quinta-feira, 26 de setembro de 2013

14 - TYRION


Por um longo tempo não se mexeu, imóvel sobre a pilha de sacos velhos que usava como cama, ouvindo o vento nas velas e o bater das águas do rio no casco.
Uma lua cheia flutuava sobre o mastro. Está me seguindo rio abaixo, me olhando como se fosse algum olho gigante. Apesar do calor das peles mofadas que o cobriam, um arrepio percorreu o homenzinho. Preciso de uma taça de vinho. De uma dúzia de taças de vinho. Mas a lua piscaria antes que o filho da puta do Griff o deixasse matar a sede. Em vez disso, bebia água e estava condenado a noites insones e dias de suores e tremores.
O anão se sentou, segurando a cabeça com as mãos. Eu sonhei? Qualquer lembrança de sonho sumira. As noites nunca haviam sido gentis com Tyrion Lannister. Dormia mal até mesmo nos macios colchões de penas. No Donzela Tímida, fizera sua cama sobre o teto da cabine, com um rolo de corda de cânhamo como travesseiro. Gostava mais dali do que do apertado porão do barco. O ar era mais fresco, e o som do rio, mais doce do que os roncos de Pato. Mas havia um preço a ser pago por tais desfrutes: o teto era duro, e ele acordava travado e irritado, com câimbras e dores nas pernas.
Elas estavam latejando, as panturrilhas duras como madeira. Ele as massageou com os dedos, tentando mandar a dor embora, mas, quando se levantou, a dor ainda era suficiente para que fizesse uma careta. Preciso de um banho. Suas roupas de menino fediam, e lá foi ele. Os outros se banhavam no rio, mas Tyrion não se juntara a eles. Algumas tartarugas que vira nas águas rasas pareciam grandes o suficiente para mordê-lo pela metade. Tartarugas-aligatores, Pato as chamara. Além disso, não queria que Lemore o Visse nu.
Uma escada de madeira descia do teto da cabine. O anão calçou as botas e desceu para o convés, onde Griff estava sentado com um manto de pele de lobo, ao lado de um braseiro de ferro. O mercenário ficava com a vigia da noite, levantando-se quando o restante do grupo se preparava para ir para a cama e retirando-se quando o sol nascia.
Tyrion se agachou diante dele e esquentou as mãos sobre as brasas. Do outro lado da água, rouxinóis cantavam.
- Logo amanhece - disse para Griff.
- Não tão logo. Precisamos estar em curso. - Se dependesse de Griff, o Donzela Tímida continuaria rio abaixo noite e dia, mas Yandry e Ysilla se recusavam a arriscar o barco no escuro. O Alto Roine era cheio de percalços e obstáculos, e um deles poderia destroçar o casco do Donzela Tímida. Griff não queria saber. O que ele queria era Volantis.
Os olhos do mercenário estavam sempre se movendo, procurando na noite por... pelo quê? Piratas? Homens de pedra? Caçadores de escravos? O rio tinha riscos, o anão sabia, mas Griff parecia para Tyrion mais perigoso do que qualquer um deles. Fazia Tyrion se lembrar de Bronn, apesar de Bronn ter o humor negro dos mercenários e Griff não ter humor algum.
- Eu mataria por uma taça de vinho - murmurou Tyrion.
Griff não respondeu. Você morrerá antes de beber, seus olhos claros pareciam dizer. Tyrion bebera até cair em sua primeira noite no Donzela Tímida. No dia seguinte, acordou com dragões lutando dentro do seu crânio. Griff o viu debruçando-se para fora do barco para vomitar e disse:
- Nada mais de bebida para você.
- O vinho me ajuda a dormir - Tyrion protestara. O vinho afoga meus sonhos, poderia ter dito.
- Então fique acordado - Griff replicara, implacável.
No leste, a primeira luz clara da manhã inundou o céu sobre o rio. As águas do Roine lentamente passaram de negro para azul, para combinar com o cabelo e a barba do mercenário. Griff levantou-se.
- Os outros logo levantarão. O convés é seu.
Quando os rouxinóis ficaram em silêncio, as cotovias começaram seu canto. Garças chapinhavam entre os juncos e deixavam rastros ao longo dos bancos de areia. As nuvens pareciam incandescentes, variando entre rosa e roxo, castanho-avermelhado e ouro, pérola e açafrão. Uma delas tinha forma de dragão. Uma vez que um homem veja um dragão em voo, deixe-o ficar em casa, satisfeito, cuidando do seu jardim, alguém escrevera, pois neste mundo não há maravilha maior. Tyrion coçou sua cicatriz, tentando lembrar o nome do autor. Dragões ocupavam muitos dos seus pensamentos ultimamente.
- Bom dia, Hugor. - Septã Lemore surgiu com sua túnica branca presa à cintura por um cinto tecido com sete cores. Seu cabelo caía solto sobre os ombros. - Como dormiu?
- Irregularmente, boa senhora. Sonhei com você novamente. - Um sonho acordado. Ele não conseguia dormir, então levara a mão entre as pernas e imaginara a septã sobre ele, os seios balançando.
- Um sonho mau, sem dúvida. Você é um homem mau. Rezará comigo e pedirá perdão por seus pecados?
Somente se rezássemos à moda das Ilhas do Verão.
- Não, mas dê um longo e doce beijo na Donzela por mim.
Rindo, a septã caminhou para a proa do barco. Tinha o costume de banhar-se no rio todas as manhãs.
- É fácil perceber que o nome deste barco não foi em sua homenagem - disse Tyrion quando ela se despiu.
- A Mãe e o Pai nos fizeram à imagem deles, Hugor. Devemos glorificar nosso corpo, por ser trabalho dos deuses.
Os deuses deviam estar bêbados quando me fizeram. O anão viu Lemore deslizar na água. A visão sempre o deixava duro. Havia algo maravilhosamente obsceno na ideia de livrar a septã de sua casta túnica branca e abrir suas pernas. Inocência desperdiçada, pensou ... embora Lemore estivesse longe da inocência que se pressupunha. Ela tinha estrias na barriga que só podiam ter vindo de uma gravidez.
Yandry e Ysilla se levantaram com o sol e estavam cuidando de seus assuntos. Yandry dava uma espiada na Septã Lemore de vez em quando, enquanto verificava as velas. Sua pequena esposa escura, Ysilla, parecia não notar. Depois de alimentar o braseiro do convés com algumas lascas de madeira, despertou as brasas com uma lâmina enegrecida e começou a sovar a massa dos biscoitos matinais.
Quando Lemore subiu de volta ao convés, Tyrion saboreou a visão da água escorrendo entre seus seios, a pele lisa brilhando dourada na luz da manhã. Ela já tinha mais de quarenta, era mais charmosa do que bonita, mas ainda fácil de ser olhada. Ficar excitado é a segunda melhor coisa, depois de ficar bêbado, o anão decidiu. Fazia-o sentir-se vivo ainda.
- Viu a tartaruga, Hugor? - a septã lhe perguntou, torcendo a água do cabelo. - A grande almiscarada?
As manhãs eram o melhor momento para ver tartarugas. Durante o dia, permaneciam no fundo do rio, ou escondidas em algum recorte das margens, mas quando o sol acabava de nascer, vinham à superfície. Algumas gostavam de nadar ao lado do barco. Tyrion vislumbrara uma dúzia de tipos; grandes e pequenas, cágados e tartarugas-do-ouvido-vermelho, tartarugas-de-casco-mole e tartarugas-aligatores, tartarugas marrons, verdes, negras, tartarugas com garras, tartarugas com chifres, tartarugas cujos cascos tinham padrões com espirais de ouro, jade e creme. Algumas eram tão imensas que podiam carregar um homem nas costas. Yandry jurava que os príncipes roinares costumavam montar nesses animais pelo rio. Ele e sua esposa eram nascidos no Sangueverde, um par de dornenses órfãos que retornara à Mãe Roine.
- Perdi a almiscarada. - Estava olhando a mulher nua.
- Fico triste por você. - Lemore deslizou a túnica pela cabeça. - Sei que só se levanta cedo na esperança de ver as tartarugas.
- Gosto de ver o sol nascer também. - Era como assistir a uma donzela saindo nua do banho. Algumas podiam ser mais bonitas do que outras, mas eram todas cheias de promessas. - As tartarugas têm seu charme, vou concordar. Nada me delicia tanto quanto ver um belo par bem torneado de... conchas.
Septã Lemore riu. Como todos a bordo do Donzela Tímida, ela tinha seus segredos. Era bem-vinda entre eles. Não quero conhecê-la, só quero fodê-la. Ela sabia disso também. Enquanto pendurava o cristal de septã no pescoço, para aninhá-lo entre os seios, ela o provocava com um sorriso.
Yandry levantou a âncora, deslizou um dos longos mastros do teto da cabine e o empurrou. Duas garças levantaram a cabeça para ver o Donzela Tímida deixando a margem, em direção à correnteza. Lentamente o barco começou a se mover rio abaixo. Yandry foi para o leme. Ysilla estava virando os biscoitos. Colocou uma panela de ferro sobre o braseiro e jogou toicinho nela. Alguns dias ela cozinhava biscoitos e toicinho; noutros eram toicinho e biscoitos. A cada quinze dias podia ter um peixe, mas não aquele dia.
Quando Ysilla virou as costas, Tyrion apanhou um biscoito do braseiro, tirando a mão bem na hora de evitar um tapa da temível colher de madeira dela. Eram melhores quando comidos quentes, pingando mel e manteiga. O cheiro do toicinho cozinhando logo fez Pato vir para fora. Ele cheirou o braseiro, levou uma colherada de Ysilla e foi dar a mijada matinal fora da popa.
Tyrion bamboleou para se juntar a ele.
- Eis uma coisa para se ver - brincou enquanto esvaziavam as bexigas - um anão e um pato, tornando o poderoso Roine mais poderoso ainda.
Yandry bufou contra o escárnio.
- A Mãe Roine não precisa da sua água, Yollo. É o maior rio do mundo.
Tyrion sacudiu as últimas gotas.
- Grande o suficiente para afogar um anão, garanto. O Mander é tão grande quanto. E também o Tridente, perto de sua embocadura. O Água Negra é mais profundo.
- Você não conhece o rio. Espere e verá.
O toicinho ficou crocante, os biscoitos, dourado-escuros. O Jovem Griff subiu ao convés, bocejando.
- Bom dia para todos.
O rapaz era menor do que Pato, mas sua constituição esguia sugeria que ainda cresceria mais. Esse garoto imberbe poderia ter qualquer donzela dos Sete Reinos, com ou sem cabelo azul. Esses olhos as derreteriam. Como o pai, o Jovem Griff tinha olhos azuis, mas enquanto os olhos paternos eram claros, os do filho eram escuros. À luz do lampião tornavam-se negros, e à luz do crepúsculo pareciam violeta. Seus cílios eram tão longos quanto os de qualquer mulher.
- Sinto cheiro de toicinho - o rapaz disse, colocando as botas.
- Bom toicinho - disse Ysilla. - Sente-se.
Ela os alimentou na popa, enfiando biscoitos com mel no Jovem Griff e batendo na mão de Pato com a colher todas as vezes que ele tentava agarrar mais toicinho. Tyrion separou dois biscoitos, colocou toicinho neles, e levou um para Yandry no leme. Depois, ajudou Pato a levantar a grande vela triangular do Donzela Tímida. Yandry os levou para o centro do rio, onde a correnteza era mais forte. O Donzela Tímida era um bom barco. O casco era tão raso que conseguia atravessar até o menor dos afluentes do rio, passando por bancos de areia que atolariam barcos maiores, e, com a vela levantada e uma correnteza sob ela, alcançava boas velocidades. Isso podia significar vida ou morte no curso superior do Roine, afirmara Yandry.
- Não há lei acima dos Sofrimentos, não por mil anos.
- Nem pessoas, pelo que vejo. - Ele vislumbrara algumas ruínas ao longo das margens, pilhas de alvenaria cobertas de trepadeiras, musgos e flores, mas nenhum outro sinal de habitações humanas.
- Você não conhece o rio, Yollo. Um barco pirata pode espreitar em qualquer curso de água, e escravos fugidos frequentemente se escondem entre as ruínas. Os caçadores de escravos raramente vêm tão ao norte.
- Caçadores de escravos seriam uma mudança bem-vinda das tartarugas. - Sem ser um escravo fugitivo, Tyrion não precisava temer ser capturado. E nenhum pirata se incomodaria com um barco a vela descendo o rio. Os bens valiosos subiam o rio, vindos de Volantis.
Quando o toicinho acabou, Pato deu um soco no ombro do Jovem Griff.
- Hora de ganhar alguns hematomas. Espadas, acho.
- Espadas? - o Jovem Griff sorriu. - Será ótimo.
Tyrion o ajudou a se vestir para a peleja, com calções pesados, gibão acolchoado e uma chapa de peito de aço marcada por antigos combates. Sor Rolly deu de ombros em sua cota de malha e couro fervido. Ambos usavam elmos sobre a cabeça, e escolheram espadas longas cegas entre as disponíveis no baú de armas. Foram para a popa, enfrentando-se vigorosamente enquanto o resto do grupo assistia.
Quando lutavam com maça ou machado de cabo longo sem fio, a vantagem de tamanho e a força de Sor Rolly o faziam rapidamente dominar o inimigo; com espada, as disputas eram mais equilibradas. Nenhum dos dois usava escudo naquela manhã, então era um jogo de atacar e desviar, para a frente e para trás pelo convés. O rio fazia a trilha sonora do combate. O Jovem Griff desferia mais golpes, embora os de Pato fossem mais duros. Depois de um tempo, o homem maior começou a se cansar. Seus ataques ficaram um pouco mais lentos, sua guarda um pouco mais baixa. O Jovem Griff percebeu e começou um furioso ataque que forçou Sor Rolly a recuar. Quando chegaram à popa, o rapaz cruzou sua lâmina com a do oponente e chocou seu ombro contra o de Pato, e o homenzarrão caiu no rio.
Emergiu cuspindo e xingando, implorando para que alguém o tirasse da água antes que uma tartaruga comesse suas partes íntimas. Tyrion jogou uma corda para ele.
- Patos deveriam nadar melhor que isso - disse, enquanto ele e Yandry puxavam o cavaleiro para bordo do Donzela Tímida.
Sor Rolly agarrou Tyrion pelo colarinho.
- Vamos ver como anões nadam - disse, lançando-o de cabeça no Roine.
O anão riu por último; podia nadar razoavelmente bem, e o fez ... até que suas pernas começaram a ter câimbras. O Jovem Griff estendeu um mastro para ele.
- Você não é o primeiro a tentar me afogar - contou para Pato, enquanto tirava água das botas. - Meu pai me jogou em um poço no dia em que nasci, mas eu era tão feio que a bruxa da água que vivia lá me cuspiu de volta. - Tirou a outra bota e deu uma cambalhota no convés, espirrando água em todos eles.
O Jovem Griff riu.
- Onde aprendeu isso?
- Os pantomimeiros me ensinaram - mentiu. - Minha mãe me amava mais do que a seus outros filhos, porque eu era pequeno. Ela me amamentou no peito até que eu tivesse sete anos. Meus irmãos ficaram com ciúmes, então me enfiaram em um saco e me venderam a uma trupe de pantomimeiros. Quando tentei fugir, o mestre pantomimeiro cortou meu nariz, então não tive alternativa senão ficar com eles e aprender a ser divertido.
A verdade era bem diferente. Seu tio lhe ensinara um pouco de saltos acrobáticos quando ele tinha seis ou sete anos. Tyrion aprendeu aquilo com avidez. Por meio ano, fez todos os caminhos por Rochedo Casterly dando cambalhotas, trazendo sorrisos aos rostos dos septões, dos escudeiros e dos servos. Até mesmo Cersei sorrira uma ou duas vezes ao vê-lo.
Tudo isso terminou abruptamente no dia que seu pai retornou depois de um período em Porto Real. Naquela noite, no jantar, Tyrion surpreendeu-o caminhando sobre as mãos por todo o comprimento da mesa. Lorde Tywin não ficou satisfeito.
- Os deuses o fizeram um anão. Você precisa ser um tolo também? Você nasceu um leão, não um macaco.
E você é um cadáver, pai, então vou dar tantas cambalhotas quanto quiser.
- Você tem o dom de fazer os homens sorrirem - Septã Lemore disse a Tyrion enquanto ele secava os dedos dos pés. - Deve agradecer ao Pai de Cima. Ele dá dons para todos os seus filhos.
- Ele dá - concordou gentilmente. E quando eu morrer, por favor, me enterre com uma besta, então eu agradecerei ao Pai de Cima pelos seus dons da mesma maneira que agradeci ao pai de baixo.
Sua roupa ainda estava encharcada pelo mergulho involuntário, agarrando-se aos braços e às pernas de maneira desconfortável. Enquanto o Jovem Griff seguia a Septã Lemore para ser instruído nos mistérios da Fé, Tyrion tirou as roupas molhadas e vestiu outras, secas. Pato deu uma boa gargalhada quando ele voltou para o convés. Não podia culpá-lo. Vestido como estava, fazia uma figura cômica. Seu gibão era dividido ao meio: o lado esquerdo de veludo púrpura, com tachas em bronze, o direito de lã amarela bordada em padrões florais verdes. Seus calções eram divididos de modo similar: a perna direita era verde, a esquerda listrada de vermelho e branco. Um dos baús de Illyrio trazia roupas de criança, mofadas, mas bem feitas. Septã Lemore havia separado várias partes de roupas, costurando-as depois, unindo metade disso com metade daquilo, formando um traje tosco de bufão. Griff insistira para que Tyrion a ajudasse no corte e costura. Sem dúvida, fizera aquilo como forma de humilhação, mas Tyrion gostara do trabalho com agulhas. Lemore era sempre uma companhia agradável, apesar de sua inclinação em repreendê-lo sempre que ele dizia algo grosseiro sobre os deuses. Se Griff quer me escalar como tolo, jogarei o jogo. Em algum lugar, ele sabia, Lorde Tywin Lannister estaria horrorizado, e isso tirava qualquer desprazer que pudesse sentir.
Seu outro dever era tudo menos tolo. Pato tem sua espada, eu minha pena e pergaminhos. Griff lhe ordenara que registrasse tudo o que sabia sobre dragões. Era uma tarefa formidável, mas o anão trabalhou nela dia após dia, rabiscando o melhor que podia, sentado com as pernas cruzadas sobre o teto da cabine.
Tyrion lera muito, e ainda mais sobre dragões, ao longo dos anos. A maior parte desses relatos eram contos inúteis e não podiam ser levados a sério, e os livros que Illyrio providenciara não eram aqueles que queria. O que ele realmente desejava era o texto completo de As Chamas do Domínio, a história de Valíria contada por Galendro. Contudo, nenhuma cópia completa era conhecida em Westeros; mesmo do exemplar existente na Cidadela faltavam vinte e sete pergaminhos. Certamente deve existir uma biblioteca na Antiga Volantis. Encontrarei uma cópia melhor lá, se conseguir passar pela Muralha Negra até o coração da cidade.
Estava menos esperançoso a respeito do Dragões, Coca trizes e Serpes: Uma História Antinatural, do Septão Barth. Barth fora um filho de ferreiro que chegara a Mão do Rei, durante o reinado de Jaehaerys, o Conciliador. Seus inimigos sempre alegaram que ele era mais feiticeiro do que septão. Quando chegou ao Trono de Ferro, Baelor, o Abençoado, ordenou que todos os escritos de Barth fossem destruídos. Dez anos antes, Tyrion lera um fragmento da História Antinatural que escapara ao Amado Baelor, mas duvidava que qualquer trabalho de Barth tivesse encontrado caminho através do mar estreito. E, é claro, havia ainda menos chances de encontrar o fragmentário, anônimo e ensanguentado tomo chamado algumas vezes de Sangue e Fogo, outras de A Morte dos Dragões. A única cópia sobrevivente estava supostamente trancada em uma catacumba sob a Cidadela.
Quando o Meiomeistre apareceu no convés, bocejando, o anão estava escrevendo o que conseguia recordar a respeito dos hábitos de acasalamento dos dragões, assunto sobre o qual Barth, Munkun e Thomax tinham pontos de vista marcadamente divergentes. Haldon caminhou até a popa para mijar na água, onde o sol brilhava, interrompendo o jato a cada sopro de vento.
- Devemos chegar ao entroncamento com o Noine à noite, Yollo - o Meiomeistre anunciou.
Tyrion levantou os olhos de seus escritos.
- Meu nome é Hugor. Yollo está escondido em meus calções. Devo soltá-lo para que brinque?
- Melhor não. Você pode assustar as tartarugas. - O sorriso de Haldon era tão afiado quanto a lâmina de uma adaga. - Qual era mesmo o nome da rua em que você nasceu em Lannisporto, Yollo?
- Era um beco. Não tinha nome. - Tyrion tinha um prazer cáustico em inventar os detalhes da pitoresca vida de Hugor Hill, também conhecido como Yollo, um bastardo de Lannisporto. As melhores mentiras são temperadas com uma pitada de verdade. O anão sabia que falava como um homem do oeste, e bem-nascido, então Hugor precisava ser algum tipo de fidalgote. Nascido em Lannisporto porque conhecia a cidade melhor do que Vilavelha, Porto Real ou as cidades onde a maioria dos anões ia parar, incluindo aqueles paridos pela Boa Esposa Caipira no canteiro dos nabos. O campo não tinha espetáculos grotescos ou de pantomimeiros ... embora tivesse poços suficientes para engolir gatinhos indesejados, bezerros de três cabeças e bebês como ele.
- Vejo que tem estragado mais pergaminho bom, Yollo. - Haldon amarrou os calções.
- Nem todos podemos ser metade de um meistre. - A mão de Tyrion estava com câimbras. Colocou a pena de lado e flexionou os dedos atarracados. - Gostaria de outra partida de cyvasse? - O Meiomeistre sempre o derrotava, mas era uma maneira de passar o tempo.
- Mais tarde. Vai se juntar a nós para a aula do Jovem Griff?
- Por que não? Alguém precisa corrigir os erros de vocês.
Havia quatro cabines no Donzela Tímida. Yandry e Ysilla repartiam uma, Griff e o Jovem Griff, outra. Septá Lemore tinha uma cabine para si, assim como Haldon. A cabine do Meiomeistre era a maior das quatro. Uma parede era coberta com estantes e caixas empilhadas com antigos pergaminhos; outra tinha prateleiras repletas de unguentos, ervas e poções. Uma luz dourada atravessava o vidro amarelo ondulado da janela redonda. O mobiliário incluía um beliche, uma escrivaninha, uma cadeira, um banco e o tabuleiro de cyvasse do Meiomeistre, com peças esculpidas em madeira.
A aula começou com idiomas. O Jovem Griff falava a Língua Comum como se tivesse nascido em Westeros e era fluente em Alto Valiriano, nos dialetos baixos de Pentos, Myr e Lys, e na língua comercial dos marinheiros. O dialeto volantino era tão novo para ele quanto era para Tyrion, então todos os dias aprendiam algumas palavras novas enquanto Haldon corrigia seus erros. Meereenese era mais difícil; tinha raiz no valiriano também, mas na árvore linguística havia sido enxertada a dura e feia língua da Velha Ghis.
- Você precisa de uma abelha sobre o nariz para falar Ghiscari corretamente - Tyrion reclamou. O Jovem Griff riu, mas o Meiomeistre só disse “De novo”. O garoto obedeceu, embora virasse os olhos juntamente com os zzzzs dessa vez. Ele tem um ouvido melhor do que o meu, Tyrion foi abrigado a admitir, embora eu aposte que minha língua ainda é mais ágil.
Geometria seguiu idiomas. Aí o garoto era menos hábil, mas Haldon era um professor paciente, e Tyrion foi capaz de fazer-se útil também. Aprendera o mistério dos quadrados, círculos e triângulos dos meistres de seu pai em Rochedo Casterly, e a lembrança veio mais rápida do que poderia imaginar.
No momento em que se voltaram para História, o Jovem Griff estava ficando impaciente.
- Estávamos discutindo a história de Volantis - disse Haldon para ele. - Pode dizer a Yollo a diferença entre um tigre e um elefante?
- Volantis é a mais antiga das Nove Cidades Livres, a primeira filha de Valíria - o rapaz respondeu, em um tom de voz entediado. - Após a Condenação, os volantinos se consideraram herdeiros do Domínio e legítimos governantes do mundo, mas estavam divididos sobre como conquistar esse domínio. O Sangue Antigo era a favor da espada, enquanto os comerciantes e agiotas defendiam o comércio. Na medida em que disputavam o controle da cidade, as facções ficaram conhecidas como tigres e elefantes, respectivamente.
- Os tigres dominaram por quase um século após a Condenação de Valíria. Por um tempo tiveram sucesso. A frota volantina tomou Lys, o exército capturou Myr, e por duas gerações as três cidades foram governadas de dentro das Muralhas Negras. Isso acabou quando os tigres tentaram engolir Tyrosh. Pentos entrou na guerra ao lado dos tyroshinos, juntamente com o Rei da Tempestade westerosi. Bravos forneceu aos exilados lisenos uma centena de navios de guerra, Aegon Targaryen voou de Pedra do Dragão no Temor Negro, e Myr e Lys se levantaram em rebeliões. A guerra devastou as Terras Disputadas e libertou Lys e Myr do jugo volantino. Os tigres sofreram outras derrotas também. A frota que enviaram para reclamar Valíria pereceu no Mar Fumegante. Qohor e Norvos quebraram o poder volantino no Roine quando as galeras de fogo lutaram no Lago Adaga. Do leste vieram os dothrakis, expulsando os camponeses de seus casebres e nobres de suas propriedades, até que sobrassem apenas grama e ruínas desde a floresta de Qohor até a cabeceira do Selhoru. Depois de um século de guerra, Volantis estava quebrada, na bancarrota e despovoada. Foi quando os elefantes se levantaram. Eles governam a cidade desde essa época. Em alguns anos, os tigres elegem um membro da tríade, noutros, não, mas nunca mais do que um, então os elefantes governam a cidade há trezentos anos.
- Muito bem - disse Haldon. - E a tríade atual?
- Malaquo é um tigre, Nyessos e Doniphos são elefantes.
- E que lição tiramos da história volantina?
- Se quer conquistar o mundo, é melhor ter dragões.
Tyrion não pôde deixar de rir.
Mais tarde, quando o Jovem Griff foi para o convés ajudar Yandry com as velas e os mastros, Haldon montou o tabuleiro de cyvasse. Tyrion o olhou com seus olhos tortos e disse:
- O garoto é brilhante. Fez um bom trabalho com ele. Metade dos senhores de Westeros não é tão culto, triste dizer. Idiomas, história, música, somas ... um guisado inebriante para o filho de um mercenário.
- Um livro pode ser mais perigoso do que uma espada, nas mãos certas - disse Haldon. - Tente me proporcionar uma batalha melhor desta vez, Yollo. Você joga tão mal quanto corre.
- Estou tentando enganá-lo com um falso senso de confiança - disse Tyrion, enquanto arrumavam as peças em cada lado do tabuleiro entalhado na madeira. - Você acha que me ensinou a jogar, mas as coisas não são sempre como parecem. Talvez eu tenha aprendido o jogo com o queijeiro, já considerou isso ?
- Illyrio não joga cyvasse.
Não, pensou o anão, ele joga o jogo dos tronos, e você, Griff e Pato são apenas peças para serem movidas ao desejo dele, ou sacrificadas se necessário, exatamente como ele sacrificou Viserys.
- A culpa deve cair sobre você, então. Se jogo mal, é porque você me ensinou mal.
O Meiomeistre riu.
- Yollo, sentirei sua falta quando os piratas cortarem sua garganta.
- Onde estão esses famosos piratas? Estou começando a pensar que você e Illyrio inventaram tudo.
- É mais provável que apareçam no trecho do rio entre Ar Noy e os Sofrimentos. Acima das ruínas de Ar Noy, os qohoriks governam o rio e, abaixo dos Sofrimentos, as galeras de Volantis dominam, mas nenhuma cidade reclamou as águas entre esses dois pontos, então os piratas dominaram o pedaço. O Lago Adaga é cheio de ilhas onde eles se escondem, em cavernas e fortalezas secretas. Está pronto?
- Para você? Sem dúvida. Para os piratas? Nem tanto.
Haldon removeu a tela. Cada um contemplou o movimento inicial do outro.
- Está aprendendo - disse o Meiomeistre.
Tyrion quase agarrou o dragão dele, mas pensou melhor. Da última vez que tinham jogado, pegara a peça rápido demais e a perdera para uma catapulta.
- Se encontrarmos esses lendários piratas, posso me juntar a eles. Direi que meu nome é Hugor Meiomeistre. - Ele moveu seu cavalo leve em direção às montanhas de Haldon.
Haldon respondeu com um elefante.
- Hugor Meiointeligente seria melhor para você.
- Só preciso de metade da minha inteligência para competir com você. - Tyrion moveu seu cavalo pesado para apoiar o leve. - Talvez você queira apostar o resultado?
O Meiomeistre levantou uma sobrancelha.
- Quanto?
- Não tenho dinheiro. Jogaremos por segredos.
- Griff cortaria minha língua.
- Está com medo? Eu estaria, se fosse você.
- No dia em que você me derrotar no cyvasse sairão tartarugas da minha bunda. - O Meiomeistre moveu sua lança. - Tem sua aposta, homenzinho.
Tyrion estendeu a mão para mover seu dragão.
Três horas mais tarde, o homenzinho finalmente subiu ao convés para esvaziar a bexiga. Pato ajudava Yandry a recolher as velas, enquanto Ysilla comandava o leme. O sol descia sobre os canaviais ao longo da margem oriental, enquanto o vento começava a soprar em lufadas. Preciso daquele odre de vinho, o anão pensou. Suas pernas estavam adormecidas pela longa permanência no banco, e ele se sentia tão mareado que teve sorte de não cair no rio.
- Yollo - chamou Pato. - Onde está Haldon?
- Está indo para a cama, com algum desconforto. Havia tartarugas saindo de sua bunda. - Deixou o cavaleiro sem entender e se arrastou escada acima até o teto da cabine. Para o leste, a escuridão surgia por detrás de uma ilha rochosa.
Septã Lemore o encontrou lá.
- Pode sentir a tempestade no ar, Hugor Hill? O Lago Adaga está na nossa frente, com piratas à espreita. E, além disso, estão os Sofrimentos.
Não os meus. Carrego meus próprios sofrimentos para onde quer que vá. Ele pensou em Tysha e se perguntou para onde as putas vão. Por que não para Volantis? Talvez a encontre lá. Um homem deve se agarrar à esperança. Ele se perguntava o que diria para ela. Sinto muito ter deixado que a estuprassem, meu amor. Pensei que você era uma puta. Pode encontrar perdão para mim em seu coração? Quero voltar para nossa casa, do jeito que foi quando éramos marido e mulher.
Atrás deles, a ilha se afastava. Tyrion viu ruínas surgindo ao longo da margem ocidental; muralhas tortas e torres caídas, cúpulas quebradas e fileiras de pilares de madeira apodrecidos, ruas sufocadas pela lama e cobertas com musgo púrpura. Outra cidade morta, dez vezes maior do que Ghoyan Drohe. Tartarugas viviam lá agora, grandes tartarugas-aligatores. O anão podia vê-las tomando sol, montes marrons e negros com sulcos irregulares no centro de suas carapaças. Algumas viram o Donzela Tímida e mergulharam na água, deixando ondulações no caminho. Este não era um bom lugar para mergulhar.
Então, através das árvores torcidas e meio afogadas e das largas ruas molhadas, ele vislumbrou um brilho prateado da luz do sol sobre a água. Outro rio, percebeu imediatamente, correndo em direção ao Roine. As ruínas ficaram mais altas enquanto a terra ficava mais estreita, até que a cidade terminou em uma península onde estavam os restos de um colossal palácio de mármore rosa e verde, com as cúpulas caídas e pináculos quebrados ameaçadoramente grandes sobre uma coluna de arcadas cobertas. Tyrion viu mais tartarugas-aligatores dormindo nas docas onde meia centena de navios algum dia atracara. Ele sabia onde estavam. Aquele era o palácio de Nyméria, e isso é tudo o que sobrou de Ny Sar, a cidade dela.
- Yollo - gritou Yandry, enquanto o Donzela Tímida passava pela península - me fale novamente sobre aqueles rios westerosis tão grandes quanto a Mãe Roine.
- Eu não sabia - gritou de volta. - Nenhum rio nos Sete Reinos tem a metade da largura deste. - O novo rio que se juntara a eles era quase duas vezes maior do que o que estavam navegando, e sozinho era quase do tamanho do Mander ou do Tridente.
- Esta é Ny Sar, onde a Mãe recebe sua Filha Selvagem, Noyne - disse Yandry - mas ela não vai alcançar seu ponto mais largo até que receba suas outras filhas. No Lago Adaga, Qhoyne chega correndo, a Filha Escura, cheia de ouro e âmbar do Machado e pinhas da Floresta de Qohor. Mais ao sul, a Mãe se encontra com Lhoruhu, a Filha Sorridente dos Campos Dourados. Onde elas se juntam, uma vez esteve Chroyane, a cidade do festival, onde as ruas eram feitas de água e as casas, de ouro. Então, ao sul e ao leste segue por muitas léguas, até que finalmente chega se arrastando Selhoru, a Filha Tímida que esconde seu curso entre os juncos. Então a Mãe Roine fica tão larga que um homem em um barco no centro do seu leito não pode ver a margem em nenhum dos dois lados. Você verá, meu amiguinho.
Eu verei, o anão estava pensando, quando viu uma ondulação na água, a menos de seis metros do barco. Estava a ponto de apontá-la para Lemore, quando veio à superfície com um jorro de água que jogou o Donzela Tímida para o lado.
Era outra tartaruga, uma tartaruga chifruda gigantesca, com o casco verde-escuro mesclado de marrom e coberto com musgo e uma crosta de moluscos negros de rio. Ela levantou a cabeça e berrou, um rugido do fundo da garganta vibrando mais alto do que qualquer berrante de guerra que Tyrion já tivesse ouvido.
- Estamos abençoados. - Ysilla chorava em voz alta, com lágrimas correndo pelo rosto. - Estamos abençoados, estamos abençoados.
Pato assobiava, e o Jovem Griff também. Haldon saiu para o convés para ver a causa da comoção ... mas era tarde demais. A tartaruga gigante havia desaparecido sob a água.
- Qual foi a causa de tanta confusão? - o Meiomeistre perguntou.
- Uma tartaruga - disse Tyrion. - Uma tartaruga maior do que este barco.
- Era ele - gritou Yandry. - O Velho Homem do Rio.
E por que não? Tyrion sorriu. Deuses e maravilhas sempre aparecem para marcar o nascimento dos reis. 

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