quinta-feira, 8 de agosto de 2013

19 - JON


O pátio ressoava com a canção das espadas. Sob a lã negra, o couro fervido e a cota de malha, o suor corria gelado pelo peito de Jon, enquanto ele pressionava o ataque. Grenn cambaleava para trás, defendendo-se de forma desajeitada. Quando ergueu a espada, Jon fez passar por baixo dela um golpe circular que se esmagou contra a parte de trás da perna do outro rapaz e o deixou mancando. A estocada baixa de Grenn respondeu com um golpe de cima que lhe abriu um corte no elmo. Quando o outro tentou um golpe lateral, Jon afastou sua lâmina e atingiu-lhe o peito com o braço envolto em cota de malha. Grenn desequilibrou-se e caiu com força, de traseiro na neve. Jon arrancou-lhe a espada dos dedos com um golpe no pulso que o fez gritar de dor.
- Basta! - a voz de Sor Alliser Thorne tinha um gume que parecia feito de aço valiriano. Grenn agarrou-se à mão.
- O bastardo quebrou meu pulso.
- O bastardo o cortou, abriu-lhe esse crânio vazio e decepou-lhe a mão. Ou o teria feito, se essas lâminas tivessem gume. E sorte sua que a Patrulha precise tanto de moços de estrebaria como de patrulheiros - Sor Alliser fez um gesto para Jeren e para o Sapo. - Ponham o Auroque em pé, que ele tem preparativos funerários a fazer.
Jon tirou o elmo enquanto os outros rapazes puxavam Grenn. O ar gelado da manhã no rosto lhe fez bem. Apoiou-se na espada, inspirou profundamente e permitiu-se um momento para saborear a vitória.
- Isso é uma espada, não a bengala de um velho - repreendeu-o Sor Alliser com voz penetrante. - Suas pernas doem, Lorde Snow?
Jon odiava aquele nome, uma zombaria que Sor Alliser pendurara nele no primeiro dia em que viera treinar. Os rapazes tinham-no adotado e agora o ouvia por todo lado. Enfiou a espada na bainha.
- Não - respondeu.
Thorne caminhou em sua direção, com o duro couro negro sussurrando levemente enquanto se movia. Era um homem compacto de cinquenta anos, seco e duro, com algum cinza nos cabelos negros e olhos que eram como lascas de ônix,
- Agora a verdade - ordenou.
- Estou cansado - Jon admitiu. Seu braço ardia por causa do peso da longa espada, e agora que a luta tinha acabado começava a sentir as contusões.
- Você é fraco,
- Ganhei.
- Não. O Auroque perdeu.
Um dos rapazes soltou um risinho abafado, Jon sabia que era melhor não responder. Vencera todos os que Sor Alliser enviara para lutar contra ele, mas nada ganhara com isso. O mestre de armas só oferecia escárnio. Thorne o odiava, concluíra Jon; e, claro, odiava ainda mais os outros rapazes.
- Chega - disse-lhes Thorne. - Não suporto mais que certa quantidade de inépcia por dia. Se os Outros alguma vez nos atacarem, rezo para que tenham arqueiros, porque vocês só servem para alvos de palha.
Jon seguiu os outros de volta ao armeiro, caminhando só. Ali caminhava só com frequência. Havia quase vinte rapazes no grupo com quem treinava, mas a nenhum podia chamar de amigo. A maior parte deles era dois ou três anos mais velho, mas nenhum chegava a ser sequer metade do lutador que Robb fora aos catorze anos. Dareon era rápido, mas tinha medo de ser atingido. Pyp usava a espada como um punhal, Jeren era fraco como uma mulher e Grenn, lento e desastrado. Os golpes de Halder eram brutalmente duros, mas atirava-se diretamente aos ataques do adversário. Quanto mais tempo passava com eles, mais Jon os desprezava.
No armeiro, Jon pendurou a espada e a bainha num gancho na parede de pedra, ignorando os outros à sua volta. Metodicamente, começou a despir a cota de malha, o couro e as lãs encharcadas de suor. Bocados de carvão ardiam em braseiros de ferro em ambas as extremidades da longa sala, mas Jon começou a tremer. Ali, o frio o acompanhava sempre. Dentro de alguns anos iria se esquecer de como era sentir-se quente.
O cansaço o atingiu subitamente enquanto vestia os rudes tecidos negros que eram seu vestuário de todos os dias. Sentou-se num banco, brincando com as ataduras do manto. Tanto frio, pensou, recordando os salões de Winterfell, onde as águas quentes corriam pelas paredes como sangue pelo corpo de um homem. Pouco calor se podia encontrar em Castelo Negro; ali, as paredes eram frias, e as pessoas, mais frias ainda.
Ninguém lhe dissera que a Patrulha da Noite seria assim; ninguém, exceto Tyrion Lannister. O anão oferecera-lhe a verdade na estrada para o norte, mas então já era tarde demais. Jon perguntava a si mesmo se o pai saberia como era a Muralha. Achava que tinha de saber; e isso só aumentava sua dor. Até o tio o abandonara naquele lugar frio no fim do mundo. Ali, o genial Benjen Stark que conhecia se transformara numa pessoa diferente. Era Primeiro Patrulheiro, e passava os dias e as noites com o Senhor Comandante Mormont, o Meistre Aemon e os outros altos oficiais, ao passo que Jon fora entregue ao comando bem pouco afável de Sor Alliser Thorne.
Três dias depois da chegada, Jon ouvira dizer que Benjen Stark ia levar meia dúzia de homens numa patrulha pela Floresta Assombrada. Naquela noite, procurou o tio na grande sala de estar de madeira e pediu para ir com ele. Benjen recusou rudemente.
- Isto não é Winterfell - disse-lhe, enquanto cortava a carne com um garfo e o punhal. - Na Muralha, um homem só obtém aquilo que ganha, Você não é um patrulheiro, Jon, não passa de um rapaz verde ainda cheirando a verão.
Estupidamente, Jon argumentou:
- Farei quinze anos no dia do meu nome. Quase um homem feito.
Benjen Stark franziu a sobrancelha.
- É e será um rapaz até que Sor Alliser diga que está apto para ser um homem da Patrulha da Noite. Se pensava que seu sangue Stark lhe traria favores fáceis, enganou-se. Quando fazemos nossos votos, pomos de lado as velhas famílias. Seu pai terá sempre um lugar no meu coração, mas meus irmãos agora são estes - indicou com o punhal os homens que os rodeavam, todos eles duros, frios e vestidos de negro.
Jon levantou-se no dia seguinte de madrugada para assistir à partida do tio. Um de seus homens, grande e feio, cantava uma canção obscena enquanto selava um pequeno mas forte cavalo, com a respiração formando nuvens no ar frio da manhã. Ben Stark sorriu ao ouvi-lo, mas não teve sorrisos para o sobrinho.
- Quantas vezes terei de lhe dizer que não, Jon? Conversaremos quando eu regressar.
Enquanto observava o tio levar o cavalo para o túnel, Jon recordara as coisas que Tyrion Lannister lhe dissera na estrada do rei, e vira, com o olho da mente, Ben Stark morto, com o sangue vermelho na neve. O pensamento lhe provocou náusea. Em que estava se transformando? Mais tarde, procurou Fantasma na solidão da cela e enterrou a cara no espesso pelo branco do animal.
Se tinha de estar só, faria da solidão sua armadura. Castelo Negro não possuía um bosque sagrado, apenas um pequeno septo e um septão bêbado, mas Jon não sentia vontade de rezar a deuses, fossem velhos ou novos. Se existissem, pensava, eram tão cruéis e implacáveis como o inverno.
Tinha saudade de seus verdadeiros irmãos: o pequeno Rickon, com os olhos inteligentes brilhando enquanto suplicava um doce; Robb, seu rival, melhor amigo e constante companheiro; Bran, teimoso e curioso, sempre querendo seguir Jon e Robb e juntar-se ao que quer que fosse que estivessem fazendo. Também sentia falta das meninas, até de Sansa, que nunca o chamava de outra coisa a não ser "o meu meio-irmão", pois já tinha idade para saber o que bastardo queria dizer. E Arya... tinha ainda mais saudades dela que de Robb, aquela coisinha magricela, sempre de joelhos esfolados, cabelos emaranhados e roupas rasgadas, feroz e voluntariosa. Arya nunca parecera ajustada, nunca mais do que ele..., mas conseguia sempre fazer Jon sorrir. Daria qualquer coisa para estar agora com ela, despentear-lhe os cabelos uma vez mais e observá-la fazer uma careta, ouvi-la terminar uma frase com ele.
- Quebrou meu pulso, bastardo.
Jon ergueu os olhos ao ouvir a voz carrancuda.
Grenn erguia-se a seu lado, de pescoço grosso e rosto vermelho, com três dos amigos atrás dele. Reconheceu Todder, um rapaz baixo e feio com uma voz desagradável. Todos os recrutas o chamavam Sapo. Lembrou-se de que os outros dois tinham sido trazidos por Yoren, violadores apanhados nos Dedos. Esquecera-se de seus nomes. Quase nunca falava com eles, a não ser que não pudesse evitar. Eram brutos e rufiões, sem um resquício de honra entre os dois.
Jon ergueu-se.
- E quebro-lhe o outro se pedir com jeitinho - Grenn tinha dezesseis anos e era uma cabeça mais alto que Jon. Todos os quatro eram mais altos que ele, mas não o assustavam. Batera-os todos no pátio.
- Se nos for conveniente, podemos quebrar você - disse um dos violadores.
- Tentem - Jon puxou a mão para trás em busca da espada, mas um deles agarrou-lhe o braço e torceu-o atrás das costas.
- Você nos faz parecer maus - queixou-se Sapo.
- Você já parecia mau antes de conhecê-lo - disse-lhe Jon. O rapaz que agarrava seu braço deu-lhe um puxão para cima, com força. A dor assolou-o, mas Jon não queria gritar.
Sapo aproximou-se.
- O fidalgote tem boa boca - disse. Tinha olhos de porco, pequenos e brilhantes. - É a boca da tua mamãe, bastardo? O que ela era, alguma rameira? Diga-nos seu nome. Talvez eu a tenha possuído uma vez ou duas - e riu.
Jon retorceu-se como uma enguia e esmagou um calcanhar no peito do pé do rapaz que o segurava. Ouviu-se um grito de dor, e Jon se livrou. Saltou sobre Sapo, atirou-o para trás por cima de um banco e pisou sobre seu peito, prendendo-lhe a garganta com ambas as mãos, e batendo a cabeça dele na terra batida.
Os dois dos Dedos puxaram-no, atirando-o rudemente ao chão. Grenn começou a dar-lhe pontapés. Jon rolava, tentando afastar-se dos golpes, quando uma voz trovejante soou na obscuridade do armeiro.
- PAREM COM ISTO JÁ!
Jon pôs-se em pé. Donal Noye os olhava furioso.
- O local das lutas é o pátio - disse o armeiro. - Mantenham suas disputas longe do meu armeiro, ou as transformarei em minhas disputas. Não gostariam que isso acontecesse.
Sapo sentou-se no chão, tateando a nuca com cuidado. Os dedos voltaram cheios de sangue.
- Ele tentou me matar.
- Verdade. Eu vi - interveio um dos violadores.
- Quebrou o meu pulso - disse de novo
Grenn, mostrando-o a Noye. O armeiro deu ao pulso o mais breve dos olhares.
- Uma contusão. Talvez um entorse. Meistre Aemon lhe dará um unguento. Vai com ele, Sapo, essa cabeça precisa ser tratada. Os outros voltem às celas. Você não, Snow. Você fica.
Jon sentou-se pesadamente no longo banco de madeira enquanto os outros saíam, indiferente aos olhares dos outros, às promessas silenciosas de futuras desforras. Sentia seu braço latejar.
- A Patrulha necessita de todos os homens que consiga arranjar - disse Donal Noye quando ficaram a sós. - Mesmo de homens como o Sapo. Não ganhará honrarias se matá-lo.
A ira de Jon relampejou.
- Ele disse que minha mãe era...
- ... uma rameira. Eu ouvi. E daí?
- Lorde Eddard Stark não era homem de dormir com rameiras - disse Jon em tom gelado. - Sua honra...
- ... não o impediu de ser pai de um bastardo. Não é?
Jon estava gelado de raiva.
- Posso ir?
- Vai quando eu disser para ir.
Jon observou carrancudo o fumo erguendo-se do braseiro, até que Noye lhe tomou o queixo, com dedos grossos que lhe viraram a cabeça.
- Olha para mim quando falo com você, rapaz.
Jon olhou. O armeiro tinha um peito que era como uma barrica de cerveja, e um estômago à altura. O nariz era largo e achatado, e parecia estar sempre precisando fazer a barba. A manga esquerda de sua túnica de lã negra estava presa ao ombro com um alfinete de prata em forma de espada.
- As palavras não farão da sua mãe uma rameira. Ela era o que era, e nada que Sapo diga pode mudar isso. Sabe, temos homens na Muralha cujas mães eram rameiras.
A minha mãe não, pensou Jon, teimosamente. Nada sabia da mãe; Eddard Stark não falava dela. Mas por vezes sonhava com ela, com tanta frequência que quase podia ver seu rosto. Nos sonhos, era bela, bem-nascida e tinha olhos bondosos,
- Você pensa que tem azar por ser bastardo de um grande senhor? - prosseguiu o armeiro. - Aquele rapaz, Jeren, é descendente de um septão, e Cotter Pyke é filho ilegítimo de uma mulher de taberna. Hoje, comanda Atalaialeste do Mar.
- Não me importa - disse Jon, - Não me importo com eles, e não me importo com você ou Thorne ou Benjen Stark, ou seja quem for. Detesto isto aqui. E muito... é frio.
- Sim. Frio, duro e miserável, é assim a Muralha e assim são os homens que a percorrem. Nada como as histórias que sua ama de leite te contou. Pois bem, cague nas histórias e cague na sua ama de leite. É assim que as coisas são, e está aqui para a vida toda, tal como o resto de nós.
- Vida - repetiu Jon amargamente. O armeiro podia falar da vida. Tivera uma. Só vestira o negro depois de perder um braço no cerco de Ponta Tempestade. Antes disso, fora ferreiro de Stannis Baratheon, o irmão do rei. Vira os Sete Reinos de uma ponta à outra, gozara de festins e mulheres, e lutara numa centena de batalhas. Dizia-se que fora Donal Noye quem forjara o martelo de batalha do Rei Robert, aquele que esmagara a vida de Rhaegar Targaryen no Tridente. Fizera tudo aquilo que Jon nunca faria, e depois, quando envelheceu, bem para lá dos trinta anos, recebeu um golpe de raspão de um machado, mas a ferida ulcerou até que todo o braço teve de lhe ser tirado. Só então, aleijado, é que Donal Noye viera para a Muralha, quando tinha a vida praticamente acabada.
- Sim, vida - disse Noye, - Uma vida longa, ou curta, é contigo, Snow, Pelo caminho que está seguindo, um dos teus irmãos te abrirá a garganta uma noite.
- Eles não são meus irmãos - Jon retorquiu bruscamente. - Odeiam-me porque sou melhor que eles.
- Não. Odeiam-no porque age como se fosse melhor que eles. Olham para você e veem um bastardo educado num castelo que pensa que é um fidalgo - o armeiro se aproximou. - Não é fidalgo nenhum. Lembre-se disso. É um Snow, não um Stark. É um bastardo e um arruaceiro.
- Um arruaceiro? - Jon quase se engasgou com a palavra. A acusação era tão injusta que lhe tirou a respiração. - Foram eles que me atacaram. Os quatro.
- Quatro que você humilhou no pátio. Quatro que provavelmente o temem. Vi você lutar. Contigo não há treinos. Um bom gume na sua espada, e eles estão mortos; você sabe, eu sei, eles sabem. Não lhes deixa nada. Envergonha-os. Isso o deixa orgulhoso?
Jon hesitou. Sentia-se orgulhoso quando ganhava. E por que não havia de sentir? Mas o armeiro também estava lhe tirando isto, tentando convencê-lo de que estava fazendo algo de errado.
- Eles são todos mais velhos que eu - disse, defensivamente.
- Mais velhos, maiores e mais fortes, é verdade. Mas aposto que seu mestre de armas em Winterfell o ensinou a lutar contra homens maiores. Quem é ele, algum velho cavaleiro?
- Sor Rodrik Cassei - disse Jon com prudência. Havia ali uma armadilha. Sentia-a fechar-se em seu redor.
Donal Noye inclinou-se para a frente, encarando Jon de perto.
- Pense agora nisto, rapaz. Nenhum dos outros teve alguma vez um mestre de armas até Sor Alliser. Os pais deles eram lavradores, carroceiros e caçadores furtivos, ferreiros, mineiros e remadores numa galé mercantil. O que conhecem da luta aprenderam entre os conveses, nas ruelas de Vilavelha e Lanisporto, em bordéis e tabernas na estrada do rei. Podem ter dado uns golpes com uns paus antes de terem chegado aqui, mas garanto-lhe que nem um em cada vinte foi suficientemente rico para possuir uma espada verdadeira - seu olhar era sombrio. - Então, que lhe parecem agora as suas vitórias, Lorde Snow?
- Não me chame assim! - disse Jon em tom penetrante, mas sua ira perdera força. De repente, sentiu-se envergonhado e culpado. - Eu nunca... não pensei...
- É melhor que comece a pensar - Noye o preveniu. - É isto, ou passar a dormir com um punhal na cabeceira. Agora vá.
Quando Jon saiu do armeiro era quase meio-dia. O sol rompera as nuvens. Virou-lhe as costas e ergueu os olhos para a Muralha, que ardia azul e cristalina à luz do sol. Mesmo depois de todas aquelas semanas, vê-la ainda o fazia arrepiar-se. Séculos de poeira soprada pelo vento tinham-na marcado e polido, cobrindo-a como uma película, e parecia frequentemente ser de um cinza-claro, da cor do céu nublado..., mas quando o sol caía sobre ela num dia luminoso, brilhava, viva de luz, um colossal penhasco azul-esbranquiçado que enchia metade do céu.
A maior estrutura alguma vez construída por mãos humanas, dissera Benjen Stark a Jon na estrada do rei quando, pela primeira vez, vislumbraram a Muralha a distância. "E, sem a menor dúvida, a mais inútil" acrescentara Tyrion Lannister com um sorriso, mas até o Duende se remeteu ao silêncio quando se aproximaram. Podia-se vê-la de milhas de distância, uma linha azul-clara ao longo do horizonte norte, estendendo-se para leste e oeste e desaparecendo na distância longínqua, imensa e contínua. Isto é o fim do mundo, parecia dizer.
Quando finalmente viram Castelo Negro, suas fortificações de madeira e torres de pedra não pareciam mais que um punhado de blocos de brincar espalhados na neve sob a vasta muralha de gelo. A antiga fortaleza dos irmãos negros não era nenhum Winterfell, nem sequer era um castelo. Sem muralhas, não podia ser defendida, não pelo sul, leste ou oeste; mas era apenas o norte que preocupava a Patrulha da Noite, e para o norte erguia-se a Muralha. Erguia-se a cerca de duzentos metros, três vezes a altura da mais alta torre do forte que defendia. O tio dissera-lhe que o topo era suficientemente largo para que uma dúzia de cavaleiros cavalgassem lado a lado vestidos de armadura. As esguias silhuetas de enormes catapultas e monstruosas gruas de madeira montavam guarda lá em cima, como esqueletos de grandes aves, e entre elas caminhavam homens de negro, pequenos como formigas.
A porta do armeiro, olhando para cima, Jon sentiu-se quase tão esmagado como naquele dia na estrada do rei em que vira a Muralha pela primeira vez. A Muralha era assim. Por vezes quase conseguia se esquecer de que ela estava ali, do mesmo modo que uma pessoa se esquece do céu ou da terra que pisa, mas havia outras alturas em que parecia que nada mais existia no mundo. Era mais velha que os Sete Reinos, e quando Jon olhava para cima, sentia-se entontecido. Conseguia sentir o enorme peso de todo aquele gelo fazendo pressão sobre ele, como se estivesse prestes a ruir, e de algum modo Jon sabia que se a Muralha caísse, o mundo cairia com ela.
- Faz-nos pensar no que está do outro lado - disse uma voz familiar. Jon olhou em volta.
- Lannister. Não vi... quer dizer, pensei que estivesse sozinho.
Tyrion Lannister estava enrolado em peles tão grossas que parecia um urso muito pequeno.
- Muito se pode dizer em defesa de apanhar as pessoas desprevenidas. Nunca se sabe o que se pode aprender.
- Não aprenderá nada comigo - disse-lhe Jon.
Pouco vira o anão desde o fim da viagem. Na qualidade de irmão da rainha, Tyrion Lannister era convidado de honra da Patrulha da Noite. O Senhor Comandante destinara-lhe aposentos na Torre Real - embora, apesar do nome, nenhum rei a tivesse visitado em cem anos - e Lannister jantava à mesa de Mormont, passava os dias percorrendo a Muralha e as noites jogando dados e bebendo com Sor Alliser, Bowen Marsh e os outros oficiais de alta patente.
- Ah, eu aprendo coisas onde quer que vá - o homenzinho indicou a Muralha com um cajado negro e nodoso. - Como estava dizendo... por que será que quando um homem constrói uma parede, o homem seguinte precisa imediatamente saber o que está do outro lado? - inclinou a cabeça e olhou Jon com seus olhos curiosos e desiguais. - Você quer saber o que está do outro lado, não quer?
- Não é nada de especial - disse Jon. Desejava partir com Benjen Stark em suas patrulhas, penetrar profundamente nos mistérios da Floresta Assombrada, desejava lutar com os selvagens de Mance Rayder e defender o reino contra os Outros, mas era melhor não mencionar as coisas que desejava. - Os patrulheiros dizem que é só floresta, montanhas e lagos gelados, com montes de neve e gelo.
- E os gramequins e os snarks - disse Tyrion. - Não nos esqueçamos deles, Lorde Snow, caso contrário, para que serve aquela grande coisa?
- Não me chame Lorde Snow.
O anão ergueu uma sobrancelha.
- Preferiria ser tratado por Duende? Se deixá-los perceber que suas palavras o magoam, nunca se verá livre da troça. Se lhe quiserem atribuir um nome, aceite-o, faça-o seu. Assim, não poderão voltar a magoá-lo com ele - fez um gesto com o cajado. - Vem, anda comigo. A esta altura devem estar servindo um guisado nojento na sala de estar, e não recusarei uma tigela de qualquer coisa quente.
Jon também tinha fome, e assim se pôs ao lado do Lannister e moderou o passo para ajustá-lo aos desajeitados e bamboleantes do anão. O vento estava aumentando, e ouviam os velhos edifícios de madeira estalarem em toda a volta, e, a distância, uma porta pesada bater, uma e outra vez, esquecida. A certa altura ouviu-se um tump abafado, quando uma camada de neve deslizou de um telhado e caiu perto deles.
- Não vejo seu lobo - disse o Lannister enquanto caminhavam.
- Amarro-o nos velhos estábulos quando estamos treinando. Agora alojam todos os cavalos nas cavalariças orientais e ninguém o incomoda. Durante o resto do tempo, fica comigo. Minha cela fica na Torre de Hardin.
- Essa é a que tem a ameia partida, não é? Pedra estilhaçada no pátio abaixo e uma inclinação que parece o nosso nobre rei Robert depois de uma longa noite de bebida? Pensei que todos esses edifícios estivessem abandonados.
Jon encolheu os ombros.
- Ninguém liga para onde dormimos. A maior parte das velhas torres está vazia, e pode-se escolher qualquer cela que se deseje - em outros tempos, Castelo Negro alojara cinco mil guerreiros com todos os seus cavalos, servidores e armas. Agora era o lar de um décimo desse número, e partes do castelo estavam caindo em ruína.
A gargalhada de Tyrion Lannister evaporou como uma nuvem no ar frio.
- Hei de dizer ao seu pai para prender mais alguns pedreiros, antes que sua torre caia.
Jon podia sentir a troça que havia naquelas palavras, mas não adiantava negar a verdade. A Patrulha construíra dezenove grandes fortes ao longo da Muralha, mas apenas três se mantinham ocupados: Atalaialeste, em sua costa cinzenta varrida pelo vento; a Torre Sombria, junto às montanhas onde a Muralha terminava; e, entre elas, Castelo Negro, na extremidade da estrada do rei. As outras fortificações, há muito desertas, eram lugares solitários e assombrados, onde os ventos frios assobiavam através de janelas negras e os espíritos dos mortos guarneciam os baluartes.
- É melhor que eu esteja sozinho - disse teimosamente Jon. - Os outros temem o Fantasma.
- Rapazes sensatos - disse o Lannister. Então, mudou de assunto. - Dizem que seu tio já está fora há tempo demais.
Jon recordou o desejo que tivera em sua ira, a visão de Benjen Stark morto na neve, e desviou o olhar rapidamente. O anão tinha maneiras de se aperceber das coisas, e Jon não queria que ele visse a culpa em seus olhos.
- Ele disse que voltaria por volta do dia do meu nome - admitiu. O dia do seu nome chegara e partira, sem ser notado, havia uma quinzena. - Iam à procura de Sor Waymar Royce, cujo pai é vassalo de Lorde Arryn. Tio Benjen disse que poderiam ir à sua procura até tão longe como a Torre Sombria. Isso é todo o caminho até as montanhas.
- Ouvi dizer que têm desaparecido muitos patrulheiros nos últimos tempos - disse o Lannister enquanto subiam os degraus que levavam à sala comum. Sorriu e abriu a porta. - Talvez os gramequins estejam com fome este ano.
Lá dentro, o salão era imenso e cheio de correntes de ar, mesmo com um fogo a rugir na grande lareira. Corvos faziam ninhos nas vigas do majestoso teto. Jon ouviu seus gritos, enquanto aceitava uma tigela de guisado e uma fatia de pão preto dos cozinheiros do dia. Grenn, Sapo e alguns dos outros estavam sentados no banco mais próximo do calor, rindo e lançando pragas uns aos outros com vozes rudes. Jon os observou por um momento, pensativo. Depois, escolheu um local na ponta oposta do salão, bem afastado do resto dos presentes.
Tyrion Lannister sentou-se à sua frente, cheirando, desconfiado, o guisado.
- Cevada, cebola, cenoura - murmurou. - Alguém deveria dizer aos cozinheiros que nabo não é carne.
- É guisado de carneiro - Jon descalçou as luvas e aqueceu as mãos no vapor que subia da tigela. O cheiro lhe dava água na boca.
- Snow.
Jon reconheceu a voz de Alliser Thorne, mas havia nela uma curiosa nota que não ouvira antes. Virou-se.
- O Senhor Comandante deseja vê-lo. Já.
Por um momento, Jon ficou muito assustado para se mover. Por que ia querer o Senhor Comandante vê-lo? Tinham ouvido algo sobre Benjen, pensou, descontrolado. Estava morto, a visão tinha se tornado realidade.
- É o meu tio? - proferiu atabalhoadamente. - Regressou em segurança?
- O Senhor Comandante não está habituado a esperar - foi a resposta de Sor Alliser. - E eu não estou
habituado a ver minhas ordens questionadas por bastardos.
Tyrion Lannister saltou do banco e pôs-se em pé.
- Pare com isso, Thorne. Está assustando o rapaz.
- Não se intrometa em assuntos que não lhe dizem respeito, Lannister. Não tem lugar aqui.
- Mas tenho um lugar na corte - disse o anão, sorrindo. - Uma palavra ao ouvido certo e morrerá como um velho amargo antes que tenha outro rapaz para treinar. E agora diga ao Snow porque é que o Velho Urso precisa vê-lo. Há notícias do tio?
- Não - Sor Alliser respondeu. - É um assunto totalmente diferente. Uma ave chegou esta manhã de Winterfell com uma mensagem sobre seu irmão - depois, corrigiu-se: - De seu meio-irmão.
- Bran - disse Jon sem fôlego, pondo-se em pé de um salto. - Alguma coisa aconteceu a Bran.
Tyrion Lannister pousou-lhe a mão no braço.
- Jon. Lamento muito,
Jon quase nem o ouviu. Afastou a mão de Tyrion e atravessou o salão a passos largos. Ao chegar às portas, já estava correndo. Precipitou-se na direção da Torre do Comandante, atravessando pequenas nuvens de neve velha soprada pelo vento. Quando os guardas o deixaram passar, subiu os degraus da torre dois a dois. Ao avançar pelo aposento do Senhor Comandante, tinha as botas empapadas, os olhos agitados, e arquejava.
- Bran - disse. - Que diz a mensagem de Bran?
Jeor Mormont, o Senhor Comandante da Patrulha da Noite, era um homem áspero e velho com uma imensa cabeça calva e uma desgrenhada barba cinzenta. Tinha um corvo pousado no braço e alimentava-o com grãos de milho.
- Ouvi dizer que sabe ler - sacudiu o corvo, e a ave bateu as asas e voou até a janela, onde pousou, observando Mormont tirar do cinto um rolo de papel e entregá-lo a Jon."Grão", resmungou o corvo em voz roufenha. "Grão, grão",
O dedo de Jon percorreu o contorno do lobo gigante de cera branca do selo quebrado. Reconheceu a letra de Robb, mas as palavras pareciam sair de foco e fugir quando tentou lê-las. Percebeu que estava chorando. Então, através das lágrimas encontrou o sentido das palavras e ergueu a cabeça.
- Ele acordou - disse. - Os deuses o devolveram.
- Aleijado - disse Mormont. - Lamento, rapaz. Leia o resto da carta.
Olhou as palavras, mas não importavam. Bran ia sobreviver.
- Meu irmão vai viver - disse a Mormont. O Senhor Comandante balançou a cabeça, recolheu um punhado de milho e assobiou. O corvo voou até seu ombro, gritando "Viver.' Viver.'".
Jon correu pela escada abaixo, com um sorriso no rosto e a carta de Robb na mão.
- Meu irmão vai viver - disse aos guardas. Os homens entreolharam-se. Correu de volta à sala comum, onde encontrou Tyrion Lannister terminando sua refeição. Agarrou o homenzinho pelos sovacos, ergueu-o no ar e rodopiou com ele nos braços. - Bran vai viver! - berrou. Lannister pareceu alarmado. Jon o colocou no chão e pôs-lhe o papel nas mãos. - Está aqui, leia - disse.
Outros se juntavam e olhavam para ele com curiosidade. Jon reparou em Grenn a poucos centímetros. Trazia uma atadura grossa de lã enrolada na mão. Parecia ansioso e desconfortável, nada ameaçador. Jon foi falar com ele. Grenn recuou e ergueu as mãos.
- Fica longe de mim, bastardo.
Jon sorriu para ele.
- Desculpe pelo pulso. Robb usou comigo o mesmo movimento uma vez, mas com uma lâmina de madeira. Doeu como os sete infernos, mas o seu deve ser pior. Olha, se quiser, posso lhe mostrar como se defender dele.
Alliser Thorne o ouviu.
- Lorde Snow quer agora ocupar meu lugar - fez um sorriso de escárnio. - Mais facilmente ensinaria eu um lobo a fazer malabarismos do que você treinaria este auroque.
- Aceito a aposta, Sor Alliser - disse Jon. - Adoraria ver o Fantasma fazer malabarismos.
Jon ouviu Grenn prender a respiração, chocado. E o silêncio se fez.
Então, Tyrion Lannister soltou uma gargalhada. Três dos irmãos negros juntaram-se a ele numa mesa próxima. O riso espalhou-se pelos bancos, até que mesmo os cozinheiros riam. Os pássaros agitaram-se nas traves e, finalmente, até de Grenn saiu um risinho.
Sor Alliser não tirou os olhos de Jon. Enquanto as gargalhadas ressoavam à sua volta, seu rosto escureceu e a mão da espada fechou-se num punho.
- Isso foi um enorme erro, Lorde Snow - disse, por fim, no tom ácido de um inimigo.  

Nenhum comentário:

Postar um comentário

NÃO DÊ SPOILERS!
Encontrou algum erro ortográfico no texto? Comente aqui para que possa arrumar :)
Se quer comentar e não tem uma conta no blogger ou google, escolha a opção nome/url e coloque seu nome. Nem precisa preencher o url.
Comentários anônimos serão ignorados