O Portão
dos Cavalos de Vaes Dothrak era composto por dois gigantescos
garanhões de bronze, empinados, cujos cascos encontravam-se trinta
metros acima da estrada, formando um arco pontiagudo.
Dany não
saberia explicar por que necessitava a cidade de portão se não
tinha muralhas... tampouco edifícios que ela conseguisse ver. Mas
ali estava, imenso e belo, com os grandes cavalos enquadrando a
distante montanha púrpura atrás deles. Os garanhões de bronze
atiravam longas sombras sobre a grama ondulante quando Khal Drogo fez
o khalasar passar sob seus cascos e avançar ao longo do caminho dos
deuses, ladeado pelos seus companheiros de sangue.
Dany
seguia-os montada em sua prata, escoltada por Sor Jorah Mormont e o
irmão Viserys, de novo a cavalo. Depois do dia em que o abandonara,
naquele mar de plantas, para que regressasse a pé ao khalasar, os
dothrakis tinham passado a chamá-lo, entre risos, Khal Rhae Mhar, o
Rei dos Pés Feridos. Khal Drogo oferecera-lhe um lugar numa carroça
no dia seguinte, e Viserys aceitara. Na sua teimosa ignorância, nem
compreendera que zombavam dele: as carroças destinavam-se a eunucos,
aleijados, mulheres prestes a dar à luz, os muito jovens e os muito
velhos. Assim, ganhou mais um nome: Khal Rhaggat, o Rei Carroça. O
irmão de Dany pensara que o gesto era a maneira de o khal se
desculpar pelo mal que a irmã lhe fizera.. Ela pedira a Sor Jorah
que não lhe contasse a verdade, para que não se sentisse
envergonhado. O cavaleiro respondeu que um pouco de vergonha não
faria mal nenhum ao rei..., mas acabou fazendo o que ela pediu. Foram
necessárias muitas súplicas, e todos os truques de cama que Doreah
lhe ensinara, para que Dany conseguisse fazer com que Drogo aceitasse
que Viserys voltasse a se juntar à cabeça da coluna,
- Onde
está a cidade? - perguntou ao passarem sob o arco de bronze.
Não
havia edifícios à vista, nem pessoas, via-se apenas o campo e a
estrada, delimitada por fileiras de antigos monumentos provenientes
de todas as terras que os dothrakis tinham saqueado ao longo dos
séculos.
- Lá à
frente - respondeu Sor Jorah. - No sopé da montanha.
Para lá
do portão dos cavalos, deuses pilhados e heróis roubados erguiam-se
de ambos os lados da coluna. Divindades esquecidas de cidades mortas
ameaçavam o céu com seus relâmpagos quebrados quando Dany passou
com sua prata a seus pés. Reis de pedra olhavam-na do alto de seus
tronos, com os rostos lascados e manchados, e até os nomes perdidos
na névoa do tempo. Donzelas ágeis e jovens dançavam em pedestais
de mármore, vestidas apenas de flores, ou despejavam ar de jarras
estilhaçadas. Monstros erguiam-se no campo junto à estrada; dragões
negros de ferro com joias no lugar dos olhos, grifos rugidores,
manticoras com suas caudas de espinhos prontas para atacar e outras
bestas de que não conhecia o nome. Algumas das estátuas eram tão
belas que lhe roubavam a respiração; outras, tão disformes e
horríveis que Dany quase não suportava olhá-las. Estas últimas,
disse Sor Jorah, tinham provavelmente vindo das Terras das Sombras
para lá de Asshai.
- São
tantas - ela disse, enquanto sua prata avançava lentamente - e de
tantas terras.
Viserys
estava menos impressionado.
- O lixo
de cidades mortas - disse com desprezo, e tomando cuidado de falar no
Idioma Comum, que poucos dothrakis compreendiam, mas, mesmo assim,
Dany deu por si olhando de relance os homens do seu khal para se
assegurar de que não o tinham ouvido. Ele prosseguiu em tom jovial:
- Tudo o que esses selvagens sabem fazer é roubar as coisas que
homens melhores construíram... e matar - soltou uma gargalhada. -
Eles sabem mesmo como matar. De outro modo não teriam utilidade
alguma para mim.
- Eles
agora são o meu povo - disse Dany, - Não devia chamá-los de
selvagens, irmão.
- O
dragão fala como lhe apetece - disse Viserys... no Idioma Comum. Deu
uma olhadela por cima do ombro a Aggo e Rakharo, que seguiam atrás
deles, e concedeu-lhes um sorriso gozador. - Como veem, aos selvagens
falta a esperteza para compreender o discurso dos homens civilizados
- um monólito de pedra desgastada pelo musgo, com quinze metros de
altura, erguia-se sobre a estrada. Viserys olhou-o com tédio no
olhar. - Quanto tempo teremos de nos arrastar por entre essas ruínas
antes que Drogo me dê o meu exército? Estou ficando farto de
esperar.
- A
princesa tem de ser apresentada ao dosb khaleen...
- Às
feiticeiras, pois - interrompeu o irmão - e vai haver uma pantomima
qualquer de profecias por causa do cachorrinho que ela tem na
barriga, já sei. Que tenho eu com isso? Estou farto de comer carne
de cavalo, e o fedor desses selvagens me deixa doente - cheirou a
larga manga pendente de sua túnica, onde tinha por hábito colocar
um sache. Não ajudou grande coisa. A túnica estava nojenta. Todas
as sedas e pesadas lãs que Viserys tinha trazido de Pentos estavam
manchadas pela dura viagem e apodrecidas pelo suor.
Sor Jorah
Mormont disse:
- O
Mercado Ocidental terá alimentos mais do seu agrado, Vossa Graça.
Os mercadores das Cidades Livres vão lá vender seus produtos. A seu
tempo, o khal honrará sua promessa.
- É
melhor que o faça - disse Viserys em tom sombrio. - Foi-me prometida
uma coroa, e pretendo possuí-la. Ninguém escarnece do dragão - ao
ver uma obscena imagem de uma mulher com seis seios e cabeça de
furão, afastou-se para inspecioná-la mais de perto.
Dany
sentiu-se aliviada, mas não menos ansiosa.
- Rezo
para que o meu sol-e-estrelas não o deixe à espera por muito tempo
- disse a Sor Jorah quando o irmão se afastou o suficiente para não
ouvi-la.
O
cavaleiro olhou com dúvida para Viserys.
- Seu
irmão deveria ter esperado em Pentos. Não há lugar para ele num
khalasar. Illyrio tentou preveni-lo.
- Ele
partirá assim que tiver seus dez mil homens. O senhor meu esposo
prometeu uma coroa dourada.
Sor Jorah
soltou um grunhido.
- Sim,
Khaleesi, mas... os dothrakis olham para essas coisas de forma
diferente de nós, ocidentais. Já lhe disse isso, tal como Illyrio,
mas seu irmão não escuta. Os senhores dos cavalos não são
mercadores. Viserys pensa que a vendeu, e agora quer receber seu
pagamento. Mas Khal Drogo diria que a obteve de presente. Sim, dará
em troca um presente a Viserys... no momento que escolher. Não se
exige um presente, em especial a um khal. Não se exige nada de um
khal.
- Não
está certo fazê-lo esperar - Dany não sabia por que estava
defendendo o irmão, mas estava. - Viserys diz que poderia varrer os
Sete Reinos com dez mil guerreiros dothrakis.
Sor Jorah
resfolegou.
- Viserys
nem conseguiria varrer um estábulo com dez mil vassouras.
Dany não
podia fingir surpresa com o desdém na voz do cavaleiro.
- E se...
e se não fosse Viserys? - perguntou. - Se fosse outra pessoa a
liderá-los? Alguém mais forte? Poderiam realmente os dothrakis
conquistar os Sete Reinos?
O rosto
de Sor Jorah tomou uma expressão pensativa enquanto seus cavalos
avançavam juntos pelo caminho dos deuses.
- Nos
meus primeiros tempos de exílio, olhava para os dothrakis e via
bárbaros seminus, tão selvagens como seus cavalos. Se me tivesse
feito esta pergunta naquela época, princesa, eu teria dito que mil
bons cavaleiros não teriam dificuldade em pôr em debandada cem
vezes mais dothrakis.
- Mas e
agora?
- Agora -
disse o cavaleiro - estou menos seguro. Eles montam a cavalo melhor
que qualquer cavaleiro, são completamente destemidos, e seus arcos
têm maior alcance que os nossos. Nos Sete Reinos, a maior parte dos
arqueiros guerreia a pé, protegida por uma muralha ou por uma
barricada de paus aguçados. Os dothrakis disparam do dorso dos
cavalos, avançando ou em retirada, não importa, são tão
mortíferos de uma forma como de outra... e há tantos, senhora. Só
o senhor seu esposo conta com quarenta mil guerreiros montados no seu
khalasar.
- É
realmente tanto assim?
- Seu
irmão Rhaegar levou esse número de homens para o Tridente - admitiu
Sor Jorah - mas os cavaleiros não eram mais que um décimo. O resto
eram arqueiros, cavaleiros livres e soldados desmontados, armados de
lanças e piques. Quando Rhaegar caiu, muitos deixaram as armas e
fugiram do campo de batalha. Quanto tempo pensa que uma tal gentalha
aguentaria contra a carga de quarenta mil guerreiros, uivando com
sede de sangue? Quão bem os protegeriam seus coletes de couro
fervido e as cotas de malha quando as setas caíssem como chuva?
- Não
muito tempo - ela respondeu - e mal.
Ele
confirmou com a cabeça.
- Mas
note, princesa, que, se os senhores dos Sete Reinos tiverem a
esperteza que os deuses concederam a um ganso, nunca se chegará a
este ponto. Os cavaleiros do mar de plantas não apreciam as artes do
cerco. Duvido que conseguissem tomar até mesmo o mais fraco dos
castelos dos Sete Reinos. Mas se Robert Baratheon fosse
suficientemente tolo para lhes dar batalha...
- E é? -
perguntou Dany. - Um tolo?
Sor Jorah
ponderou por um momento.
- Robert
deveria ter nascido dothraki - disse por fim. - Vosso khal diria que
só um covarde se esconde atrás de muralhas de pedra em vez de
enfrentar o inimigo de espada na mão. O Usurpador concordaria. É um
homem forte, bravo... e suficientemente imprudente para defrontar uma
horda dothraki em campo aberto. Mas os homens em volta dele, bem, os
seus flautistas tocam outra melodia. O irmão Stannis, Lorde Tywin
Lannister, Eddard Stark... - cuspiu.
- O
senhor odeia esse Lorde Stark - disse Dany.
-
Roubou-me tudo o que amava por causa de uns quantos caçadores
furtivos piolhentos e de sua preciosa honra - disse Sor Jorah em tom
amargo. Ela compreendeu que a perda ainda lhe doía. O cavaleiro
mudou rapidamente de tema. - Ali está - anunciou, apontando. - Vaes
Dothrak. A cidade dos senhores dos cavalos.
Khal
Drogo e seus companheiros de sangue levaram-nos através do grande
bazar e do Mercado Ocidental, e pelas largas ruas em frente. Dany os
seguia de perto em sua prata, observando a estranheza que a rodeava.
Vaes Dothrak era ao mesmo tempo a maior e a menor cidade que já
vira. Calculou que devia ser dez vezes maior que Pentos, uma vastidão
sem muralhas nem limites, com largas ruas varridas pelo vento,
pavimentadas de capim e lama e atapetadas de flores silvestres. Nas
Cidades Livres do Oeste, as torres, as mansões, os casebres, as
pontes e as lojas amontoavam-se umas em cima das outras, mas Vaes
Dothrak espalhava-se langorosamente, tostando ao calor do sol,
antiga, arrogante e vazia.
Até os
edifícios eram muito estranhos aos seus olhos. Viu pavilhões de
pedra talhada, mansões de capim entrelaçado tão grandes como
castelos, vacilantes torres de madeira, pirâmides de degraus
revestidas de mármore, longos salões abertos ao céu. Em lugar de
muros, alguns locais estavam rodeados por sebes espinhosas.
- Nenhum
deles é parecido com outro - disse.
- Em
parte, seu irmão disse a verdade - admitiu Sor Jorah. - Os dothrakis
não constroem. Há mil anos, quando queriam fazer uma casa,
escavavam um buraco na terra e cobriam-no com um teto de capim
entrelaçado. Esses edifícios foram construídos por escravos
trazidos das terras que saquearam, e cada um foi erguido segundo o
estilo do respectivo povo. A maior parte das casas, até as maiores,
parecia deserta.
- Onde
estão as pessoas que vivem aqui? - Dany perguntou. O bazar estava
cheio de crianças correndo e homens gritando, mas fora dele vira
apenas alguns eunucos tratando de seus assuntos.
- Só as
feiticeiras do dosh khaleen vivem permanentemente na cidade sagrada,
elas e seus escravos e criados - respondeu Sor Jorah - mas Vaes
Dothrak é suficientemente grande para alojar todos os homens de
todos os khalasares, caso todos os khals decidam regressar ao mesmo
tempo à Mãe. As feiticeiras profetizaram que um dia isso
aconteceria e, portanto, Vaes Dothrak deve estar pronta para acolher
todos os seus filhos.
Khal
Drogo finalmente parou perto do Mercado Oriental, onde as caravanas
vindas de Yi Ti, Asshai e das Terras das Sombras vinham fazer negócio
com a Mãe das Montanhas erguida sobre suas cabeças. Dany sorriu ao
recordar a jovem escrava de Magíster Illyrio e sua conversa sobre um
palácio com duzentos quartos e portas de prata maciça. O "palácio"
era um cavernoso salão de festas feito de madeira, cujas paredes
rudemente talhadas se elevavam a mais de dez metros de altura, com um
teto de seda cosida, uma vasta tenda ondulada que podia ser montada
para afastar as raras chuvas, ou desmontada para acolher o céu sem
fim. Em torno do salão havia grandes pátios para cavalos, cheios de
capim, delimitados por sebes altas, covas para fogueiras e centenas
de casas redondas de terra que se projetavam do chão como colinas em
miniatura, cobertas de hera.
Um
pequeno exército de escravos adiantara-se à coluna para realizar os
preparativos para a chegada de Khal Drogo. Cada guerreiro que
saltasse da sela tirava do cinto o arakb e o entregava a um escravo
que se encontrava à espera, fazendo o mesmo com as demais armas que
transportava. Nem o próprio Khal Drogo estava isento daquela
obrigação. Sor Jorah explicara que em Vaes Dothrak era proibido
transportar uma lâmina ou derramar o sangue de um homem livre. Até
khalasares em guerra punham de lado suas divergências e partilhavam
a comida e a bebida à vista da Mãe das Montanhas. Naquele lugar,
segundo o que as feiticeiras do dosh khaleen tinham decretado, todos
os dothrakis eram um só sangue, um só khalasar, uma só manada.
Cohollo
aproximou-se de Dany quando Irri e Jhiqui a ajudavam a descer de sua
prata. Era o mais velho dos três companheiros de sangue de Drogo, um
homem atarracado e calvo, com um nariz torcido e a boca cheia de
dentes partidos, estilhaçados por uma clava vinte anos antes, quando
salvara o jovem khalakka de mercenários que esperavam vende-los aos
inimigos do pai. Sua vida ficara ligada à de Drogo no dia em que o
senhor esposo de Dany nascera.
Todos os
khals tinham os seus companheiros de sangue. A princípio Dany os via
como uma espécie de Guarda Real Dothraki, sob o juramento de
proteger seu senhor, mas eram mais que isso. Jhiqui ensinara-lhe que
o companheiro de sangue era mais que um guarda; eram os irmãos do
khal, suas sombras, os mais ferozes de seus amigos. "Sangue do
meu sangue", era como Drogo lhes chamava, e assim era;
partilhavam uma só vida. As antigas tradições dos senhores dos
cavalos exigiam que quando o khal morresse seus companheiros de
sangue morressem com ele, para cavalgar a seu lado nas terras da
noite. Se o khal morresse pelas mãos de algum inimigo, viveriam
apenas o suficiente para vingá-lo, e então o seguiriam alegremente
para a sepultura. Jhiqui dizia que, em alguns khalasares, os
companheiros de sangue partilhavam o vinho do khal, sua tenda e até
suas esposas, embora nunca os seus cavalos. A montaria de um homem
era apenas sua.
Daenerys
sentia-se feliz por Khal Drogo não aderir a esses costumes antigos.
Não teria gostado de ser partilhada. E conquanto o velho Cohollo a
tratasse com bastante gentileza, os outros a assustavam; Haggo,
enorme e silencioso, fitava-a com frequência com um ar ameaçador,
como se tivesse se esquecido de quem ela era, e Qotho tinha uns olhos
cruéis e mãos rápidas que gostavam de machucar. Deixava nódoas
negras na suave pele branca de Doreah sempre que a tocava, e por
vezes deixava Irri soluçando na noite. Até seus cavalos pareciam
temê-lo.
No
entanto, estavam ligados a Drogo para a vida e para a morte, e
Daenerys não tinha alternativa senão aceitá-los. E por vezes dava
por si desejando que o pai tivesse sido protegido por homens assim.
Nas canções, os cavaleiros brancos da Guarda Real eram sempre
nobres, valentes e leais, mas o Rei Aerys tinha sido assassinado por
um deles, o rapaz bonito a quem chamavam agora Regicida, e um
segundo, Sor Barristan, o Ousado, passara para o lado do Usurpador.
Gostaria
de saber se nos Sete Reinos todos os homens eram assim tão falsos.
Quando seu filho ocupasse o Trono de Ferro, iria assegurar-se de que
teria os seus próprios companheiros de sangue a fim de protegê-lo
contra a traição na Guarda Real,
-
Khaleesi - disse-lhe Cohollo, em dothraki. - Drogo, sangue do meu
sangue, ordena-me que lhe diga que ele tem de subir esta noite a Mãe
das Montanhas, a fim de sacrificar aos deuses pelo seu regresso em
segurança.
Dany
sabia que só se permitia aos homens pôr o pé na Mãe. Os
companheiros de sangue do khal iriam com ele, e regressariam na
alvorada.
- Diz ao
meu sol-e-estrelas que sonho com ele e espero ansiosa seu regresso -
ela respondeu, agradecida. Dany ia se cansando mais facilmente à
medida que a criança crescia dentro de si; a verdade era que uma
noite de descanso seria muito bem-vinda. A gravidez só parecia ter
inflamado o desejo de Drogo por ela, e nos últimos tempos seus
abraços a deixavam exausta.
Doreah a
levou para a colina oca que tinha sido preparada para ela e para o
khal. Lá dentro fazia frio e estava escuro, como numa tenda feita de
terra.
- Jhiqui,
um banho, por favor - ordenou, para lavar da pele a poeira da viagem
e encharcar os ossos cansados. Era agradável saber que ficariam ali
por algum tempo, que não precisaria montar sua prata quando a manhã
chegasse.
A água
escaldava, tal como ela gostava.
- Darei
esta noite os presentes ao meu irmão - decidiu, enquanto Jhiqui lhe
lavava o cabelo. - Ele deve parecer um rei na cidade sagrada. Doreah,
corra à sua procura e o convide para jantar comigo - Viserys era
mais simpático com a lysena do que com suas aias dothrakis, talvez
porque Magíster Illyrio o deixara dormir com ela em Pentos - Irri,
vá ao bazar e compre frutas e carne. Qualquer coisa, menos carne de
cavalo.
- Cavalo
é melhor - Irri retrucou. - Cavalo torna um homem mais forte.
- Viserys
detesta carne de cavalo.
- Como
quiser, Khaleesi.
Regressou
com um pernil de carneiro e um cesto de frutas e legumes. Jhiqui
assou a carne tom ervamel e vagem-de-fogo, untando-a com mel enquanto
assava; e havia melões, romãs e ameixas, e uma estranha fruta
oriental que Dany não conhecia. Enquanto as aias preparavam a
refeição, Dany desempacotou a roupa que tinha mandado fazer sob
medida para o irmão: uma túnica e calções de fresco linho branco,
sandálias de couro atadas no joelho, um cinto com medalhão de
bronze, um colete de couro pintado com dragões que exalavam fogo.
Esperava que os dothrakis o respeitassem mais caso se parecesse menos
com um pedinte, e talvez a perdoasse por tê-lo envergonhado naquele
dia no campo. Afinal de contas, ainda era o seu rei e seu irmão.
Eram ambos sangue do dragão.
Estava
preparando o último dos presentes, um manto de sedareia, verde como
a mata, com um debrum cinza-claro que realçaria o prateado de seu
cabelo, quando Viserys chegou, arrastando Doreah pelo braço. O olho
da mulher estava vermelho onde ele lhe batera.
- Como se
atreve a enviar esta rameira para me dar ordens? - disse e atirou
rudemente a aia ao tapete.
A ira
apanhou Dany completamente de surpresa.
- Só
quis... Doreah, o que você lhe disse?
-
Khaleesi, mil desculpas, perdoe-me. Fui falar com ele, como me pediu,
e lhe disse que a senhora mandou que à senhora se juntasse para o
jantar,
- Ninguém
manda no dragão - rosnou Viserys. - Eu sou o seu rei! Devia ter lhe
devolvido a cabeça dela!
A jovem
lysena vacilou, mas Dany a acalmou com um toque.
- Não
tenha medo, ele não te fará mal. Querido irmão, por favor, perdoe,
a moça se confundiu nas palavras, eu lhe disse que pedisse a você
que se juntasse a mim para o jantar, se isso fosse do agrado de Vossa
Graça - pegou-o pela mão e o fez atravessar o quarto. - Olhe. Isto
é para você - Viserys franziu as sobrancelhas, cheio de suspeita.
- Que é
tudo isso?
- Roupas
novas. Mandei fazer para você - Dany sorriu timidamente. Ele a olhou
e escarneceu.
- Trapos
dothrakis. Agora se atreve a me vestir?
- Por
favor... Ficará mais fresco e confortável, e pensei... talvez, que,
se se vestisse como eles, os dothrakis... - Dany não sabia como
dizer o que pretendia sem acordar o dragão.
- A
seguir há de querer entrançar meu cabelo.
- Eu
nunca... - por que ele era sempre tão cruel? Ela só queria ajudar.
- Não tem direito a uma trança, ainda não obteve nenhuma vitória.
Foi a
coisa errada a dizer. A fúria brilhou nos olhos lilases do irmão,
mas ele não se atreveu a bater nela com as criadas observando e os
guerreiros do seu khas à porta. Viserys apanhou o manto e o cheirou.
- Isto
fede a estrume. Talvez o use como coberta para o cavalo.
- Mandei
que Doreah o cosesse especialmente para você - ela disse, ferida. -
São roupas dignas de um khal
- Eu sou
o Senhor dos Sete Reinos, não um selvagem manchado pelo mato e com
campainhas no cabelo - Viserys gritou e agarrou o braço da irmã. -
Esquece-se de quem você é, sua puta. Acha que aquele barrigudo te
protegerá se acordar o dragão?
Os dedos
dele enterraram-se dolorosamente em seu braço, e por um instante
Dany sentiu-se de novo criança, vacilando perante sua raiva.
Estendeu a outra mão e agarrou a primeira coisa que tocou, o cinto
que esperara lhe oferecer, uma pesada corrente de medalhões
ornamentados de bronze. Brandiu-o com toda sua força. Atingiu-o em
cheio no rosto. Viserys a largou. Sangue correu de sua bochecha, onde
a saliência de um dos medalhões a cortou.
- É você
quem se esquece de quem é - ela disse. - Não aprendeu nada naquele
dia no campo? Saia daqui imediatamente, antes que eu chame meu khas
para te arrastar para a rua. E reze para que Khal Drogo não ouça
falar disto, porque, se ouvir, lhe abrirá a barriga e lhe dará para
comer suas próprias entranhas.
Viserys
pôs-se em pé atabalhoadamente.
- Quando
ganhar o meu reino, lamentará este dia, puta - e saiu, agarrado ao
rosto ferido, deixando os presentes para trás.
Gotas de
seu sangue tinham borrifado o belo manto de sedareia. Dany encostou o
suave tecido na face e sentou-se de pernas cruzadas sobre as esteiras
de dormir.
- Seu
jantar está pronto, Khaleesi -Jhiqui anunciou.
- Não
tenho fome - disse Dany com voz triste. Ficara subitamente muito
cansada. - Divida a comida entre vocês, e envie alguma a Sor Jorah,
por favor - após um momento, acrescentou: - Por favor, alguém me
traga um dos ovos de dragão,
Irri foi
buscar o ovo com a casca de um profundo tom verde, que mostrava
salpicos de bronze entre as escamas quando o virava nas pequenas
mãos. Dany enrolou-se de lado, puxando o manto de sedareia sobre o
corpo e aninhando o ovo no espaço entre a barriga inchada e os
pequenos e tenros seios.
Gostava
de pegar neles. Eram tão belos, e, por vezes, o simples fato de
estar junto deles a fazia sentir-se mais forte, mais corajosa, como
se de alguma forma retirasse força dos dragões de pedra encerrados
lá dentro. Estava ali deitada, agarrada ao ovo, quando sentiu o bebê
mover-se na barriga... como se estivesse estendendo uma mão, irmão
para irmão, sangue para sangue.
- Você é
o dragão - segredou Dany para o filho - o dragão verdadeiro. Eu
sei. Eu sei - sorriu, e adormeceu sonhando com a terra natal.
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