Jon
mostrava a Dareon a melhor maneira de dar um golpe lateral quando o
novo recruta entrou no pátio de treinos.
- Seus
pés precisam estar mais afastados - ele insistia. - Não vai querer
perder o equilíbrio. Assim está bem. Agora, gire ao golpear, ponha
todo o seu peso atrás da arma.
Dareon
parou e levantou o visor.
- Pelos
sete deuses - Dareon murmurou. - Olha só para isto, Jon.
Jon se
virou. Pela fenda do elmo contemplou o rapaz mais gordo que já vira,
parado à porta do armeiro. Pelo aspecto, devia pesar uns cento e
trinta quilos. O colarinho de peles de sua capa bordada perdia-se sob
seus múltiplos queixos. Olhos claros moviam-se nervosamente naquela
grande cara redonda que mais parecia uma lua, e dedos rechonchudos e
suados limpavam-se no veludo do gibão.
- Diss...
disseram-me que devia vir até aqui para... para o treino - ele
disse, para ninguém em especial.
- Um
fidalgo - Pyp falou para Jon. - Do Sul, mais provável da zona de
Jardim de Cima - Pyp viajara pelos Sete Reinos com uma trupe de
pantomimeiros e vangloriava-se de ser capaz de dizer quem eram e de
onde vinham as pessoas com quem falava só pelo som de suas vozes.
Um
caçador andante tinha sido bordado em fio escarlate no peito do
manto de peles do rapaz gordo. Jon não reconheceu o símbolo. Sor
Alliser Thorne deu uma olhadela no novo rapaz a seu cargo e disse:
- Parece
que ficaram sem caçadores furtivos e ladrões lá no Sul. Agora nos
mandam porcos para guarnecer a Muralha. Serão as peles e o veludo
sua noção de armadura, meu Senhor do Presunto?
Não
demorou muito e todos perceberam que o novo recruta trouxera consigo
sua própria armadura: um gibão almofadado, couro fervido, cota de
malha, chapa metálica e um elmo, e até um grande escudo de madeira
e couro decorado com o mesmo caçador andante que usava no manto.
Como nada daquilo era negro, Sor Alliser insistiu que o rapaz se
reequipasse no armeiro, o que demorou metade da manhã. Sua largura
levou Donal Noye a ter de desmontar uma cota de malha para nela
adicionar painéis de couro dos dois lados. Para lhe pôr um elmo na
cabeça, o armeiro teve de remover o visor. Os couros ficaram tão
apertados nas pernas e por baixo dos braços que o menino quase não
conseguia se mexer. Vestido para a batalha, o novo rapaz parecia uma
salsicha inchada depois de tanto cozimento, a ponto de arrebentar.
-
Esperemos que não seja tão inepto como parece - disse Sor Alliser.
- Halder, veja o que Sor Porquinho sabe fazer.
Jon
estremeceu. Halder tinha nascido numa pedreira e fora aprendiz de
pedreiro. Tinha dezesseis anos, era alto e musculoso, e seus golpes
eram os mais duros que Jon já experimentara.
- Isto
vai ser mais feio que a bunda de uma puta - murmurou Pyp. E foi
mesmo.
Demorou
menos de um minuto de luta até o gordo cair no chão, com seu corpo
tremendo enquanto sangue jorrava através do elmo estilhaçado e por
entre os dedos rechonchudos.
-
Rendo-me - ele guinchou. - Basta, rendo-me, não me batam - Rast e
alguns dos outros rapazes começaram a rir.
Mas mesmo
assim Sor Alliser não pôs fim ao assunto.
- Em pé,
Sor Porquinho - gritou. - Pegue a espada - ao ver que o rapaz
continuava inerte no chão, Thorne fez um gesto para Halder. -
Bata-lhe com o lado da espada até encontrar seus pés - Halder deu
uma pancada exploratória na inchada bochecha do adversário. - Você
é capaz de bater com mais força que isso - censurou Thorne. Halder
pegou a espada com ambas as mãos e a deixou cair com tanta força
que o golpe rasgou o couro, mesmo estando do lado contrário ao
corte. O novo recruta guinchou de dor.
Jon deu
um passo à frente. Pyp pousou a mão revestida de cota de malha em
seu braço.
- Jon,
não - o pequeno rapaz falou em tom sussurrante, com um ansioso olhar
de relance para Sor Alliser Thorne.
- Em pé
- repetiu Thorne. O gordo lutou para se erguer, escorregou e voltou a
cair pesadamente no chão. - Sor Porquinho começa a compreender a
idéia - Sor Alliser observou. - Outra vez.
Halder
ergueu a espada para desferir outro golpe.
- Corte
um presunto para nós! - pediu Rast, rindo.
Jon
afastou a mão de Pyp.
- Halder,
basta.
Halder
olhou para Sor Alliser.
- O
bastardo fala e os camponeses tremem - disse o mestre de armas na sua
voz aguçada e fria. - Recordo-lhe que o mestre de armas aqui sou eu,
Lorde Snow.
- Olhe
para ele, Halder - pediu Jon, ignorando Thorne o melhor que pôde. -
Não há honra em espancar um adversário caído. Ele se rendeu -
ajoelhou-se ao lado do rapaz gordo.
Halder
baixou a espada.
- Ele se
rendeu - repetiu num eco.
Os olhos
cor de ônix de Sor Alliser estavam fixos em Jon Snow:
- Diria
que nosso bastardo se apaixonou - ele disse, enquanto Jon ajudava o
gordo a pôr-se em pé. - Mostre-me seu aço, Lorde Snow.
Jon puxou
a espada. Atrevia-se a desafiar Sor Alliser só até certo ponto, e
temia que tivesse acabado de ultrapassar muito este ponto. Thorne
sorriu.
- O
bastardo deseja defender sua amada, portanto, vamos fazer disto um
exercício. Rato, Borbulha, ajudem aqui o Cabeça Dura - Rast e
Albett juntaram-se a Halder. - Três de vocês devem ser suficientes
para fazer a Senhora Porquinha guinchar. Tudo o que têm a fazer é
passar pelo Bastardo.
- Fica
atrás de mim - Jon disse para o gordo. Sor Alliser com frequência
enviara dois adversários contra ele, mas nunca três. Sabia que
provavelmente iria dormir ferido e ensanguentado naquela noite. E
preparou-se para o assalto.
De
repente, Pyp pôs-se ao seu lado.
- Três
contra dois fazem uma disputa melhor - disse alegremente o pequeno
rapaz. Abaixou o visor e puxou a espada. Antes que Jon conseguisse
sequer pensar em protestar, Grenn tinha se juntado a eles.
O pátio
ficou mortalmente silencioso. Jon conseguia sentir o olhar de Sor
Alliser.
- Estão
à espera de quê? - perguntou o mestre de armas a Rast e aos outros,
numa voz que se tornara enganadoramente suave, mas foi Jon quem se
moveu primeiro. Halder quase não conseguiu erguer a espada a tempo.
Jon o fez
recuar, atacando a cada golpe, mantendo o rapaz mais velho na defesa.
Conheça o seu adversário, ensinara-lhe há tempos Sor Rodrik; e Jon
conhecia Halder, brutalmente forte, mas de paciência curta, sem
gosto pela defesa. Frustre-o e ele se abre como o pôr do sol.
O tinir
do aço ressoou pelo pátio quando os outros à sua volta se juntaram
à batalha. Jon parou um violento golpe lançado à sua cabeça,
sentindo o choque do impacto a correr-lhe pelo braço quando as
espadas se chocaram. Lançou um golpe lateral nas costelas de Halder
e foi recompensado com um grunhido abafado de dor. O contra-ataque
apanhou Jon no ombro. A cota de malha ressoou como se algo a
triturasse, e um relâmpago de dor subiu-lhe ao pescoço. Por um
instante Halder perdeu o equilíbrio, e Jon golpeou-lhe a perna
esquerda, fazendo-o cair com uma praga e um estrondo.
Grenn
mantinha-se firme como Jon lhe ensinara, dando mais trabalho a Albett
do que este gostaria. Mas Pyp estava sob grande pressão, Rast tinha
dois anos e quase vinte quilos a mais que ele. Jon aproximou-se dele
por trás e fez ressoar seu elmo como se fosse um sino. Quando Rast
começou a cambalear, Pyp passou por baixo de sua guarda, atirou-o ao
chão e apontou a espada para sua garganta. Por essa altura Jon já
tinha passado adiante. Enfrentando duas espadas, Albett recuou.
-
Rendo-me - ele gritou.
Sor
Alliser Thorne inspecionou a cena com repugnância.
- A
pantomima já se prolongou o suficiente por hoje - ele protestou e se
afastou. A sessão tinha chegado ao fim.
Dareon
ajudou Halder a pôr-se em pé. O filho do pedreiro arrancou o elmo e
atirou-o para o outro lado do pátio.
- Por um
instante pensei que finalmente o tinha pegado, Snow.
- Por um
instante pegou mesmo - Jon respondeu. Sob a cota de malha e o couro
seu ombro latejava.
Embainhou
a espada e tentou tirar o elmo, mas, quando ergueu o braço, a dor o
fez ranger os dentes.
-
Permite-me? - perguntou uma voz. Mãos de dedos grossos desataram o
elmo do gorjal e ergueram-no cuidadosamente. - Ele o feriu?
-Já fui
ferido antes - Jon tocou no ombro e estremeceu. O pátio em redor se
esvaziava.
Sangue
manchava o cabelo do rapaz gordo no local onde Halder lhe quebrara o
elmo.
-Meu nome
é Samwell Tarly, de Monte... - calou-se e lambeu os lábios. - Quer
dizer, eu era de Monte Chifre até que... parti. Vim vestir o negro.
Meu pai é Lorde Randyll, um vassalo dos Tyrell de Jardim de Cima.
Era seu herdeiro, só que... - sua voz se extinguiu.
- Sou Jon
Snow, bastardo de Ned Stark, de Winterfell.
Samwell
Tarly fez um aceno com a cabeça.
- Eu...
se quiser pode me chamar de Sam. Minha mãe me chama assim.
- E você
pode chamá-lo Lorde Snow - disse Pyp enquanto se aproximava. - Não
vai querer como a mãe o chama.
- Estes
dois são Grenn e Pypar - disse Jon.
- Grenn é
o feio - disse Pyp.
Grenn
franziu as sobrancelhas.
- Você é
mais feio que eu. Pelo menos não tenho orelhas de morcego.
- Os meus
agradecimentos a todos - o rapaz gordo disse gravemente.
- Por que
não se levantou e lutou? - Grenn quis saber.
- Eu
queria, garanto. Só que... não pude. Não queria que ele me batesse
mais - o menino baixou os olhos. - Eu... temo que seja um covarde. O
senhor meu pai sempre disse isto.
Grenn
pareceu atingido por um raio. Até Pyp não conseguiu encontrar
palavras para responder àquilo, ele, que tinha palavras para tudo.
Que tipo de homem se proclama um covarde?
Samwell
Tarly deve ter lido os pensamentos naqueles rostos. Seus olhos
encontraram-se com os de Jon e fugiram, rápidos como animais
assustados.
- Eu...
eu lamento - ele se desculpou. - Não queria ser... ser como sou - e
caminhou pesadamente na direção do armeiro.
Jon
gritou:
- Você
foi ferido - ele disse. - Amanhã fará melhor.
Sam olhou
por sobre o ombro com ar fúnebre.
- Não,
não farei - o menino respondeu, piscando para reter lágrimas. - Eu
nunca faço melhor.
Depois de
ele sair, Grenn franziu as sobrancelhas.
- Ninguém
gosta de covardes - disse desconfortavelmente. - Era melhor que não
o tivéssemos ajudado. E se os outros pensarem que também somos
covardes?
- Você é
estúpido demais para ser covarde - disse-lhe Pyp.
- Não
sou nada - Grenn rebateu.
- É,
sim. Se um urso o atacasse nos bosques, seria estúpido demais para
fugir.
- Não
seria nada - Grenn insistiu. - Fugiria mais depressa que você - e
parou de repente, riscando os olhos ao ver o sorriso de Pyp e ao
perceber o que acabara de dizer. Seu grosso pescoço ficou
vermelho-escuro. Jon os deixou ali discutindo e voltou ao armeiro,
pendurou a espada e tirou a armadura deformada.
A vida em
Castelo Negro seguia certos padrões; as manhãs eram dedicadas à
esgrima, e as tardes, ao trabalho. Os irmãos negros atribuíam aos
novos recrutas muitas tarefas diferentes, para ver o que sabiam
fazer. Jon adorava as raras tardes em que era enviado para a floresta
com Fantasma a fim de trazer caça para a mesa do Senhor Comandante,
mas para cada dia passado a caçar, doze eram de Donal Noye, no
armeiro, girando a roda de amolar enquanto o ferreiro de um braço só
afiava machados cegos pelo uso, ou manejando o fole enquanto Noye
batia o metal de uma nova espada. Nos outros dias, distribuía
mensagens, montava guarda, limpava estábulos, colocava penas nas
setas, dava assistência a Meistre Aemon com suas aves ou a Bowen
Marsh com suas contas e inventários.
Naquela
tarde, o comandante da guarda o enviou para a gaiola do guindaste com
quatro barris de pedra recém-esmagada, para que espalhasse cascalho
sobre os caminhos gelados do topo da Muralha. Era um trabalho
solitário e aborrecido, mesmo com Fantasma lhe fazendo companhia,
mas Jon descobriu que não se importava. Num dia claro, podia-se ver
metade do mundo do topo da Muralha, e o ar estava sempre frio e
tonificante. Ali podia pensar, e deu por si pensando em Samwell
Tarly... e, estranhamente, em Tyrion Lannister. Gostaria de saber o
que Tyrion faria com o rapaz gordo. A maioria dos homens mais
depressa nega uma verdade dura do que a enfrenta, dissera-lhe o anão
com um sorriso. O mundo estava cheio de covardes que fingiam ser
heróis; era preciso uma singular forma de coragem para se admitir
covarde, como fizera Samwell Tarly.
O ombro
machucado fazia com que o trabalho avançasse lentamente. A tarde já
chegava ao fim quando Jon terminou de encher os caminhos de cascalho.
Deixou-se ficar lá em cima para ver o sol se pôr, colorindo o céu
ocidental com a cor do sangue. Por fim, enquanto o ocaso caía sobre
o norte, Jon rolou os barris vazios de volta à gaiola e fez sinal
aos homens do guindaste para que o baixassem.
A
refeição da noite tinha quase acabado quando ele e Fantasma
chegaram à sala comum. Um grupo de irmãos negros jogava dados sob o
efeito do vinho quente perto do fogo. Seus amigos, dando risada,
encontravam-se no banco mais próximo da parede oeste. Pyp estava no
meio de uma história. O orelhudo filho do pantomimeiro era um
mentiroso nato, possuía cem vozes diferentes, e vivia suas histórias
mais que as contava, representando todos os papéis à medida que iam
surgindo, num momento um rei e no seguinte um criador de porcos.
Quando o personagem era uma criada de cervejaria ou uma princesa
virgem, usava uma aguda voz de falsete que levava todos às lágrimas
com as gargalhadas que eram incapazes de evitar, e seus eunucos eram
sempre caricaturas fantasmagoricamente fiéis de Sor Alliser. Jon
tirava tanto prazer das palhaçadas de Pyp como qualquer outro, mas
naquela noite afastou-se e, em vez de se juntar aos amigos,
dirigiu-se para a ponta do banco, onde Samwell Tarly estava sentado
sozinho, tão longe dos outros como podia.
Terminava
a última das tortas de porco que os cozinheiros tinham servido no
jantar quando Jon sentou-se à sua frente. Os olhos do gordo
esbugalharam-se ao ver Fantasma.
- Isto é
um lobo?
- Um lobo
gigante - Jon respondeu. - Chama-se Fantasma. O lobo gigante é o
símbolo da Casa do meu pai.
- O nosso
é um caçador andante - disse Samwell Tarly.
- Gosta
de caçar?
O gordo
estremeceu.
- Detesto
- parecia outra vez prestes a chorar.
- Que se
passa agora? - perguntou-lhe Jon. - Por que está sempre tão
assustado?
Sam fixou
os olhos no resto de sua torta de porco e abanou a cabeça
debilmente, assustado demais até para falar. Um estrondo de
gargalhadas encheu o salão. Jon ouviu Pyp guinchando com voz aguda.
Pôs-se
em pé.
- Vamos
lá para fora.
A gorda
cara redonda olhou-o com suspeita.
- Por
quê? Que vamos fazer lá fora?
-
Conversar - disse Jon. - Já viu a Muralha?
- Sou
gordo, não sou cego - Samwell Tarly retrucou. - Claro que a vi, tem
duzentos metros de altura - mas levantou-se assim mesmo, enrolou um
manto debruado de peles em volta dos ombros e saiu da sala comum
atrás de Jon, ainda desconfiado, como se suspeitasse de que algum
truque cruel o esperava na noite. Fantasma caminhou ao lado deles.
- Nunca
pensei que fosse assim - Sam disse enquanto caminhavam, com as
palavras transformando-se em vapor no ar frio. Já bufava e
arquejava, tentando acompanhar Jon. - Os edifícios estão todos
ruindo, e é tão... tão...
- Frio? -
uma dura geada caía sobre o castelo, e Jon ouvia o suave ranger de
ervas cinzentas sob suas botas.
Sam
confirmou com a cabeça, ostentando uma expressão infeliz.
- Detesto
o frio - disse. - Na noite passada acordei na escuridão e o fogo
tinha se apagado, e tive certeza de que ia congelar antes que a manhã
chegasse.
- Deve
ser mais quente no lugar de onde você vem.
- Nunca
tinha visto neve até o mês passado. Vínhamos atravessando as
terras acidentadas, eu e os homens que meu pai enviou para me
trazerem para o norte, e esta coisa branca começou a cair como uma
leve chuva. A princípio pensei que era belíssima, como penas caindo
do céu, mas continuou, e continuou, até que fiquei gelado até os
ossos. Os homens tinham crostas de neve nas barbas e mais sobre os
ombros, e ela continuava a cair. Temi que nunca mais parasse.
Jon
sorriu.
A Muralha
erguia-se à frente deles, brilhando fracamente à luz de uma
meia-lua. No céu as ardiam, límpidas e nítidas.
- Eles
vão me obrigar a subir até lá em cima? - Sam perguntou. Seu rosto
azedou como leite velho quando olhou para as grandes escadas de
madeira. - Eu morro se tiver de subir aquilo.
- Há um
guindaste - Jon o apontou. - Podem subi-lo numa gaiola.
Samwell
Tarly fungou.
- Não
gosto de lugares altos.
Aquilo
foi demais. Jon franziu as sobrancelhas, incrédulo.
- Mas
você tem medo de tudo? - perguntou. - Não consigo entender. Se é
mesmo tão covarde, o que está fazendo aqui? Por que um covarde
haveria de querer se juntar à Patrulha da Noite?
Samwell
Tarly o olhou por um longo momento, e sua face redonda pareceu cair
para dentro de si própria. Sentou-se no chão coberto de geada e
desatou a chorar, com enormes soluços estrangulados que lhe
estremeciam todo o corpo. Jon Snow só pôde parar e ficar vendo. Tal
como a queda de neve nas terras acidentadas, aquelas lágrimas
pareciam não ter fim.
Foi
Fantasma que soube o que fazer. Silencioso como uma sombra, o lobo
gigante branco aproximou-se e começou a lamber as lágrimas quentes
no rosto de Samwell Tarly. O rapaz gordo gritou, surpreso... E, por
algum milagre, seus soluços transformaram-se em gargalhadas.
Jon Snow
riu com ele. Depois, sentaram-se no chão gelado, aconchegados aos
mantos com Fantasma entre ambos. Jon contou a história de como ele e
Robb tinham encontrado os lobinhos recém-nascidos no meio da neve do
fim do verão. Parecia agora terem se passado mil anos. Pouco depois,
deu por si falando de Winterfell.
- Às
vezes sonho com o castelo - ele disse. - Caminho pelo seu longo salão
vazio. Minha voz ecoa pelo lugar, mas ninguém responde, e eu ando
mais depressa, abrindo portas, gritando nomes. Nem sequer sei quem
procuro. Na maior parte das noites é meu pai, mas às vezes é Robb,
ou minha irmã mais nova, Arya, ou meu tio - pensar em Benjen Stark o
entristeceu, ele continuava desaparecido. O Velho Urso enviara
patrulhas à sua procura. Sor Jeremy Rykker liderara duas buscas e
Quorin Halfhand partira da Torre Sombria, mas nada tinham encontrado
além de um punhado de sinais que o tio deixara nas árvores para
marcar o caminho. Nas terras altas pedregosas do noroeste as marcas
paravam abruptamente, e todos os sinais de Ben Stark esvaneciam-se.
- Alguma
vez encontra alguém no seu sonho? - Sam quis saber.
Jon
balançou a cabeça.
- Nem uma
só pessoa. O castelo está sempre vazio - nunca falara a ninguém
sobre aquele sonho, e não compreendia por que motivo o contava agora
a Sam, mas de algum modo sentia-se bem falando dele. - Até os corvos
desapareceram da colônia, e as cavalariças estão cheias de ossos.
Isso sempre me assusta. Então começo a correr, abrir portas com
violência, subir os degraus da torre três de cada vez, gritando por
alguém, por quem quer que seja. Então, dou por mim em frente à
porta para as criptas. Lá dentro tudo está negro, e vejo os degraus
que descem em espiral. Sem saber como, sei que tenho de descer, mas
não quero fazê-lo. Tenho medo do que pode haver lá à minha
espera. Os velhos Reis do Inverno estão lá, sentados em seus tronos
com lobos de pedra a seus pés e espadas de ferro sobre os joelhos,
mas não é deles que tenho medo. Grito que não sou um Stark, que
aquele não é o meu lugar, mas não serve de nada, tenho de ir, seja
como for, e, portanto, começo a descer, tateando as paredes enquanto
vou avançando, sem uma tocha que me alumie o caminho. Fica cada vez
mais escuro, até que me dá vontade de gritar - parou, de cenho
franzido, embaraçado. - E é então que sempre acordo - com a pele
fria e pegajosa, tremendo na escuridão de sua cela. Fantasma salta
para a cama, ao seu lado, e seu calor é tão reconfortante como o
nascer do dia. Ele volta a adormecer com o rosto enterrado no pelo
branco e grosso do lobo gigante. - Você sonha com Monte Chifre? -
Jon perguntou.
- Não -
a boca de Sam apertou-se e endureceu. - Detestava aquilo - coçou
Fantasma atrás da orelha, pensando, e Jon deixou o silêncio
respirar. Depois de um longo tempo, Samwell Tarly começou a falar.
Jon Snow escutou em silêncio, e ficou sabendo como foi que um
covarde confesso veio parar na Muralha.
Os Tarly
eram uma família antiga na honra, vassalos de Mace Tyrell, Senhor de
Jardim de Cima e Protetor do Sul. Como filho mais velho de Lorde
Randyll Tarly, Samwell nascera herdeiro de ricas terras, uma
fortaleza forte e uma grande espada cheia de histórias chamada
Veneno de Coração, forjada de aço valiriano e passada de pai para
filho havia quase quinhentos anos.
Mas todo
o orgulho que o senhor seu pai poderia ter sentido com o nascimento
de Samwell desapareceu quando o rapaz cresceu roliço, mole e
desajeitado. Sam gostava de ouvir música e criar as próprias
canções, vestir suaves veludos, brincar na cozinha do castelo ao
lado dos cozinheiros, absorvendo os cheiros doces enquanto ia
roubando bolos de limão e tortas de mirtilo. Suas paixões eram os
livros, os gatos e a dança, mesmo desastrado como era. Mas ficava
doente à vista de sangue e chorava até ao ver uma galinha ser
morta. Uma dúzia de mestres de armas chegou e partiu de Monte Chifre
tentando transformar Samwell no cavaleiro que o pai desejava. O rapaz
recebeu insultos e bengaladas, bateram-lhe e fizeram-no passar fome.
Um homem o obrigou a dormir vestido de cota de malha para deixá-lo
mais belicoso. Outro vestiu-lhe a roupa da mãe e o obrigou a
percorrer o muro exterior do castelo, a fim de lhe incutir valor
através da vergonha. Mas ele só foi se tornando mais gordo e mais
assustado, até que o desapontamento de Lorde Randyll se transformou
em ira, e a ira em desprezo.
- Uma vez
- confidenciou Sam, com a voz transformada num murmúrio - vieram
dois homens ao castelo, bruxos de Qarth, de pele branca e lábios
azuis. Mataram um auroque macho e obrigaram-me a tomar banho no
sangue quente, mas isso não me deu a coragem que tinham prometido.
Fiquei doente e com vômitos. Meu pai mandou açoitá-los.
Por fim,
depois de três meninas em outros tantos anos, a Senhora Tarly deu ao
senhor seu esposo um segundo filho. Desse dia em diante, Lorde
Randyll ignorou Sam, dedicando todo seu tempo ao rapaz mais novo, uma
criança feroz e robusta, mais a seu gosto. Samwell conheceu vários
anos de uma doce paz, com sua música e seus livros.
Até a
madrugada do décimo quinto dia do seu nome, quando foi acordado e
lhe apresentaram o cavalo selado e pronto. Três homens de armas o
acompanharam até um bosque próximo de Monte Chifre, onde o pai
esfolava um veado. "Você é agora quase um homem feito, e o meu
herdeiro", disse Lorde Randyll Tarly ao filho mais velho,
enquanto ia tirando a pele da carcaça.
"Não
me deu motivo algum para deserdá-lo, mas também não lhe permitirei
herdar a terra e o título que devem pertencer a Dickon. A Veneno de
Coração deve passar para as mãos de um homem suficientemente forte
para brandi-la, e você nem é digno de lhe tocar o punho. Portanto,
decidi que hoje anunciará seu desejo de vestir o negro. Irá
renunciar a qualquer pretensão à herança do seu irmão e partirá
para o norte antes do cair da noite. Se assim não fizer, então
amanhã teremos uma caçada, e em algum lugar nesses bosques seu
cavalo tropeçará e você será atirado da sela para a morte... ou
pelo menos será isso que direi à sua mãe. Ela tem um coração de
mulher, encontra nele lugar até para estimá-lo, e não tenho nenhum
desejo de lhe causar desgosto. Mas que não passe por sua cabeça que
será realmente assim tão fácil se pensar em me desafiar. Nada me
dará mais prazer que caçá-lo como o porco que você é." Seus
braços estavam vermelhos até os cotovelos quando pousou a faca de
esfolar. "E é assim. Sua escolha é esta. A Patrulha da Noite"
o pai enfiou a mão no veado, arrancou-lhe o coração e apertou-o na
mão, vermelho e a pingar, "ou isto”.
Sam
contou a história com uma voz calma e sem vida, como se fosse algo
que tivesse acontecido a outra pessoa, não a ele. E estranhamente,
pensou Jon, não chorou, nem mesmo uma vez. Quando terminou, ficaram
sentados lado a lado escutando o vento por um tempo. Não havia mais
nenhum som no mundo inteiro.
Por fim,
Jon disse:
-
Devíamos voltar para a sala comum.
- Por
quê? - Sam perguntou.
Jon
encolheu os ombros,
- Há
cidra quente para beber, ou vinho temperado, se preferir. Em algumas
noites, Dareon canta para nós, se lhe agradar. Era um cantor
antes... bem, não era mesmo, mas quase; era um aprendiz de cantor.
- Como
veio parar aqui? - Sam quis saber.
- Lorde
Rowan de Bosquedouro o encontrou na cama com sua filha. A moça era
dois anos mais velha, e Dareon jura que ela o ajudou a entrar pela
janela, mas, aos olhos do pai, foi violação, e aqui está ele.
Quando Meistre Aemon o ouviu cantar, disse que tinha uma voz que era
mel derramado sobre o trovão - Jon sorriu. - Sapo às vezes também
canta, se é que se pode chamar aquilo canto. Canções de taberna
que aprendeu com seu pai bêbado. Pyp diz que tem uma voz que é mijo
derramado sobre um peido - e os dois riram juntos daquilo.
-
Gostaria de ouvi-los - Sam admitiu - mas eles não vão me querer lá
- tinha o rosto perturbado. - Ele vai me fazer lutar outra vez
amanhã, não vai?
- Vai -
Jon foi forçado a dizer.
Sam
pôs-se desajeitadamente em pé.
- É
melhor que eu tente dormir - enrolou-se atabalhoadamente no manto e
arrastou-se para longe.
Os outros
estavam ainda na sala comum quando Jon regressou, acompanhado apenas
por Fantasma.
- E onde
você estava? - Pyp perguntou.
-
Conversando com Sam - ele respondeu.
- Ele é
verdadeiramente covarde - Grenn interveio. - Na hora do jantar, ainda
havia lugares no banco quando ele recebeu sua torta, mas estava
assustado demais para vir se sentar conosco.
- O
Senhor do Presunto pensa que é bom demais para se juntar a gente
como nós - sugeriu Jeren.
- Vi-o
comer uma torta de porco - Sapo disse com um sorrisinho. - Acham que
ele seria um irmão? - e desatou a soltar grunhidos.
- Parem
com isso! - exclamou Jon com voz zangada.
Os outros
rapazes calaram-se, surpreendidos pela súbita fúria.
-
Ouçam-me - disse Jon mais calmo, e contou-lhes como as coisas
deveriam acontecer, Pyp o apoiou, como já sabia que faria, mas,
quando Halder falou, foi uma surpresa agradável. Grenn a princípio
mostrou-se preocupado, mas Jon conhecia as palavras que o fariam
mudar de idéia. Um por um, todos cerraram fileiras, Jon persuadiu
alguns, lisonjeou outros, envergonhou os restantes, e fez ameaças
onde eram necessárias. No fim, estavam todos de acordo... Todos,
menos Rast.
- Vocês,
meninas, façam o que quiserem - ele disse - mas se Thorne me mandar
lutar com a Senhora Porquinha, vou cortar para mim uma fatia de bacon
- riu na cara de Jon e deixou todos ali.
Horas
mais tarde, enquanto o castelo dormia, três dos rapazes fizeram uma
visita à cela de Rast. Grenn segurou-lhe os braços, enquanto Pyp se
sentava sobre suas pernas. Jon conseguiu ouvir a respiração
acelerada de Rast quando Fantasma saltou para cima de seu peito. Os
olhos do lobo selvagem ardiam como brasas enquanto os dentes
mordiscavam a pele lisa da garganta do rapaz, o suficiente apenas
para fazê-lo sangrar.
-
Lembra-se? Nós sabemos onde você dorme - disse Jon em voz baixa.
Na manhã
seguinte, Jon ouviu Rast contar a Albett e a Sapo como a navalha
tinha escorregado enquanto se barbeava.
Daquele
dia em diante, nem Rast nem nenhum dos outros machucou Samwell Tarly.
Quando Sor Alliser os fazia confrontá-lo, defendiam-se e afastavam
seus golpes lentos e desajeitados. Se o mestre de armas gritava por
um ataque, dançavam em frente e davam uma pancadinha ligeira na
placa de peito, no elmo ou na perna de Sam. Sor Alliser irritava-se,
ameaçava-os e os chamava de covardes, mulheres e coisas piores, mas
Sam permaneceu incólume.
Algumas
noites mais tarde, a pedido de Jon, juntou-se a eles para a refeição
da noite, sentando-se no banco ao lado de Halder. Passaram-se mais
quinze dias até ganhar coragem para se juntar à conversa, e, ao fim
de algum tempo, já ria das caretas de Pyp e brincava com Grenn como
qualquer outro.
Samwell
Tarly podia ser gordo, desajeitado e assustado, mas não era nenhum
tolo. Uma noite visitou Jon em sua cela.
- Não
sei o que você fez - disse - mas sei que fez alguma coisa - e
afastou timidamente seus olhos. - Nunca tinha tido um amigo.
- Nós
não somos amigos - disse Jon, pousando a mão no amplo ombro de Sam.
- Somos irmãos.
E eram,
pensou consigo mesmo depois de Sam se retirar. Robb, Bran e Rickon
eram os filhos de seu pai, e ainda os amava, mas Jon sabia que nunca
fora realmente um deles, Catelyn Stark assegurara-se disso. Os muros
cinzentos de Winterfell podiam ainda assombrar seus sonhos, mas
Castelo Negro era agora a sua vida, e seus irmãos eram Sam, Grenn,
Halder e Pyp, e os outros renegados que vestiam o negro da Patrulha
da Noite.
- Meu tio
disse a verdade - ele segredou a Fantasma, perguntando a si mesmo se
algum dia voltaria a ver Benjen Stark para lhe dizer isto.
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