quinta-feira, 19 de setembro de 2013

18 - O CAPITÃO DE FERRO



O vento soprava do norte enquanto o Vitória de Ferro contornava o promontório e penetrava na baía santa chamada Berço de Nagga.
Victarion juntou-se a Nute, o Barbeiro, à proa do navio. Em frente, erguia-se a costa sagrada da Velha Wyk e a colina coberta de grama que se estendia por trás, onde as costelas de Nagga se elevavam da terra como os troncos de grandes árvores brancas, tão largas quanto o mastro de um dromon e duas vezes mais altas.
Os ossos do Palácio do Rei Cinzento. Victarion conseguia sentir a magia daquele lugar.
- Balon ergueu-se sob aqueles ossos quando se intitulou rei pela primeira vez - recordou. - Jurou reconquistar-nos a liberdade, e Tarle, o Triplamente-Afogado, pôs-lhe na cabeça uma coroa de madeira trazida pelo mar. “BALON! gritaram eles. “BALON! BALON REI!”
- Gritarão seu nome com a mesma força -Nute disse.
Victarion respondeu com um aceno, embora não partilhasse das certezas do Barbeiro. Balon tinha três filhos e uma filha que amava muito.
Dissera isso mesmo aos seus capitães em Fosso Cailin, quando o incentivaram a reclamar a Cadeira de Pedra do Mar.
- Os filhos de Balon estão mortos - argumentou Ralf Vermelho Stonehouse - e Asha é uma mulher. Você era o forte braço direito de seu irmão, deve pegar a espada que ele deixou cair - quando Victarion lhes lembrou que Balon lhe ordenara que defendesse o Fosso contra os nortenhos, Ralf Kenning disse:
- Os lobos estão quebrados, senhor. Para que serve conquistar este pântano e perder as ilhas? - e Ralf Coxo acrescentou: - O Olho de Corvo passou muito tempo longe. Não nos conhece.
Euron Greyjoy, Rei das Ilhas e do Norte. A ideia despertara-lhe uma velha ira no coração, mas ainda assim...
- As palavras são vento - Victarion lhes disse - e o único vento bom é aquele que nos enche as velas. Querem me ver lutar contra o Olho de Corvo? Irmão contra irmão, homem de ferro contra homem de ferro? - Euron continuava a ser seu irmão mais velho, por maior que fosse a inimizade entre ambos. Não há homem mais amaldiçoado do que aquele que mata um familiar.
Mas quando chegou a convocatória do Cabelo-Molhado, o chamado para a assembleia de homens livres, então tudo mudou. Aeron fala com a voz do Deus Afogado, recordou Victarion a si mesmo, e se o Deus Afogado quiser que eu ocupe a C adeira de Pedra do Mar... No dia seguinte, entregou o comando de Fosso Cailin a Ralf Kenning e partiu por terra em direção ao Rio Febre, onde a Frota de Ferro se encontrava entre juncos e salgueiros. Mares agitados e ventos instáveis tinham-no atrasado, mas só um navio se perdera, e ele estava em casa.
O Luto e a Vingança de Ferro vinham logo atrás quando o Vitória de Ferro passou o promontório, Mais atrasados vinham Mão-Dura, Vento de Ferro, Fantasma Cinzento, Lorde Quellon, Lorde Vickon, Lorde Dagon e os outros, nove décimos da Frota de Ferro, velejando na maré da noite numa coluna irregular que se estendia por longas léguas. A visão de suas velas enchia Victarion Greyjoy de contentamento. Nunca houvera homem que amasse as esposas com metade do amor que o Senhor Capitão tinha por seus navios.
Ao longo do litoral sagrado de Velha Wyk, dracares debruavam a costa até perder de vista, com os mastros arremessados para o alto como lanças. Nas águas mais profundas flutuavam navios capturados: cocas, carracas e dromones ganhos em ataques ou na guerra, grandes demais para dar à costa. À proa, à popa e nos mastros flutuavam estandartes familiares.
Nute, o Barbeiro, semicerrou os olhos em direção à terra:
- Aquilo é a Canção do Mar de Lorde Harlaw? - Barbeiro era um homem atarracado, com pernas arqueadas e braços longos, mas seus olhos não eram tão penetrantes como tinham sido na juventude. Nessa época, atirava um machado com tanta precisão que os homens diziam que seria capaz de fazer com ele a barba de alguém.
- Sim, a Canção do Mar - Rodrik, o Leitor, abandonara seus livros, segundo parecia. - E ali está o Trovejante do velho Drumm, com o Voador Noturno de Blacktyde ao lado - os olhos de Victarion eram tão penetrantes como sempre tinham sido. Mesmo com as velas enroladas e os estandartes pendendo sem vento, reconhecia os navios, como era próprio do Senhor Capitão da Frota de Ferro - O Barbatana de Prata também. Algum familiar de Sawane Botley - Victarion ouvira dizer que o Olho de Corvo afogara Lorde Botley, e seu herdeiro morrera em Fosso Cailin, mas havia irmãos e também outros filhos. Quantos? Quatro? Não, cinco, e nenhum com algum motivo para nutrir amizade pelo Olho de Corvo.
E então a viu: uma galé de mastro único, esguia e de amurada baixa, com um casco vermelho-escuro. As velas, agora enroladas, eram negras como um céu sem estrelas. Mesmo ancorada, Silêncio parecia tão cruel quanto rápida. A proa encontrava-se uma donzela de ferro negro com um braço estendido. Sua cintura era fina; os seios, empinados e orgulhosos; as pernas, longas e bem torneadas. Uma cabeleira de cabelos de ferro negro soprada pelo vento escorria-lhe da cabeça, e os olhos eram de madrepérola, mas não tinha boca.
As mãos de Victarion fecharam-se em punho. Espancara quatro homens até a morte com aquelas mãos, e também uma esposa. Embora tivesse os cabelos salpicados de geada, era tão forte quanto sempre fora, com um largo peito de touro e a barriga lisa de um rapaz. O assassino de familiares é amaldiçoado aos olhos dos deuses e dos homens, fizera-lhe lembrar Balon no dia em que expulsou Olho de Corvo para o mar.
- Ele está aqui - disse Victarion ao Barbeiro. - Abaixe as velas. Prosseguiremos a remos. Ordene a Luto e Vingança de Ferro para se interporem entre Silêncio e o mar. O resto da frota deverá fechar a baía. Ninguém deve sair a não ser que eu ordene, nem homem, nem corvo.
Os homens que se encontravam na costa tinham visto suas velas. Gritos ecoaram através da baía enquanto amigos e familiares trocavam saudações. Mas nenhum vinha de Silêncio. Em suas cobertas, uma tripulação diversa de mudos e mestiços não proferia palavra enquanto o Vitória de Ferro se aproximava. Homens negros como alcatrão fitavam-no, assim como outros, atarracados e peludos como os símios de Sothoros. Monstros, pensou Victarion.
Lançaram âncora a vinte metros do Silêncio.
- Desça um bote. Quero ir a terra - afivelou o cinto da espada enquanto os remadores ocupavam seus lugares; a espada pendia-lhe de uma anca, um punhal da outra, Nute, o Barbeiro, prendeu-lhe o manto de Senhor Capitão em volta dos ombros. Era feito de nove camadas de pano de ouro, cosido de modo a tomar a forma da lula gigante de Greyjoy, com tentáculos que lhe caíam até as botas. Por baixo, levava uma pesada cota de malha cinzenta sobre couro fervido negro. Em Fosso Cailin habituara-se a usar cota de malha noite e dia. Ombros e costas doloridos eram mais fáceis de suportar do que entranhas sangrentas. Bastava as flechas envenenadas dos demônios do pântano arranhar um homem para que algumas horas mais tarde ele estivesse aos gritos, enquanto a vida lhe escorria pernas abaixo, em jorros vermelhos e marrons. Seja quem for que conquiste a Cadeira de Pedra do Mar, hei de tratar dos demônios do pântano.
Victarion pôs um grande elmo de guerra negro, esculpido na forma de uma lula gigante em ferro, com tentáculos que se enrolavam rosto abaixo e se uniam sob o queixo. A essa altura, o bote estava pronto.
- Ponho as arcas a seu cargo - disse a Nute enquanto subia para a amurada. - Assegure-se de que fiquem bem guardadas - muito dependia das arcas.
- As suas ordens, Vossa Graça.
Victarion respondeu com uma expressão amarga.
- Ainda não sou rei de nada - e desceu para o bote.
Aeron Cabelo-Molhado o esperava na rebentação, com seu odre enfiado debaixo do braço. O sacerdote era esguio e alto, embora mais baixo que Victarion. O nariz erguia-se de um rosto ossudo como a barbatana de um tubarão, e os olhos eram de ferro. A barba chegava-lhe à cintura, e cordões emaranhados de cabelo batiam-lhe na parte de trás das pernas quando o vento soprava.
- Irmão - disse, enquanto as ondas se quebravam, brancas e frias, entre seus tornozelos - o que está morto não pode morrer.
- Mas volta a se erguer, mais duro e mais forte - Victarion tirou o elmo e se ajoelhou. A baía encheu-lhe as botas e ensopou-lhe os calções quando Aeron despejou um jorro de água salgada sobre sua testa. E assim oraram.
- Onde está nosso irmão Olho de Corvo? - perguntou o Senhor Capitão a Aeron Cabelo-Molhado quando as orações terminaram.
- A tenda dele é aquela grande, de pano de ouro, ali onde o ruído é maior. Cerca-se de homens ímpios e de monstros, mais do que antes. Nele o sangue de nosso pai tornou-se perverso.
- E o de nossa mãe também - Victarion não falaria de matar parentes, ali naquele lugar divino, sob os ossos de Nagga e o Palácio do Rei Cinzento, mas eram muitas as noites nas quais sonhava em enfiar um punho coberto por cota de malha no rosto sorridente de Euron, até a pele rachar e seu sangue maligno escorrer, rubro e livre. Não posso. Dei minha palavra a Balon, - Vieram todos? - perguntou ao irmão sacerdote.
- Todos os que importam. Os capitães e os reis - nas Ilhas de Ferro, eram uma mesma coisa, pois cada capitão era um rei em seu convés, e qualquer rei tinha de ser um capitão. - Pretende reclamar a coroa de nosso pai?
Victarion imaginou-se sentado na Cadeira de Pedra do Mar.
- Se for esta a vontade do Deus Afogado.
- As ondas falarão - disse Aeron Cabelo-Molhado e virou-lhe costas. - Escute as ondas, irmão.
- Sim - perguntou a si mesmo a que soaria seu nome sussurrado por ondas e gritado pelos capitães e reis. Se a taça chegar até mim, não a porei de lado.
Uma multidão reunira-se para saudá-lo e tentar obter seu favor. Victarion viu homens de todas as ilhas: Blacktyde, Tawney, Orkwood, Stonetree, Wynch, e muitos mais. Os Goodbrother de Velha Wyk, os Goodbrother de Grande Wyk e os Goodbrother de Orkmont tinham vindo todos. Os Codd lá se encontravam, embora qualquer homem decente os desprezasse. Os humildes Shepherd, Weaver e Netley roçavam os ombros com homens de Casas antigas e orgulhosas; até os humildes Humble, do sangue de servos e esposas de sal. Um Volmark deu uma palmada nas costas de Victarion; dois Sparr enfiaram-lhe um odre de vinho nas mãos. Bebeu longamente, limpou a boca e permitiu que o levassem até suas fogueiras, para ouvi-los falar de guerra, coroas e saque, e da glória e liberdade de seu reinado.
Nessa noite, os homens da Frota de Ferro ergueram uma enorme tenda de tela acima da linha das marés, para Victarion banquetear com meia centena de capitães famosos cabrito assado, bacalhau salgado e lagosta. Aeron também compareceu. Comeu peixe e bebeu água, enquanto os capitães emborcavam cerveja suficiente para pôr a flutuar a Frota de Ferro. Muitos foram os que lhe prometeram suas vozes: Fralegg, o Forte, o inteligente Alvyn Sharp, o corcunda Hotho Harlaw. Hotho ofereceu-lhe uma filha para sua rainha.
- Não tenho sorte com esposas - disse-lhe Victarion. Sua primeira mulher morrera no parto, dando-lhe uma filha natimorta. A segunda fora atingida por bexigas. E a terceira...
- Um rei precisa de um herdeiro - insistiu Hotho. - Olho de Corvo traz três filhos para mostrar à assembleia.
- Bastardos e mestiços. Que idade tem essa filha?
- Doze anos - Hotho respondeu. - Bela e fértil, acabada de florir, com cabelos da cor do mel. Por enquanto seus seios são pequenos, mas tem boas ancas. Saiu à mãe, mais do que a mim.
Victarion sabia que isso queria dizer que a garota não tinha uma corcunda. Mas quando tentou imaginá-la, só conseguiu ver a esposa que matara. Soltara um soluço cada vez que a atingira, e depois a levou para os rochedos, a fim de oferecê-la aos caranguejos.
- Verei de bom grado a garota depois de coroado - disse. Hotho não se atrevera a esperar mais do que aquilo, e foi-se embora arrastando os pés, satisfeito.
Baelor Blacktyde foi mais difícil de contentar. Sentou-se junto ao cotovelo de Victarion com sua túnica de lã de ovelha de veiro negro e verde, de rosto liso e boa aparência. Seu manto era de zibelina e estava preso por uma estrela de sete pontas feita em prata. Passara oito anos como refém em Vilavelha e regressara um adorador dos sete deuses das terras verdes.
- Balon era louco, Aeron é mais louco ainda, e Euron é o mais louco de todos - disse Lorde Baelor. - E você, Senhor Capitão? Se gritar seu nome, colocará fim a esta guerra louca?
Victarion franziu as sobrancelhas.
- Quer que eu dobre o joelho?
- Se for necessário. Não podemos resistir sozinhos contra Westeros inteiro. Rei Robert assim provou, para nossa tristeza. Balon queria pagar o preço de ferro pela liberdade, dizia ele, mas nossas mulheres compraram as coroas de Balon com camas vazias. Minha mãe foi uma delas. O Costume Antigo está morto.
- O que está morto não pode morrer, mas se ergue, mais duro e mais forte. Dentro de cem anos, os homens cantarão sobre Balon, o Ousado.
- É melhor chamá-lo Balon, o Fazedor de Viúvas. De bom grado trocaria sua liberdade por um pai. Tem algum para me dar? - quando Victarion não respondeu, Blacktyde fungou e foi embora.
A tenda foi ficando quente e fumacenta. Dois dos filhos de Gorold Goodbrother derrubaram uma mesa, lutando. Will Humble perdeu uma aposta e teve de comer a bota; o Pequeno Lenwood Tawney tocou rabeca, enquanto Romny Weaver cantava "A Taça Sangrenta” e “Chuva de Aço” e outras velhas canções de piratas. Qarl, o Donzel, e Eldred Codd dançaram a dança dos dedos. Um rugido de risos ressoou quando um dos dedos de Eldred caiu na taça de vinho de Ralf, o Coxo.
Uma mulher encontrava-se entre os que davam risada. Victarion ergueu-se e a viu junto à aba da tenda, murmurando qualquer coisa ao ouvido de Qarl, o Donzel, que o fez rir também. Tinha esperado que não fosse suficientemente tola para vir até ali, mas vê-la fez que risse mesmo assim.
- Asha - gritou numa voz de comando. - Sobrinha.
Ela abriu caminho até junto dele, esguia e flexível em suas botas de cano alto de couro manchado pelo sal, calções de lã verde e túnica acolchoada marrom, com um justilho de couro sem mangas meio desatado.
- Tio - Asha Greyjoy era alta para uma mulher, mas teve de se pôr na ponta dos pés para beijá-lo no rosto. - Agrada-me vê-lo em minha assembleia de homens livres.
- Sua? - Victarion soltou uma gargalhada. - Embebedou-se, sobrinha? Sente-se. Não vi seu Vento Negro na praia.
- Coloquei-o em terra sob o castelo de Norne Goodbrother e atravessei a ilha a cavalo - sentou-se num banco e, sem pedir licença, serviu-se do vinho de Nute, o Barbeiro. Nute não levantou objeções; desmaiara de bêbado algum tempo antes. - Quem defende o Fosso?
- Ralf Kenning, Com o Jovem Lobo morto, só restam os demônios do pântano para nos atormentar.
- Os Stark não eram os únicos nortenhos. O Trono de Ferro nomeou o Senhor do Forte do Pavor Protetor do Norte.
- Quer me dar lições sobre a guerra? Já travava batalhas quando você ainda mamava do leite da sua mãe.
- E também perdia batalhas - Asha bebeu um trago de vinho.
Victarion não gostou de ser lembrado da Ilha Bela.
- Qualquer homem deve perder uma batalha na juventude, para que não perca uma guerra quando for velho. Não veio avançar com uma pretensão, espero eu.
Ela o provocou com um sorriso:
- E se tiver?
- Há homens que se lembram de quando era uma garotinha, nadando nua no mar e brincando com sua boneca.
- Também brinquei com machados.
- É verdade - teve de reconhecer - mas uma mulher quer um marido, não uma coroa. Quando eu for rei, lhe darei um.
- Meu tio é tão bom para mim. Devo lhe arranjar uma esposa bonita quando for rainha?
- Não tenho sorte com esposas. Há quanto tempo está aqui?
- Há tempo suficiente para ver que tio Cabelo-Molhado despertou mais do que era sua intenção. Drumm pretende avançar com uma pretensão, e houve quem escutasse Tarle, o Três Vezes Afogado, dizer que Maron Volmark é o verdadeiro herdeiro da linhagem negra.
- O rei tem de ser uma lula gigante.
- Olho de Corvo é uma lula gigante. O irmão mais velho tem prioridade sobre o mais novo - Asha inclinou-se para mais perto. - Mas eu fui gerada pelo corpo do Rei Balon; portanto, tenho prioridade sobre ambos. Escute-me, tio...
Mas então caiu um súbito silêncio. Os cantos morreram, o Pequeno Lenwood Tawney abaixou a rabeca, homens viraram a cabeça. Até o ruído dos pratos e das facas foi silenciado.
Uma dúzia de recém-chegados tinha entrado na tenda de banquetes. Victarion viu Jon Cara-Sumida Myre, Torwold Dente-Castanho, Lucas Mão-Esquerda Codd. Germund Botley cruzava os braços contra a placa de peito dourada que tirara de um capitão Lannister durante a primeira rebelião de Balon. Orkwood de Montrasgo estava em pé atrás dele. Atrás de ambos, via-se Mão de Pedra, Quellon Humble e Remador Vermelho com seus cabelos de fogo entrançados. Ralf, o Pastor, também, bem como Ralf de Fidalporto e Qarl, o Servo.
E Olho de Corvo, Euron Greyjoy.
Parece não ter mudado, pensou Victarion. Parece igual ao que foi no dia em que riu na minha cara e partiu. Euron era o mais bonito dos filhos de Lorde Quellon, e três anos de exílio não o tinham mudado. Seus cabelos ainda eram negros como o mar da meia-noite, sem nenhum fio branco à vista, e o rosto era ainda liso e claro sob a barba escura bem cuidada. Uma pala de couro negro cobria o olho esquerdo de Euron, mas o direito era azul como um céu de verão.
Seu olho sorridente, pensou Victarion.
- Olho de Corvo - saudou-o.
- Rei Olho de Corvo, irmão - Euron sorriu. Seus lábios pareciam muito escuros à luz das lâmpadas, machucados e azuis.
- Não teremos nenhum rei que não saia da assembleia de homens livres - Cabelo-Molhado pôs-se em pé. - Nenhum homem sem deus...
- ... pode sentar-se na Cadeira de Pedra do Mar, sim - Euron passou os olhos pela tenda. - Acontece que nos últimos tempos sentei-me com frequência na Cadeira de Pedra do Mar. Ela não levanta objeções - seu olho sorridente cintilava. - Quem sabe mais de deuses do que eu? Deuses dos cavalos e deuses do fogo, deuses feitos de ouro com olhos de pedras preciosas, deuses esculpidos em madeira de cedro, deuses cinzelados em montanhas, deuses de ar vazio... conheço-os todos. Vi seus povos engrinaldá-los de flores e derramar o sangue de cabras, touros e galinhas em seu nome. E ouvi as preces, em meia centena de línguas. Cure minha perna atrofiada, faça com que a donzela me ame, conceda-me um filho saudável. Salve-me, socorra-me, torne-me rico... proteja-me! Proteja-me dos meus inimigos, proteja-me da escuridão, proteja-me dos caranguejos que tenho na barriga, dos senhores dos cavalos, dos escravagistas, dos mercenários que me batem à porta. Proteja-me de Silêncio - soltou uma gargalhada. - Sem deus? Ora, Aeron, eu sou o homem com mais deuses que alguma vez içou uma vela! Você serve a um deus, Cabelo-Molhado, mas eu servi a dez mil. De Ib a Asshai, quando os homens veem minhas velas, rezam.
O sacerdote ergueu um dedo ossudo:
- Eles rezam a árvores, a ídolos de ouro e a abominações com cabeça de cabra. Falsos deuses...
- É assim mesmo - disse Euron - e, por tal pecado, mato-os todos. Derramo seu sangue no mar e semeio suas mulheres chorosas com minha semente. Seus pequenos deuses não conseguem me impedir; portanto, é evidente que são falsos deuses. Sou mais devoto até do que você, Aeron. Talvez devesse ser você quem deva se ajoelhar à minha frente para que o abençoe.
O Remador Vermelho riu ruidosamente daquilo, e os outros o imitaram.
- Tolos - disse o sacerdote - tolos, servos e cegos, é isso que são. Não veem o que está à sua frente?
- Um rei - disse Quellon Humble.
Cabelo-Molhado cuspiu e saiu a passos largos para a noite.
Depois de ele sair, Olho de Corvo virou seu olho sorridente para Victarion.
- Senhor Capitão, não tem saudações para dar a um irmão que estava muito longe? Nem você, Asha? Como passa a senhora sua mãe?
- Mal - Asha respondeu - Um homem qualquer fez dela uma viúva.
Euron encolheu os ombros.
- Ouvi dizer que foi o Deus da Tempestade quem atirou Balon para a morte. Quem é esse homem que o matou? Diga-me seu nome, sobrinha, para que possa me vingar.
Asha pôs-se em pé:
- Conhece seu nome tão bem quanto eu. Passou três anos longe de nós, e no entanto o Silêncio regressa no próprio dia da morte do senhor meu pai.
- Está me acusando? - Euron perguntou com brandura.
- Deveria fazê-lo? - a dureza na voz de Asha fez Victarion franzir as sobrancelhas. Era perigoso falar assim ao Olho de Corvo, mesmo quando seu olho sorridente brilhava de alegria.
- Será que eu controlo os ventos? - perguntou o Olho de Corvo aos seus animais de estimação.
- Não, Vossa Graça - disse Orkwood de Montrasgo.
- Ninguém controla os ventos - Germund Botley confirmou.
- Seria bom se controlasse - falou o Remador Vermelho. - Poderia velejar para onde quisesse e nunca seria apanhado em calmarias.
- Aí está, pela boca de três bravos homens - disse Euron. - Silêncio estava no mar quando Balon morreu. Se duvida da palavra de um tio, dou licença para perguntar à minha tripulação.
- Uma tripulação de mudos? Sim, isto de muito irá me servir.
- Um marido de muito lhe serviria - Euron voltou a se virar para seus seguidores. - Torwold, não me lembro, você tem mulher?
- Só uma - Torwold Dente-Castanho sorriu, e mostrou como ganhara o nome.
- Eu não sou casado - anunciou Lucas Mão-Esquerda Codd.
- E por bons motivos - Asha interveio. - As mulheres também desprezam os Codd. Não me olhe com esse ar tristonho, Lucas. Ainda tem sua famosa mão - e fez um movimento de vaivém com o punho.
Codd pôs-se a praguejar, até que Olho de Corvo lhe colocou uma mão no peito.
- Isso foi cortês, Asha? Feriu Lucas até o osso.
- É mais fácil do que feri-lo no caralho. Atiro tão bem um machado quanto qualquer homem, mas quando o alvo é tão pequeno...
- A garota está descontrolada - rosnou Jon Cara-Sumida Myre. - Balon a deixou acreditar que era um homem.
- Seu pai cometeu o mesmo erro com você - Asha devolveu.
- Dê ela para mim, Euron - sugeriu Remador Vermelho. - Aplicarei uma surra que lhe deixará o cu tão vermelho quanto meu cabelo.
- Tente - Asha o enfrentou - e de hoje em diante poderemos passar a chamá-lo Eunuco Vermelho - tinha um machado de arremesso na mão. Atirou-o ao ar e o apanhou habilmente. - Aqui está meu marido, tio. Qualquer homem que me queira precisa discutir o assunto com ele.
Victarion deu um grande murro na mesa.
- Não quero sangue derramado aqui. Euron, pegue seus... animais de estimação... e vá embora.
- Estava à espera de uma recepção mais calorosa vinda de você, Victarion. Eu sou seu irmão mais velho... e, em breve, seu legítimo rei.
O rosto de Victarion tornou-se sombrio.
- Quando a assembleia de homens livres falar, veremos quem usará a coroa de madeira trazida pelo mar.
- Nisso concordamos - Euron levou dois dedos à pala que lhe cobria o olho esquerdo e se retirou. Os outros o seguiram como cães pastores. O silêncio deixou-se ficar para trás em sua esteira, até que Pequeno Lenwood Tawney voltou a pegar na rabeca. O vinho e a cerveja recomeçaram a fluir, mas vários dos convivas tinham perdido a sede. Eldred Codd esgueirou-se para fora da tenda, agarrado à mão ensanguentada, seguido por Will Flumble, Hotho Harlaw e por um belo bando de Goodbrothers.
- Tio - Asha pôs-lhe a mão no ombro. - Venha dar uma volta comigo, por favor.
Fora da tenda o vento aumentava de intensidade. Nuvens corriam através do rosto pálido da lua. Pareciam-se um pouco com galés, remando com força para o abalroamento. As estrelas eram poucas e tênues. Ao longo de toda a praia, os navios repousavam, com mastros altos que se erguiam da rebentação como uma floresta. Victarion ouvia seus cascos rangendo enquanto se movimentavam na areia. Ouvia os lamentos de seu cordame, o som de estandartes tremulando. Mais à frente, nas águas mais profundas da baía, navios maiores balançavam, ancorados, sombras lúgubres, engrinaldadas em névoa.
Caminharam juntos pela praia logo acima da rebentação, longe dos acampamentos e das fogueiras.
- Diga-me a verdade, tio - Asha pediu - por que Euron partiu tão de repente?
- Olho de Corvo partia frequentemente para a ceifa.
- Nunca por tanto tempo.
- Ele levou Silêncio para leste. É uma viagem longa.
- Eu perguntei por que ele partiu, não para onde - quando Victarion não respondeu, Asha disse: - Eu estava longe quando Silêncio se fez ao mar. Tinha levado Vento Negro ao redor da Árvore até os Degraus, para roubar umas bugigangas dos piratas lisenos. Quando voltei para casa, Euron tinha partido, e sua nova esposa estava morta.
- Era só uma esposa de sal - não tocara em outra mulher desde que a entregara aos caranguejos. Terei de tomar uma esposa quando for rei. Uma esposa de verdade para ser minha rainha e me dar filhos. Um rei precisa de um herdeiro.
- Meu pai se recusou a falar dela - Asha lembrou-se.
- Não serve para nada falar de coisas que ninguém pode mudar - estava cansado do assunto. - Vi o dracar do Leitor.
- Precisei de todo meu encanto para arrancá-lo de sua Torre dos Livros.
Então ela tem os Harlaw . O franzir de sobrancelhas de Victarion aprofundou-se.
- Não pode ter esperança de governar. É uma mulher.
- Então foi por isso que sempre perdi os concursos de mijo? - Asha riu. - Tio, dói dizer, mas talvez tenha razão. Passei quatro dias e quatro noites bebendo com os capitães e os reis, ouvindo o que eles dizem... e o que não querem dizer. Os meus estão comigo, bem como muitos Harlaw. Também tenho Tris Botley e mais alguns outros. Não é o suficiente - deu um pontapé numa pedra e a fez mergulhar na água, entre dois dracares. - Estou pensando em gritar o nome do meu tio.
- Que tio? - ele quis saber. - Tem três.
- Quatro. Tio, me escute. Colocarei eu mesma em sua cabeça a coroa de madeira trazida pelo mar... se concordar em partilhar o governo.
- Partilhar o governo? Como é possível? - a mulher não dizia coisa com coisa. Vai querer ser minha rainha? Victarion deu por si olhando para Asha de uma nova maneira. Sentiu o membro viril começar a enrijecer. Ela é filha de Balon, lembrou a si mesmo. Lembrava-se dela quando menina, atirando machados em uma porta. Cruzou os braços sobre o peito. - Na Cadeira de Pedra do Mar só dá para se sentar um.
- Então que se sente meu tio - Asha respondeu. - Eu ficarei atrás de você, para proteger suas costas e murmurar em seu ouvido. Nenhum rei pode governar sozinho. Até quando os dragões ocupavam o Trono de Ferro, tinham homens para ajudá-los. As Mãos do Rei. Deixe-me ser sua Mão, tio.
Nunca nenhum Rei das Ilhas precisara de uma Mão, muito menos uma que fosse mulher. Os capitães e os reis troçariam de mim quando estivessem bebendo.
- Por que gostaria de ser minha Mão?
- Para acabar com essa guerra antes que ela acabe conosco. Ganhamos tudo que é provável que ganhemos... e podemos perder tudo com igual rapidez, a menos que façamos a paz. Mostrei a Senhora Glover toda cortesia, e ela jura que seu senhor negociará comigo. Se devolvermos Bosque Profundo, Praça de Torrhen e Fosso Cailin, ela diz, os nortenhos nos cederão Ponta do Dragão Marinho e toda a Costa Pedregosa. Essas terras são esparsamente povoadas, mas são dez vezes maiores do que todas as ilhas em conjunto. Uma troca de reféns selará o pacto, e cada lado concordará em fazer causa comum com o outro, no caso do Trono de Ferro...
Victarion soltou um risinho.
- Essa Senhora Glover está lhe fazendo de tonta, sobrinha. Ponta do Dragão Marinho e Costa Pedregosa são nossas. Para que entregar seja o que for? Winterfell está incendiado e quebrado, e o Jovem Lobo apodrece, sem cabeça, na terra. Temos todo o Norte, como o senhor seu pai sonhava.
- Quando os dracares aprenderem a atravessar árvores, talvez. Um pescador pode apanhar no anzol um leviatã cinzento, mas ele o arrastará para a morte, a menos que o liberte. O Norte é grande demais para ser controlado por nós, e está repleto de nortenhos.
- Volte para suas bonecas, sobrinha. Deixe a vitória nas guerras para os guerreiros - Victarion mostrou-lhe os punhos. - Tenho duas mãos. Nenhum homem precisa de três.
- Mas conheço um homem que precisa da Casa Harlaw.
- Hotho Corcunda ofereceu-me a filha para ser minha rainha. Se aceitá-la, terei os Harlaw.
Aquilo surpreendeu a garota.
- É Lorde Rodrik quem governa a Casa Harlaw.
- Rodrik não tem filhas, só livros. Hotho será seu herdeiro, e eu serei o rei - depois de dizer as palavras em voz alta, passaram-lhe a soar como verdade. - Olho de Corvo esteve longe tempo demais.
- Há homens que parecem maiores a distância - Asha o preveniu. - Caminhe entre as fogueiras se se atrever e escute. Não andam contando histórias sobre sua força ou minha famosa beleza. Só falam de Olho de Corvo; dos lugares distantes que ele viu, das mulheres que violou e dos homens que matou, das cidades que saqueou, do modo como queimou a frota de Lorde Tywin em Lanisporto...
- Fui eu quem queimou a frota dos leões - insistiu Victarion. - Com minhas próprias mãos atirei o primeiro archote para o seu navio almirante.
- Olho de Corvo planejou o ataque - Asha pôs-lhe a mão no braço. - E também matou sua esposa... Não matou?
Balon ordenara-lhes para não falarem naquilo, mas Balon estava morto.
- Pôs-lhe um bebê na barriga e me fez tratar da morte. Também devia tê-lo matado, mas Balon não permitia fratricídio em seu salão. Mandou Euron para o exílio, para nunca mais regressar...
- ... enquanto Balon vivesse?
Victarion olhou para os punhos.
- Ela pôs-me cornos. Não tive alternativa - se os outros ficassem sabendo, os homens teriam rido de mim, como Olho de Corvo riu quando o confrontei. “Ela veio ter comigo úmida e de boa vontade”, vangloriara-se. "Parece que Victarion é grande por todo o lado, menos onde importa.” Mas não podia lhe dizer aquilo.
- Lamento por você - Asha disse - e lamento mais por ela... Mas deixa-me pouca escolha exceto reivindicar a Cadeira de Pedra do Mar para mim.
Não pode.
- A saliva que gastar é sua, mulher.
- Sim - ela concordou, e o deixou.  

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