sexta-feira, 20 de setembro de 2013

27 - JAIME



- Esperava que a essa altura já tivesse se cansado dessa deplorável barba. Todos esses pelos o deixam parecido com Robert - a irmã pusera o luto de lado em prol de um vestido cor de jade, com mangas de renda de Myr prateada. Uma esmeralda do tamanho de um ovo de pombo pendia-lhe do pescoço num fio de ouro.
- A barba de Robert era preta. A minha é dourada.
- Dourada? Ou prateada? - Cersei arrancou um pelo de sob o queixo do irmão e o ergueu. Era grisalho. - Está perdendo a cor, irmão. Transformou-se em um fantasma do que era, numa coisa pálida e aleijada. E tão descorado, sempre de branco - desembaraçou-se do pelo com um piparote. - Prefiro você vestido de ouro e carmesim.
Eu prefiro você sarapintada de luz do sol, com gotículas de água na pele nua. Desejava beijá-la, levá-la para o quarto, atirá-la na cama... ela tem andado fodendo Lancel e Osmund Kettleblack, e o Rapaz Lua...
- Vou lhe propor um negócio. Liberte-me deste dever e minha navalha está às suas ordens.
A boca dela comprimiu-se. Estivera bebendo vinho quente com especiarias e cheirava à noz-moscada.
- Ousa regatear comigo? Deverei relembrá-lo de que jurou obedecer?
- Jurei proteger o rei. Meu lugar é ao seu lado.
- Seu lugar é onde quer que ele ordene que esteja.
- Tommen põe o selo em todos os papéis que você coloca na frente dele. Isto é obra sua, e é uma loucura. Para que nomear Daven seu Protetor do Oeste se não confia nele?
Cersei sentou-se junto à janela. Por trás dela, Jaime conseguia ver as ruínas enegrecidas da Torre da Mão.
- Por que tanta relutância, sor? Perdeu a coragem com a mão?
- Prestei um juramento à Senhora Stark de nunca mais pegar em armas contra os Stark ou os Tully.
- Uma promessa de bêbado feita com uma espada na garganta.
- Como poderei defender Tommen se não estiver com ele?
- Derrotando seus inimigos. O pai sempre disse que um golpe rápido de espada é uma defesa melhor do que qualquer escudo. Admito que a maioria dos golpes de espada precisam de uma mão. Apesar disso, até um leão mutilado pode inspirar medo. Quero Correrrio. Quero Brynden Tully agrilhoado ou morto. E alguém tem de pôr Harrenhal nos eixos. Precisamos urgentemente de Wylis Manderly, assumindo que ainda esteja vivo e cativo, mas a guarnição não respondeu a nenhum dos nossos corvos.
- Quem está em Harrenhal são homens de Gregor - Jaime lembrou à irmã. - A Montanha gostava deles cruéis e estúpidos. O mais provável é que tenham comido seus corvos, com mensagens e tudo.
- É por isso que o estou mandando para lá. Podem comê-lo também, valente irmão, mas espero que lhes cause indigestão - Cersei alisou a saia. - Quero que Sor Osmund comande a Guarda Real na sua ausência.
... ela tem andado fodendo Lancel e Osmund Kettleblack, e o Rapaz Lua, tanto quanto sei...
- Essa escolha não lhe pertence. Se eu tiver de ir, Sor Loras ficará no comando em meu nome.
- Isto é alguma piada? Sabe o que sinto por Sor Loras.
- Se não tivesse mandado Balon Swann para Dorne...
- Preciso dele lá. Os dorneses não são dignos de confiança. Aquela serpente vermelha foi campeão de Tyrion, esqueceu-se disso? Não deixarei minha filha à mercê deles. E não terei Sor Loras no comando da Guarda Real.
- Sor Loras é três vezes melhor homem do que Sor Osmund.
- Suas noções de virilidade mudaram um pouco, irmão.
Jaime sentiu a ira aumentar.
- É verdade, Loras não olha para suas tetas como Sor Osmund, mas não penso...
- Pense nisto - Cersei o esbofeteou.
Jaime não fez nenhum esforço para bloquear o golpe.
- Estou vendo que vou precisar de uma barba mais espessa para me proteger das carícias da minha rainha - desejava arrancar-lhe o vestido e transformar-lhe os golpes em beijos. Já o fizera antes, na época em que tinha duas mãos.
Os olhos da rainha eram gelo verde.
- É melhor que vá embora, sor.
... Lancel, Osmund Kettleblack e o Rapaz Lua...
- Além de mutilado, é surdo? Encontrará a porta atrás de você, sor.
- Às suas ordens - Jaime girou nos calcanhares e a deixou.
Em algum lugar os deuses estavam dando risada. Cersei nunca aceitara de bom grado ser contrariada, ele sabia disso. Palavras mais suaves poderiam tê-la feito mudar de ideia, mas nos últimos tempos bastava vê-la para se sentir irritado.
Parte de si ficaria contente por deixar Porto Real para trás. Em nada lhe agradava a companhia dos bajuladores e dos tolos que rodeavam Cersei. “O mais pequeno conselho” era como agora diziam na Baixada das Pulgas, de acordo com Addam Marbrand. E Qyburn... podia ter salvo a vida de Jaime, mas não deixava de ser um Saltimbanco Sangrento.
“Qyburn fede a segredos” dissera a Cersei, num aviso. E isto apenas a fizera rir.
“Todos nós temos segredos, irmão” respondera.
... ela tem andado fodendo Lancel e Osmund Kettleblack, e provavelmente até o Rapaz Lua, tanto quanto sei...
Quarenta cavaleiros e outros tantos escudeiros esperavam-no à porta dos estábulos da Fortaleza Vermelha. Metade era de ocidentais juramentados à Casa Lannister, e os outros, inimigos recentes transformados em amigos duvidosos. Sor Dermot da Mata de Chuva levaria o estandarte de Tommen, Ronnet Vermelho Connington carregaria a bandeira branca da Guarda Real. Um Paege, um Piper e um Peckledon partilhariam a honra de servir o Senhor Comandante como escudeiros.
“Mantenha os amigos atrás de você e os inimigos onde possa vê-los” aconselhara-o um dia Sumner Crakehall. Ou teria sido o pai?
Sua montaria era um baio sanguíneo, e o corcel de batalha, um magnífico garanhão cinzento. Tinham se passado longos anos desde a última vez que Jaime dera nome a qualquer um de seus cavalos; vira muitos morrer em batalha, e isto se tornava mais duro quando lhes era dado nome. Mas quando o rapaz Piper começou a chamá-los Honra e Glória, deu risada e deixou que os nomes pegassem. Glória usava arreios do carmesim Lannister; Honra estava ajaezado com o branco da Guarda Real. Josmyn Peckledon segurou nas rédeas do cavalo quando Sor Jaime montou. O escudeiro era magro como uma lança, com longos braços e pernas, cabelos oleosos de um castanho de rato, e bochechas cobertas por uma suave penugem de pêssego. Seu manto ostentava o carmesim Lannister, mas o sobretudo mostrava as dez moletas púrpura de sua Casa, dispostas em fundo de amarelo.
- Senhor - perguntou o rapaz - quer sua nova mão?
- Use-a, Jaime - instou Sor Kennos de Kayce. - Acene aos plebeus e dê-lhes algo para contar aos filhos.
- Penso que não - Jaime não queria mostrar à multidão uma mentira dourada. Que vejam o coto. Que vejam o aleijado - mas fique à vontade para compensar minha falta, Sor Kennos. Acene com ambas as mãos e sacuda os pés, se quiser. - Pegou nas rédeas com a mão esquerda e deu meia-volta com o cavalo. - Payne - chamou enquanto os outros formavam - seguirá ao meu lado.
Sor Ilyn Payne abriu caminho até junto de Jaime, parecendo um pedinte num baile. Sua cota de malha estava velha e enferrujada, e era usada sobre uma jaqueta de couro fervido manchada. Nem o homem nem sua montaria ostentavam símbolos heráldicos; o escudo estava tão amassado e fendido que era difícil dizer de que cor teria sido a tinta que outrora o cobrira. Com seu rosto severo e olhos vazios e encovados, Sor Ilyn podia ter passado pela própria morte... e fora o que fizera, durante anos.
Mas não mais. Sor Ilyn constituíra metade do preço de Jaime por engolir a ordem de seu rei garoto como um bom Menino Comandante. A outra metade fora Sor Addam Marbrand.
“Preciso deles” dissera à irmã, e Cersei não se opôs. O mais provável é ter ficado satisfeita por se livrar deles. Sor Addam era amigo de infância de Jaime, e o carrasco silencioso fora um homem do pai de ambos, se é que era homem de alguém, Payne fora capitão da guarda da Mão quando alguém o ouviu vangloriar de que era Lorde Tywin quem governava os Sete Reinos e dizia ao Rei Aerys o que fazer. Aerys Targaryen cortara-lhe a língua por isso.
- Abram os portões - disse Jaime, e o Varrão-Forte, com sua voz trovejante, gritou:
- ABRAM OS PORTÕES!
Quando Mace Tyrell se pusera em marcha através do Portão da Lama ao som de tambores e rabecas, milhares de pessoas encheram as ruas para aclamá-lo. Garotinhos tinham se juntado à marcha, caminhando ao lado dos soldados Tyrell com cabeça erguida e elevando bem as pernas, enquanto as irmãs desses meninos atiravam beijos das janelas.
Mas naquele dia era diferente. Algumas prostitutas gritavam convites à passagem dos homens, e um vendedor de pastéis de carne anunciava a mercadoria. Na Praça do Sapateiro, dois pardais esfarrapados estavam pregando diante de várias centenas de plebeus, clamando pela danação de homens sem deus e adoradores de demônios. A multidão abriu alas para deixar a coluna passar. Tanto pardais como sapateiros os observaram com olhos embotados.
- Gostam do cheiro das rosas, mas não sentem amizade pelos leões - Jaime observou.
- Minha irmã faria bem em tomar nota disso - Sor Ilyn não lhe respondeu. O com panheiro perfeito para um a longa cavalgada. Vou apreciar sua companhia.
A maior parte de suas tropas o esperava além das muralhas da cidade; Sor Addam Marbrand com seus batedores, Sor Steffon Swyfit e o comboio logístico, a Santa Centena do velho Sor Bonifer, o Bom, os arqueiros a cavalo de Sarsfield, Meistre Gulian com quatro gaiolas cheias de corvos, duas centenas de cavaleiros pesados sob o comando de Sor Flement Brax. Somando tudo, não era uma grande hoste; menos de mil homens ao todo. Um grande número era a última coisa necessária em Correrrio. Um exército Lannister já investia sobre o castelo, bem como uma força ainda maior dos Frey; a última ave que tinham recebido sugeria que os sitiantes estavam com dificuldades para se manter alimentados. Brynden Tully limpara o terreno antes de se retirar para o interior de suas muralhas.
Não que precisasse de grande limpeza. Pelo que Jaime vira das terras fluviais, quase não havia campo de cultivo que ainda estivesse por queimar, vila por saquear e donzela por espoliar. E agora minha querida irmã me manda para terminar o trabalho que Amory Lorch e Gregor Clegane começaram. Aquilo lhe deixava um sabor amargo na boca.
Perto de Porto Real, a estrada do rei era tão segura quanto qualquer estrada podia ser em tempos como aqueles. Mesmo assim, Jaime enviou Marbrand e seus batedores na frente.
- Robb Stark me pegou desprevenido no Bosque dos Murmúrios - disse. - Isso nunca mais voltará a acontecer.
- Tem a minha palavra quanto a isso - Marbrand parecia visivelmente aliviado por estar de novo a cavalo, usando o manto de um cinza esfumaçado de sua Casa, em vez da lã dourada da Patrulha da Cidade. - Se algum inimigo se aproximar mais do que uma dúzia de léguas, ficará sabendo dele de antemão.
Jaime ordenara severamente que nenhum homem devia se afastar da coluna sem sua permissão. Se não fosse assim, sabia que teria jovens fidalgotes aborrecidos fazendo corridas pelos campos, espalhando gado e estragando as plantações. Ainda viam-se vacas e ovelhas perto da cidade; maçãs nas árvores e frutos nos arbustos, campos de cevada, aveia e trigo de inverno, carroças e carros de bois na estrada. Mais adiante, as coisas não seriam tão rosadas.
Avançando à frente da hoste com Sor Ilyn silencioso ao seu lado, Jaime sentiu-se quase satisfeito. O sol estava quente em suas costas e o vento afagava-lhe os cabelos como os dedos de uma mulher. Quando Lew Pequeno Piper se aproximou a galope com um elmo cheio de amoras silvestres, Jaime comeu uma mão cheia e disse ao rapaz para partilhar o resto com os outros escudeiros e Sor Ilyn Payne.
Payne parecia tão confortável em seu silêncio como em sua cota de malha enferrujada e couro fervido. O ruído dos cascos de seu castrado e o chocalhar da espada na bainha sempre que se movia na sela eram os únicos sons que emitia. Embora seu rosto marcado pelas bexigas fosse severo e seus olhos frios como gelo num lago de inverno, Jaime sentia que o homem estava satisfeito por ter vindo. Dei-lhe uma escolha, recordou a si mesmo. Ele podia ter me dito não e continuado como magistrado do rei.
A nomeação de Sor Ilyn fora um presente de casamento de Robert Baratheon para o pai de sua noiva, uma sinecura para compensar Payne pela língua que perdera a serviço da Casa Lannister. Ele dava um magnífico carrasco. Nunca estragara uma execução, e raramente precisava de um segundo golpe. E havia algo em seu silêncio que inspirava terror. Raras vezes um magistrado do rei parecia ser tão adequado ao seu cargo.
Quando Jaime decidiu levá-lo consigo, procurara os aposentos de Sor Ilyn, na ponta do Passeio do Traidor. O andar superior da torre atarracada e semicircular estava dividido em celas para prisioneiros que precisassem de algum grau de conforto, cavaleiros cativos ou fidalgos à espera de resgate ou troca. A entrada para as masmorras propriamente ditas ficava ao nível do chão, atrás de uma porta de ferro martelado e de uma segunda porta de madeira cinzenta e lascada. Nos andares intermediários ficavam quartos reservados para o uso do Carcereiro Chefe, para o Senhor Confessor e para o Magistrado do Rei. O Magistrado era um carrasco, mas por tradição também estava encarregado das masmorras e dos homens que nelas trabalhavam.
E Sor Ilyn Payne era singularmente pouco adequado para esta tarefa. Como não sabia ler nem escrever, e não podia falar, ele deixara o governo das masmorras aos seus subordinados, não importando quem fossem. Porém, o reino não tinha um Senhor Confessor desde o segundo Daeron, e o último Carcereiro Chefe tinha sido um mercador de tecidos que comprara o cargo de Mindinho durante o reinado de Robert, Sem dúvida que teve um bom lucro com ele durante alguns anos, até cometer o erro de conspirar com mais alguns palermas ricos para entregar o trono a Stannis. Chamavam a si mesmos “Homens Chifrudos” e Joff pregara-lhe hastes na cabeça antes de atirá-los por cima das muralhas da cidade. Portanto, recaíra em Rennifer Longwaters, o chefe de costas tortas dos carcereiros de segunda, que afirmava com entediante abundância de pormenores ter em si uma “gota de dragão” a tarefa de destrancar as portas das masmorras para Jaime entrar e conduzi-lo pelos estreitos degraus que subiam por dentro das paredes até o local onde Ilyn Payne vivera durante quinze anos.
Os aposentos fediam a comida apodrecida, e as esteiras estavam cobertas de bichos. Quando Jaime entrou, quase pisou numa ratazana. A espada longa de Payne repousava sobre uma mesa de montar, ao lado de uma pedra de amolar e de um oleado sebento. O aço mostrava-se imaculado, com o gume cintilando, azul, à luz pálida, mas noutros pontos havia pilhas de roupa suja espalhadas pelo chão, e os pedaços de cota de malha e armadura espalhados aqui e ali estavam rubros de ferrugem. Jaime não conseguiu contar os jarros de vinho quebrados. O homem não tem interesse por nada além de matar, pensou, no momento em que Sor Ilyn emergia de um quarto que fedia a penicos transbordando.
“Sua Graça pede-me que lhe reconquiste as terras fluviais” dissera-lhe Jaime.“Gostaria de tê-lo comigo... caso consiga aguentar a ideia de desistir de tudo isto.”
Sua resposta foi o silêncio, e um longo olhar sem pestanejar. Mas no momento em que Jaime se preparava para se virar e ir embora, Payne lhe fez um aceno. E aqui estamos. Jaime lançou um relance ao seu companheiro. Talvez ainda haja esperança para ambos.
Nessa noite acamparam à sombra do castelo dos Hayford, que se erguia no topo de uma colina. Enquanto o sol descia, uma centena de tendas brotou na base da colina, ao longo das margens do riacho que corria junto a ela. Foi o próprio Jaime quem posicionou as sentinelas. Não esperava problemas tão perto da cidade, mas o tio Stafford também julgara-se um dia em segurança em Cruzaboi. Era melhor não correr riscos.
Quando o convite para jantar com o castelão da Senhora Hayford desceu do castelo, Jaime levou consigo Sor Ilyn, bem como Sor Addam Marbrand, Sor Bonifer Hasty, Ronnet Vermelho Connington, Varrão Forte e uma dúzia de outros cavaleiros e fidalgos.
- Suponho que devia usar a mão - disse a Peck antes de iniciar a subida.
O rapaz foi imediatamente buscá-la. A mão era esculpida em ouro, muito semelhante a uma de verdade, com unhas de madrepérola nela embutidas e os dedos e o polegar meio fechados, a fim de poder com eles segurar a haste de um cálice. Não posso lutar, mas posso beber, refletiu Jaime enquanto o rapaz apertava as correias que lhe prendiam a mão ao coto.
“Deste dia em diante, os homens o chamarão Mão d’Ouro, senhor", assegurara-lhe o armeiro da primeira vez que a encaixara no pulso de Jaime. Enganava-se. Serei Regicida até morrer.
A mão de ouro foi motivo de muitos comentários de admiração durante o jantar, pelo menos até Jaime derrubar um cálice de vinho. Então foi dominado pelo mau humor.
- Se admira tanto assim esta maldita coisa, corte a mão da espada e pode ficar com ela - disse a Flement Brax. Depois daquilo não houve mais conversas sobre a mão, e conseguiu beber em paz um pouco de vinho.
A senhora do castelo era uma Lannister por casamento, um bebê rechonchudo que foi casado com Tyrek, primo de Jaime, antes de completar um ano. A Senhora Ermesande foi trazida para a aprovação do grupo, como era próprio, toda enrolada num pequeno vestido de pano de ouro com o fretado e a pala ondeada verde da Casa Hayford desenhados com minúsculas contas de jade. Mas a menina logo começou a chorar, depois do que foi rapidamente enxotada para a cama pela ama de leite.
- Não houve notícias de nosso Senhor Tyrek? - perguntou seu castelão enquanto era servido um prato de truta.
- Nenhuma - Tyrek Lannister desaparecera durante os tumultos em Porto Real, enquanto Jaime estava cativo em Correrrio. O rapaz teria catorze anos àquela altura, assumindo-se que ainda estivesse vivo.
- Eu mesmo liderei uma busca, por ordens de Lorde Tywin - interveio Addam Marbrand enquanto tirava as espinhas de seu peixe - mas não descobri mais do que o Bywater antes de mim. O rapaz foi visto pela última vez a cavalo, quando a força da turba quebrou a formação de homens de manto dourado. Depois disso... Bem, sua montaria foi encontrada, mas o cavaleiro não. O mais provável é terem-no derrubado e matado. Mas, se foi assim, onde está o corpo? A multidão deixou os outros cadáveres no local, por que não o dele?
- Ele teria sido mais valioso vivo - sugeriu Varrão Forte. - Qualquer Lannister traria um robusto resgate.
- Sem dúvida - concordou Marbrand - e no entanto nunca houve um pedido de resgate. O rapaz simplesmente desapareceu.
- O rapaz está morto - Jaime bebera três taças de vinho e sua mão dourada parecia se tornar mais pesada e desajeitada a olhos vistos. Um gancho me serviria igualmente bem. - Se se deram conta de quem mataram, sem dúvida que atiraram o corpo ao rio com medo da ira de meu pai. Em Porto Real conhecem o sabor que ela tinha. Lorde Tywin sempre pagou suas dívidas.
- Sempre - Varrão Forte concordou, e isso foi o fim da conversa.
Mas, mais tarde, sozinho no quarto de torre que lhe fora oferecido para a noite, Jaime deu por si com dúvidas. Tyrek servira o Rei Robert como escudeiro, ao lado de Lancel. O conhecimento podia ser mais valioso do que o ouro, mais mortífero do que um punhal. Foi em Varys que pensou então, sorrindo e cheirando a lavanda. O eunuco tinha agentes e informantes por toda a cidade. Seria coisa simples arranjar as coisas de forma que Tyrek fosse capturado durante a confusão... desde que soubesse de antemão que era provável que a turba entrasse em tumulto. E Varys sabia de tudo, ou pelo menos era isso que gostava de nos fazer acreditar. Mas não deu nenhum aviso a Cersei sobre esse tumulto. Nem desceu aos navios para se despedir de Myrcella.
Abriu as janelas. A noite estava esfriando, e uma lua cornuda cavalgava o céu. À luz que ela lançava sua mão brilhava, baça. Não serve para esganar eunucos, mas é suficientemente pesada para transformar aquele sorriso viscoso numa bela ruína vermelha. Queria bater em alguém.
Jaime foi encontrar Sor Ilyn amolando a espada.
- Está na hora - disse ao homem. O carrasco levantou-se e o seguiu, arrastando as botas de couro rachado pelos íngremes degraus de pedra enquanto desciam a escada. Um pequeno pátio abria-se junto ao armeiro, Jaime encontrou ali dois escudos, dois meios-elmos e um par de espadas embotadas de torneio. Entregou uma a Payne e pegou a outra com a mão esquerda, enquanto enfiava a direita nas presilhas do escudo. Seus dedos de ouro eram suficientemente curvos para enganchar, mas não podiam agarrar, de modo que seu controle sobre o escudo era instável. - Outrora foi um cavaleiro, sor - Jaime disse. - Eu também. Vejamos o que somos agora.
Sor Ilyn ergueu a lâmina em resposta, e Jaime atirou-se imediatamente ao ataque. Payne estava tão enferrujado quanto sua cota de malha, e não era tão forte quanto Brienne, mas parou todos os golpes com sua lâmina ou interpôs o escudo. Dançaram sob a lua crescente enquanto as espadas embotadas cantavam sua canção de aço. O cavaleiro silencioso contentou-se por algum tempo em deixar que Jaime liderasse a dança, mas, por fim, começou a responder a cada golpe com um seu. Assim que passou ao ataque, atingiu Jaime na coxa, no ombro, no antebraço. Fez-lhe a cabeça ressoar por três vezes com golpes atirados ao elmo. Uma cutilada arrancou-lhe o escudo do braço direito e quase arrebentou as correias que prendiam a mão de ouro ao coto. Quando baixaram as espadas, Jaime estava cheio de manchas negras e dolorido, mas o vinho fora queimado e tinha a cabeça limpa.
- Voltaremos a dançar - prometeu a Sor Ilyn. - Amanhã, e no dia seguinte. Dançaremos todos os dias, até que eu seja tão bom com a mão esquerda quanto fui com a direita.
Sor Ilyn abriu a boca e soltou um som seco. Uma gargalhada, Jaime compreendeu. Algo se retorceu em suas entranhas.
Ao amanhecer, nenhum dos outros teve a ousadia de fazer menção às suas manchas negras. Ao que parecia, ninguém ouvira o som das espadas na noite. Mas quando voltaram a descer dos cavalos para acampar, Lew Pequeno Piper deu voz à pergunta que cavaleiros e fidalgos não se atreviam a fazer. Jaime sorriu.
- A Casa Hayford tem moças cheias de luxúria. Isto são mordidas de amor, rapaz.
Outro dia luminoso e de ventania foi seguido por um enevoado, e depois houve três dias de chuva. O vento e a água não tinham importância. A coluna manteve o ritmo, para o norte ao longo da estrada do rei, e todas as noites Jaime encontrava algum lugar recatado para arranjar mais mordidas de amor. Lutaram dentro de um estábulo observados por uma mula zarolha, e na adega de uma estalagem entre os barris de vinho e cerveja. Lutaram na concha enegrecida de um grande celeiro de pedra, numa ilha arborizada num riacho pouco profundo e num campo aberto enquanto a chuva tamborilava suavemente em seus elmos e escudos.
Jaime arranjava desculpas para seus passeios noturnos, mas não era insensato a ponto de pensar que os outros acreditavam nelas. Addam Marbrand certamente sabia o que ele andava fazendo, e alguns dos outros capitães deviam suspeitar. Mas nenhum falou no assunto ao alcance de seus ouvidos... e como à única testemunha faltava uma língua, não tinha de temer que alguém descobrisse exatamente quão inepto se tornara o Regicida com a espada.
Em pouco tempo viam-se sinais da guerra por todo lado. Ervas daninhas, espinheiros e matagais cresciam tão altos como a cabeça de um cavalo em campos onde o trigo de outono devia estar maturando; a estrada do rei estava despojada de viajantes, e lobos governavam o fatigado mundo do crepúsculo à alvorada. A maioria dos animais era suficientemente cautelosa para se manter a distância, mas um dos batedores de Marbrand viu o cavalo ser perseguido e morto quando desmontou para urinar.
- Nenhum animal teria tamanha ousadia - declarou Sor Bonifer, o Bom, com tristeza no rosto austero. - Isto são demônios em pele de lobo, enviados para nos castigar por nossos pecados.
- Então este deve ter sido um cavalo notavelmente pecador - Jaime retrucou, em pé junto ao que restava do pobre animal. Deu ordens para que o resto da carcaça fosse cortada e salgada; poderiam vir a precisar da carne.
Num lugar chamado Berrante de Porca encontraram um velho e rijo cavaleiro chamado Sor Roger Hogg, que defendia teimosamente sua torre com seis homens de armas, quatro besteiros e uma vintena de camponeses. Sor Roger era tão grande e hirsuto como um porco de engorda, e Sor Kennos sugeriu que podia ser algum Crakehall perdido, visto que o símbolo deles era um varrão malhado. Varrão Forte pareceu acreditar e passou uma intensa hora interrogando Sor Roger acerca de seus ancestrais.
Jaime estava mais interessado no que Hogg tinha a dizer sobre os lobos.
- Tivemos alguns problemas com um bando daqueles lobos da estrela branca - disse-lhe o velho cavaleiro. - Vieram por aí farejando seu rastro, senhor, mas nós corremos com eles, e enterramos três lá embaixo, ao pé dos nabos. Antes deles houve um grupo de malditos leões, com a sua licença. Aquele que os liderava tinha uma manticora no escudo.
- Sor Amory Lorch - Jaime esclareceu. - O senhor meu pai ordenou-lhe que assolasse as terras fluviais.
- Às quais nós não pertencemos - disse resolutamente Sor Roger Hogg. - Minha lealdade é devida à Casa Hayford, e a Senhora Ermesande dobra seu pequeno joelho a Porto Real, ou o fará assim que tiver idade para andar. Eu disse isso a ele, mas esse Lorch não era bom ouvinte. Matou metade de minhas ovelhas e três boas cabras leiteiras, e tentou me assar na minha torre. Mas minhas muralhas são de pedra sólida com dois metros e meio de espessura, de modo que, depois de o fogo se apagar, foi-se embora aborrecido. Os lobos vieram em seguida, aqueles de quatro patas. Comeram as ovelhas que a manticora me deixou. Fiquei com algumas boas peles como recompensa, mas peles não enchem a barriga de ninguém. O que devemos fazer, senhor?
- Plante - Jaime respondeu - e reze por uma última colheita - não era resposta animadora, mas era a única que podia dar.
No dia seguinte, a coluna atravessou o riacho que servia como fronteira entre as terras que deviam lealdade a Porto Real e aquelas obrigadas a Correrrio, Meistre Gulian consultou um mapa e anunciou que aqueles montes pertenciam aos irmãos Wode, um par de cavaleiros com terras, juramentados a Harrenhal... mas seus fortes tinham sido construídos de terra e madeira, e só restavam vigas enegrecidas.
Não apareceu nenhum Wode, nem nenhum de seus plebeus, embora alguns fora da lei tivessem se abrigado nos porões da fortaleza do segundo irmão. Um deles usava as ruínas de um manto carmesim, mas Jaime o enforcou com os outros. E isto lhe fez bem. Era justiça. Habitue-se a isso, Lannister, e um dia os homens talvez lhe chamem Mão d’Ouro, afinal. Mão d'Ouro, o Justo.
O mundo foi ficando mais cinzento à medida que se aproximavam de Harrenhal. Avançavam sob céus de ardósia, ao lado de águas que brilhavam, velhas e frias como uma folha de aço batido. Jaime deu por si a se perguntar se Brienne teria passado por ali antes dele. Se ela pensou que Sansa Stark se dirigiu a Correrrio... Caso tivessem encontrado outros viajantes, podia ter parado para perguntar se algum deles teria por acaso visto uma donzela bonita, com cabelos ruivos, ou uma grande e feia, com um rosto capaz de coalhar leite. Mas não havia nada nas estradas exceto lobos, e seus uivos não continham respostas.
As torres da loucura do Harren Negro surgiram por fim do outro lado das águas de peltre do lago, cinco dedos negros retorcidos, pedra deformada que se estendia para o céu. Embora Mindinho tivesse sido nomeado Senhor de Harrenhal, parecia não ter grande pressa de ocupar seus novos domínios, e assim coube a Jaime Lannister “pôr em ordem” Harrenhal a caminho de Correrrio.
Não duvidava de que o castelo necessitava ser posto em ordem. Gregor Clegane arrancara o imenso e sombrio castelo dos Saltimbancos Sangrentos antes de Cersei chamá-lo a Porto Real. Sem dúvida que os homens da Montanha continuavam a chocalhar lá dentro como outras tantas ervilhas secas no interior de uma armadura, mas não eram os homens ideais para devolver o Tridente à paz do rei, A única paz que o bando de Sor Gregor alguma vez dera a alguém era a da sepultura.
Os batedores de Sor Addam tinham relatado que os portões de Harrenhal encontravam-se fechados e trancados. Jaime enfileirou seus homens à frente deles e ordenou a Sor Kennos de Kayce para fazer soar o Berrante de Herrock, negro, retorcido e enfeitado com ouro velho.
Depois de três sopros terem ecoado nas muralhas, ouviram o gemido de dobradiças de ferro e os portões se abriram lentamente. As muralhas da loucura do Harren Negro eram tão espessas que Jaime passou por baixo de uma dúzia de alçapões antes de emergir à súbita luz do sol no pátio onde dissera adeus aos Saltimbancos Sangrentos não havia assim tanto tempo. Ervas daninhas brotavam da terra bem batida, e moscas zumbiam em volta da carcaça de um cavalo.
Um punhado de homens de Sor Gregor emergiu das torres para vê-lo desmontar; homens de olhos e bocas duras, todos eles. Tinham de ser, para acompanhar a Montanha. O melhor que podia ser dito dos homens de Gregor era que não eram propriamente um bando tão vil e violento como os Bravos Companheiros.
- Que eu seja fodido, Jaime Lannister - exclamou um homem de armas cinzento e grisalho - É o raio do Regicida, rapazes. Que eu seja fodido com uma lança!
- E você, quem é? - Jaime quis saber.
- Sor costumava chamar-me Boca de Merda, se aprouver ao senhor - cuspiu nas mãos e limpou a cara com elas, como se aquilo de algum modo o deixasse mais apresentável.
- Encantador. É você quem comanda aqui?
- Eu? Não, merda. Senhor. Que me enrabem com a porra duma lança - Boca de Merda tinha na barba migalhas suficientes para alimentar a guarnição. Jaime teve de rir. O homem tomou aquilo como encorajamento. - Que me enrabem com a porra duma lança - voltou a dizer, e também se pôs a rir.
- Ouviu o homem - disse Jaime a Ilyn Payne. - Arranje uma boa e longa lança e enfie-lhe cu acima.
Sor Ilyn não tinha uma lança, mas Jon Imberbe Bettley atirou-lhe uma de bom grado. O riso ébrio de Boca de Merda parou abruptamente.
- Mantenha a merda dessa coisa longe de mim.
- Decida-se - Jaime ordenou. - Quem tem o comando aqui? Sor Gregor nomeou um castelão?
- Polliver - disse outro homem - só que o Cão de Caça o matou, senhor. Ele e o Cócegas, e aquele moço Sarsfield.
Outra vez o Cão de Caça.
- Sabe que foi de Sandor? Você o viu?
- Nós não, senhor. O estalajadeiro nos disse.
- Aconteceu na estalagem do entroncamento, senhor - quem falou foi um homem mais novo, com um matagal de cabelos cor de areia. Usava a corrente de moedas que outrora pertencera a Vargo Hoat; moedas de meia centena de cidades distantes, de prata e ouro, de cobre e bronze, moedas quadradas e redondas, triângulos e anéis e bocados de osso. - O estalajadeiro jurou que o homem tinha um lado da cara todo queimado. As putas dele contaram a mesma história. Sandor tinha um garoto qualquer com ele, um moço esfarrapado do campo. Fizeram Polly e Cócegas em pedaços sangrentos e foram embora Tridente abaixo.
- Mandou homens atrás deles?
Boca de Merda franziu as sobrancelhas, como se a ideia fosse dolorosa.
- Não, senhor. Que nos fodam a todos, não mandamos.
- Quando um cão enlouquece, corta-se sua garganta.
- Bem - disse o homem, esfregando a boca - eu nunca gostei muito do Polly, aquele merda, e o Cão era irmão do Sor, de modo que...
- Nós somos maus, senhor - interrompeu o homem que usava as moedas - mas é preciso ser doido para enfrentar Cão de Caça.
Jaime o olhou de cima a baixo. Mais ousado do que os outros, e não tão bêbado quanto Boca de Merda.
- Teve medo dele.
- Eu não diria medo, senhor. Diria que o estávamos deixando para homens melhores que nós. Para alguém como o Sor. Ou você.
Eu, quando tinha duas mãos. Jaime não se iludia. Agora Sandor trataria dele em dois tempos.
- Tem nome?
- Rafford, se aprouver. A maioria me chama de Raff,
- Raff, reúna a guarnição no Salão das Cem Lareiras. Os cativos também. Vou querer vê-los. Inclusive aquelas putas da encruzilhada. Oh, e Hoat. Fiquei perturbado quando soube que morreu. Gostaria de ver sua cabeça.
Quando a trouxeram, descobriu que os lábios do Bode tinham sido cortados, tal como as orelhas e a maior parte do nariz. Os corvos tinham jantado seus olhos. Mas ainda era possível reconhecê-lo ali. Jaime reconheceria sua barba em qualquer lugar; uma absurda corda de pelos com sessenta centímetros de comprimento que pendia de um queixo pontiagudo. Além disso, só algumas fitas de pele com textura de couro ainda aderiam ao crânio do qohorik.
- Onde está o resto dele? - perguntou.
Ninguém lhe queria dizer. Por fim, Boca de Merda baixou os olhos e resmungou:
- Apodreceu, sor. E foi comida.
- Um dos cativos andava sempre mendigando comida - admitiu Rafford - de modo que o Sor disse para lhe dar bode assado. Mas o qohorik não tinha lá muita carne. O Sor cortou-lhe primeiro as mãos e os pés, depois os braços e as pernas.
- O paneleiro gordo ficou com a maior parte, senhor - esclareceu Boca de Merda - mas o Sor disse para a gente tratar de que todos os cativos provassem um bocadinho. E o próprio Hoat também. Aquele filho da puta babava-se quando a gente lhe dava de comer, e a gordura corria por aquela barba fininha que ele tinha.
Pai, pensou Jaime, ambos os seus cães enlouqueceram. Deu por si recordando histórias que ouvira pela primeira vez na infância, em Rochedo Casterly, sobre a louca Senhora Lothston que se banhava em banheiras de sangue e presidia banquetes de carne humana dentro daquelas mesmas muralhas.
De algum modo, a vingança perdera o sabor.
- Leve isto e jogue no lago - Jaime atirou a cabeça de Hoat a Peck e voltou-se para falar à guarnição. - Até que Lorde Petyr chegue para reclamar seus domínios, Sor Bonifêr Hasty controlará Harrenhal em nome da coroa. Aqueles de vocês que desejarem, podem se juntar a ele, se ele os aceitar. O resto seguirá comigo para Correrrio.
Os homens da Montanha olharam uns para os outros.
- Nós estamos à espera de pagamento - um deles disse. -Foi promessa do Sor. Ricas recompensas, ele disse.
- Foram as palavras dele - concordou Boca de Merda. - Ricas recompensas para quem seguir comigo - uma dúzia de outros pôs-se a clamar o acordo.
Sor Bonifer ergueu uma mão enluvada.
- Qualquer homem que permaneça comigo terá uma jeira de terra para trabalhar, uma segunda jeira quando tomar esposa, e uma terceira quando seu primeiro filho nascer.
- Terra, sor? - Boca de Merda cuspiu. - Tô cagando pra isso. Se quiséssemos arar a porra da terra, bem podíamos ter ficado em casa, com a sua licença, sor. Ricas recompensas, disse o Sor. Querendo dizer ouro.
- Se tiver alguma queixa, vá a Porto Real e leve-a à minha querida irmã - Jaime virou-se para Rafford. - Quero ver agora esses cativos. Começando por Sor Wylis Manderly.
- É o gordo? - Rafford perguntou.
- Espero piamente que sim. E não me conte histórias tristes sobre como ele morreu, senão todo seu bando pode sofrer o mesmo.
Quaisquer esperanças que pudesse ter nutrido de encontrar Shagwell, Pyg ou Zoilo definhando nas masmorras foram tristemente desiludidas. Os Bravos Companheiros tinham abandonado Vargo Hoat até o último homem, aparentemente. Do pessoal da Senhora Whent, só restavam três: o cozinheiro que abrira a porta secreta a Sor Gregor, um armeiro corcunda chamado Ben Blackthumb e uma garota chamada Pia, que já não era nem de perto tão bonita como fora da última vez que Jaime a vira. Alguém lhe quebrara o nariz e lhe arrancara metade dos dentes. A garota caiu aos pés de Jaime quando o viu, soluçando e agarrando-se à sua perna com força histérica, até que Varrão Forte a obrigou a soltá-la.
- Ninguém lhe fará mal agora - disse à garota, mas isso só a fez soluçar mais alto.
Os outros cativos tinham sido mais bem tratados. Sor Wylis Manderly estava entre eles, com vários outros nortenhos de elevado nascimento, tomados prisioneiros pela Montanha Que Cavalga no combate nos vaus do Tridente. Reféns úteis, todos eles valiam um resgate considerável. Estavam todos esfarrapados, imundos e desgrenhados, e alguns tinham manchas negras recentes, dentes quebrados e dedos em falta, mas seus ferimentos tinham sido lavados e tratados, e nenhum passara fome, Jaime perguntou a si mesmo se teriam alguma noção do que tinham andado comendo, e decidiu que era melhor não perguntar.
Em nenhum restava qualquer desafio; especialmente em Sor Wylis, uma banheira de sebo de cara peluda com olhos mortiços e bochechas pálidas e caídas. Quando Jaime lhe disse que seria escoltado até Lagoa da Donzela e ali posto num navio com destino a Porto Branco, Sor Wylis transformou-se numa poça no chão, e soluçou durante mais tempo e mais ruidosamente do que Pia. Foram necessários quatro homens para colocá-lo em pé. Muito bode assado, refletiu Jaime. Deuses, como odeio este maldito castelo. Harrenhal vira mais horrores em seus trezentos anos do que Rochedo Casterly testemunhara em três mil.
Jaime ordenou que fossem acesos fogos no Salão das Cem Lareiras e enviou o cozinheiro coxeando até as cozinhas para preparar uma refeição quente para os homens de sua coluna.
- Qualquer coisa, menos bode.
Quanto a ele, jantou no Salão do Caçador com Sor Bonifer Hasty, uma solene cegonha dada a salgar o discurso com apelos aos Sete.
- Não quero nenhum dos seguidores de Sor Gregor - declarou enquanto cortava uma pera tão seca quanto ele, assegurando-se de que o sumo inexistente do fruto não mancharia seu imaculado gibão púrpura, decorado com a faixa branca cotizada de sua Casa. - Não terei tais pecadores ao meu serviço.
- Meu septão costumava dizer que todos os homens são pecadores.
- Não se enganava - Sor Bonifer admitiu - mas alguns pecados são mais negros do que outros, e mais nauseabundos às narinas dos Sete.
E você não tem mais nariz do que meu pequeno irmão, caso contrário meus pecados o fariam se engasgar com essa pera.
- Muito bem. Tirarei o bando de Gregor de suas mãos - podia sempre dar uso a combatentes. Se não fosse outro, podia mandá-los subir as escadas na frente, caso tivesse necessidade de assaltar as muralhas de Correrrio.
- Leve também a puta - pediu Sor Bonifer. - Sabe qual é. A garota das masmorras.
- Pia - da última vez que estivera ali, Qyburn mandara a garota à sua cama, julgando que aquilo lhe agradaria. Mas a Pia que tinham trazido das masmorras era uma criatura diferente da doce, simples e risonha criatura que se lhe enfiara sob as mantas. Cometera o erro de falar quando Sor Gregor queria silêncio, e a Montanha fizera-lhe os dentes em lascas com um punho coberto de cota de malha e quebrara-lhe também o belo narizinho. Teria feito pior, sem dúvida, se Cersei não o tivesse chamado a Porto Real para enfrentar a lança da Víbora Vermelha. Jaime não ficaria de luto por ele. - Pia nasceu neste castelo - disse a Sor Bonifer. - É a única casa que alguma vez conheceu.
- Ela é uma fonte de corrupção - Sor Bonifer protestou. - Não a quero perto de meus homens, exibindo as suas... formas.
- Julgo que seus dias de exibição tenham ficado para trás - Jaime rebateu - mas, se ela levanta tantas objeções a você, eu a levo - supunha que podia fazer dela uma lavadeira. Seus escudeiros não se importavam de lhe montar a tenda, tratar do cavalo ou limpar sua armadura, mas a tarefa de cuidar da sua roupa era vista por eles como pouco viril. - É capaz de defender Harrenhal apenas com a sua Santa Centena? - Jaime quis saber. Na verdade, deviam chamá-los Santos Oitenta e Seis, visto terem perdido catorze homens na Água Negra, mas não havia dúvida de que Sor Bonifer recomporia as fileiras assim que encontrasse recrutas suficientemente pios.
- Não prevejo dificuldades. A Velha iluminará nosso caminho, e o Guerreiro dará força aos nossos braços.
Ou, então, o Estranho aparecerá em busca de todo o seu santo bando. Jaime não tinha certeza de quem convencera a irmã de que Sor Bonifer deveria ser nomeado castelão de Harrenhal, mas a nomeação cheirava a Orton Merryweather. Julgava lembrar-se vagamente de que Hasty outrora servira o avô de Merryweather. E o administrador de justiça de cabelos cor de cenoura era mesmo o tipo de idiota simplório capaz de partir do princípio de que alguém chamado “o Bom” era a exata poção de que as terras fluviais necessitavam para curar as feridas deixadas por Roose Bolton, Vargo Hoat e Gregor Clegane.
Mas talvez não se engane. Hasty provinha das terras da tempestade, de modo que não tinha nem amigos nem inimigos ao longo do Tridente; não havia contendas de sangue, nem dívidas a pagar, nem companheiros a recompensar. Ele era sóbrio, justo e cumpridor, não havia nos Sete Reinos soldados mais bem disciplinados do que os seus Santos Oitenta e Seis, e davam um belo espetáculo quando faziam seus grandes castrados cinzentos rodopiar e se empinar. Mindinho uma vez brincou que Sor Bonifer também devia ter castrado os cavaleiros, de tão imaculada era sua reputação.
Mesmo assim, Jaime duvidava de quaisquer soldados que fossem mais conhecidos por seus lindos cavalos do que pelos inimigos que tivessem matado. Eles rezam bem, suponho, mas serão capazes de lutar? Não tinham se desonrado na Água Negra, tanto quanto sabia, mas também não tinham se distinguido. O próprio Sor Bonifer fora um cavaleiro promissor na juventude, mas algo lhe acontecera, uma derrota, uma desonra ou uma visão próxima da morte, e depois disso decidira que justar era uma vaidade vazia e pusera definitivamente a lança de lado.
Mas Harrenhal tem de ser controlado, e o Baelor Olho do Cu aqui é o homem que Cersei escolheu para controlá-lo.
- Este castelo tem má reputação - preveniu-o - e uma reputação que foi bem merecida. Diz-se que Harren e os filhos ainda vagueiam de noite pelos salões, incendiados. Aqueles que os contemplam rebentam em chamas.
- Não temo sombras, sor. Está escrito na Estrela de Sete Pontas que espíritos, criaturas de além-túmulo e mortos-vivos não podem fazer mal a um homem piedoso, desde que ele esteja coberto pela armadura de sua fé.
- Então, arme-se de fé, com certeza, mas use também cota de malha e uma placa de aço. Todos os homens que controlam este castelo parecem ter triste fim. A Montanha, o Bode, até meu pai...
- Se perdoar minha ousadia, eles não eram homens devotos, como nós somos. O Guerreiro nos protege, e a ajuda está sempre próxima, caso algum terrível inimigo nos ameace. Meistre Gulian ficará aqui com seus corvos, Lorde Lancel está perto, em Darry, com a sua guarnição, e Lorde Randyll controla Lagoa da Donzela. Juntos, nós três perseguiremos e destruiremos quaisquer fora da lei que percorram esta região. Depois disso, os Sete guiarão o bom povo de volta às suas aldeias, para arar a terra, plantá-la e reconstruir.
Aqueles que o Bode não matou, pelo menos. Jaime enganchou a haste de seu cálice de vinho nos dedos de ouro.
- Se algum dos Bravos Companheiros de Hoat cair em suas mãos, avise-me imediatamente - o Estranho podia ter se escapulido com o Bode antes de Jaime arranjar oportunidade para tratar dele, mas o gordo Zoilo ainda andava por aí, com Shagwell, Rorge, Fiel Urswyck e os outros.
- Para que possa torturá-los e matá-los?
- Suponho que você os perdoaria se estivesse em meu lugar?
- Se se arrependessem sinceramente de seus pecados... Sim, abraçaria a todos como irmãos e rezaria com eles antes de mandá-los para o cepo. Os pecados podem ser perdoados. Os crimes requerem punição - Hasty fechou as mãos à sua frente, fazendo com elas uma espécie de campanário, de um modo que fez que Jaime se lembrasse desconfortavelmente do pai. - Se for Sandor Clegane que encontrarmos, o que quer que eu faça?
Reze muito, pensou Jaime, e fuja.
- Mande-o juntar-se ao seu querido irmão, e fique feliz por os deuses terem feito sete infernos. Apenas um não seria suficiente para encerrar ambos os Clegane - pôs-se desajeitadamente em pé. - Beric Dondarrion é diferente. Se o capturar, mantenha-o preso até o meu regresso. Vou querer levá-lo para Porto Real com uma corda em volta do pescoço e ordenar a Sor Ilyn que lhe corte a cabeça onde metade do reino possa ver.
- E o tal sacerdote de Myr que o acompanha? Diz-se que espalha sua falsa fé por todo lado.
- Mate-o, beije-o, ou reze com ele, faça o que quiser.
- Não tenho nenhum desejo de beijar o homem, senhor.
- Não tenho dúvidas de que ele diria o mesmo de você - o sorriso de Jaime transformou-se num bocejo. - Perdão. Vou me retirar, se não tiver objeções.
- Nenhuma, senhor - disse Hasty. Certamente queria rezar.
Jaime queria lutar. Atacou os degraus dois a dois, até onde o ar da noite fosse frio e revigorante. No pátio iluminado por archotes, Varrão Forte e Sor Flement Brax defrontavam-se enquanto um círculo de homens de armas os aclamava. Sor Lyle levará a melhor nesta luta, compreendeu. Tenho de encontrar Sor Ilyn. Tinha de novo a comichão nos dedos. Seus passos afastaram-no do ruído e da luz. Passou por baixo da ponte coberta e atravessou o Pátio das Lâminas antes de perceber para onde se dirigia.
Ao se aproximar da arena dos ursos, viu o brilho de uma lanterna e a pálida luz invernal que ela derramava sobre as fileiras de íngremes bancos de pedra. Parece que alguém chegou antes de mim. A arena seria um belo local para dançar; talvez Sor Ilyn tivesse se antecipado.
Mas o cavaleiro em pé junto à arena era maior; um homem rude e barbudo, com um sobretudo vermelho e branco adornado com grifos. Connington. O que ele faz aqui? Lá embaixo, a carcaça do urso ainda jazia na areia, embora só restassem os ossos e a pele esfarrapada meio enterrados. Jaime sentiu uma pontada de piedade pelo animal. Pelo menos morreu em batalha.
- Sor Ronnet - chamou - se perdeu? É um grande castelo, bem sei.
Ronnet Vermelho ergueu a lanterna.
- Quis ver o local onde o urso dançou com a donzela não muito bela - a barba do homem brilhava à luz da lanterna como se estivesse em fogo. Jaime sentiu o cheiro de vinho em seu hálito. - É verdade que a garota dançou nua?
- Nua? Não - perguntou a si mesmo como aquela mentira teria sido adicionada à história. - Os Saltimbancos enfiaram-na num vestido de seda cor-de-rosa e meteram-lhe uma espada de torneio na mão. O Bode queria que sua morte fosse divertida. Se não fosse assim...
- ... a visão de Brienne nua poderia ter feito o urso fugir aterrorizado - Connington soltou uma gargalhada.
Jaime não.
- Fala como se conhecesse a senhora.
- Estive prometido a ela.
Aquilo o pegou de surpresa. Brienne nunca mencionara um noivado.
- O pai arranjou-lhe uma união...
- Três vezes - Connington ressaltou. - Eu fui o segundo. Ideia de meu pai. Eu tinha ouvido dizer que a garota era feia, e foi o que lhe disse, mas ele respondeu que todas as mulheres eram iguais depois de se apagar a vela.
- Seu pai - Jaime examinou o sobretudo do Ronnet Vermelho, onde dois grifos se defrontavam num fundo vermelho e branco. Grifos dançantes. - Era... irmão de nossa falecida Mão, não?
- Primo. Lorde Jon não tinha irmãos.
- Não - veio-lhe tudo à memória. Jon Connington fora amigo do Príncipe Rhaegar. Quando Merryweather falhara tão tristemente em conter a Rebelião de Robert e não fora possível encontrar o Príncipe Rhaegar, Aerys virara-se para a segunda melhor opção e promovera Connington ao cargo de Mão. Mas o Rei Louco andava sempre cortando as Mãos. Cortara Lorde Jon depois da Batalha dos Sinos, despindo-o de honrarias, terras e riquezas, e expulsando-o mar afora para ir morrer no exílio, onde rapidamente bebera até a morte. Mas o primo, pai do Ronnet Vermelho, juntara-se à rebelião e fora recompensado com o Poleiro do Grifo após o Tridente. Mas só recebera o castelo; Robert ficara com o ouro e outorgara a maior parte das terras dos Connington a aliados mais fervorosos.
Sor Ronnet era um cavaleiro com terras, nada mais. Para um homem como ele, a Donzela de Tarth teria sido realmente um belo aperitivo.
- Por que não se casou? - Jaime quis saber.
- Ora, fui a Tarth e a vi. Era seis anos mais velho do que ela, mas a garota conseguia me olhar nos olhos. Era uma porca vestida de seda, embora a maioria das porcas tenha tetas maiores. Quando tentou falar, quase se engasgou com a própria língua. Dei-lhe uma rosa, e disse a ela que isso seria tudo que teria de mim - Connington olhou a arena de relance. - O urso era menos peludo do que essa aberração. Eu...
A mão dourada de Jaime atingiu-o na boca com tanta força que o outro cavaleiro caiu aos tropeções degraus abaixo. A lanterna caiu e esmagou-se, e o azeite se espalhou, em chamas.
- Estava falando de uma senhora de elevado nascimento, Sor. Chame-a pelo nome. Chame-a Brienne.
Connington afastou-se das chamas que se espalhavam, apoiado nas mãos e nos joelhos.
- Brienne. Se agrada ao senhor - cuspiu um escarro de sangue aos pés de Jaime. - Brienne, a Bela.  

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