sol poente. Dormira durante mais tempo do que planejara. Um punho voltou a martelar na porta e uma voz gritou:
- Abra, em nome do rei.
- Um momento - ela gritou. Envolveu-se no manto.
O punhal encontrava-se sobre a mesa de cabeceira. Agarrou-o antes de destrancar a pesada porta de madeira. Os homens que entraram no quarto usavam a cota de malha negra e os mantos dourados da Patrulha da Cidade. Seu líder sorriu ao ver o punhal na mão de Catelyn e disse:
- Não há necessidade disso, minha senhora. Temos ordens de escoltá-la até o castelo.
- Sob autoridade de quem? - ela perguntou.
Ele lhe mostrou uma fita. Catelyn sentiu que sua respiração estava presa na garganta. O selo era um tejo, em cera cinzenta.
- Petyr - disse. Tão depressa. Algo devia ter acontecido a Sor Rodrik. Olhou para o chefe dos guardas: - Sabe quem eu sou?
- Não, senhora - disse ele. - O Senhor Mindinho só disse para levá-la até ele, e evitar que seja maltratada.
Catelyn anuiu.
- Pode esperar lá fora enquanto me visto.
Lavou as mãos na bacia e enrolou-as em linho limpo. Sentiu os dedos grossos e desajeitados enquanto lutava para atar o corpete e prender um pesado manto marrom em torno do pescoço. Como podia Mindinho ter sabido que estava ali? Sor Rodrik nunca lhe diria. Podia ser velho, mas era teimoso e impecavelmente leal. Teriam chegado tarde demais? Teriam os Lannister chegado a Porto Real antes deles? Não. Se fosse isso, Ned também estaria ali, e sem dúvida que viria vê-la. Como?...
Então pensou: Moreo, O maldito tyroshi sabia quem eles eram e onde estavam. Catelyn esperava que o homem tivesse obtido um bom preço pela informação.
Tinham lhe trazido um cavalo. Os candeeiros estavam sendo acesos ao longo das ruas por onde caminhavam e Catelyn sentiu os olhos da cidade postos nela enquanto avançava, rodeada pelos guardas de mantos dourados. Quando chegaram à Fortaleza Vermelha, a porta levadiça estava abaixada e os grandes portões trancados para a noite, mas as janelas do castelo mostravam-se vivas com luzes tremeluzentes. Os guardas deixaram as montarias fora da muralha e escoltaram-na por uma estreita porta lateral, e depois ao longo de uma infinidade de degraus até uma torre. Ele estava sozinho na sala, sentado a uma pesada mesa de madeira, com uma candeia de azeite a seu lado enquanto escrevia. Quando a introduziram no aposento, pousou a pena e olhou-a.
- Cat - disse em voz baixa.
- Por que motivo fui aqui trazida desta maneira?
Ele se levantou e fez um gesto brusco para os guardas.
- Deixem-nos - os homens partiram. - Não foi maltratada, espero - disse, depois de os outros terem saído. - Dei instruções firmes - reparou nas ataduras.
- Suas mãos...
Catelyn ignorou a pergunta implícita.
- Não estou habituada a ser convocada como uma meretriz - disse com voz gelada. - Ainda rapaz sabia o que significava cortesia.
- Zanguei-a, minha senhora. Essa nunca foi minha intenção - parecia contrito. A expressão trouxe a Catelyn vivas memórias. Fora uma criança maliciosa, mas depois de suas travessuras parecia sempre contrito; era um dom que possuía. Os anos não o tinham mudado muito. Petyr tinha sido um rapaz pequeno, e crescera até transformar-se num homem pequeno, quatro ou cinco centímetros mais baixo que Catelyn, esbelto e rápido, com as feições inteligentes que ela recordava e os mesmos olhos risonhos cinza-esverdeados. Usava agora uma pequena barbicha pontiaguda, e tinha traços de prata no cabelo escuro, embora ainda não tivesse trinta anos. Combinavam bem com o tejo de prata que prendia ao manto. Mesmo quando criança, sempre gostara de sua prata.
- Como soube que eu estava na cidade? - ela perguntou.
- Lorde Varys sabe tudo - disse Petyr com um sorriso malicioso. - Ele se juntará a nós em breve, mas eu quis vê-la a sós primeiro. Foi há tanto tempo, Cat. Quantos anos?
Catelyn ignorou a familiaridade do homem. Havia perguntas mais importantes.
- Então foi a Aranha do Rei que me encontrou.
Mindinho encolheu-se.
- Não deve chamá-lo assim. Ele é muito sensível. Imagino que por ser um eunuco. Nada acontece nesta cidade sem que Varys fique sabendo. Por vezes, ele sabe das coisas antes de elas acontecerem. Tem informantes por todo o lado. Chama-os de seus passarinhos. Um de seus passarinhos ouviu falar da sua visita. Felizmente, Varys veio falar comigo primeiro.
- Por que você?
Ele encolheu os ombros.
- E por que não? Sou o mestre da moeda, o conselheiro do rei. Selmy e Lorde Renly foram para o Norte ao encontro de Robert, e Lorde Stannis partiu para Pedra do Dragão, deixando só Meistre Pycelle e eu. Era a escolha óbvia. Sempre fui amigo de sua irmã Lysa, e Varys sabe disso.
- Saberá Varys sobre...
- Lorde Varys sabe tudo... exceto o motivo de estar aqui - ergueu uma sobrancelha. - E por que motivo está aqui?
- É permitido a uma esposa ansiar pelo marido, e se uma mãe precisar das filhas por perto, quem lhe dirá que não?
Mindinho soltou uma gargalhada.
- Ah, muito bem, minha senhora, mas com certeza não espera que eu acredite nisso. Conheço-a bem demais. Como eram as palavras dos Tully?
A garganta dela estava seca.
- Família, Dever, Honra - recitou rigidamente. Ele de fato a conhecia bem demais.
- Família, Dever, Honra - repetiu ele. - E todas estas coisas requeriam que tivesse permanecido em Winterfell, onde a nossa Mão a deixou. Não, minha senhora, algo aconteceu. Esta sua súbita viagem sugere certa urgência. Suplico-lhe, deixe-me ajudar. Os velhos amigos íntimos nunca deveriam hesitar em apoiar-se uns nos outros - ouviu-se uma suave batida na porta. - Entre - disse Mindinho em voz alta.
O homem que atravessou a porta era roliço, perfumado, empoado e tão desprovido de cabelos como um ovo. Trajava uma veste de fio de ouro trançado sobre um vestido largo de seda púrpura e, nos pés, trazia chinelos pontiagudos de suave veludo.
- Senhora Stark - disse, tomando-lhe uma mão nas suas - vê-la de novo após tantos anos é uma grande alegria - sua pele era mole e úmida, e o hálito cheirava a lilases. - Ah, suas pobres mãos. Queimaduras, querida senhora? Os dedos são tão delicados... Nosso bom Meistre Pycelle faz um bálsamo maravilhoso, mando buscar um jarro?
Catelyn puxou a mão.
- Agradeço-lhe, senhor, mas meu Meistre Luwin já tratou de minhas dores, Varys inclinou a cabeça.
- Fiquei atrozmente triste quando soube do que aconteceu ao seu filho. E ele tão jovem. Os deuses são cruéis.
- Nisso concordamos, Senhor Varys - ela disse. O título não passava de uma cortesia que lhe era devida por ser membro do conselho; Varys não era senhor de coisa nenhuma, a não ser da teia de aranha; mestre de ninguém, a não ser de seus segredos.
O eunuco estendeu as mãos suaves.
- Em mais do que isso, espero eu, querida senhora. Tenho grande estima pelo seu marido, nossa nova Mão, e sei que ambos amamos o rei Robert.
- Sim - foi forçada a dizer. - Com certeza.
- Nunca um rei foi tão amado como o nosso Robert - observou Mindinho, sorrindo maliciosamente. - Pelo menos ao alcance dos ouvidos do Senhor Varys.
- Minha boa senhora - disse Varys com grande solicitude. - Há homens nas Cidades Livres com assombrosos poderes curativos. Basta que me diga uma palavra e mandarei chamar um para o seu querido Bran.
- Meistre Luwin está fazendo tudo o que pode ser feito por Bran - ela informou. Não queria falar de Bran, não ali, não com aqueles homens. Confiava apenas um pouco em Mindinho, e absolutamente nada em Varys, Não queria deixá-los ver sua dor. - Lorde Baelish disse-me que é a vós que devo agradecer por me trazerem até aqui.
Varys soltou um risinho de moça.
- Ah, sim. Suponho que sou culpado. Espero que me perdoe, bondosa senhora - instalou-se numa cadeira e juntou as mãos. - Pergunto a mim mesmo se podemos incomodá-la pedindo que nos mostre o punhal?
Catelyn Stark fitou o eunuco com uma descrença atordoada. Ele era uma aranha, pensou precipitadamente, um encantador, ou coisa pior. Sabia coisas que ninguém poderia de modo algum saber, a não ser que...
- O que fez a Sor Rodrik?
Mindinho tinha perdido o fio da meada.
- Sinto-me como o cavaleiro que chega ao campo de batalha sem sua lança. De que punhal estamos falando? Quem é Sor Rodrik?
- Sor Rodrik Cassei é mestre de armas em Winterfell - Varys respondeu. - Asseguro-lhe, Senhora Stark, que absolutamente nada foi feito ao bom cavaleiro. Ele veio até aqui esta tarde. Visitou Sor Aron Santagar no armeiro, e conversaram sobre um certo punhal. Por volta do pôr do sol, saíram juntos do castelo e dirigiram-se àquele pavoroso casebre onde estão alojados. Ainda estão lá, bebendo na sala de estar, à espera do seu regresso. Sor Rodrik ficou muito aflito quando não a encontrou lá.
- Como pode saber tudo isso?
- Os sussurros de passarinhos - disse Varys, sorrindo. - Eu sei coisas, querida senhora. É essa a natureza dos meus serviços - encolheu os ombros. - Tem o punhal convosco, não é?
Catelyn puxou-o de dentro do manto e o atirou em cima da mesa à frente dele.
- Aqui está. Talvez seus passarinhos possam segredar o nome do homem a quem pertence. Varys ergueu a faca com uma delicadeza exagerada e percorreu-lhe o gume com o polegar. Jorrou sangue, e ele deixou escapar um guincho e largou o punhal sobre a mesa.
- Cuidado - disse-lhe Catelyn - é afiado.
- Nada mantém o gume como o aço valiriano - disse Mindinho enquanto Varys sugava o polegar ferido e lançava a Catelyn um olhar de carrancuda advertência. Mindinho sopesou a faca com ligeireza, sentindo-a. Atirou-a ao ar, e voltou a apanhá-la com a outra mão. - Que belo equilíbrio. Quer encontrar o dono, é este o motivo desta visita? Não há necessidade de Sor Aron para isso, minha senhora. Devia ter me procurado.
- E se o tivesse feito - disse ela - o que me teria dito?
- Teria dito que só existe uma faca como esta em Porto Real - pegou na lâmina com o polegar e o indicador, ergueu-a sobre o ombro e atirou-a pela sala com uma torção hábil de pulso. O punhal atingiu a porta e enterrou-se profundamente na madeira de carvalho, estremecendo. - É minha.
- Sua? - não fazia sentido. Petyr não estivera em Winterfell.
- Até o torneio no dia do nome de Príncipe Joffrey - disse ele, atravessando a sala para arrancar o punhal da madeira - Apostei em Sor Jaime na justa, tal como metade da corte - o sorriso acanhado de Petyr fazia-o parecer meio rapaz de novo. - Quando Loras Tyrell o fez cair do cavalo, muitos de nós ficamos um nadinha mais pobres. Sor Jaime perdeu cem dragões de ouro, a rainha perdeu um pendente de esmeralda, e eu perdi a minha faca. Sua Graça obteve a esmeralda de volta, mas o vencedor ficou com o resto.
- Quem? - Catelyn exigiu saber, com a boca seca de medo. Seus dedos latejavam de dor.
- O Duende - disse Mindinho enquanto Lorde Varys observava o rosto dela. - Tyrion Lannister.  

Nenhum comentário:

Postar um comentário

NÃO DÊ SPOILERS!
Encontrou algum erro ortográfico no texto? Comente aqui para que possa arrumar :)
Se quer comentar e não tem uma conta no blogger ou google, escolha a opção nome/url e coloque seu nome. Nem precisa preencher o url.
Comentários anônimos serão ignorados