sábado, 24 de agosto de 2013

35 - EDDARD


Foi encontrar Mindinho na sala comum do bordel, conversando amigavelmente com uma mulher alta e elegante que usava um vestido de penas sobre uma pele tão negra como tinta. Perro da lareira, Heward e uma jovem roliça jogavam prendas. Segundo parecia, ele por enquanto tinha perdido o cinto, o manto, a cota de malha e a bota direita, ao passo que a jovem tinha sido forçada a desabotoar a camisa até o peito. Jory Cassei estava em pé, junto a uma janela riscada pela chuva, com um sorriso perverso no rosto, observando Heward virando as peças e gostando do que estava vendo.
Ned parou na base da escada e calçou as luvas.
- E tempo de nos retirarmos. Meu assunto aqui está tratado.
Heward pôs-se em pé de um salto, recolhendo apressadamente suas coisas.
- Como quiser, senhor - disse. - Vou ajudar Wyl a trazer os cavalos - e encaminhou-se para a porta a passos largos.
Mindinho gastou seu tempo nas despedidas. Beijou a mão da mulher negra, sussurrou um gracejo qualquer que a fez rir alto, e dirigiu-se vagarosamente para Ned.
- Seu assunto - disse com ligeireza - ou de Robert? Diz-se que a Mão sonha os sonhos do rei, fala com a voz do rei e governa com a espada do rei. Será que isso também quer dizer que rode com a...
- Lorde Baelish - interrompeu Ned - o senhor tem muito atrevimento. Não sou ingrato pela sua ajuda. Poderíamos ter levado anos para encontrar este bordel sem o senhor. Mas isso não quer dizer que pretendo suportar sua zombaria. E já não sou a Mão do Rei.
- O lobo gigante deve ser um animal irritadiço - disse Mindinho, torcendo a boca.
Caía uma chuva morna de um céu negro sem estrelas quando se encaminharam para os estábulos. Ned puxou o capuz do manto sobre a cabeça. Jory trouxe-lhe seu cavalo. O jovem Wyl veio logo atrás, trazendo a égua de Mindinho com uma mão, enquanto a outra lutava com o cinto e as ataduras das calças. Uma prostituta barata espreitava da porta do estábulo, rindo para ele.
- Vamos regressar agora ao castelo, senhor? - Jory perguntou.
Ned confirmou com a cabeça e saltou para a sela. Mindinho, ao seu lado, também montou. Jory e os outros os acompanharam.
- Chataya dirige um estabelecimento de primeira linha - disse Mindinho enquanto avançavam. - Estou meio decidido a comprá-lo. Descobri que os bordéis são um investimento muito mais lucrativo que os navios. As prostitutas raramente se afundam, e quando são abordadas por piratas, ora, os piratas pagam em boa moeda como qualquer outra pessoa - Lorde Petyr riu da própria piada.
Ned deixou que continuasse a tagarelar. Passado algum tempo, o homem sossegou, e prosseguiram em silêncio. As ruas de Porto Real estavam escuras e desertas. A chuva empurrara as pessoas para dentro das portas e batia na cabeça de Ned, morna como sangue e inexorável como as velhas culpas. Gordas gotas de água corriam-lhe pelo rosto abaixo.
"Robert nunca se limitará a uma cama", dissera-lhe Lyanna, em Winterfell, na noite, há muito tempo, em que seu pai prometera a mão da filha ao jovem Senhor de Ponta Tempestade. "Ouvi dizer que fez um filho em uma moça qualquer no Vale." Ned segurara o bebê nos braços; dificilmente poderia negá-lo, e tampouco mentiria à irmã, mas assegurara-lhe que o que Robert fizera antes da promessa não tinha importância, que era um homem bom e fiel, e que a amaria de todo o coração. Lyanna apenas sorrira. "O amor é doce, querido Ned, mas não pode mudar a natureza de um homem."
A moça era tão jovem que Ned não se atrevera a lhe perguntar a idade. Não havia dúvida de que tinha começado virgem; os melhores bordéis eram sempre capazes de encontrar uma virgem, se a bolsa fosse suficientemente gorda.
Tinha cabelos ruivo-claros e o nariz salpicado de sardas, e quando soltou um seio para dar o mamilo ao bebê, Ned vira que também o peito era sardento.
- Dei-lhe o nome Barra - dissera, enquanto a criança mamava. - Parece-se tanto com ele, não parece, senhor? Tem o seu nariz, seu cabelo...
- Parece - Eddard Stark tocara os cabelos finos e escuros do bebê. Fluía entre seus dedos como seda negra. Julgava recordar-se de que a primeira filha de Robert tivera o mesmo cabelo fino.
- Conte-lhe quando o vir, senhor, se lhe... se lhe for conveniente. Conte-lhe como ela é linda.
- Contarei - Ned prometeu à moça. Era esta a sua maldição. Robert era capaz de jurar um amor eterno e esquecê-lo antes do cair da noite, mas Ned Stark mantinha seus votos. Pensou nas promessas que fizera a Lyanna quando ela jazia, à morte, e no preço que pagara para cumpri-las.
- E diga-lhe que não tive mais ninguém. Juro, senhor, pelos deuses antigos e pelos novos. Chataya disse que eu podia tirar meio ano, por causa do bebê e por ter esperança de que ele volte. Por isso, o senhor vai lhe dizer que estou à espera, não é verdade? Não quero joias nem nada disso, só quero ele. Sempre foi bom para mim, de verdade.
Ainda bem para você, pensou Ned de um modo vazio.
- Direi, filha, e prometo-lhe que Barra não passará necessidades.
Então ela sorrira, um sorriso tão trêmulo e doce que lhe destroçara o coração. Cavalgando pela noite chuvosa, Ned viu o rosto de Jon Snow à sua frente, tão semelhante a uma versão mais nova do seu. Se os deuses eram tão duros com os bastardos, pensou sombriamente, por que enchiam os homens de tais apetites?
- Lorde Baelish, o que sabe dos bastardos de Robert?
- Bem, para começar, ele tem mais do que o senhor.
- Quantos?
Mindinho encolheu os ombros. Fios de chuva puxavam para baixo a parte de trás de seu manto.
- Será que importa? Se dormir com mulheres suficientes, algumas lhe darão presentes, e Sua Graça nunca foi tímido nesse aspecto. Sei que ele reconheceu aquele rapaz em Ponta Tempestade, aquele que gerou na noite do casamento de Lorde Stannis, Dificilmente poderia fazer outra coisa. A mãe é uma Florent, sobrinha da Senhora Selyse, uma de suas camareiras. Renly diz que Robert levou a moça para cima durante o banquete e estreou o leito de núpcias enquanto Stannis e a noiva ainda dançavam. Lorde Stannis pareceu pensar que isso manchou a honra da Casa da esposa, e quando o rapaz nasceu, o enviou para Renly - dirigiu a Ned uma olhadela pelo tanto do olho. - Também ouvi segredar que Robert arranjou um par de gêmeos com uma criada no Rochedo Casterly, há três anos, quando viajou para oeste, para o torneio de Lorde Tywin. Cersei mandou matar os bebês e vendeu a mãe a um negociante de escravos que estava de passagem. Era afronta demais ao orgulho dos Lannister, tão perto de casa.
Ned Stark fez uma careta. Contavam-se histórias feias como aquela de todos os grandes senhores no reino. Ele conseguia acreditar com suficiente facilidade que Cersei Lannister seria capaz de tal coisa... Mas o rei permitiria que algo assim acontecesse? O Robert que conhecera não o teria permitido, mas este mesmo Robert também nunca tivera, como agora, tanta prática de fechar os olhos às coisas que não desejava ver.
- Por que teria Jon Arryn tomado um súbito interesse pelos filhos ilegítimos do rei? - O homem mais baixo encolheu um par de ombros encharcados.
- Ele era a Mão do Rei. Sem dúvida, Robert pediu-lhe que lhes assegurasse a subsistência. Ned estava molhado até os ossos e sua alma tinha se arrefecido.
- Tinha de ser mais que isso, caso contrário, por que matá-lo?
Mindinho sacudiu a chuva dos cabelos e soltou uma gargalhada.
- Agora compreendo. Lorde Arryn soube que Sua Graça enchera as barrigas de umas quantas prostitutas e mulheres de pescadores e por isso teve de ser silenciado. Não surpreende. Permita a um homem assim que viva e, em seguida, é provável que ele diga que o Sol nasce no oriente.
Ned não podia dar àquilo nenhuma resposta além de um olhar carregado. Pela primeira vez em anos, deu por si pensando em Rhaegar Targaryen. Gostaria de saber se Rhaegar frequentara bordéis; não sabia bem por que, mas achava que não.
A chuva caía agora com mais força, fazendo arder os olhos e tamborilando no chão. Rios de água negra corriam pela colina abaixo quando Jory gritou "Senhor", com a voz rouca de alarme, E, no instante seguinte, a rua estava cheia de soldados.
Ned vislumbrou cotas de malha sobre couro, luvas e caneleiras, capacetes de aço coroados ror leões dourados. Seus mantos aderiam-lhes às costas, ensopados de chuva. Não teve tempo de contar, mas havia pelo menos dez, uma fila deles, a pé, bloqueando a rua, com espadas e lanças de ponta de ferro.
Ouviu Wyl gritar "Atrás!", e quando virou o cavalo havia mais atrás deles, cortando-lhes a retirada. A espada de Jory saiu da bainha, tilintando.
- Deixem-nos passar, ou morrerão!
- Os lobos estão uivando - disse o líder. Ned podia ver a chuva que lhe escorria pelo rosto,
- Mas é uma alcateia muito pequena.
Mindinho fez avançar seu cavalo, um passo cuidadoso de cada vez.
- Que significa isto? Este é a Mão do Rei.
- Este era a Mão do Rei - a lama abafava o ruído dos cascos do garanhão baio puro-sangue. A linha abriu-se para deixá-lo passar. Num peitoral dourado, o leão de Lannister rugia em desafio. - Agora, a bem da verdade, não tenho certeza do que ele é.
- Lannister, isto é uma loucura - disse Mindinho. - Deixe-nos passar. Somos esperados no castelo. Que pensa que está fazendo?
- Ele sabe o que está fazendo - disse Ned calmamente.
Jaime Lannister sorriu.
- É bem verdade. Estou à procura de meu irmão. Lembra-se do meu irmão, não é mesmo, Lorde Stark? Esteve comigo em Winterfell, De cabelos claros, olhos desiguais, uma língua afiada. Um homem baixo.
- Lembro-me bem dele - respondeu Ned.
- Parece que encontrou alguns problemas na estrada. O senhor meu pai está bastante aborrecido. Não tem por acaso alguma ideia de quem possa desejar mal a meu irmão, não é?
- Seu irmão foi capturado às minhas ordens, a fim de responder pelos seus crimes - disse Ned Stark.
Mindinho grunhiu de consternação.
- Meus senhores...
Sor Jaime arrancou a espada da bainha e incitou o garanhão a avançar.
- Mostre-me o seu aço, Lorde Eddard. Eu o matarei como a Aerys se tiver de ser, mas preferiria que morresse com uma lâmina na mão - dirigiu a Mindinho um olhar frio e desdenhoso. - Lorde Baelish, eu sairia daqui com alguma pressa se não quisesse ficar com manchas de sangue nas dispendiosas roupas.
Mindinho não precisava ser instado.
- Chamarei a Patrulha da Cidade - prometeu a Ned. A linha dos Lannister abriu-se para deixá-lo passar e atrás dele se fechou. Mindinho enterrou os calcanhares na égua e desapareceu atrás de uma esquina.
Os homens de Ned tinham puxado as espadas, mas eram três contra vinte. Olhos observavam de janelas e portas próximas, mas ninguém pensava em intervir. Seu grupo estava montado, os Lannister, a pé, exceto o próprio Jaime. Uma investida poderia libertá-los, mas pareceu a Eddard Stark que tinham uma tática mais segura.
- Mate-me - disse ele ao Regicida - e Catelyn com certeza matará Tyrion.
Jaime Lannister empurrou o peito de Ned com a espada dourada que derramara o sangue do último dos reis-dragão.
- Mataria? A nobre Catelyn Tully de Correrrio, matar um refém? Penso... que não - suspirou. - Mas não estou disposto a arriscar a vida de meu irmão com a honra de uma mulher - Jaime recolheu a espada dourada à bainha. - Portanto, suponho que o deixarei correr para Robert, para lhe contar como o assustei. Pergunto-me se ele se importará - Jaime atirou os cabelos molhados para trás e virou o cavalo. Depois de ultrapassar a linha dos homens de armas, dirigiu-se ao capitão. - Tregar, certifique-se de que nenhum mal aconteça a Lorde Stark.
- Como quiser, senhor.
- Apesar disso... não vamos querer que ele saia daqui inteiramente impune, portanto - através da noite e da chuva, Ned vislumbrou o branco do sorriso de Jaime - mate seus homens.
- Não! - Ned Stark gritou, levando a mão à espada. Jaime já seguia a galope lento pela rua quando ouviu Wyl gritar.
Homens aproximavam-se de ambos os lados. Ned abateu um, lançando estocadas nos fantasmas em mantos vermelhos que caíam diante de si, Jory Cassei enterrou os calcanhares no cavalo e saiu em disparada. Um casco ferrado com aço pegou um guarda Lannister na cara com um cruncb repugnante.
Um segundo homem afastou-se cambaleando, e por um instante Jory esteve livre. Wyl praguejou quando o puxaram de cima do cavalo moribundo, com espadas golpeando entre a chuva. Ned galopou para ele, fazendo cair sua espada sobre o elmo de Tregar. A sacudidela do impacto o fez ranger os dentes. Tregar caiu de joelhos, com o leão do capacete fendido ao meio e o sangue escorrendo-lhe pelo rosto. Heward golpeava as mãos que tinham agarrado o freio de seu cavalo quando uma lança o acertou na barriga. De repente, Jory estava de novo entre eles, com uma chuva vermelha caindo de sua espada.
- Não! - gritou Ned. - Jory, afaste-se! - o cavalo de Ned escorregou debaixo dele e estatelou-se na lama. Houve um momento de uma dor cegante e um sabor de sangue na boca.
Ned os viu cortar as pernas do cavalo de Jory e arrastado para o chão, as espadas subindo e descendo quando o cercaram. Quando o cavalo de Ned voltou a se pôr em pé, o Senhor Stark tentou se levantar, mas voltou a cair, sufocado em seu grito. Viu o osso quebrado que espreitava da barriga de sua perna. Foi a última coisa que viu por algum tempo. A chuva caía, e caía, e caía.
Quando voltou a abrir os olhos, Lorde Eddard Stark estava só com seus mortos. Seu cavalo aproximou-se, detectou o desagradável cheiro de sangue e afastou-se a galope. Ned começou a arrastar-se pela lama, rangendo os dentes com a agonia que sentia na perna. Pareceu demorar anos. Rostos observavam de janelas iluminadas por velas, e então começou a aparecer gente de vielas e de portas, mas ninguém fez um gesto para ajudar.
Mindinho e a Patrulha da Cidade encontraram-no ali, na rua, embalando nos braços o corpo de Jory Cassei. Os homens de manto dourado tiraram de algum lugar uma maca, mas a viagem de volta ao castelo foi uma névoa de agonia, e Ned perdeu os sentidos mais de uma vez. Lembrava-se de ver a Fortaleza Vermelha erguer-se à sua frente à primeira luz cinzenta da alvorada. A chuva escurecera a pedra cor-de-rosa claro das maciças muralhas, deixando-as da cor do sangue. Logo a seguir era o Grande Meistre Pycelle quem se erguia à sua frente, segurando uma taça e sussurrando:
- Beba, senhor. Aqui. O leite da papoula, para suas dores - lembrava-se de engolir e de Pycelle dizer a alguém para aquecer o vinho até ferver e lhe arranjar seda limpa, e foi a última coisa que ouviu.  

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