sábado, 28 de setembro de 2013

24 - O SENHOR PERDIDO


Não deveria demorar tanto, Griff disse para si mesmo enquanto caminhava pelo convés do Donzela Tímida. Teriam perdido Haldon como perderam Tyrion Lannister? Os volantinos o teriam levado? Devia ter mandado Patodocampo com ele. Haldon sozinho não era de confiança, havia provado isso em Selhorys, quando deixara o anão escapar.
O Donzela Tímida estava amarrado em uma das seções mais fracas da beira-rio longa e caótica, entre uma fila de barcos de pesca que não deixavam o píer havia anos e a barca alegremente pintada dos pantomimeiros. Os pantomimeiros eram barulhentos e animados, sempre fazendo discursos uns para os outros e frequentemente bêbados.
O dia estava quente e pegajoso, como todos os dias desde que deixaram os Sofrimentos. Um feroz sol meridional batia sobre a beira-rio lotada de Volon Therys, mas o calor era a última e a menor das preocupações de Griff. A Companhia Dourada estava acampada a cinco quilômetros ao sul da cidade, bem ao norte de onde esperava que estivessem, e o Tríade Malaquo viera ao norte com cinco mil homens a pé e mil a cavalo, para cortá-los no delta da estrada. Daenerys Targaryen permanecia a um mundo de distância, e Tyrion Lannister... bem, podia estar em qualquer lugar. Se os deuses fossem bons, a cabeça decepada de Lannister estaria a meio caminho de Porto Real agora mesmo, mas era mais provável que o anão estivesse saudável e inteiro em algum lugar ali perto, cheirando a bêbado e tramando alguma nova infâmia.
- Onde, pelos sete infernos, está Haldon? - Griff reclamou para a Senhora Lemore. - Quanto tempo demora para comprar três cavalos?
Ela encolheu os ombros.
- Senhor, não seria mais seguro deixar o garoto aqui no barco?
- Mais seguro, sim. Mais sábio, não. Ele é um homem crescido agora, e este é o caminho que ele nasceu para trilhar. - Griff não estava com paciência para essa discussão. Estava cansado de se esconder, cansado de esperar, cansado de cautela. Não tenho tempo suficiente para cautela.
- Fizemos grandes esforços para manter o Príncipe Aegon escondido todos esses anos - Lemore o recordou. - Chegará o momento de ele lavar o cabelo e se declarar, eu sei, mas o momento não é agora. Não em um acampamento de mercenários.
- Se Harry Strickland quiser prejudicá-lo, escondê-lo no Donzela Tímida não vai protegê-lo. Strickland tem dez mil espadas sob seu comando. Temos Pato. Aegon é tudo o que se poderia esperar de um príncipe. Eles precisam ver isso, Strickland e os demais. Esses são seus próprios homens.
- São dele porque foram comprados e pagos. Dez mil estranhos armados, mais parasitas e seguidores de acampamentos. Só precisamos de um para nos arruinar a todos. Se a cabeça de Hugor valia as honras de um senhor, quanto Cersei Lannister pagará pelo legítimo herdeiro do Trono de Ferro? Você não conhece esses homens, senhor. Já faz uma dúzia de anos desde que cavalgou com a Companhia Dourada, e seu velho amigo está morto.
Coração Negro. Myles Toyne estava tão cheio de vida na última vez que Griff o deixara, que era difícil aceitar que se fora. Um crânio dourado sobre um mastro, e Harry Sem-Teto Strickland está em seu lugar. Lemore não estava errada, ele sabia. O que quer que seus pais e avós tivessem sido em Westeros antes do exílio, os homens da Companhia Dourada eram mercenários agora, e nenhum mercenário era de confiança. Mesmo assim ...
Na noite passada, sonhara novamente com o Septo de Pedra. Sozinho, com uma espada na mão, corria de casa em casa, derrubando portas, pulando de telhado em telhado, enquanto seus ouvidos captavam o som distante de sinos. Profundas badaladas de bronze e carrilhões de prata soavam dentro de seu crânio, em uma cacofonia enlouquecedora que ficava cada vez mais alta, até que sua cabeça parecia explodir.
Dezessete anos haviam se passado desde a Batalha dos Sinos, e até hoje o som do badalar ainda causava um nó em seu estômago. Outros poderiam dizer que o reino foi perdido quando o Príncipe Rhaegar caiu sob o martelo de guerra de Robert, no Tridente, mas a Batalha do Tridente nunca teria sido travada se o grifo tivesse matado o veado no Septo de Pedra. Os sinos dobraram por todos nós naquele dia. Por Aerys e sua rainha, por Elia de Dorne e sua filhinha, por todo homem verdadeiro e mulher honesta dos Sete Reinos. E por meu príncipe de prata.
- O plano era revelar o Príncipe Aegon apenas quando estivéssemos com a Rainha Daenerys - Lemore estava dizendo.
- Isso era quando acreditávamos que a garota vinha para oeste. A rainha dragão queimou nossos planos até virarem cinzas, e graças àquele gordo tolo em Pentos, agarramos a mulher dragão pela cauda e queimamos nossos dedos até os ossos.
- Illyrio não podia imaginar que a garota escolheria ficar na Baía dos Escravos.
- Não mais do que sabia que o Rei Pedinte morreria jovem, ou que Khal Drogo o seguiria para a sepultura. Muito pouco do que o gordo antecipou realmente aconteceu. - Griff bateu no cabo de sua espada longa com a mão enluvada. - Dancei pela música do gordo por anos, Lemore. O que ganhamos com isso? O príncipe é um homem crescido. É tempo dele...
- Griff - Yandry chamou em voz alta, acima do tinir dos sinos dos pantomimeiros. - É Haldon.
E assim era. O Meiomeistre parecia encalorado e sujo por ter feito todo o caminho da beira-mar até o pé do píer. O suor deixara anéis escuros embaixo dos braços na túnica de linho leve, e ele tinha o mesmo olhar azedo que carregava em Selhorys ao voltar para o Donzela Tímida para confessar que o anão havia desaparecido. Apesar disso, levava três cavalos, e isso era tudo o que importava.
- Traga o rapaz - Griff disse para Lemore. - Veja se ele está pronto.
- Como quiser - ela respondeu, infeliz.
Então que seja. Tinha muita afeição por Lemore, mas isso não queria dizer que precisasse da sua aprovação. A tarefa dela era instruir o príncipe nas doutrinas da Fé, e ela havia feito isso. Mas nem toda a oração do mundo o colocaria sobre o Trono de Ferro. Esta era a tarefa de Griff. Falhara com o Príncipe Rhaegar uma vez. Não falharia com seu filho, não enquanto tivesse vida em seu corpo.
Os cavalos de Haldon não o agradaram.
- Estes foram os melhores que conseguiu encontrar? - reclamou para o Meiomeistre.
- Foram - disse Haldon, em tom irritado - e é melhor não perguntar quanto nos custaram. Com os dothrakis do outro lado do rio, metade da população de Volon Therys decidiu que em breve estarão em outro lugar, então a carne de cavalo fica mais cara a cada dia.
Eu mesmo devia ter ido. Depois de Selhorys, havia encontrado dificuldade em confiar em Haldon como antes. Ele deixou o anão seduzi-lo com aquela lábia toda. Deixou-o entrar sozinho em um prostíbulo enquanto permanecia como um idiota na praça. O dono do bordel insistira que o homenzinho havia sido levado na ponta da espada, mas Griff não sabia se podia acreditar. O Duende era esperto o suficiente para ter conspirado a própria fuga. O captor bêbado do qual as prostitutas falaram poderia ser algum homem de confiança contratado por ele. Eu divido a culpa. Depois que o anão se colocou entre Aegon e o homem de pedra, baixei a guarda. Devia ter cortado a sua garganta na primeira vez que deitei meus olhos sobre ele.
- Servirão bem o bastante, suponho - disse para Haldon. - O acampamento está só a cinco quilômetros para o sul. - O Donzela Tímida faria o percurso mais rapidamente, mas preferia manter Harry Strickland ignorante de onde ele e o príncipe tinham estado. Tampouco se entusiasmava com a possibilidade dos respingos nos baixios para atravessar algum banco de rio lamacento. Esse tipo de entrada podia servir para um mercenário e seu filho, mas não para um grande senhor e seu príncipe.
Quando o rapaz saiu da cabine com Lemore ao seu lado, Griff o examinou cuidadosamente da cabeça aos pés. O príncipe usava espada e adaga, botas negras polidas até resplandecerem e uma capa negra forrada com seda vermelho-sangue. Com o cabelo lavado, cortado e recém-pintado de um azul profundo e escuro, seus olhos também pareciam azuis. Na garganta, usava três imensos rubis quadrados em uma corrente de ferro negra, um presente do Magíster Illyrio. Vermelho e negro. As cores do Dragão. Isso era bom.
- Você parece um príncipe bastante adequado - disse para o garoto. - Seu pai ficaria orgulhoso se pudesse vê-lo.
O Jovem Griff passou os dedos pelos cabelos.
- Estou cansado deste azul. Deveríamos lavá-lo.
- Em breve. - Griff ficaria feliz em voltar à sua cor verdadeira também, embora seus cabelos antes vermelhos houvessem se tornado grisalhos. Bateu no ombro do rapaz. - Vamos? Seu exército aguarda sua chegada.
- Gosto de como isso soa. Meu exército. - Um sorriso iluminou seu rosto e então desapareceu. - São meus homens, afinal? São mercenários. Yollo me avisou para não confiar em ninguém.
- Há sabedoria nisso - Griff admitiu. Seria outra coisa se Coração Negro ainda comandasse, mas Myles Toyne morrera havia quatro anos, e Harry Sem-Teto Strickland era um tipo distinto de homem. Mas não podia dizer isso ao rapaz. O anão já havia plantado dúvidas suficientes em sua jovem cabeça. - Nem todo homem é o que parece, e um príncipe, especialmente, tem bons motivos para ser cauteloso ... Mas vá muito longe por esse caminho e a desconfiança vai envenenar você, torná-lo amargo e com medo. - O Rei Aerys foi assim. No fim, até Rhaegar viu isso claramente. - Você faria melhor em conseguir um meio-termo. Deixe os homens conquistarem sua confiança com serviço leal... mas, quando o fizerem, seja generoso e tenha o coração aberto.
O garoto balançou a cabeça.
- Eu me lembrarei.
Deram ao príncipe o melhor dos três cavalos, um grande castrado cinza, tão claro que era quase branco. Griff e Haldon cavalgavam ao lado dele, em montarias menores. A estrada seguia para o sul, sob as muralhas brancas de Volon Therys por uns oitocentos metros. Então deixaram a cidade para trás, seguindo o curso sinuoso do Roine através de bosques de salgueiros e campos de papoulas, passando por um moinho de madeira cujas pás rangiam como ossos velhos quando giravam.
Encontraram a Companhia Dourada ao lado do rio, quando o sol estava se pondo no oeste. Era um acampamento que talvez até Arthur Dayne tivesse aprovado: compacto, ordenado, defensível. Uma vala profunda fora cavada ao redor, com estacas afiadas dentro. As tendas estavam em filas com amplas avenidas entre elas. As latrinas haviam sido colocadas ao lado do rio, então a corrente levava os dejetos. As linhas dos cavalos estavam ao norte, e atrás delas duas dúzias de elefantes pastavam ao lado da água, erguendo juncos com suas trombas. Griff olhou para os grandes animais cinzentos com aprovação. Não há um cavalo de guerra em toda Westeros que possa enfrentá-los.
Altos estandartes de batalha de samito dourado agitavam-se em cima de elevados postes ao longo do perímetro do acampamento. Sob eles, sentinelas de armadura faziam suas rondas com lanças e bestas, observando qualquer aproximação. Griff tivera receio que a companhia tivesse relaxado sob o comando de Harry Strickland, que sempre parecera mais preocupado em fazer amigos do que em garantir a disciplina, mas parecia que suas preocupações eram infundadas.
No portão, Haldon disse alguma coisa para o oficial dos guardas, e um mensageiro foi enviado para encontrar um capitão. Quando ele apareceu, estava tão feio quanto na última vez que Griff deitara os olhos nele. Um homem barrigudo e brutamontes, o mercenário tinha o rosto atravessado por antigas cicatrizes. Sua orelha direita parecia ter sido mastigada por um cachorro e a esquerda sumira.
- Eles o fizeram capitão, Flowers? - disse Griff - Eu achava que a Companhia Dourada tinha padrões.
- É pior que isso, seu tipinho - disse Franklyn Flowers. - Me sagraram cavaleiro também. - Agarrou Griff pelo antebraço e puxou-o para um abraço esmagador. - Você parece horrível, mesmo para um homem que esteve morto por uma dúzia de anos. Cabelo azul, é isso mesmo? Quando Harry me disse que você estava voltando, quase me caguei. E Haldon, seu pau no cu, é bom ver você também. Ainda tem aquela bengala na bunda?
- Virou-se para o Jovem Griff - E este seria ...
- Meu escudeiro. Rapaz, este é Franklyn Flowers.
O príncipe o cumprimentou com um aceno de cabeça.
- Flowers é um nome bastardo. Você vem da Campina.
- Sim. Minha mãe era uma lavadeira no Solar da Sidra, até que um dos filhos do senhor a estuprou. Isso me torna um tipo de maçã marrom de Fossoway, é como me vejo. - Flowers os levou pelo portão. - Venham comigo. Strickland chamou todos os oficiais para a tenda dele. Conselho de guerra. Os malditos volantinos estão agitando suas lanças e exigindo conhecer nossas intenções.
Os homens da Companhia Dourada estavam fora de suas tendas, jogando dados, bebendo e espantando moscas. Griff se perguntava quantos deles sabiam quem ele era. Poucos demais. Doze anos é um longo tempo. Até mesmo os homens que cavalgaram com ele podiam não reconhecer o exilado Lorde Jon Connington de flamejante barba vermelha no rosto alinhado e barbeado e nos cabelos azuis do mercenário Griff. No que dizia respeito a eles, Connington tinha se acabado de tanto beber em Lys, depois de ter sido expulso da companhia em desgraça, por ter roubado o baú de guerra. A vergonha da mentira ainda estava atravessada em sua garganta, mas Varys insistira em que era necessário.
- Não queremos canções sobre o exílio galante - o eunuco dissera, rindo suavemente, naquela voz amaneirada. - Aqueles que morrem mortes heroicas são lembrados por muito tempo; ladrões, bêbados e covardes são logo esquecidos.
O que um eunuco sabe sobre a honra de um homem? Griff havia levado o plano da Aranha adiante para a segurança do menino, mas isso não significava que gostasse da ideia. Deixe-me viver tempo suficiente para ver o garoto sentado no Trono de Ferro e Varys pagará por essa desfeita, e muito mais. Então veremos quem é logo esquecido.
A tenda do capitão-general era feita de samito dourado e cercada por um anel de estacas cobertas com crânios dourados. Um crânio era maior que os demais, grotescamente malformado. Embaixo havia um segundo, não maior do que o punho de uma criança. Maelys, o Monstruoso, e seu irmão sem nome. Os outros crânios eram parecidos com aqueles, embora muitos estivessem quebrados e estilhaçados pelos golpes que os mataram, e um deles tivesse uma fileira de dentes pontiagudos.
- Qual deles é Myles?- Griff se pegou perguntando.
- Aqui. No fim. - Flowers apontou. - Espere. Vou anunciar você. - Ele andou para dentro da tenda, deixando Griff a contemplar o crânio dourado de seu velho amigo. Em vida, Sor Myles Toyne era tão feio quanto o pecado. Seu famoso antepassado, o cruel e impetuoso Torrence Toyne, sobre quem os bardos cantavam, havia sido tão bonito de rosto que nem mesmo a amante do rei pôde resistir a ele, mas Myles tinha orelhas de abano, a mandíbula torta e o maior nariz que Jon Connington já vira. Mas, quando sorria, nada disso importava. Coração Negro, seus homens o apelidaram, pelo símbolo em seu escudo. Myles amara o nome e tudo o que estava implícito nele.
- Um capitão-general precisa ser temido, tanto pelos amigos quanto pelos inimigos - confessara uma vez. - Se os homens acharem que sou cruel, melhor. - A verdade era outra. Soldado até os ossos, Toyne era feroz mas sempre justo, um pai para seus homens e sempre generoso com o exilado Lorde Jon Connington.
A morte lhe roubara as orelhas, o nariz e todo o seu calor. O sorriso permanecera, transformado em um sorriso largo, dourado e brilhante. Todos os crânios sorriam, mesmo o de Açoamargo, na alta estaca no centro. Do que ele sorri? Morreu derrotado e sozinho, um homem quebrado em uma terra estrangeira. Em seu leito de morte, Sor Aegor Rivers ordenara a seus homens que fervessem seu crânio para retirar a carne, mergulhassem-no em ouro e o carregassem diante deles quando cruzassem o mar para retomar Westeros. Seus sucessores haviam seguido o exemplo.
Jon Connington podia ter sido um desses sucessores, se seu exílio tivesse sido diferente. Passara cinco anos na companhia, ascendendo das fileiras para um lugar de honra do lado direito de Toyne. Se tivesse ficado, bem que poderia ter sido ele a assumir o lugar de Myles, após sua morte, em vez de Harry Strickland. Mas Griff não se arrependia do caminho que escolhera. Quando eu voltar para Westeros, não será como um crânio sobre uma estaca.
Flowers saiu da tenda.
- Entrem.
Os oficiais de alto escalão da Companhia Dourada se levantaram dos bancos e cadeiras de campanha quando eles entraram. Velhos amigos cumprimentaram Griff com sorrisos e abraços, os homens novos mais formalmente. Nem todos estão tão felizes em me ver como queriam que eu acreditasse. Sentia facas atrás de alguns sorrisos. Até bem recentemente, a maioria deles acreditava que Lorde Jon Connington estava seguramente em seu túmulo, e sem dúvida muitos achavam que aquele era um bom lugar para ele, um homem que rouba seus irmãos em armas. Griff se sentiria do mesmo jeito se estivesse na posição deles.
Sor Franklin fez as apresentações. Alguns dos capitães mercenários carregavam nomes bastardos, assim como Flowers: Rivers, Hill, Stone. Outros se arrogavam nomes que certa vez tiveram grande importância na história dos Sete Reinos; Griff contou dois Strong, três Peake, um Mudd, um Mandrake, um Lothston, um par de Cole. Nem todos eram verdadeiros, ele sabia. Nas companhias livres, um homem podia chamar a si mesmo do jeito que quisesse. Independente do nome, os mercenários mostravam um esplendor rude. Como muitos outros nesse ramo, mantinham as riquezas mundanas sobre suas pessoas: espadas com joias, armaduras incrustadas, pesadas torcs e seda fina em muita evidência, e cada homem usava o resgate de um senhor em braceletes de ouro. Cada bracelete significava um ano a serviço da Companhia Dourada. Marq Mandrake, cujo rosto marcado de varíola tinha um buraco em uma bochecha que havia sido queimada para eliminar uma marca de escravo, usava uma corrente de crânios dourados também.
Nem todos os capitães tinham sangue westerosi. Balaq Negro, um ilhéu de Verão com a pele escura como fuligem, comandava os arqueiros da companhia desde a época de Coração Negro. Vestia uma capa com penas verdes e laranja, magníficas de serem vistas. O cadavérico volantino Gorys Edoryen substituíra Strickland como mestre da moeda. Uma pele de leopardo pendia pregueada de um ombro, e seu cabelo vermelho-sangue caía pelos ombros em cachos oleosos, embora a barba pontuda fosse negra. O mestre dos espiões era novo para Griff; um liseno chamado Lysono Maar, com olhos lilases, cabelo branco-dourado e lábios que fariam inveja a uma prostituta. Em um primeiro passar de olhos, Griff quase o tomara por mulher. As unhas da mão eram pintadas de púrpura e os lóbulos das orelhas carregavam pérolas e ametistas.
Fantasmas e mentirosos, Griff pensou, enquanto examinava seus rostos. Espectros de guerras esquecidas e rebeliões fracassadas, uma irmandade de fracassados e caídos, os desgraçados e deserdados. Este é meu exército. É nossa melhor esperança.
Virou-se para Harry Strickland.
Harry Sem-Teto parecia pouco com um guerreiro. Corpulento, com uma grande cabeça redonda, suaves olhos cinza e um cabelo rarefeito que escovava para o lado para esconder a careca, Strickland estava sentado em uma cadeira de acampamento, com os pés mergulhados em uma bacia de água salgada.
- Vai me perdoar por não levantar - disse, à guisa de cumprimento. - Nossa marcha foi cansativa e meus dedos são propensos a bolhas. Uma maldição.
É um sinal de fraqueza. Você parece uma velha. Os Strickland faziam parte da Companhia Dourada desde sua fundação, quando o bisavô de Harry perdera suas terras e se unira ao Dragão Negro durante a primeira Rebelião Blackfyre.
- Dourados por quatro gerações - Harry costumava se vangloriar, como se quatro gerações de exílio e derrota fossem motivo de orgulho para alguém.
- Posso fazer um unguento para isso - disse Haldon - há certos sais minerais que endurecem a pele.
- É muita gentileza sua. - Strickland acenou para seu escudeiro. - Watkyn, vinho para nossos amigos.
- Obrigado, mas não - disse Griff - Beberemos água.
- Como preferir. - O capitão-general sorriu para o príncipe. - E este deve ser seu filho.
Ele sabe? Griff se perguntou. Quanto Myles contou para ele? Varys tinha sido inflexível sobre a necessidade de sigilo. Os planos que ele e Illyrio haviam feito com Coração Negro eram conhecidos só por eles. O restante da companhia fora mantido na ignorância. O que não sabiam não deixariam escapar.
Esse tempo se fora, no entanto.
- Nenhum homem podia pedir por filho mais digno - disse Griff - mas este rapaz não é meu sangue, e o nome dele não é Griff. Senhores, apresento-lhes Aegon Targaryen, filho primogênito de Rhaegar, Príncipe de Pedra do Dragão e da Princesa Elia de Dome... Logo, com a ajuda de vocês, ele será Aegon, o Sexto de Seu Nome, Rei dos Ândalos, dos Reinares e dos Primeiros Homens, e Senhor dos Sete Reinos.
Silêncio se seguiu ao seu anúncio. Alguém limpou a garganta. Um dos Cole tornou a encher sua taça de vinho do garrafão. Gorys Edoryen brincava com o saca-rolhas e murmurou algo em uma língua que Griff não entendeu. Laswell Peake tossiu, Mandrake e Lothston trocaram um rápido olhar. Eles sabem, Griff percebeu. Sempre souberam. Voltou seu olhar para Harry Strickland.
- Quando contou para eles?
O capitão-general torcia os dedos dos pés com bolhas na bacia.
- Quando alcançamos o rio. A companhia estava inquieta, e com boas razões. Saímos de uma campanha fácil nas Terras Disputadas, e para quê? Então podíamos sufocar nesse calor dos infernos, vendo nossas moedas derreterem e nossas lâminas enferrujarem, enquanto eu recusava ricos contratos?
Aquelas notícias fizeram a pele de Griff se arrepiar.
- Quem?
- Os homens de Yunkai. O enviado que mandaram para cortejar Volantis já despachou três companhias livres para a Baía dos Escravos. Queria que fôssemos a quarta, e nos ofereceu duas vezes o que Myr estava nos pagando, mais um escravo para cada homem na companhia, dez para cada oficial e cem donzelas escolhidas, todas para mim.
Maldito.
- Isso exigiria milhares de escravos. Onde os yunkaítas esperam conseguir tantos?
- Em Meereen. - Strickland acenou para seu escudeiro. - Watkyn, uma toalha. Esta água está ficando gelada, e meus dedos estão enrugados como passas. Não, não aquela toalha ... a macia.
- Você recusou - disse Griff.
- Disse que iria pensar na proposta dele. - Harry estremeceu quando o escudeiro começou a secar seus pés. - Seja gentil com os dedos. Pense neles como uvas de casca fina, rapaz. Você quer secá-los sem esmagá-los. Afague-os, não esfregue. Sim, desse jeito. - Virou-se para Griff - Uma recusa brusca teria sido imprudente. Os homens poderiam, com razão, perguntar se eu havia perdido o juízo.
- Vocês terão trabalho para suas lâminas em breve.
- Teremos? - perguntou Lysono Maar. - Acredito que saiba que a garota Targaryen não começou seu caminho para o oeste?
- Ouvimos esse boato em Selhorys.
- Não é boato. É a simples verdade. O porquê disso é mais difícil de entender. Saquear Meereen, sim, por que não? Eu teria feito o mesmo no lugar dela. As cidades dos escravos exalam a ouro, e a conquista exige dinheiro. Mas por que permanecer? Medo? Loucura? Preguiça?
- O porquê não importa. - Harry Strickland desenrolou um par de meias de lã listradas. - Ela está em Meereen e nós estamos aqui, onde os volantinos ficam a cada dia mais descontentes com nossa presença. Viemos levantar um rei e uma rainha que nos liderariam para casa, em Westeros, mas essa garota Targaryen parece mais preocupada em plantar oliveiras do que em reclamar o trono de seu pai. Enquanto isso, seus inimigos se reúnem. Yunkai, Nova Ghis, Tolos. Barbassangrenta e o Príncipe Esfarrapado estão ambos indo a campo contra ela ... e logo as frotas da Antiga Volantis descerão sobre ela também. E o que ela tem? Escravos de cama com bastões?
- Imaculados - disse Griff - E dragões.
- Dragões, sim - disse o capitão-general - mas ainda jovens, dificilmente mais do que filhotes. - Strickland passou as meias pelas bolhas até os tornozelos. - Qual será a utilidade deles quando todos esses exércitos inimigos se fecharem sobre a cidade dela como um punho?
Tristan Rivers tamborilou os dedos no joelho.
- Tudo isso são motivos para irmos até ela rapidamente, eu digo. Se Daenerys não vem até nós, devemos ir até Daenerys.
- Podemos andar pelas ondas, sor? - perguntou Lysono Maar. - Eu lhe digo novamente, não podemos chegar até a rainha prateada por mar. Me meti em Volantis, vestido de comerciante, para saber quantos navios teríamos disponíveis. O porto fervilha de galés, barcos pesqueiros e naus de todos os tipos e tamanhos, e mesmo assim me peguei andando com contrabandistas e piratas. Temos dez mil homens na companhia, como estou certo de que Lorde Connington se lembra de seus anos de serviço para nós. Cinco mil cavaleiros, cada um com três cavalos. Cinco mil escudeiros, com uma montaria cada. E elefantes, não podemos esquecer os elefantes. Um navio pirata não será suficiente. Precisamos de uma frota pirata ... e, mesmo se encontrarmos uma, as notícias que vêm da Baía dos Escravos dão conta de que Meereen está fechada por um bloqueio.
- Podíamos fingir aceitar a oferta de Yunkai - exortou Gorys Edoryen. - Permitir que os yunkaítas nos transportem até o leste, e então devolver o ouro deles sob as muralhas de Meereen.
- Um contrato quebrado é suficiente para manchar a honra da companhia - Harry Sem-Teto Strickland interrompeu, segurando na mão o pé cheio de bolhas. - Deixe-me lembrar vocês, foi Myles Toyne quem colocou seu selo neste pacto secreto, não eu. Eu honraria seu acordo se pudesse, mas como? Parece claro para mim que a garota Targaryen nunca virá para oeste. Westeros era o reino do pai dela. Meereen é o dela. Se ela conseguir derrotar os yunkaítas, será a Rainha da Baía dos Escravos. Se não, morrerá muito antes de termos a esperança de alcançá-la.
As palavras dele não eram nenhuma surpresa para Griff. Harry Strickland sempre fora um homem afável, melhor martelando contratos do que martelando inimigos. Tinha faro para ouro, mas se tinha estômago para batalha era outra questão.
- Há a rota terrestre - sugeriu Franklyn Flowers.
- O caminho do demônio é a morte. Perderemos metade da companhia por deserção se tentarmos essa marcha e enterraremos a metade que sobrar ao lado da estrada. Me entristece dizer isso, mas o Magíster Illyrio e seus amigos podem ter sido imprudentes em colocar tanta esperança nessa rainha criança.
Não, pensou Griff, foram muito imprudentes em colocar as esperanças deles em você.
O Príncipe Aegon falou.
- Então coloquem suas esperanças em mim - disse. - Daenerys é irmã do Príncipe Rhaegar, mas eu sou filho dele. Sou o único dragão do qual vocês precisam.
Griff colocou a mão enluvada sobre o ombro do Príncipe Aegon.
- Palavras corajosas - disse - mas pense no que você está dizendo.
- Eu pensei - o rapaz insistiu. - Por que devo correr até minha tia como se fosse um pedinte? Minha pretensão é melhor do que a dela. Deixe-a vir até mim ... em Westeros.
Franklyn Flowers riu.
- Gosto disso. Navegar para oeste, não para leste. Deixar a pequena rainha com suas oliveiras e colocar o Príncipe Aegon sobre o Trono de Ferro. O garoto tem bolas, isso tem.
O capitão-general olhou como se alguém o tivesse estapeado no rosto.
- O sol coalhou seu cérebro, Flowers? Precisamos da garota. Precisamos do casamento. Se Daenerys aceitar nosso príncipe e tomá-lo como seu consorte, os Sete Reinos farão o mesmo. Sem ela, os senhores zombarão da pretensão dele e o estigmatizarão como uma fraude e um fingidor. E como pretende ir até Westeros? Você ouviu Lysono. Não há navios.
Este homem está com medo de lutar, Griff percebeu. Como eles o escolheram para o lugar de Coração Negro?
- Não há navios para a Baía dos Escravos. Westeros é outra coisa. O leste está fechado para nós, não o mar. Os tríades ficarão felizes em ver nossa partida, não tenho dúvidas. Podem até nos ajudar a conseguir passagem de volta para os Sete Reinos. Nenhuma cidade quer um exército em seus portões.
- Ele não está errado - disse Lysono Maar.
- Neste momento, o leão certamente já sentiu o cheiro do dragão - disse um dos Cole - mas a atenção de Cersei deve estar voltada para Meereen e essa outra rainha. Ela não sabe nada sobre nosso príncipe. E, uma vez que cheguemos a terra firme e levantemos nossos estandartes, muitos e muitos mais se unirão a nós.
- Alguns - concordou Harry Sem-Teto - não muitos. A irmã de Rhaegar tem dragões. O filho de Rhaegar não tem. Não temos força para tomar o reino sem Daenerys e o exército dela. Seus Imaculados.
- O primeiro Aegon tomou Westeros sem eunucos - disse Lysono Maar. - Por que o sexto Aegon não faria o mesmo?
- o plano...
- Que plano? - disse Tristan Rivers. - O plano do gordo? Aquele que muda com as fases da lua? Primeiro Viserys Targaryen se juntaria a nós com cinquenta mil gritadores dothrakis atrás dele. Então o Rei Pedinte foi morto, e era a irmã dele, uma jovem e maleável criança que estaria a caminho de Pentos com três dragões recém-eclodidos. Em vez disso, a garota se virou para a Baía dos Escravos e deixou uma trilha de cidades queimadas em seu caminho, e o gordo decidiu que deveríamos encontrá-la em Volantis. Agora esse plano está arruinado também. Já tive planos suficientes de Illyrio. Robert Baratheon conquistou o Trono de Ferro sem a ajuda de dragões. Podemos fazer o mesmo. E se eu estiver errado e o reino não se levantar conosco, sempre poderemos recuar através do mar estreito, como Açoamargo fez uma vez, e outros depois dele.
Strickland sacudiu a cabeça, obstinadamente.
- O risco ...
- ... não é o que era, agora que Tywin Lannister está morto. Os Sete Reinos nunca estiveram tão maduros para a conquista. Outro rei garoto senta no Trono de Ferro, ainda mais jovem que o último, e rebeldes aumentam no solo como folhas de outono.
- Mesmo assim - disse Strickland - sozinhos, não podemos esperar...
Griff ouvira o bastante da covardia do capitão-general.
- Não estaremos sozinhos. Dorne se unirá a nós, deve se unir a nós. O Príncipe Aegon é filho de Elia tanto quanto de Rhaegar.
- É isso - disse o garoto - e quem está em Westeros para se opor a nós? Uma mulher.
- Uma mulher Lannister - insistiu o capitão-general. - A puta terá o Regicida ao seu lado, contem com isso, e terão toda a riqueza de Rochedo Casterly atrás deles. E Illyrio diz que o rei menino é prometido à garota Tyrell, o que significa que enfrentaremos o poder de Jardim de Cima também.
Laswell Peake bateu os nós dos dedos na mesa.
- Mesmo depois de um século, alguns de nós ainda têm amigos na Campina. O poder de Jardim de Cima pode não ser o que Mace Tyrell imagina.
- Príncipe Aegon - disse Tristan Rivers - somos seus homens. É seu desejo que naveguemos para oeste em vez de para leste?
- É, sim! - Aegon respondeu apaixonadamente. - Se minha tia quer Meereen, que faça bom proveito. Clamarei o Trono de Ferro eu mesmo, com suas espadas e sua fidelidade. Se nos movermos rápido e atacarmos forte, poderemos ter algumas vitórias fáceis antes que os Lannister sequer saibam da nossa presença no continente. Isso trará outros para nossa causa.
Rivers estava sorrindo de aprovação. Outros trocavam olhares pensativos. Então Peake disse:
- Prefiro morrer em Westeros a morrer no caminho do demônio.
Marq Mandrake riu e respondeu:
- Eu prefiro viver, conquistar terras e algum grande castelo.
Franklyn Flowers bateu no cabo da sua espada e disse:
- Enquanto eu puder matar alguns Fossoway, estou nessa.
Quando todos começaram a falar ao mesmo tempo, Griff soube que a maré tinha virado. Este é um lado de Aegon que nunca vi antes. Não era um caminho prudente, mas ele estava cansado de prudência, enfermo de segredos, exausto de esperar. Ganhando ou perdendo, veria Poleiro do Grifo novamente antes de morrer, e seria enterrado na tumba ao lado de seu pai.
Um por um, os homens da Companhia Dourada se levantaram, ajoelharam-se e colocaram as espadas aos pés de seu jovem príncipe. O último a fazer isso foi Harry Sem-Teto Strickland, com os pés cheios de bolhas e tudo.
O sol avermelhado no céu ocidental pintava sombras escarlate nos crânios dourados no topo das lanças quando deixaram a tenda do capitão-general. Franklyn Flowers se ofereceu para dar uma volta com o príncipe pelo acampamento e apresentá-lo a alguns que chamava de os rapazes. Griff deu seu consentimento.
- Mas lembre-se, por mais que a companhia esteja envolvida, ele deve continuar a ser o Jovem Griff até que atravessemos o mar estreito. Em Westeros lavaremos seu cabelo e o deixaremos usar sua armadura.
- Sim, entendido. - Flowers deu um tapinha nas costas do Jovem Griff. - Venha comigo. Começaremos com os cozinheiros. Bons homens para se conhecer.
Quando os dois saíram, Griff se virou para o Meiomeistre.
- Cavalgue de volta ao Donzela Tímida e retorne para cá com a Senhora Lemore e Sor Rolly. Precisaremos dos baús de Illyrio também. Todas as moedas, todas as armaduras. Dê nossos agradecimentos a Yandry e Ysilla. A parte deles nisso está acabada. Eles não serão esquecidos quando Sua Graça chegar ao seu reino.
- Como desejar, senhor.
Griff o deixou ali e entrou na tenda que Harry Sem-Teto havia destinado para ele. A estrada diante deles era cheia de perigos, ele sabia, mas e daí: Todos os homens têm que morrer. Tudo o que ele pedia era tempo. Esperara tanto, certamente os deuses lhe garantiriam mais alguns anos, tempo suficiente para ver o garoto que chamava de filho sentado no Trono de Ferro. Para reclamar suas terras, seu nome, sua honra. Para acalmar os sinos que ainda tocavam tão alto em seus sonhos todas as vezes que fechava os olhos para dormir.
Sozinho na tenda, enquanto os raios dourados e escarlate do sol poente brilhavam pela abas abertas, Jon Connington tirou a capa de pele de lobo, escorregou a camisa de cota de malha por sobre a cabeça, sentou-se em um banco de acampamento e tirou a luva da mão direita. A unha de seu dedo médio tinha se tornado tão negra quanto azeviche, ele via, e o cinza subira até quase a primeira articulação. A ponta do dedo anelar também começava a escurecer e, quando ele a tocava com a ponta da adaga, não sentia nada.
Morte, sabia, mas lenta. Ainda tenho tempo. Um ano. Dois anos. Cinco. Alguns homens de pedra vivem dez. Tempo suficiente para cruzar o mar, para ver Poleiro do Grifo novamente. Para acabar com a linhagem do Usurpador de uma vez por todas e colocar o filho de Rhaegar no Trono de Ferro.
Então Lorde Jon Connington poderia morrer feliz. 

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