quinta-feira, 19 de setembro de 2013

11 - A FILHA DA LULA GIGANTE



O salão ressoava de Harlaws bêbados, todos eles primos afastados. Todos os senhores tinham pendurado seu estandarte por trás dos bancos onde seus homens se sentavam. Não bastam, pensou Asha Greyjoy, olhando-os da galeria, são muito menos do que seria necessário. Três quartos dos bancos encontravam-se vazios.
Qarl, o Donzel, já o dissera, quando Vento Negro se aproximava, vindo do mar. Contara os dracares atracados à sombra do castelo do tio, e sua boca se comprimira:
- Eles não vieram - observara - ou pelo menos não vieram em número suficiente - não estava enganado, mas Asha não podia concordar com ele num local onde sua tripulação pudesse ouvir. Não duvidava da devoção de seus homens, mas até os homens de ferro hesitariam em dar a vida por uma causa que estivesse claramente perdida.
Tenho assim tão poucos amigos? Entre os estandartes, viu o peixe prateado de Botley, a árvore de pedra dos Stonetree, o leviatã negro de Volmark, os nós corredios dos Myre. O resto eram foices Harlaw. Boremund usava a sua em fundo azul-claro, a de Hotho estava encerrada numa bordadura crenada, e o Cavaleiro esquartelara a sua com o garrido pavão da Casa da mãe. Até Sigfryd Cabelo-de-Prata ostentava duas foices emaranhadas em fundo dividido por faixas. Só Lorde Harlaw exibia a foice de prata simples em fundo negro como a noite, tal como esvoaçara na aurora dos tempos; Rodrik, dito o Leitor, Senhor das Dez Torres, Senhor de Harlaw, o Harlaw de Harlaw... seu tio preferido.
O cadeirão de Lorde Rodrik encontrava-se vazio. Duas foices de prata batida cruzavam-se por cima dele, de tal modo enormes que até um gigante teria dificuldade em brandi-las, mas por baixo encontravam-se apenas almofadas vazias. Asha não estava surpresa. O banquete já se concluíra havia muito. Só restavam ossos e as bandejas engorduradas sobre as mesas de montar. O resto era beber, e o tio Rodrik nunca apreciara a companhia de bêbados briguentos.
Virou-se para Três-Dentes, uma velha de idade temível que fora intendente do tio desde o tempo em que era conhecida como a Doze-Dentes.
- Meu tio está com os seus livros?
- Sim, onde mais estaria? - a mulher era tão velha que um septão dissera certo dia que devia ter dado de mamar à Velha. Isto acontecera nos tempos em que a Fé ainda era tolerada nas ilhas. Lorde Rodrik tivera septões nas Dez Torres, não a bem de sua alma, mas da de seus livros. - Com os livros e com Botley. Também está com ele.
O estandarte dos Botley estava pendurado no salão, um cardume de peixes prateados sobre fundo verde-claro, embora Asha não tivesse visto seu Lesta Barbatana entre os outros dracares.
- Ouvi dizer que meu tio Olho de Corvo tinha mandado afogar o velho Sawane Botley.
- Este é o Lorde Tristifer Botley.
Tris. Perguntou a si mesma o que teria acontecido ao filho mais velho de Sawane, Harren. Descobrirei em breve, sem dúvida. Isso será embaraçoso. Já não via Tris Botley desde... não, não devia relembrar aquilo.
- E a senhora minha mãe?
- Na cama - Três-Dentes respondeu - na Torre da Viúva.
Claro, onde havia de ser? A viúva que dera o nome à torre era sua tia. A Senhora Gwynesse voltara para casa para fazer luto depois de o marido ter morrido ao largo da Ilha Bela durante a primeira rebelião de Balon Greyjoy.
- Ficarei só até que me passe o desgosto - foram as famosas palavras que dissera ao irmão - embora por direito as Dez Torres devessem ser minhas, porque sou mais velha do que você sete anos - longos anos tinham se passado desde então, mas a viúva ainda permanecia lá, de luto, resmungando de vez em quando que o castelo devia ser seu. E agora Lorde Rodrik tem uma segunda irmã viúva meio louca sob seu telhado, Asha refletiu. Pouco admira que procure refúgio nos livros.
Mesmo agora era difícil crer que a frágil e enfermiça Senhora Alannys tinha sobrevivido ao marido, Lorde Balon, que parecia tão duro e forte. Quando Asha partira para a guerra, fizera-o de coração pesado, temendo que a mãe pudesse morrer antes de ter tempo de regressar. Nem uma vez pensara que pudesse ser o pai a perecer. O Deus Afogado prega-nos peças selvagens a todos, mas os homens são ainda mais cruéis. Uma tempestade súbita e uma corda quebrada tinham atirado Balon Greyjoy para a morte. Pelo menos é o que dizem.
A última vez que Asha vira a mãe foi quando aportara nas Dez Torres para embarcar água fresca, a caminho do Norte e do ataque a Bosque Profundo. Alannys Harlaw nunca teve o tipo de beleza que os cantores apreciavam, mas a filha adorava seu rosto feroz e forte e o riso em seus olhos. Naquela última visita, porém, encontrara a Senhora Alannys num banco de janela, aninhada debaixo de uma pilha de peles, de olhos fitos no mar. Isto é a minha mãe, ou o seu fantasma? Lembrava-se de ter pensado ao beijá-la no rosto.
Encontrara a pele da mãe fina como pergaminho, e seus longos cabelos estavam brancos. Restava algum orgulho no modo como erguia a cabeça, mas os olhos estavam baços e enevoados, e a boca tremera quando lhe perguntara por Theon.
- Trouxe o meu menino? - perguntou, Theon tinha dez anos quando fora levado para Winterfell como refém, e no que tocava à Senhora Alannys teria sempre dez anos, aparentemente.
- Theon não pôde vir - teve de lhe dizer - O pai o mandou pilhar ao longo da Costa Pedregosa - Senhora Alannys não arranjara nada para responder àquilo. Limitara-se a assentir lentamente, mas era evidente que as palavras da filha tinham sido um golpe profundo.
E agora tenho de lhe dizer que Theon está morto, e lhe espetar mais um punhal no coração. Onde já havia duas facas enterradas. Nas lâminas estavam escritas as palavras Rodrik e Maron, e era frequente torcerem-se cruelmente na noite. Vou vê-la amanhã, prometeu Asha a si mesma. A viagem era longa e cansativa, não podia enfrentar a mãe agora.
- Tenho de falar com Lorde Rodrik - disse a Três-Dentes. - Cuide da minha tripulação, depois de acabarem de descarregar o Vento Negro. Trarão cativos. Quero que tenham camas mornas e uma refeição quente.
- Há carne de vaca fria nas cozinhas. E mostarda num grande pote de pedra, de Vilavelha - pensar naquela mostarda fez a velha sorrir. Um único dente, longo e marrom, espreitou de suas gengivas.
- Isto não servirá. Tivemos uma travessia dura. Quero que eles tenham qualquer coisa quente na barriga - Asha enfiou um polegar no cinto tachonado que lhe envolvia as ancas. - Lorde Glover e os filhos não devem sentir falta de madeira ou de calor. Coloque-os em alguma torre, não nas masmorras. O bebê está doente.
- Os bebês sempre ficam doentes. A maioria morre, e a gente tem pena. Vou perguntar ao senhor onde pôr essa gente-lobo.
Asha apertou o nariz da mulher entre o polegar e o indicador.
- Você vai fazer o que eu disse. E se esse bebê morrer, ninguém terá mais pena do que você. - Três-Dentes soltou um guincho e prometeu obedecer. Asha soltou-a e foi em busca do tio.
Era bom voltar a percorrer aqueles salões. Sempre se sentira em casa em Dez Torres, mais do que em Pyke. Não é um castelo, são dez castelos espremidos uns contra os outros, ela pensara na primeira vez que o vira. Lembrava-se de corridas sem fôlego pelas escadas e ao longo de adarves e pontes cobertas, de pescar no Longo Cais de Pedra, de dias e noites perdidos no meio da abundância de livros do tio. Tinha sido o avô de seu avô quem construíra o castelo, o mais novo das ilhas. Lorde Theomore Harlaw perdera três filhos no berço e culpava por isso os porões inundados, as pedras úmidas e o salitre putrefato do antigo Solar de Harlaw. Dez Torres era mais arejado, mais confortável, mais bem situado... mas Lorde Theomore fora um homem inconstante, como qualquer de suas esposas poderia ter testemunhado. Tivera seis, tão diferentes umas das outras como suas dez torres.
A Torre dos Livros era a maior das dez, de forma octogonal feita com grandes blocos de pedra cinzelada. A escada tinha sido construída por dentro das espessas paredes. Asha subiu rapidamente, até o quinto andar e à seção onde o tio lia. Não que haja alguma seção em que ele não leia. Lorde Rodrik raramente era visto sem um livro na mão, fosse na latrina, no convés de seu Canção do Mar, ou enquanto concedia audiência. Asha vira-o frequentemente lendo no cadeirão sob as foices de prata. Escutava cada caso que lhe era apresentado, pronunciava a sentença... e lia um pouco enquanto o capitão dos guardas ia buscar o próximo suplicante.
Encontrou-o debruçado sobre uma mesa, junto a uma janela, cercado de rolos de pergaminho que podiam ter vindo da Valíria de antes da Destruição, e pesados livros encadernados em couro com fechos de bronze e ferro. Velas de cera de abelha tão grossas e altas como o braço de um homem ardiam de ambos os lados do local onde se sentava, apoiadas em ornamentados suportes de ferro. Lorde Rodrik Harlaw não era nem gordo nem magro; nem alto nem baixo; nem feio nem bonito. Tinha cabelos castanhos, tal como os olhos, embora a barba curta e bem cuidada preferia tivesse embranquecido. Em geral, era um homem comum, que se distinguia apenas por seu amor pelas palavras escritas, que tantos homens de ferro achavam pouco viril e intimidador.
- Tio - fechou a porta atrás de si - Que leitura era tão urgente para levá-lo a deixar seus convidados sem anfitrião?
- O Livro dos Livros Perdidos do Arquimeistre Marwyn - ergueu o olhar da página para estudá-la. - Hotho trouxe-me uma cópia de Vilavelha. Tem uma filha com quem quer que eu case - Lorde Rodrik tamborilou no livro com uma longa unha. - Vê isto? Marwyn afirma ter achado três páginas de Sinais e Portentos, visões escritas pela filha donzela de Aenar Targaryen, antes de a Destruição cair sobre Valíria. Lanny sabe que está aqui?
- Por enquanto não - Lanny era o nome carinhoso que dava à mãe de Asha; só o Leitor a chamava assim. - Deixe-a descansar - Asha tirou uma pilha de livros de um banco e se sentou. - Três-Dentes parece ter perdido mais dois dos seus. Agora a chama de Um-Dente?
- Quase não a chamo de todo. A mulher me assusta. Que horas são? - Lorde Rodrik lançou um relance pela janela, para o mar iluminado pelo luar. - Escuro, tão cedo? Não tinha reparado. Veio tarde. Procuramos você há alguns dias.
- Os ventos estiveram contrários, e tive de me preocupar com cativos. A mulher e os filhos de Robett Glover. O mais novo ainda está ao peito, e o leite da Senhora Glover secou durante a travessia. Não tive alternativa senão dar com o Vento Negro em seco na Costa Pedregosa e fazer meus homens saírem à procura de uma ama de leite. Em vez disso, encontraram uma cabra. A menina não se desenvolve. Há alguma mãe amamentando na aldeia? Bosque Profundo é importante para os meus planos.
- Seus planos têm de mudar. Chegou tarde demais.
- Tarde e com fome - esticou as longas pernas por baixo da mesa e virou as páginas do livro mais próximo, o discurso de um septão sobre a guerra de Maegor, o Cruel, contra os Pobres Companheiros. - Oh, e também com sede. Um corno de cerveja iria bem, tio.
Lorde Rodrik franziu os lábios:
- Bem sabe que não autorizo comida ou bebida na biblioteca. Os livros...
- ... podem sofrer danos - Asha soltou uma gargalhada.
O tio franziu as sobrancelhas:
- Gosta mesmo de me provocar.
- Oh, não faça esse ar ofendido. Nunca conheci um homem que eu não provocasse, já devia saber disso bastante bem a essa altura. Mas basta de falar de mim. Está bem?
Ele encolheu os ombros:
- Suficientemente bem. Meus olhos estão enfraquecendo. Mandei encomendar em Myr uma lente que me ajude a ler.
- E como passa minha tia?
Lorde Rodrik suspirou:
- Continua a ser sete anos mais velha do que eu, e convencida de que Dez Torres devia lhe pertencer. Gwynesse está se tomando esquecida, mas disto não se esquece. Faz luto tão profundo por seu marido como no dia em que ele morreu, embora nem sempre consiga se lembrar do nome do homem.
- Não estou certa de ela ter alguma vez sabido o nome dele - Asha fechou o livro do septão com estrondo. - Meu pai foi assassinado?
- Sua mãe acredita que sim.
Houve momentos em que ela mesma o teria assassinado de bom grado, pensou.
- E em que acredita meu tio?
- Balon caiu para a morte quando uma ponte de corda se rompeu debaixo de si. Uma tempestade estava se aproximando, e a ponte balançava e torcia-se com cada rajada de vento - Rodrik encolheu os ombros. - Pelo menos é o que nos foi dito. Sua mãe recebeu uma ave do Meistre Wendamyr.
Asha desembainhou o punhal e pôs-se a limpar as unhas.
- Três anos longe, e o Olho de Corvo regressa no preciso dia em que meu pai morre.
- No dia seguinte, segundo ouvimos dizer. Silêncio ainda estava no mar quando Balon morreu, ou pelo menos é isto que se afirma. Mesmo assim, concordo que o regresso de Euron foi... combinado, digamos?
- Não seria desse modo que eu diria - Asha espetou a ponta do punhal na mesa. - Onde estão os meus navios? Contei duas vintenas de dracares atracados lá embaixo, nem de perto o suficiente para arrancar o Olho de Corvo da cadeira de meu pai.
- Eu enviei as convocatórias. Em seu nome, pelo amor que tenho por ti e por sua mãe. A Casa Harlaw reuniu-se. Os Stonetree também, tal como os Volmark Alguns Myre...
- Todos da ilha de Harlaw... uma ilha entre sete. Vi no salão um estandarte solitário dos Botley, de Pyke. Onde estão os navios de Salésia, dos Orkwood, das Wyks?
- Baelor Blacktyde veio de Pretamare me consultar, e voltou logo a zarpar - Lorde Rodrik fechou o Livro dos Livros Perdidos. - A essa altura está na Velha Wyk.
- Na Velha Wyk? - Asha temera que ele se preparasse para dizer que tinham ido todos para Pyke, para prestar homenagem ao Olho de Corvo. - Velha Wyk, por quê?
- Achei que soubesse. Aeron Cabelo-Molhado convocou uma assembleia de homens livres.
Asha atirou a cabeça para trás e rebentou em gargalhadas.
- O Deus Afogado deve ter enfiado um peixe-espinho pelo cu do tio Aeron. Uma assembleia de homens livres? Isso é alguma brincadeira, ou será que ele está falando sério?
- Cabelo-Molhado não brinca desde que foi afogado. E os outros sacerdotes seguiram-no na convocatória. Beron Cego Blacktyde, Tarle, o Triplamente-Afogado... até a Velha Gaivota Cinzenta deixou o rochedo em que vive para pregar essa assembleia por toda a ilha de Harlaw. Os capitães estão se reunindo em Velha Wyk neste exato momento.
Asha estava espantada.
- Olho de Corvo concordou em estar presente nessa farsa sagrada e respeitar a sua decisão?
- Olho de Corvo não me faz confidências. Desde que me chamou a Pyke para lhe prestar homenagem, não tive notícias de Euron.
Uma assembleia de homens livres. Isto é algo novo... ou melhor, algo muito antigo.
- E meu tio Victarion? O que pensa ele da ideia do Cabelo-Molhado?
- Foi enviada a Victarion a notícia da morte do seu pai. E dessa assembleia também, não tenho dúvidas. Para além disso, não sei dizer.
Antes uma assembleia do que um a guerra.
- Acho que vou beijar os pés fedorentos do Cabelo-Molhado e tirar as algas de entre seus dedos - Asha desenterrou o punhal e voltou a embainhá-lo. - Uma maldita assembleia de homens livres!
- Em Velha Wyk - Lorde Rodrik confirmou. - Embora eu reze para que não se torne maldita. Tenho andado consultando a História dos Homens de Ferro, de Haereg. Da última vez que os reis do sal e os reis da rocha se encontraram numa assembleia de homens livres, Urron de Montrasgo deixou seus homens com machados à solta entre os outros, e as costelas de Nagga ficaram vermelhas de sangue e tripas. A Casa Greyiron governou sem ser escolhida durante mil anos após esse dia negro, até a chegada dos ândalos.
- Precisa me emprestar o livro de Haereg, tio - teria de aprender tudo o que pudesse sobre as assembleias antes de chegar a Velha Wyk.
- Pode lê-lo aqui. É velho e frágil - Rodrik a estudou, franzindo as sobrancelhas. - O Arquimeistre Rigney escreveu um dia que a história é uma roda, pois a natureza do homem é fundamentalmente imutável. O que aconteceu antes irá forçosamente voltar a acontecer, ele disse. Penso nisso sempre que reflito sobre Olho de Corvo. Euron Greyjoy soa estranhamente semelhante a Urron Greyiron a estes velhos ouvidos. Não irei a Velha Wyk. E você também não devia ir.
Asha sorriu:
- E perder a primeira assembleia de homens livres convocada em... há quanto tempo foi, tio?
- Quatro mil anos, se Haereg for digno de crédito. Metade disso, se aceitar os argumentos do Meistre Denestan em Questões. Ir a Velha Wyk não terá utilidade alguma. Esse sonho de realeza é uma loucura em nosso sangue. Eu disse isso ao seu pai da primeira vez que se revoltou, e é mais verdade agora do que era àquela altura. Precisamos é de terra, não de coroas. Com Stannis Baratheon e Tywin Lannister lutando pelo Trono de Ferro, temos uma rara oportunidade de melhorar nossa sorte. Tomemos o lado de um ou do outro, ajudemo-lo a chegar à vitória com as nossas frotas e reivindiquemos as terras de que necessitamos junto de um rei grato.
- Isso pode valer alguma reflexão, depois de eu ocupar a Cadeira de Pedra do Mar - Asha observou.
O tio suspirou:
- Não vai querer ouvir isto, Asha, mas não será escolhida. Nunca uma mulher governou os homens de ferro. Gwynesse é sete anos mais velha do que eu, mas quando nosso pai morreu, as Dez Torres passaram para mim. Acontecerá o mesmo com você. É a filha de Balon, não seu filho. E tem três tios.
- Quatro.
- Três tios da lula gigante. Eu não conto.
- Para mim, conta. Enquanto tiver meu tio das Dez Torres, tenho Harlaw - Harlaw não era a maior das Ilhas de Ferro, mas a mais rica e a mais populosa, e não se podia desprezar o poderio de Lorde Rodrik. Em Harlaw, Harlaw não tinha rival. Os Volmark e Stonetree possuíam grandes propriedades na ilha e gabavam-se de contar famosos capitães e ferozes guerreiros entre os seus, mas até os mais ferozes se dobravam diante da foice. Os Kenning e os Myre, em tempos amargos inimigos, havia muito tinham sido transformados à força em vassalos.
- Meus primos são fiéis a mim, e na guerra deverão comandar suas espadas e velas. Mas numa assembleia de homens livres... -Lorde Rodrik balançou a cabeça - A sombra dos ossos de Nagga cada capitão é igual aos demais. Alguns podem gritar seu nome, não duvido. Mas não serão suficientes. E quando os gritos ressoarem por Victarion ou pelo Olho de Corvo, alguns daqueles que agora bebem em meu salão se juntarão aos outros. Volto a dizer: não zarpe em direção a essa tempestade. Sua luta não tem esperança.
- Nenhuma luta está perdida até ser travada. A melhor pretensão é a minha. Sou a herdeira nascida do corpo de Balon.
- Continua a ser uma criança obstinada. Pense em sua pobre mãe. É tudo o que resta a Lanny. Seria capaz de jogar um archote no Vento Negro para mantê-la aqui.
- O quê? E me obrigar a ir a nado até Velha Wyk?
- Uma longa travessia em água fria, por uma coroa que não poderá manter. Seu pai tinha mais coragem do que bom-senso. O Costume Antigo serviu bem às ilhas quando éramos um pequeno reino entre muitos, mas a Conquista de Aegon pôs fim a isso. Balon recusou-se a ver o que estava bem diante de seus olhos. O Costume Antigo morreu com Harren Negro e os filhos.
- Eu sei disso - Asha amara o pai, mas não se iludia. Balon fora cego a respeito de certas coisas. Um homem corajoso, mas um mau senhor. - Isso significa que temos de viver e morrer como servos do Trono de Ferro? Se há rochedos a estibordo e uma tempestade a bombordo, um capitão sensato traça uma terceira rota.
- Mostre-me essa terceira rota.
- Mostrarei... na assembleia de homens livres. Tio, como pode sequer pensar em não ir? Isso será história, viva...
- Prefiro minha história morta. Esta escreve-se com tinta, e a espécie viva, com sangue.
- Quer morrer velho e covarde na cama?
- Que outro modo existe? Embora não até que acabe de ler - Lorde Rodrik dirigiu-se à janela. - Não perguntou pela senhora sua mãe.
Tive medo.
- Como ela está?
- Mais forte. Ainda poderá sobreviver a todos. Irá certamente sobreviver a você, se persistir nessa loucura. Come mais do que comia quando chegou aqui, e com frequência dorme a noite inteira.
- Ótimo - em seus últimos anos em Pyke, a Senhora Alannys não conseguia dormir. Vagueava à noite pelos salões com uma vela à procura dos filhos. “Maron?", gritava com voz estridente.“Rodrik, onde está? Theon, meu bebê, venha para a mãe." Muitas tinham sido as vezes em que Asha vira o meistre tirar farpas dos calcanhares da mãe, de manhã, depois de ela ter atravessado descalça a oscilante ponte de tábuas até a Torre do Mar. - Vou vê-la de manhã.
- Ela há de lhe perguntar notícias de Theon.
O Príncipe de Winterfell.
- O que foi que lhe disse?
- Pouco e menos um pouco. Nada havia para dizer - hesitou. - Tem certeza de que está morto?
- Não tenho certeza de nada.
- Encontrou um corpo?
- Encontramos pedaços de muitos corpos. Os lobos estiveram lá antes de nós... os de quatro patas, mas pouca reverência mostraram por seus familiares de duas. Os ossos dos mortos estavam espalhados e foram quebrados para chegar ao tutano. Confesso que foi difícil perceber o que tinha acontecido naquele lugar. Parece que os nortenhos lutaram entre si.
- Os corvos lutam pela carne de um morto e matam-se uns aos outros por seus olhos - Lorde Rodrik estendeu os olhos para o mar, observando o jogo que o luar disputava com as ondas. - Tivemos um rei, depois cinco. Agora tudo que vejo são corvos em disputa pelo cadáver de Westeros - fechou as janelas. - Não vá à Velha Wyk, Asha. Fique com sua mãe. Temo que não a tenhamos conosco por muito tempo.
Asha mexeu-se no banco:
- Minha mãe educou-me para ser ousada. Se não for, passarei o resto da minha vida perguntando a mim mesma o que poderia ter acontecido se tivesse ido.
- Se for, o resto da sua vida pode ser curta demais para perguntas.
- Antes assim do que encher o resto de meus dias queixando-me de que a Cadeira de Pedra do Mar é minha por direito. Não sou nenhuma Gwynesse.
Aquilo o fez crispar-se.
- Asha, meus dois filhos adultos alimentaram os caranguejos de Ilha Bela. Não é provável que eu volte a me casar. Fique, e a nomearei herdeira de Dez Torres. Contente-se com isso.
- Dez Torres? - bem gostaria de poder fazê-lo. - Seus primos não gostarão disso. O Cavaleiro, o velho Sigfryd, Hotho Corcunda...
- Eles têm suas próprias terras e fortalezas.
É bem verdade. O úmido e meio arruinado Solar de Harlaw pertencia ao velho Sigfryd Harlaw, o Grisalho; o corcunda Hotho Harlaw estava sediado na Torre Bruxuleante, numa escarpa que dominava a costa ocidental. O Cavaleiro, Sor Harras Harlaw, mantinha uma corte em Jardim Cinzento; Boremund, o Azul, governava no topo do Monte da Bruxa. Mas todos eram subordinados a Lorde Rodrik.
- Boremund tem três filhos, Sigfryd Grisalho tem netos e Hotho tem ambições - Asha rebateu. - Todos eles pretendem suceder ao senhor, até Sigfryd. Este tenciona viver para sempre,
- O Cavaleiro será Senhor de Harlaw depois de mim - disse o tio - mas pode governar tão facilmente a partir do Jardim Cinzento como daqui. Troque a lealdade dele pelo castelo, e Sor Harras a protegerá.
- Posso proteger a mim mesma. Tio, eu sou uma lula gigante. Asha, da Casa Greyjoy - pôs-se em pé. - E o lugar do meu pai que quero, não o seu. Aquelas suas foices parecem perigosas. Uma pode cair e cortar minha cabeça. Não, me sentarei na Cadeira de Pedra do Mar.
- Então não passa de mais um corvo gritando por carne putrefata - Rodrik voltou a se sentar atrás de sua mesa. - Saia. Quero regressar ao Arquimeistre Marwyn e à sua busca.
- Avise-me se ele encontrar outra página - o tio era o tio. Nunca mudaria. Mas irá à Velha Wyk, diga o que disser.
Àquela altura, sua tripulação estaria comendo no salão, Asha sabia que devia se juntar a eles, para falar daquela reunião em Velha Wyk e sobre o que ela lhes significava. Seus homens ficariam solidamente atrás dela, mas precisaria também dos outros, dos primos Harlaw, dos Volmark e dos Stonetree. São esses que tenho de conquistar. Sua vitória em Bosque Profundo lhe seria útil, uma vez que seus homens começassem a se gabar dela, como sabia que fariam. A tripulação de seu Vento Negro tinha um orgulho perverso nos feitos de sua capitã. Metade deles amava-a como a uma filha, e a outra metade queria abrir-lhe as pernas, mas tanto uns como outros morreriam por ela. E eu por eles, pensava quando empurrou a porta na base das escadas e entrou no pátio iluminado pelo luar.
- Asha? - uma sombra saiu de trás do poço.
Sua mão dirigiu-se imediatamente para o punhal... até que o luar transformou a silhueta escura num homem com manto de pele de foca. Outro fantasma.
- Tris. Achei que estaria no salão.
- Queria ver você.
- Que parte de mim, pergunto-me? - sorriu. - Bem, aqui estou, toda crescida. Olhe tanto quanto quiser.
- Uma mulher - aproximou-se. - E bela.
Tristifer Botley engordara desde a última vez que o vira, mas tinha os mesmos cabelos indomáveis de que se lembrava, e olhos tão grandes e confiantes como os de uma foca. São realmente olhos doces. Era este o problema com o pobre Tristifer; demasiado doce para as Ilhas de Ferro. Seu rosto tornou-se bonito, pensou Asha. Quando era mais novo, Tris fora muito atormentado por espinhas. Asha sofrera do mesmo problema; talvez tenha sido isso que os aproximara.
- Lamentei quando soube de seu pai - ela lhe disse.
- Eu sofro pelo seu.
Por quê? Ela quase perguntou. Tinha sido Balon quem mandara o rapaz embora de Pyke, para ser protegido de Baelor Blacktyde.
- É verdade que agora é Lorde Botley?
- Em nome, pelo menos. Harren morreu em Fosso Cailin. Um dos demônios dos pântanos o atingiu com uma flecha envenenada. Mas não sou senhor de nada. Quando meu pai lhe negou a pretensão à Cadeira de Pedra do Mar, Olho de Corvo o afogou e obrigou meus tios a jurar-lhe lealdade. Mesmo depois disso, deu metade das terras de meu pai a Holt de Ferro. Lorde Wynch foi o primeiro homem a dobrar o joelho e a chamá-lo de rei.
A Casa Wynch era forte em Pyke, mas Asha teve o cuidado de não deixar transparecer sua consternação.
- Wynch nunca teve a coragem de seu pai.
- Seu tio o comprou - disse Tris. - Silêncio regressou com porões cheios de tesouros. Metais preciosos e pérolas, esmeraldas e rubis, safiras do tamanho de ovos, sacos de moedas tão pesados que não há homem que os consiga levantar... Olho de Corvo tem andado comprando amigos por todos os lados. Meu tio Germund chama agora a si próprio Lorde Botley, e governa em Fidalporto em nome de seu tio.
- Você é o legítimo Lorde Botley - garantiu-lhe Asha. - Quando a Cadeira de Pedra do Mar for minha, as terras de seu pai lhe serão restituídas.
- Se quiser... Isto para mim não é nada. Está tão adorável ao luar, Asha. Agora é uma mulher-feita, mas lembro-me de quando era uma garota magricela com o rosto todo cheio de espinhas.
Por que eles sempre têm de mencionar as espinhas?
- Também me lembro disso - embora não com tanto gosto como você. Dos cinco rapazes que a mãe trouxera para Pyke a fim de criá-los depois de Ned Stark ter levado seu último filho sobrevivente como refém, Tris era o que tinha a idade mais próxima da de Asha. Não foi o primeiro rapaz que ela beijou, mas foi o primeiro a desatar os nós de seu corpete e a enfiar uma mão suada por baixo, para tatear os seios que despontavam.
Eu o teria deixado tatear mais do que isso, se ele tivesse tido ousadia. A primeira floração caíra sobre ela durante a guerra e despertara-lhe o desejo, mas, mesmo antes dela, Asha fora curiosa. Ele estava lá, era da minha idade e estava disposto, foi só isso... isso e o sangue da lua, Mesmo assim, chamara aquilo de amor, até Tris começar a falar dos filhos que ela lhe daria; pelo menos uma dúzia de filhos, e, oh, algumas filhas também.
“Não quero uma dúzia de filhos” dissera-lhe, aterrorizada.“Quero ter aventuras” Não muito depois, Meistre Qalen os encontrara na brincadeira, e o jovem Tristifer Botley foi mandado embora para Pretamare.
- Escrevi cartas para você - ele disse - mas Meistre Joseran não as quis mandar. Uma vez, dei um veado a um remador num navio mercante com destino a Fidalporto, que prometeu pôr a carta nas suas mãos.
- Seu remador enganou você e atirou a carta ao mar.
- Era o que eu temia. Também não me chegaram a dar suas cartas.
Não escrevi nenhuma. Na verdade, sentira-se aliviada quando Tris foi mandado embora. Aquela altura, suas apalpadelas tinham começado a aborrecê-la. Mas isso não era algo que ele quisesse ouvir.
- Aeron Cabelo-Molhado convocou uma assembleia de homens livres. Irá falar por mim?
- Vou para qualquer lugar com você, mas... Lorde Blacktyde diz que a assembleia é uma loucura perigosa. Pensa que seu tio cairá sobre eles e os matará a todos, como Urron fez. Ele é suficientemente louco para isso.
- Faltam-lhe forças.
- Não sabe que forças ele possui. Tem reunido homens em Pyke. Orkwood de Montrasgo levou-lhe vinte dracares e Jon Cara-Sumida Myre, uma dúzia. Lucas Mão-Esquerda Codd está com eles. E também Harren Meio-Hoare, o Remador Vermelho, Kemmett Pyke, o Bastardo, Rodrik Freeborn, Torwold Dente-Castanho...
- Homens de pouca monta - Asha conhecia-os a todos. - Filhos de esposas de sal, netos de servos. Os Codd... conhece o lema deles?
- “ Apesar de Todos os Homens nos Desprezarem" - Tris recitou - mas se a apanharem naquelas redes, ficará tão morta como se fossem senhores dos dragões. E isto não é o pior. Olho de Corvo trouxe monstros do oriente... sim, e também feiticeiros.
- O tio sempre teve um fraco por gente extravagante e por bobos - Asha respondeu. - Meu pai costumava discutir com ele sobre isso. Que os feiticeiros convoquem os seus deuses. Cabelo-Molhado convocará o nosso, e os afogará. Terei sua voz na assembleia dos homens livres, Tris?
- Terá a mim por completo. Sou seu homem, para sempre. Asha, gostaria de me casar com você. A senhora sua mãe deu seu consentimento.
Asha abafou um gemido. Podia ter me pedido primeiro... em bora talvez não sentisse nem metade da satisfação com a resposta.
- Agora não sou um segundo filho - ele prosseguiu. - Sou o legítimo Lorde Botley, como você mesma disse. E você é...
- O que eu sou será decidido em Velha Wyk. Tris, já não somos crianças às apalpadelas um com o outro, tentando perceber o que entra onde. Pensa que quer se casar comigo, mas não quer.
- Quero. Você é tudo com que sonho. Asha, juro pelos ossos de Nagga, nunca toquei em outra mulher.
- Vai tocar numa... ou em duas, ou em dez. Eu toquei em mais homens do que consigo contar. Alguns com os lábios, outros mais com o machado - entregara sua virtude aos dezesseis anos, a um belo marinheiro loiro numa galé mercante vinda de Lys. Ele só sabia cinco palavras do idioma comum, mas “foder” era uma delas... precisamente a palavra que ela tivera esperança de ouvir. Depois, Asha tivera o bom-senso de procurar uma bruxa da floresta, que lhe ensinara como infundir chá da lua para manter a barriga lisa.
Botley pestanejou, como se não percebesse bem o que ela tinha acabado de dizer.
- Você... eu achei que esperaria. Por que... - esfregou a boca - Asha, você foi forçada?
- Tão forçada que lhe rasguei a túnica. Você não quer se casar comigo, acredite no que lhe digo. É uma doçura de rapaz, sempre foi, mas não sou uma doçura de garota. Se nos casarmos, em breve acabará me odiando.
- Nunca. Asha, sofri por você.
Já tinha ouvido o bastante daquilo. Uma mãe enfermiça, um pai assassinado e uma praga de tios eram problemas suficientes para qualquer mulher; não precisava também de um cachorrinho doente de amor.
- Procure um bordel, Tris. Elas o curarão desse sofrimento.
- Nunca poderia... - Tristifer balançou a cabeça. - Você e eu estávamos destinados, Asha. Sempre soube que seria minha esposa e a mãe de meus filhos - pegou-a no antebraço.
Num piscar de olhos o punhal dela estava encostado à garganta dele:
- Afaste essa mão, senão não viverá o suficiente para gerar um filho. Já - quando o jovem a obedeceu, ela abaixou a lâmina. - Quer uma mulher, muito bem. Porei uma na sua cama esta noite. Finja que sou eu, se isto lhe der prazer, mas não ouse voltar a me agarrar. Sou a sua rainha, não a sua esposa. Lembre-se disto - Asha embainhou o punhal e o deixou ali parado, com uma gorda gota de sangue escorrendo lentamente pelo pescoço, negra à pálida luz do luar.  

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