O pátio
ressoava com a canção das espadas. Sob a lã negra, o couro fervido
e a cota de malha, o suor corria gelado pelo peito de Jon, enquanto
ele pressionava o ataque. Grenn cambaleava para trás, defendendo-se
de forma desajeitada. Quando ergueu a espada, Jon fez passar por
baixo dela um golpe circular que se esmagou contra a parte de trás
da perna do outro rapaz e o deixou mancando. A estocada baixa de
Grenn respondeu com um golpe de cima que lhe abriu um corte no elmo.
Quando o outro tentou um golpe lateral, Jon afastou sua lâmina e
atingiu-lhe o peito com o braço envolto em cota de malha. Grenn
desequilibrou-se e caiu com força, de traseiro na neve. Jon
arrancou-lhe a espada dos dedos com um golpe no pulso que o fez
gritar de dor.
- Basta!
- a voz de Sor Alliser Thorne tinha um gume que parecia feito de aço
valiriano. Grenn agarrou-se à mão.
- O
bastardo quebrou meu pulso.
- O
bastardo o cortou, abriu-lhe esse crânio vazio e decepou-lhe a mão.
Ou o teria feito, se essas lâminas tivessem gume. E sorte sua que a
Patrulha precise tanto de moços de estrebaria como de patrulheiros -
Sor Alliser fez um gesto para Jeren e para o Sapo. - Ponham o Auroque
em pé, que ele tem preparativos funerários a fazer.
Jon tirou
o elmo enquanto os outros rapazes puxavam Grenn. O ar gelado da manhã
no rosto lhe fez bem. Apoiou-se na espada, inspirou profundamente e
permitiu-se um momento para saborear a vitória.
- Isso é
uma espada, não a bengala de um velho - repreendeu-o Sor Alliser com
voz penetrante. - Suas pernas doem, Lorde Snow?
Jon
odiava aquele nome, uma zombaria que Sor Alliser pendurara nele no
primeiro dia em que viera treinar. Os rapazes tinham-no adotado e
agora o ouvia por todo lado. Enfiou a espada na bainha.
- Não -
respondeu.
Thorne
caminhou em sua direção, com o duro couro negro sussurrando
levemente enquanto se movia. Era um homem compacto de cinquenta anos,
seco e duro, com algum cinza nos cabelos negros e olhos que eram como
lascas de ônix,
- Agora a
verdade - ordenou.
- Estou
cansado - Jon admitiu. Seu braço ardia por causa do peso da longa
espada, e agora que a luta tinha acabado começava a sentir as
contusões.
- Você é
fraco,
- Ganhei.
- Não. O
Auroque perdeu.
Um dos
rapazes soltou um risinho abafado, Jon sabia que era melhor não
responder. Vencera todos os que Sor Alliser enviara para lutar contra
ele, mas nada ganhara com isso. O mestre de armas só oferecia
escárnio. Thorne o odiava, concluíra Jon; e, claro, odiava ainda
mais os outros rapazes.
- Chega -
disse-lhes Thorne. - Não suporto mais que certa quantidade de
inépcia por dia. Se os Outros alguma vez nos atacarem, rezo para que
tenham arqueiros, porque vocês só servem para alvos de palha.
Jon
seguiu os outros de volta ao armeiro, caminhando só. Ali caminhava
só com frequência. Havia quase vinte rapazes no grupo com quem
treinava, mas a nenhum podia chamar de amigo. A maior parte deles era
dois ou três anos mais velho, mas nenhum chegava a ser sequer metade
do lutador que Robb fora aos catorze anos. Dareon era rápido, mas
tinha medo de ser atingido. Pyp usava a espada como um punhal, Jeren
era fraco como uma mulher e Grenn, lento e desastrado. Os golpes de
Halder eram brutalmente duros, mas atirava-se diretamente aos ataques
do adversário. Quanto mais tempo passava com eles, mais Jon os
desprezava.
No
armeiro, Jon pendurou a espada e a bainha num gancho na parede de
pedra, ignorando os outros à sua volta. Metodicamente, começou a
despir a cota de malha, o couro e as lãs encharcadas de suor.
Bocados de carvão ardiam em braseiros de ferro em ambas as
extremidades da longa sala, mas Jon começou a tremer. Ali, o frio o
acompanhava sempre. Dentro de alguns anos iria se esquecer de como
era sentir-se quente.
O cansaço
o atingiu subitamente enquanto vestia os rudes tecidos negros que
eram seu vestuário de todos os dias. Sentou-se num banco, brincando
com as ataduras do manto. Tanto frio, pensou, recordando os salões
de Winterfell, onde as águas quentes corriam pelas paredes como
sangue pelo corpo de um homem. Pouco calor se podia encontrar em
Castelo Negro; ali, as paredes eram frias, e as pessoas, mais frias
ainda.
Ninguém
lhe dissera que a Patrulha da Noite seria assim; ninguém, exceto
Tyrion Lannister. O anão oferecera-lhe a verdade na estrada para o
norte, mas então já era tarde demais. Jon perguntava a si mesmo se
o pai saberia como era a Muralha. Achava que tinha de saber; e isso
só aumentava sua dor. Até o tio o abandonara naquele lugar frio no
fim do mundo. Ali, o genial Benjen Stark que conhecia se transformara
numa pessoa diferente. Era Primeiro Patrulheiro, e passava os dias e
as noites com o Senhor Comandante Mormont, o Meistre Aemon e os
outros altos oficiais, ao passo que Jon fora entregue ao comando bem
pouco afável de Sor Alliser Thorne.
Três
dias depois da chegada, Jon ouvira dizer que Benjen Stark ia levar
meia dúzia de homens numa patrulha pela Floresta Assombrada. Naquela
noite, procurou o tio na grande sala de estar de madeira e pediu para
ir com ele. Benjen recusou rudemente.
- Isto
não é Winterfell - disse-lhe, enquanto cortava a carne com um garfo
e o punhal. - Na Muralha, um homem só obtém aquilo que ganha, Você
não é um patrulheiro, Jon, não passa de um rapaz verde ainda
cheirando a verão.
Estupidamente,
Jon argumentou:
- Farei
quinze anos no dia do meu nome. Quase um homem feito.
Benjen
Stark franziu a sobrancelha.
- É e
será um rapaz até que Sor Alliser diga que está apto para ser um
homem da Patrulha da Noite. Se pensava que seu sangue Stark lhe
traria favores fáceis, enganou-se. Quando fazemos nossos votos,
pomos de lado as velhas famílias. Seu pai terá sempre um lugar no
meu coração, mas meus irmãos agora são estes - indicou com o
punhal os homens que os rodeavam, todos eles duros, frios e vestidos
de negro.
Jon
levantou-se no dia seguinte de madrugada para assistir à partida do
tio. Um de seus homens, grande e feio, cantava uma canção obscena
enquanto selava um pequeno mas forte cavalo, com a respiração
formando nuvens no ar frio da manhã. Ben Stark sorriu ao ouvi-lo,
mas não teve sorrisos para o sobrinho.
- Quantas
vezes terei de lhe dizer que não, Jon? Conversaremos quando eu
regressar.
Enquanto
observava o tio levar o cavalo para o túnel, Jon recordara as coisas
que Tyrion Lannister lhe dissera na estrada do rei, e vira, com o
olho da mente, Ben Stark morto, com o sangue vermelho na neve. O
pensamento lhe provocou náusea. Em que estava se transformando? Mais
tarde, procurou Fantasma na solidão da cela e enterrou a cara no
espesso pelo branco do animal.
Se tinha
de estar só, faria da solidão sua armadura. Castelo Negro não
possuía um bosque sagrado, apenas um pequeno septo e um septão
bêbado, mas Jon não sentia vontade de rezar a deuses, fossem velhos
ou novos. Se existissem, pensava, eram tão cruéis e implacáveis
como o inverno.
Tinha
saudade de seus verdadeiros irmãos: o pequeno Rickon, com os olhos
inteligentes brilhando enquanto suplicava um doce; Robb, seu rival,
melhor amigo e constante companheiro; Bran, teimoso e curioso, sempre
querendo seguir Jon e Robb e juntar-se ao que quer que fosse que
estivessem fazendo. Também sentia falta das meninas, até de Sansa,
que nunca o chamava de outra coisa a não ser "o meu
meio-irmão", pois já tinha idade para saber o que bastardo
queria dizer. E Arya... tinha ainda mais saudades dela que de Robb,
aquela coisinha magricela, sempre de joelhos esfolados, cabelos
emaranhados e roupas rasgadas, feroz e voluntariosa. Arya nunca
parecera ajustada, nunca mais do que ele..., mas conseguia sempre
fazer Jon sorrir. Daria qualquer coisa para estar agora com ela,
despentear-lhe os cabelos uma vez mais e observá-la fazer uma
careta, ouvi-la terminar uma frase com ele.
- Quebrou
meu pulso, bastardo.
Jon
ergueu os olhos ao ouvir a voz carrancuda.
Grenn
erguia-se a seu lado, de pescoço grosso e rosto vermelho, com três
dos amigos atrás dele. Reconheceu Todder, um rapaz baixo e feio com
uma voz desagradável. Todos os recrutas o chamavam Sapo. Lembrou-se
de que os outros dois tinham sido trazidos por Yoren, violadores
apanhados nos Dedos. Esquecera-se de seus nomes. Quase nunca falava
com eles, a não ser que não pudesse evitar. Eram brutos e rufiões,
sem um resquício de honra entre os dois.
Jon
ergueu-se.
- E
quebro-lhe o outro se pedir com jeitinho - Grenn tinha dezesseis anos
e era uma cabeça mais alto que Jon. Todos os quatro eram mais altos
que ele, mas não o assustavam. Batera-os todos no pátio.
- Se nos
for conveniente, podemos quebrar você - disse um dos violadores.
- Tentem
- Jon puxou a mão para trás em busca da espada, mas um deles
agarrou-lhe o braço e torceu-o atrás das costas.
- Você
nos faz parecer maus - queixou-se Sapo.
- Você
já parecia mau antes de conhecê-lo - disse-lhe Jon. O rapaz que
agarrava seu braço deu-lhe um puxão para cima, com força. A dor
assolou-o, mas Jon não queria gritar.
Sapo
aproximou-se.
- O
fidalgote tem boa boca - disse. Tinha olhos de porco, pequenos e
brilhantes. - É a boca da tua mamãe, bastardo? O que ela era,
alguma rameira? Diga-nos seu nome. Talvez eu a tenha possuído uma
vez ou duas - e riu.
Jon
retorceu-se como uma enguia e esmagou um calcanhar no peito do pé do
rapaz que o segurava. Ouviu-se um grito de dor, e Jon se livrou.
Saltou sobre Sapo, atirou-o para trás por cima de um banco e pisou
sobre seu peito, prendendo-lhe a garganta com ambas as mãos, e
batendo a cabeça dele na terra batida.
Os dois
dos Dedos puxaram-no, atirando-o rudemente ao chão. Grenn começou a
dar-lhe pontapés. Jon rolava, tentando afastar-se dos golpes, quando
uma voz trovejante soou na obscuridade do armeiro.
- PAREM
COM ISTO JÁ!
Jon
pôs-se em pé. Donal Noye os olhava furioso.
- O local
das lutas é o pátio - disse o armeiro. - Mantenham suas disputas
longe do meu armeiro, ou as transformarei em minhas disputas. Não
gostariam que isso acontecesse.
Sapo
sentou-se no chão, tateando a nuca com cuidado. Os dedos voltaram
cheios de sangue.
- Ele
tentou me matar.
-
Verdade. Eu vi - interveio um dos violadores.
- Quebrou
o meu pulso - disse de novo
Grenn,
mostrando-o a Noye. O armeiro deu ao pulso o mais breve dos olhares.
- Uma
contusão. Talvez um entorse. Meistre Aemon lhe dará um unguento.
Vai com ele, Sapo, essa cabeça precisa ser tratada. Os outros voltem
às celas. Você não, Snow. Você fica.
Jon
sentou-se pesadamente no longo banco de madeira enquanto os outros
saíam, indiferente aos olhares dos outros, às promessas silenciosas
de futuras desforras. Sentia seu braço latejar.
- A
Patrulha necessita de todos os homens que consiga arranjar - disse
Donal Noye quando ficaram a sós. - Mesmo de homens como o Sapo. Não
ganhará honrarias se matá-lo.
A ira de
Jon relampejou.
- Ele
disse que minha mãe era...
- ... uma
rameira. Eu ouvi. E daí?
- Lorde
Eddard Stark não era homem de dormir com rameiras - disse Jon em tom
gelado. - Sua honra...
- ... não
o impediu de ser pai de um bastardo. Não é?
Jon
estava gelado de raiva.
- Posso
ir?
- Vai
quando eu disser para ir.
Jon
observou carrancudo o fumo erguendo-se do braseiro, até que Noye lhe
tomou o queixo, com dedos grossos que lhe viraram a cabeça.
- Olha
para mim quando falo com você, rapaz.
Jon
olhou. O armeiro tinha um peito que era como uma barrica de cerveja,
e um estômago à altura. O nariz era largo e achatado, e parecia
estar sempre precisando fazer a barba. A manga esquerda de sua túnica
de lã negra estava presa ao ombro com um alfinete de prata em forma
de espada.
- As
palavras não farão da sua mãe uma rameira. Ela era o que era, e
nada que Sapo diga pode mudar isso. Sabe, temos homens na Muralha
cujas mães eram rameiras.
A minha
mãe não, pensou Jon, teimosamente. Nada sabia da mãe; Eddard Stark
não falava dela. Mas por vezes sonhava com ela, com tanta frequência
que quase podia ver seu rosto. Nos sonhos, era bela, bem-nascida e
tinha olhos bondosos,
- Você
pensa que tem azar por ser bastardo de um grande senhor? - prosseguiu
o armeiro. - Aquele rapaz, Jeren, é descendente de um septão, e
Cotter Pyke é filho ilegítimo de uma mulher de taberna. Hoje,
comanda Atalaialeste do Mar.
- Não me
importa - disse Jon, - Não me importo com eles, e não me importo
com você ou Thorne ou Benjen Stark, ou seja quem for. Detesto isto
aqui. E muito... é frio.
- Sim.
Frio, duro e miserável, é assim a Muralha e assim são os homens
que a percorrem. Nada como as histórias que sua ama de leite te
contou. Pois bem, cague nas histórias e cague na sua ama de leite. É
assim que as coisas são, e está aqui para a vida toda, tal como o
resto de nós.
- Vida -
repetiu Jon amargamente. O armeiro podia falar da vida. Tivera uma.
Só vestira o negro depois de perder um braço no cerco de Ponta
Tempestade. Antes disso, fora ferreiro de Stannis Baratheon, o irmão
do rei. Vira os Sete Reinos de uma ponta à outra, gozara de festins
e mulheres, e lutara numa centena de batalhas. Dizia-se que fora
Donal Noye quem forjara o martelo de batalha do Rei Robert, aquele
que esmagara a vida de Rhaegar Targaryen no Tridente. Fizera tudo
aquilo que Jon nunca faria, e depois, quando envelheceu, bem para lá
dos trinta anos, recebeu um golpe de raspão de um machado, mas a
ferida ulcerou até que todo o braço teve de lhe ser tirado. Só
então, aleijado, é que Donal Noye viera para a Muralha, quando
tinha a vida praticamente acabada.
- Sim,
vida - disse Noye, - Uma vida longa, ou curta, é contigo, Snow, Pelo
caminho que está seguindo, um dos teus irmãos te abrirá a garganta
uma noite.
- Eles
não são meus irmãos - Jon retorquiu bruscamente. - Odeiam-me
porque sou melhor que eles.
- Não.
Odeiam-no porque age como se fosse melhor que eles. Olham para você
e veem um bastardo educado num castelo que pensa que é um fidalgo -
o armeiro se aproximou. - Não é fidalgo nenhum. Lembre-se disso. É
um Snow, não um Stark. É um bastardo e um arruaceiro.
- Um
arruaceiro? - Jon quase se engasgou com a palavra. A acusação era
tão injusta que lhe tirou a respiração. - Foram eles que me
atacaram. Os quatro.
- Quatro
que você humilhou no pátio. Quatro que provavelmente o temem. Vi
você lutar. Contigo não há treinos. Um bom gume na sua espada, e
eles estão mortos; você sabe, eu sei, eles sabem. Não lhes deixa
nada. Envergonha-os. Isso o deixa orgulhoso?
Jon
hesitou. Sentia-se orgulhoso quando ganhava. E por que não havia de
sentir? Mas o armeiro também estava lhe tirando isto, tentando
convencê-lo de que estava fazendo algo de errado.
- Eles
são todos mais velhos que eu - disse, defensivamente.
- Mais
velhos, maiores e mais fortes, é verdade. Mas aposto que seu mestre
de armas em Winterfell o ensinou a lutar contra homens maiores. Quem
é ele, algum velho cavaleiro?
- Sor
Rodrik Cassei - disse Jon com prudência. Havia ali uma armadilha.
Sentia-a fechar-se em seu redor.
Donal
Noye inclinou-se para a frente, encarando Jon de perto.
- Pense
agora nisto, rapaz. Nenhum dos outros teve alguma vez um mestre de
armas até Sor Alliser. Os pais deles eram lavradores, carroceiros e
caçadores furtivos, ferreiros, mineiros e remadores numa galé
mercantil. O que conhecem da luta aprenderam entre os conveses, nas
ruelas de Vilavelha e Lanisporto, em bordéis e tabernas na estrada
do rei. Podem ter dado uns golpes com uns paus antes de terem chegado
aqui, mas garanto-lhe que nem um em cada vinte foi suficientemente
rico para possuir uma espada verdadeira - seu olhar era sombrio. -
Então, que lhe parecem agora as suas vitórias, Lorde Snow?
- Não me
chame assim! - disse Jon em tom penetrante, mas sua ira perdera
força. De repente, sentiu-se envergonhado e culpado. - Eu nunca...
não pensei...
- É
melhor que comece a pensar - Noye o preveniu. - É isto, ou passar a
dormir com um punhal na cabeceira. Agora vá.
Quando
Jon saiu do armeiro era quase meio-dia. O sol rompera as nuvens.
Virou-lhe as costas e ergueu os olhos para a Muralha, que ardia azul
e cristalina à luz do sol. Mesmo depois de todas aquelas semanas,
vê-la ainda o fazia arrepiar-se. Séculos de poeira soprada pelo
vento tinham-na marcado e polido, cobrindo-a como uma película, e
parecia frequentemente ser de um cinza-claro, da cor do céu
nublado..., mas quando o sol caía sobre ela num dia luminoso,
brilhava, viva de luz, um colossal penhasco azul-esbranquiçado que
enchia metade do céu.
A maior
estrutura alguma vez construída por mãos humanas, dissera Benjen
Stark a Jon na estrada do rei quando, pela primeira vez, vislumbraram
a Muralha a distância. "E, sem a menor dúvida, a mais inútil"
acrescentara Tyrion Lannister com um sorriso, mas até o Duende se
remeteu ao silêncio quando se aproximaram. Podia-se vê-la de milhas
de distância, uma linha azul-clara ao longo do horizonte norte,
estendendo-se para leste e oeste e desaparecendo na distância
longínqua, imensa e contínua. Isto é o fim do mundo, parecia
dizer.
Quando
finalmente viram Castelo Negro, suas fortificações de madeira e
torres de pedra não pareciam mais que um punhado de blocos de
brincar espalhados na neve sob a vasta muralha de gelo. A antiga
fortaleza dos irmãos negros não era nenhum Winterfell, nem sequer
era um castelo. Sem muralhas, não podia ser defendida, não pelo
sul, leste ou oeste; mas era apenas o norte que preocupava a Patrulha
da Noite, e para o norte erguia-se a Muralha. Erguia-se a cerca de
duzentos metros, três vezes a altura da mais alta torre do forte que
defendia. O tio dissera-lhe que o topo era suficientemente largo para
que uma dúzia de cavaleiros cavalgassem lado a lado vestidos de
armadura. As esguias silhuetas de enormes catapultas e monstruosas
gruas de madeira montavam guarda lá em cima, como esqueletos de
grandes aves, e entre elas caminhavam homens de negro, pequenos como
formigas.
A porta
do armeiro, olhando para cima, Jon sentiu-se quase tão esmagado como
naquele dia na estrada do rei em que vira a Muralha pela primeira
vez. A Muralha era assim. Por vezes quase conseguia se esquecer de
que ela estava ali, do mesmo modo que uma pessoa se esquece do céu
ou da terra que pisa, mas havia outras alturas em que parecia que
nada mais existia no mundo. Era mais velha que os Sete Reinos, e
quando Jon olhava para cima, sentia-se entontecido. Conseguia sentir
o enorme peso de todo aquele gelo fazendo pressão sobre ele, como se
estivesse prestes a ruir, e de algum modo Jon sabia que se a Muralha
caísse, o mundo cairia com ela.
- Faz-nos
pensar no que está do outro lado - disse uma voz familiar. Jon olhou
em volta.
-
Lannister. Não vi... quer dizer, pensei que estivesse sozinho.
Tyrion
Lannister estava enrolado em peles tão grossas que parecia um urso
muito pequeno.
- Muito
se pode dizer em defesa de apanhar as pessoas desprevenidas. Nunca se
sabe o que se pode aprender.
- Não
aprenderá nada comigo - disse-lhe Jon.
Pouco
vira o anão desde o fim da viagem. Na qualidade de irmão da rainha,
Tyrion Lannister era convidado de honra da Patrulha da Noite. O
Senhor Comandante destinara-lhe aposentos na Torre Real - embora,
apesar do nome, nenhum rei a tivesse visitado em cem anos - e
Lannister jantava à mesa de Mormont, passava os dias percorrendo a
Muralha e as noites jogando dados e bebendo com Sor Alliser, Bowen
Marsh e os outros oficiais de alta patente.
- Ah, eu
aprendo coisas onde quer que vá - o homenzinho indicou a Muralha com
um cajado negro e nodoso. - Como estava dizendo... por que será que
quando um homem constrói uma parede, o homem seguinte precisa
imediatamente saber o que está do outro lado? - inclinou a cabeça e
olhou Jon com seus olhos curiosos e desiguais. - Você quer saber o
que está do outro lado, não quer?
- Não é
nada de especial - disse Jon. Desejava partir com Benjen Stark em
suas patrulhas, penetrar profundamente nos mistérios da Floresta
Assombrada, desejava lutar com os selvagens de Mance Rayder e
defender o reino contra os Outros, mas era melhor não mencionar as
coisas que desejava. - Os patrulheiros dizem que é só floresta,
montanhas e lagos gelados, com montes de neve e gelo.
- E os
gramequins e os snarks - disse Tyrion. - Não nos esqueçamos deles,
Lorde Snow, caso contrário, para que serve aquela grande coisa?
- Não me
chame Lorde Snow.
O anão
ergueu uma sobrancelha.
-
Preferiria ser tratado por Duende? Se deixá-los perceber que suas
palavras o magoam, nunca se verá livre da troça. Se lhe quiserem
atribuir um nome, aceite-o, faça-o seu. Assim, não poderão voltar
a magoá-lo com ele - fez um gesto com o cajado. - Vem, anda comigo.
A esta altura devem estar servindo um guisado nojento na sala de
estar, e não recusarei uma tigela de qualquer coisa quente.
Jon
também tinha fome, e assim se pôs ao lado do Lannister e moderou o
passo para ajustá-lo aos desajeitados e bamboleantes do anão. O
vento estava aumentando, e ouviam os velhos edifícios de madeira
estalarem em toda a volta, e, a distância, uma porta pesada bater,
uma e outra vez, esquecida. A certa altura ouviu-se um tump abafado,
quando uma camada de neve deslizou de um telhado e caiu perto deles.
- Não
vejo seu lobo - disse o Lannister enquanto caminhavam.
-
Amarro-o nos velhos estábulos quando estamos treinando. Agora alojam
todos os cavalos nas cavalariças orientais e ninguém o incomoda.
Durante o resto do tempo, fica comigo. Minha cela fica na Torre de
Hardin.
- Essa é
a que tem a ameia partida, não é? Pedra estilhaçada no pátio
abaixo e uma inclinação que parece o nosso nobre rei Robert depois
de uma longa noite de bebida? Pensei que todos esses edifícios
estivessem abandonados.
Jon
encolheu os ombros.
- Ninguém
liga para onde dormimos. A maior parte das velhas torres está vazia,
e pode-se escolher qualquer cela que se deseje - em outros tempos,
Castelo Negro alojara cinco mil guerreiros com todos os seus cavalos,
servidores e armas. Agora era o lar de um décimo desse número, e
partes do castelo estavam caindo em ruína.
A
gargalhada de Tyrion Lannister evaporou como uma nuvem no ar frio.
- Hei de
dizer ao seu pai para prender mais alguns pedreiros, antes que sua
torre caia.
Jon podia
sentir a troça que havia naquelas palavras, mas não adiantava negar
a verdade. A Patrulha construíra dezenove grandes fortes ao longo da
Muralha, mas apenas três se mantinham ocupados: Atalaialeste, em sua
costa cinzenta varrida pelo vento; a Torre Sombria, junto às
montanhas onde a Muralha terminava; e, entre elas, Castelo Negro, na
extremidade da estrada do rei. As outras fortificações, há muito
desertas, eram lugares solitários e assombrados, onde os ventos
frios assobiavam através de janelas negras e os espíritos dos
mortos guarneciam os baluartes.
- É
melhor que eu esteja sozinho - disse teimosamente Jon. - Os outros
temem o Fantasma.
- Rapazes
sensatos - disse o Lannister. Então, mudou de assunto. - Dizem que
seu tio já está fora há tempo demais.
Jon
recordou o desejo que tivera em sua ira, a visão de Benjen Stark
morto na neve, e desviou o olhar rapidamente. O anão tinha maneiras
de se aperceber das coisas, e Jon não queria que ele visse a culpa
em seus olhos.
- Ele
disse que voltaria por volta do dia do meu nome - admitiu. O dia do
seu nome chegara e partira, sem ser notado, havia uma quinzena. - Iam
à procura de Sor Waymar Royce, cujo pai é vassalo de Lorde Arryn.
Tio Benjen disse que poderiam ir à sua procura até tão longe como
a Torre Sombria. Isso é todo o caminho até as montanhas.
- Ouvi
dizer que têm desaparecido muitos patrulheiros nos últimos tempos -
disse o Lannister enquanto subiam os degraus que levavam à sala
comum. Sorriu e abriu a porta. - Talvez os gramequins estejam com
fome este ano.
Lá
dentro, o salão era imenso e cheio de correntes de ar, mesmo com um
fogo a rugir na grande lareira. Corvos faziam ninhos nas vigas do
majestoso teto. Jon ouviu seus gritos, enquanto aceitava uma tigela
de guisado e uma fatia de pão preto dos cozinheiros do dia. Grenn,
Sapo e alguns dos outros estavam sentados no banco mais próximo do
calor, rindo e lançando pragas uns aos outros com vozes rudes. Jon
os observou por um momento, pensativo. Depois, escolheu um local na
ponta oposta do salão, bem afastado do resto dos presentes.
Tyrion
Lannister sentou-se à sua frente, cheirando, desconfiado, o guisado.
- Cevada,
cebola, cenoura - murmurou. - Alguém deveria dizer aos cozinheiros
que nabo não é carne.
- É
guisado de carneiro - Jon descalçou as luvas e aqueceu as mãos no
vapor que subia da tigela. O cheiro lhe dava água na boca.
- Snow.
Jon
reconheceu a voz de Alliser Thorne, mas havia nela uma curiosa nota
que não ouvira antes. Virou-se.
- O
Senhor Comandante deseja vê-lo. Já.
Por um
momento, Jon ficou muito assustado para se mover. Por que ia querer o
Senhor Comandante vê-lo? Tinham ouvido algo sobre Benjen, pensou,
descontrolado. Estava morto, a visão tinha se tornado realidade.
- É o
meu tio? - proferiu atabalhoadamente. - Regressou em segurança?
- O
Senhor Comandante não está habituado a esperar - foi a resposta de
Sor Alliser. - E eu não estou
habituado
a ver minhas ordens questionadas por bastardos.
Tyrion
Lannister saltou do banco e pôs-se em pé.
- Pare
com isso, Thorne. Está assustando o rapaz.
- Não se
intrometa em assuntos que não lhe dizem respeito, Lannister. Não
tem lugar aqui.
- Mas
tenho um lugar na corte - disse o anão, sorrindo. - Uma palavra ao
ouvido certo e morrerá como um velho amargo antes que tenha outro
rapaz para treinar. E agora diga ao Snow porque é que o Velho Urso
precisa vê-lo. Há notícias do tio?
- Não -
Sor Alliser respondeu. - É um assunto totalmente diferente. Uma ave
chegou esta manhã de Winterfell com uma mensagem sobre seu irmão -
depois, corrigiu-se: - De seu meio-irmão.
- Bran -
disse Jon sem fôlego, pondo-se em pé de um salto. - Alguma coisa
aconteceu a Bran.
Tyrion
Lannister pousou-lhe a mão no braço.
- Jon.
Lamento muito,
Jon quase
nem o ouviu. Afastou a mão de Tyrion e atravessou o salão a passos
largos. Ao chegar às portas, já estava correndo. Precipitou-se na
direção da Torre do Comandante, atravessando pequenas nuvens de
neve velha soprada pelo vento. Quando os guardas o deixaram passar,
subiu os degraus da torre dois a dois. Ao avançar pelo aposento do
Senhor Comandante, tinha as botas empapadas, os olhos agitados, e
arquejava.
- Bran -
disse. - Que diz a mensagem de Bran?
Jeor
Mormont, o Senhor Comandante da Patrulha da Noite, era um homem
áspero e velho com uma imensa cabeça calva e uma desgrenhada barba
cinzenta. Tinha um corvo pousado no braço e alimentava-o com grãos
de milho.
- Ouvi
dizer que sabe ler - sacudiu o corvo, e a ave bateu as asas e voou
até a janela, onde pousou, observando Mormont tirar do cinto um rolo
de papel e entregá-lo a Jon."Grão", resmungou o corvo em
voz roufenha. "Grão, grão",
O dedo de
Jon percorreu o contorno do lobo gigante de cera branca do selo
quebrado. Reconheceu a letra de Robb, mas as palavras pareciam sair
de foco e fugir quando tentou lê-las. Percebeu que estava chorando.
Então, através das lágrimas encontrou o sentido das palavras e
ergueu a cabeça.
- Ele
acordou - disse. - Os deuses o devolveram.
-
Aleijado - disse Mormont. - Lamento, rapaz. Leia o resto da carta.
Olhou as
palavras, mas não importavam. Bran ia sobreviver.
- Meu
irmão vai viver - disse a Mormont. O Senhor Comandante balançou a
cabeça, recolheu um punhado de milho e assobiou. O corvo voou até
seu ombro, gritando "Viver.' Viver.'".
Jon
correu pela escada abaixo, com um sorriso no rosto e a carta de Robb
na mão.
- Meu
irmão vai viver - disse aos guardas. Os homens entreolharam-se.
Correu de volta à sala comum, onde encontrou Tyrion Lannister
terminando sua refeição. Agarrou o homenzinho pelos sovacos,
ergueu-o no ar e rodopiou com ele nos braços. - Bran vai viver! -
berrou. Lannister pareceu alarmado. Jon o colocou no chão e pôs-lhe
o papel nas mãos. - Está aqui, leia - disse.
Outros se
juntavam e olhavam para ele com curiosidade. Jon reparou em Grenn a
poucos centímetros. Trazia uma atadura grossa de lã enrolada na
mão. Parecia ansioso e desconfortável, nada ameaçador. Jon foi
falar com ele. Grenn recuou e ergueu as mãos.
- Fica
longe de mim, bastardo.
Jon
sorriu para ele.
-
Desculpe pelo pulso. Robb usou comigo o mesmo movimento uma vez, mas
com uma lâmina de madeira. Doeu como os sete infernos, mas o seu
deve ser pior. Olha, se quiser, posso lhe mostrar como se defender
dele.
Alliser
Thorne o ouviu.
- Lorde
Snow quer agora ocupar meu lugar - fez um sorriso de escárnio. -
Mais facilmente ensinaria eu um lobo a fazer malabarismos do que você
treinaria este auroque.
- Aceito
a aposta, Sor Alliser - disse Jon. - Adoraria ver o Fantasma fazer
malabarismos.
Jon ouviu
Grenn prender a respiração, chocado. E o silêncio se fez.
Então,
Tyrion Lannister soltou uma gargalhada. Três dos irmãos negros
juntaram-se a ele numa mesa próxima. O riso espalhou-se pelos
bancos, até que mesmo os cozinheiros riam. Os pássaros agitaram-se
nas traves e, finalmente, até de Grenn saiu um risinho.
Sor
Alliser não tirou os olhos de Jon. Enquanto as gargalhadas ressoavam
à sua volta, seu rosto escureceu e a mão da espada fechou-se num
punho.
- Isso
foi um enorme erro, Lorde Snow - disse, por fim, no tom ácido de um
inimigo.
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