-
Esperava que a essa altura já tivesse se cansado dessa deplorável
barba. Todos esses pelos o deixam parecido com Robert - a irmã
pusera o luto de lado em prol de um vestido cor de jade, com mangas
de renda de Myr prateada. Uma esmeralda do tamanho de um ovo de pombo
pendia-lhe do pescoço num fio de ouro.
- A barba
de Robert era preta. A minha é dourada.
-
Dourada? Ou prateada? - Cersei arrancou um pelo de sob o queixo do
irmão e o ergueu. Era grisalho. - Está perdendo a cor, irmão.
Transformou-se em um fantasma do que era, numa coisa pálida e
aleijada. E tão descorado, sempre de branco - desembaraçou-se do
pelo com um piparote. - Prefiro você vestido de ouro e carmesim.
Eu
prefiro você sarapintada de luz do sol, com gotículas de água na
pele nua. Desejava beijá-la, levá-la para o quarto, atirá-la na
cama... ela tem andado fodendo Lancel e Osmund Kettleblack, e o Rapaz
Lua...
- Vou lhe
propor um negócio. Liberte-me deste dever e minha navalha está às
suas ordens.
A boca
dela comprimiu-se. Estivera bebendo vinho quente com especiarias e
cheirava à noz-moscada.
- Ousa
regatear comigo? Deverei relembrá-lo de que jurou obedecer?
- Jurei
proteger o rei. Meu lugar é ao seu lado.
- Seu
lugar é onde quer que ele ordene que esteja.
- Tommen
põe o selo em todos os papéis que você coloca na frente dele. Isto
é obra sua, e é uma loucura. Para que nomear Daven seu Protetor do
Oeste se não confia nele?
Cersei
sentou-se junto à janela. Por trás dela, Jaime conseguia ver as
ruínas enegrecidas da Torre da Mão.
- Por que
tanta relutância, sor? Perdeu a coragem com a mão?
- Prestei
um juramento à Senhora Stark de nunca mais pegar em armas contra os
Stark ou os Tully.
- Uma
promessa de bêbado feita com uma espada na garganta.
- Como
poderei defender Tommen se não estiver com ele?
-
Derrotando seus inimigos. O pai sempre disse que um golpe rápido de
espada é uma defesa melhor do que qualquer escudo. Admito que a
maioria dos golpes de espada precisam de uma mão. Apesar disso, até
um leão mutilado pode inspirar medo. Quero Correrrio. Quero Brynden
Tully agrilhoado ou morto. E alguém tem de pôr Harrenhal nos eixos.
Precisamos urgentemente de Wylis Manderly, assumindo que ainda esteja
vivo e cativo, mas a guarnição não respondeu a nenhum dos nossos
corvos.
- Quem
está em Harrenhal são homens de Gregor - Jaime lembrou à irmã. -
A Montanha gostava deles cruéis e estúpidos. O mais provável é
que tenham comido seus corvos, com mensagens e tudo.
- É por
isso que o estou mandando para lá. Podem comê-lo também, valente
irmão, mas espero que lhes cause indigestão - Cersei alisou a saia.
- Quero que Sor Osmund comande a Guarda Real na sua ausência.
... ela
tem andado fodendo Lancel e Osmund Kettleblack, e o Rapaz Lua, tanto
quanto sei...
- Essa
escolha não lhe pertence. Se eu tiver de ir, Sor Loras ficará no
comando em meu nome.
- Isto é
alguma piada? Sabe o que sinto por Sor Loras.
- Se não
tivesse mandado Balon Swann para Dorne...
- Preciso
dele lá. Os dorneses não são dignos de confiança. Aquela serpente
vermelha foi campeão de Tyrion, esqueceu-se disso? Não deixarei
minha filha à mercê deles. E não terei Sor Loras no comando da
Guarda Real.
- Sor
Loras é três vezes melhor homem do que Sor Osmund.
- Suas
noções de virilidade mudaram um pouco, irmão.
Jaime
sentiu a ira aumentar.
- É
verdade, Loras não olha para suas tetas como Sor Osmund, mas não
penso...
- Pense
nisto - Cersei o esbofeteou.
Jaime não
fez nenhum esforço para bloquear o golpe.
- Estou
vendo que vou precisar de uma barba mais espessa para me proteger das
carícias da minha rainha - desejava arrancar-lhe o vestido e
transformar-lhe os golpes em beijos. Já o fizera antes, na época em
que tinha duas mãos.
Os olhos
da rainha eram gelo verde.
- É
melhor que vá embora, sor.
...
Lancel, Osmund Kettleblack e o Rapaz Lua...
- Além
de mutilado, é surdo? Encontrará a porta atrás de você, sor.
- Às
suas ordens - Jaime girou nos calcanhares e a deixou.
Em algum
lugar os deuses estavam dando risada. Cersei nunca aceitara de bom
grado ser contrariada, ele sabia disso. Palavras mais suaves poderiam
tê-la feito mudar de ideia, mas nos últimos tempos bastava vê-la
para se sentir irritado.
Parte de
si ficaria contente por deixar Porto Real para trás. Em nada lhe
agradava a companhia dos bajuladores e dos tolos que rodeavam Cersei.
“O mais pequeno conselho” era como agora diziam na Baixada das
Pulgas, de acordo com Addam Marbrand. E Qyburn... podia ter salvo a
vida de Jaime, mas não deixava de ser um Saltimbanco Sangrento.
“Qyburn
fede a segredos” dissera a Cersei, num aviso. E isto apenas a
fizera rir.
“Todos
nós temos segredos, irmão” respondera.
... ela
tem andado fodendo Lancel e Osmund Kettleblack, e provavelmente até
o Rapaz Lua, tanto quanto sei...
Quarenta
cavaleiros e outros tantos escudeiros esperavam-no à porta dos
estábulos da Fortaleza Vermelha. Metade era de ocidentais
juramentados à Casa Lannister, e os outros, inimigos recentes
transformados em amigos duvidosos. Sor Dermot da Mata de Chuva
levaria o estandarte de Tommen, Ronnet Vermelho Connington carregaria
a bandeira branca da Guarda Real. Um Paege, um Piper e um Peckledon
partilhariam a honra de servir o Senhor Comandante como escudeiros.
“Mantenha
os amigos atrás de você e os inimigos onde possa vê-los”
aconselhara-o um dia Sumner Crakehall. Ou teria sido o pai?
Sua
montaria era um baio sanguíneo, e o corcel de batalha, um magnífico
garanhão cinzento. Tinham se passado longos anos desde a última vez
que Jaime dera nome a qualquer um de seus cavalos; vira muitos morrer
em batalha, e isto se tornava mais duro quando lhes era dado nome.
Mas quando o rapaz Piper começou a chamá-los Honra e Glória, deu
risada e deixou que os nomes pegassem. Glória usava arreios do
carmesim Lannister; Honra estava ajaezado com o branco da Guarda
Real. Josmyn Peckledon segurou nas rédeas do cavalo quando Sor Jaime
montou. O escudeiro era magro como uma lança, com longos braços e
pernas, cabelos oleosos de um castanho de rato, e bochechas cobertas
por uma suave penugem de pêssego. Seu manto ostentava o carmesim
Lannister, mas o sobretudo mostrava as dez moletas púrpura de sua
Casa, dispostas em fundo de amarelo.
- Senhor
- perguntou o rapaz - quer sua nova mão?
- Use-a,
Jaime - instou Sor Kennos de Kayce. - Acene aos plebeus e dê-lhes
algo para contar aos filhos.
- Penso
que não - Jaime não queria mostrar à multidão uma mentira
dourada. Que vejam o coto. Que vejam o aleijado - mas fique à
vontade para compensar minha falta, Sor Kennos. Acene com ambas as
mãos e sacuda os pés, se quiser. - Pegou nas rédeas com a mão
esquerda e deu meia-volta com o cavalo. - Payne - chamou enquanto os
outros formavam - seguirá ao meu lado.
Sor Ilyn
Payne abriu caminho até junto de Jaime, parecendo um pedinte num
baile. Sua cota de malha estava velha e enferrujada, e era usada
sobre uma jaqueta de couro fervido manchada. Nem o homem nem sua
montaria ostentavam símbolos heráldicos; o escudo estava tão
amassado e fendido que era difícil dizer de que cor teria sido a
tinta que outrora o cobrira. Com seu rosto severo e olhos vazios e
encovados, Sor Ilyn podia ter passado pela própria morte... e fora o
que fizera, durante anos.
Mas não
mais. Sor Ilyn constituíra metade do preço de Jaime por engolir a
ordem de seu rei garoto como um bom Menino Comandante. A outra metade
fora Sor Addam Marbrand.
“Preciso
deles” dissera à irmã, e Cersei não se opôs. O mais provável é
ter ficado satisfeita por se livrar deles. Sor Addam era amigo de
infância de Jaime, e o carrasco silencioso fora um homem do pai de
ambos, se é que era homem de alguém, Payne fora capitão da guarda
da Mão quando alguém o ouviu vangloriar de que era Lorde Tywin quem
governava os Sete Reinos e dizia ao Rei Aerys o que fazer. Aerys
Targaryen cortara-lhe a língua por isso.
- Abram
os portões - disse Jaime, e o Varrão-Forte, com sua voz trovejante,
gritou:
- ABRAM
OS PORTÕES!
Quando
Mace Tyrell se pusera em marcha através do Portão da Lama ao som de
tambores e rabecas, milhares de pessoas encheram as ruas para
aclamá-lo. Garotinhos tinham se juntado à marcha, caminhando ao
lado dos soldados Tyrell com cabeça erguida e elevando bem as
pernas, enquanto as irmãs desses meninos atiravam beijos das
janelas.
Mas
naquele dia era diferente. Algumas prostitutas gritavam convites à
passagem dos homens, e um vendedor de pastéis de carne anunciava a
mercadoria. Na Praça do Sapateiro, dois pardais esfarrapados estavam
pregando diante de várias centenas de plebeus, clamando pela danação
de homens sem deus e adoradores de demônios. A multidão abriu alas
para deixar a coluna passar. Tanto pardais como sapateiros os
observaram com olhos embotados.
- Gostam
do cheiro das rosas, mas não sentem amizade pelos leões - Jaime
observou.
- Minha
irmã faria bem em tomar nota disso - Sor Ilyn não lhe respondeu. O
com panheiro perfeito para um a longa cavalgada. Vou apreciar sua
companhia.
A maior
parte de suas tropas o esperava além das muralhas da cidade; Sor
Addam Marbrand com seus batedores, Sor Steffon Swyfit e o comboio
logístico, a Santa Centena do velho Sor Bonifer, o Bom, os arqueiros
a cavalo de Sarsfield, Meistre Gulian com quatro gaiolas cheias de
corvos, duas centenas de cavaleiros pesados sob o comando de Sor
Flement Brax. Somando tudo, não era uma grande hoste; menos de mil
homens ao todo. Um grande número era a última coisa necessária em
Correrrio. Um exército Lannister já investia sobre o castelo, bem
como uma força ainda maior dos Frey; a última ave que tinham
recebido sugeria que os sitiantes estavam com dificuldades para se
manter alimentados. Brynden Tully limpara o terreno antes de se
retirar para o interior de suas muralhas.
Não que
precisasse de grande limpeza. Pelo que Jaime vira das terras
fluviais, quase não havia campo de cultivo que ainda estivesse por
queimar, vila por saquear e donzela por espoliar. E agora minha
querida irmã me manda para terminar o trabalho que Amory Lorch e
Gregor Clegane começaram. Aquilo lhe deixava um sabor amargo na
boca.
Perto de
Porto Real, a estrada do rei era tão segura quanto qualquer estrada
podia ser em tempos como aqueles. Mesmo assim, Jaime enviou Marbrand
e seus batedores na frente.
- Robb
Stark me pegou desprevenido no Bosque dos Murmúrios - disse. - Isso
nunca mais voltará a acontecer.
- Tem a
minha palavra quanto a isso - Marbrand parecia visivelmente aliviado
por estar de novo a cavalo, usando o manto de um cinza esfumaçado de
sua Casa, em vez da lã dourada da Patrulha da Cidade. - Se algum
inimigo se aproximar mais do que uma dúzia de léguas, ficará
sabendo dele de antemão.
Jaime
ordenara severamente que nenhum homem devia se afastar da coluna sem
sua permissão. Se não fosse assim, sabia que teria jovens
fidalgotes aborrecidos fazendo corridas pelos campos, espalhando gado
e estragando as plantações. Ainda viam-se vacas e ovelhas perto da
cidade; maçãs nas árvores e frutos nos arbustos, campos de cevada,
aveia e trigo de inverno, carroças e carros de bois na estrada. Mais
adiante, as coisas não seriam tão rosadas.
Avançando
à frente da hoste com Sor Ilyn silencioso ao seu lado, Jaime
sentiu-se quase satisfeito. O sol estava quente em suas costas e o
vento afagava-lhe os cabelos como os dedos de uma mulher. Quando Lew
Pequeno Piper se aproximou a galope com um elmo cheio de amoras
silvestres, Jaime comeu uma mão cheia e disse ao rapaz para
partilhar o resto com os outros escudeiros e Sor Ilyn Payne.
Payne
parecia tão confortável em seu silêncio como em sua cota de malha
enferrujada e couro fervido. O ruído dos cascos de seu castrado e o
chocalhar da espada na bainha sempre que se movia na sela eram os
únicos sons que emitia. Embora seu rosto marcado pelas bexigas fosse
severo e seus olhos frios como gelo num lago de inverno, Jaime sentia
que o homem estava satisfeito por ter vindo. Dei-lhe uma escolha,
recordou a si mesmo. Ele podia ter me dito não e continuado como
magistrado do rei.
A
nomeação de Sor Ilyn fora um presente de casamento de Robert
Baratheon para o pai de sua noiva, uma sinecura para compensar Payne
pela língua que perdera a serviço da Casa Lannister. Ele dava um
magnífico carrasco. Nunca estragara uma execução, e raramente
precisava de um segundo golpe. E havia algo em seu silêncio que
inspirava terror. Raras vezes um magistrado do rei parecia ser tão
adequado ao seu cargo.
Quando
Jaime decidiu levá-lo consigo, procurara os aposentos de Sor Ilyn,
na ponta do Passeio do Traidor. O andar superior da torre atarracada
e semicircular estava dividido em celas para prisioneiros que
precisassem de algum grau de conforto, cavaleiros cativos ou fidalgos
à espera de resgate ou troca. A entrada para as masmorras
propriamente ditas ficava ao nível do chão, atrás de uma porta de
ferro martelado e de uma segunda porta de madeira cinzenta e lascada.
Nos andares intermediários ficavam quartos reservados para o uso do
Carcereiro Chefe, para o Senhor Confessor e para o Magistrado do Rei.
O Magistrado era um carrasco, mas por tradição também estava
encarregado das masmorras e dos homens que nelas trabalhavam.
E Sor
Ilyn Payne era singularmente pouco adequado para esta tarefa. Como
não sabia ler nem escrever, e não podia falar, ele deixara o
governo das masmorras aos seus subordinados, não importando quem
fossem. Porém, o reino não tinha um Senhor Confessor desde o
segundo Daeron, e o último Carcereiro Chefe tinha sido um mercador
de tecidos que comprara o cargo de Mindinho durante o reinado de
Robert, Sem dúvida que teve um bom lucro com ele durante alguns
anos, até cometer o erro de conspirar com mais alguns palermas ricos
para entregar o trono a Stannis. Chamavam a si mesmos “Homens
Chifrudos” e Joff pregara-lhe hastes na cabeça antes de atirá-los
por cima das muralhas da cidade. Portanto, recaíra em Rennifer
Longwaters, o chefe de costas tortas dos carcereiros de segunda, que
afirmava com entediante abundância de pormenores ter em si uma “gota
de dragão” a tarefa de destrancar as portas das masmorras para
Jaime entrar e conduzi-lo pelos estreitos degraus que subiam por
dentro das paredes até o local onde Ilyn Payne vivera durante quinze
anos.
Os
aposentos fediam a comida apodrecida, e as esteiras estavam cobertas
de bichos. Quando Jaime entrou, quase pisou numa ratazana. A espada
longa de Payne repousava sobre uma mesa de montar, ao lado de uma
pedra de amolar e de um oleado sebento. O aço mostrava-se imaculado,
com o gume cintilando, azul, à luz pálida, mas noutros pontos havia
pilhas de roupa suja espalhadas pelo chão, e os pedaços de cota de
malha e armadura espalhados aqui e ali estavam rubros de ferrugem.
Jaime não conseguiu contar os jarros de vinho quebrados. O homem não
tem interesse por nada além de matar, pensou, no momento em que Sor
Ilyn emergia de um quarto que fedia a penicos transbordando.
“Sua
Graça pede-me que lhe reconquiste as terras fluviais” dissera-lhe
Jaime.“Gostaria de tê-lo comigo... caso consiga aguentar a ideia
de desistir de tudo isto.”
Sua
resposta foi o silêncio, e um longo olhar sem pestanejar. Mas no
momento em que Jaime se preparava para se virar e ir embora, Payne
lhe fez um aceno. E aqui estamos. Jaime lançou um relance ao seu
companheiro. Talvez ainda haja esperança para ambos.
Nessa
noite acamparam à sombra do castelo dos Hayford, que se erguia no
topo de uma colina. Enquanto o sol descia, uma centena de tendas
brotou na base da colina, ao longo das margens do riacho que corria
junto a ela. Foi o próprio Jaime quem posicionou as sentinelas. Não
esperava problemas tão perto da cidade, mas o tio Stafford também
julgara-se um dia em segurança em Cruzaboi. Era melhor não correr
riscos.
Quando o
convite para jantar com o castelão da Senhora Hayford desceu do
castelo, Jaime levou consigo Sor Ilyn, bem como Sor Addam Marbrand,
Sor Bonifer Hasty, Ronnet Vermelho Connington, Varrão Forte e uma
dúzia de outros cavaleiros e fidalgos.
- Suponho
que devia usar a mão - disse a Peck antes de iniciar a subida.
O rapaz
foi imediatamente buscá-la. A mão era esculpida em ouro, muito
semelhante a uma de verdade, com unhas de madrepérola nela embutidas
e os dedos e o polegar meio fechados, a fim de poder com eles segurar
a haste de um cálice. Não posso lutar, mas posso beber, refletiu
Jaime enquanto o rapaz apertava as correias que lhe prendiam a mão
ao coto.
“Deste
dia em diante, os homens o chamarão Mão d’Ouro, senhor",
assegurara-lhe o armeiro da primeira vez que a encaixara no pulso de
Jaime. Enganava-se. Serei Regicida até morrer.
A mão de
ouro foi motivo de muitos comentários de admiração durante o
jantar, pelo menos até Jaime derrubar um cálice de vinho. Então
foi dominado pelo mau humor.
- Se
admira tanto assim esta maldita coisa, corte a mão da espada e pode
ficar com ela - disse a Flement Brax. Depois daquilo não houve mais
conversas sobre a mão, e conseguiu beber em paz um pouco de vinho.
A senhora
do castelo era uma Lannister por casamento, um bebê rechonchudo que
foi casado com Tyrek, primo de Jaime, antes de completar um ano. A
Senhora Ermesande foi trazida para a aprovação do grupo, como era
próprio, toda enrolada num pequeno vestido de pano de ouro com o
fretado e a pala ondeada verde da Casa Hayford desenhados com
minúsculas contas de jade. Mas a menina logo começou a chorar,
depois do que foi rapidamente enxotada para a cama pela ama de leite.
- Não
houve notícias de nosso Senhor Tyrek? - perguntou seu castelão
enquanto era servido um prato de truta.
- Nenhuma
- Tyrek Lannister desaparecera durante os tumultos em Porto Real,
enquanto Jaime estava cativo em Correrrio. O rapaz teria catorze anos
àquela altura, assumindo-se que ainda estivesse vivo.
- Eu
mesmo liderei uma busca, por ordens de Lorde Tywin - interveio Addam
Marbrand enquanto tirava as espinhas de seu peixe - mas não descobri
mais do que o Bywater antes de mim. O rapaz foi visto pela última
vez a cavalo, quando a força da turba quebrou a formação de homens
de manto dourado. Depois disso... Bem, sua montaria foi encontrada,
mas o cavaleiro não. O mais provável é terem-no derrubado e
matado. Mas, se foi assim, onde está o corpo? A multidão deixou os
outros cadáveres no local, por que não o dele?
- Ele
teria sido mais valioso vivo - sugeriu Varrão Forte. - Qualquer
Lannister traria um robusto resgate.
- Sem
dúvida - concordou Marbrand - e no entanto nunca houve um pedido de
resgate. O rapaz simplesmente desapareceu.
- O rapaz
está morto - Jaime bebera três taças de vinho e sua mão dourada
parecia se tornar mais pesada e desajeitada a olhos vistos. Um gancho
me serviria igualmente bem. - Se se deram conta de quem mataram, sem
dúvida que atiraram o corpo ao rio com medo da ira de meu pai. Em
Porto Real conhecem o sabor que ela tinha. Lorde Tywin sempre pagou
suas dívidas.
- Sempre
- Varrão Forte concordou, e isso foi o fim da conversa.
Mas, mais
tarde, sozinho no quarto de torre que lhe fora oferecido para a
noite, Jaime deu por si com dúvidas. Tyrek servira o Rei Robert como
escudeiro, ao lado de Lancel. O conhecimento podia ser mais valioso
do que o ouro, mais mortífero do que um punhal. Foi em Varys que
pensou então, sorrindo e cheirando a lavanda. O eunuco tinha agentes
e informantes por toda a cidade. Seria coisa simples arranjar as
coisas de forma que Tyrek fosse capturado durante a confusão...
desde que soubesse de antemão que era provável que a turba entrasse
em tumulto. E Varys sabia de tudo, ou pelo menos era isso que gostava
de nos fazer acreditar. Mas não deu nenhum aviso a Cersei sobre esse
tumulto. Nem desceu aos navios para se despedir de Myrcella.
Abriu as
janelas. A noite estava esfriando, e uma lua cornuda cavalgava o céu.
À luz que ela lançava sua mão brilhava, baça. Não serve para
esganar eunucos, mas é suficientemente pesada para transformar
aquele sorriso viscoso numa bela ruína vermelha. Queria bater em
alguém.
Jaime foi
encontrar Sor Ilyn amolando a espada.
- Está
na hora - disse ao homem. O carrasco levantou-se e o seguiu,
arrastando as botas de couro rachado pelos íngremes degraus de pedra
enquanto desciam a escada. Um pequeno pátio abria-se junto ao
armeiro, Jaime encontrou ali dois escudos, dois meios-elmos e um par
de espadas embotadas de torneio. Entregou uma a Payne e pegou a outra
com a mão esquerda, enquanto enfiava a direita nas presilhas do
escudo. Seus dedos de ouro eram suficientemente curvos para
enganchar, mas não podiam agarrar, de modo que seu controle sobre o
escudo era instável. - Outrora foi um cavaleiro, sor - Jaime disse.
- Eu também. Vejamos o que somos agora.
Sor Ilyn
ergueu a lâmina em resposta, e Jaime atirou-se imediatamente ao
ataque. Payne estava tão enferrujado quanto sua cota de malha, e não
era tão forte quanto Brienne, mas parou todos os golpes com sua
lâmina ou interpôs o escudo. Dançaram sob a lua crescente enquanto
as espadas embotadas cantavam sua canção de aço. O cavaleiro
silencioso contentou-se por algum tempo em deixar que Jaime liderasse
a dança, mas, por fim, começou a responder a cada golpe com um seu.
Assim que passou ao ataque, atingiu Jaime na coxa, no ombro, no
antebraço. Fez-lhe a cabeça ressoar por três vezes com golpes
atirados ao elmo. Uma cutilada arrancou-lhe o escudo do braço
direito e quase arrebentou as correias que prendiam a mão de ouro ao
coto. Quando baixaram as espadas, Jaime estava cheio de manchas
negras e dolorido, mas o vinho fora queimado e tinha a cabeça limpa.
-
Voltaremos a dançar - prometeu a Sor Ilyn. - Amanhã, e no dia
seguinte. Dançaremos todos os dias, até que eu seja tão bom com a
mão esquerda quanto fui com a direita.
Sor Ilyn
abriu a boca e soltou um som seco. Uma gargalhada, Jaime compreendeu.
Algo se retorceu em suas entranhas.
Ao
amanhecer, nenhum dos outros teve a ousadia de fazer menção às
suas manchas negras. Ao que parecia, ninguém ouvira o som das
espadas na noite. Mas quando voltaram a descer dos cavalos para
acampar, Lew Pequeno Piper deu voz à pergunta que cavaleiros e
fidalgos não se atreviam a fazer. Jaime sorriu.
- A Casa
Hayford tem moças cheias de luxúria. Isto são mordidas de amor,
rapaz.
Outro dia
luminoso e de ventania foi seguido por um enevoado, e depois houve
três dias de chuva. O vento e a água não tinham importância. A
coluna manteve o ritmo, para o norte ao longo da estrada do rei, e
todas as noites Jaime encontrava algum lugar recatado para arranjar
mais mordidas de amor. Lutaram dentro de um estábulo observados por
uma mula zarolha, e na adega de uma estalagem entre os barris de
vinho e cerveja. Lutaram na concha enegrecida de um grande celeiro de
pedra, numa ilha arborizada num riacho pouco profundo e num campo
aberto enquanto a chuva tamborilava suavemente em seus elmos e
escudos.
Jaime
arranjava desculpas para seus passeios noturnos, mas não era
insensato a ponto de pensar que os outros acreditavam nelas. Addam
Marbrand certamente sabia o que ele andava fazendo, e alguns dos
outros capitães deviam suspeitar. Mas nenhum falou no assunto ao
alcance de seus ouvidos... e como à única testemunha faltava uma
língua, não tinha de temer que alguém descobrisse exatamente quão
inepto se tornara o Regicida com a espada.
Em pouco
tempo viam-se sinais da guerra por todo lado. Ervas daninhas,
espinheiros e matagais cresciam tão altos como a cabeça de um
cavalo em campos onde o trigo de outono devia estar maturando; a
estrada do rei estava despojada de viajantes, e lobos governavam o
fatigado mundo do crepúsculo à alvorada. A maioria dos animais era
suficientemente cautelosa para se manter a distância, mas um dos
batedores de Marbrand viu o cavalo ser perseguido e morto quando
desmontou para urinar.
- Nenhum
animal teria tamanha ousadia - declarou Sor Bonifer, o Bom, com
tristeza no rosto austero. - Isto são demônios em pele de lobo,
enviados para nos castigar por nossos pecados.
- Então
este deve ter sido um cavalo notavelmente pecador - Jaime retrucou,
em pé junto ao que restava do pobre animal. Deu ordens para que o
resto da carcaça fosse cortada e salgada; poderiam vir a precisar da
carne.
Num lugar
chamado Berrante de Porca encontraram um velho e rijo cavaleiro
chamado Sor Roger Hogg, que defendia teimosamente sua torre com seis
homens de armas, quatro besteiros e uma vintena de camponeses. Sor
Roger era tão grande e hirsuto como um porco de engorda, e Sor
Kennos sugeriu que podia ser algum Crakehall perdido, visto que o
símbolo deles era um varrão malhado. Varrão Forte pareceu
acreditar e passou uma intensa hora interrogando Sor Roger acerca de
seus ancestrais.
Jaime
estava mais interessado no que Hogg tinha a dizer sobre os lobos.
- Tivemos
alguns problemas com um bando daqueles lobos da estrela branca -
disse-lhe o velho cavaleiro. - Vieram por aí farejando seu rastro,
senhor, mas nós corremos com eles, e enterramos três lá embaixo,
ao pé dos nabos. Antes deles houve um grupo de malditos leões, com
a sua licença. Aquele que os liderava tinha uma manticora no escudo.
- Sor
Amory Lorch - Jaime esclareceu. - O senhor meu pai ordenou-lhe que
assolasse as terras fluviais.
- Às
quais nós não pertencemos - disse resolutamente Sor Roger Hogg. -
Minha lealdade é devida à Casa Hayford, e a Senhora Ermesande dobra
seu pequeno joelho a Porto Real, ou o fará assim que tiver idade
para andar. Eu disse isso a ele, mas esse Lorch não era bom ouvinte.
Matou metade de minhas ovelhas e três boas cabras leiteiras, e
tentou me assar na minha torre. Mas minhas muralhas são de pedra
sólida com dois metros e meio de espessura, de modo que, depois de o
fogo se apagar, foi-se embora aborrecido. Os lobos vieram em seguida,
aqueles de quatro patas. Comeram as ovelhas que a manticora me
deixou. Fiquei com algumas boas peles como recompensa, mas peles não
enchem a barriga de ninguém. O que devemos fazer, senhor?
- Plante
- Jaime respondeu - e reze por uma última colheita - não era
resposta animadora, mas era a única que podia dar.
No dia
seguinte, a coluna atravessou o riacho que servia como fronteira
entre as terras que deviam lealdade a Porto Real e aquelas obrigadas
a Correrrio, Meistre Gulian consultou um mapa e anunciou que aqueles
montes pertenciam aos irmãos Wode, um par de cavaleiros com terras,
juramentados a Harrenhal... mas seus fortes tinham sido construídos
de terra e madeira, e só restavam vigas enegrecidas.
Não
apareceu nenhum Wode, nem nenhum de seus plebeus, embora alguns fora
da lei tivessem se abrigado nos porões da fortaleza do segundo
irmão. Um deles usava as ruínas de um manto carmesim, mas Jaime o
enforcou com os outros. E isto lhe fez bem. Era justiça. Habitue-se
a isso, Lannister, e um dia os homens talvez lhe chamem Mão d’Ouro,
afinal. Mão d'Ouro, o Justo.
O mundo
foi ficando mais cinzento à medida que se aproximavam de Harrenhal.
Avançavam sob céus de ardósia, ao lado de águas que brilhavam,
velhas e frias como uma folha de aço batido. Jaime deu por si a se
perguntar se Brienne teria passado por ali antes dele. Se ela pensou
que Sansa Stark se dirigiu a Correrrio... Caso tivessem encontrado
outros viajantes, podia ter parado para perguntar se algum deles
teria por acaso visto uma donzela bonita, com cabelos ruivos, ou uma
grande e feia, com um rosto capaz de coalhar leite. Mas não havia
nada nas estradas exceto lobos, e seus uivos não continham
respostas.
As torres
da loucura do Harren Negro surgiram por fim do outro lado das águas
de peltre do lago, cinco dedos negros retorcidos, pedra deformada que
se estendia para o céu. Embora Mindinho tivesse sido nomeado Senhor
de Harrenhal, parecia não ter grande pressa de ocupar seus novos
domínios, e assim coube a Jaime Lannister “pôr em ordem”
Harrenhal a caminho de Correrrio.
Não
duvidava de que o castelo necessitava ser posto em ordem. Gregor
Clegane arrancara o imenso e sombrio castelo dos Saltimbancos
Sangrentos antes de Cersei chamá-lo a Porto Real. Sem dúvida que os
homens da Montanha continuavam a chocalhar lá dentro como outras
tantas ervilhas secas no interior de uma armadura, mas não eram os
homens ideais para devolver o Tridente à paz do rei, A única paz
que o bando de Sor Gregor alguma vez dera a alguém era a da
sepultura.
Os
batedores de Sor Addam tinham relatado que os portões de Harrenhal
encontravam-se fechados e trancados. Jaime enfileirou seus homens à
frente deles e ordenou a Sor Kennos de Kayce para fazer soar o
Berrante de Herrock, negro, retorcido e enfeitado com ouro velho.
Depois de
três sopros terem ecoado nas muralhas, ouviram o gemido de
dobradiças de ferro e os portões se abriram lentamente. As muralhas
da loucura do Harren Negro eram tão espessas que Jaime passou por
baixo de uma dúzia de alçapões antes de emergir à súbita luz do
sol no pátio onde dissera adeus aos Saltimbancos Sangrentos não
havia assim tanto tempo. Ervas daninhas brotavam da terra bem batida,
e moscas zumbiam em volta da carcaça de um cavalo.
Um
punhado de homens de Sor Gregor emergiu das torres para vê-lo
desmontar; homens de olhos e bocas duras, todos eles. Tinham de ser,
para acompanhar a Montanha. O melhor que podia ser dito dos homens de
Gregor era que não eram propriamente um bando tão vil e violento
como os Bravos Companheiros.
- Que eu
seja fodido, Jaime Lannister - exclamou um homem de armas cinzento e
grisalho - É o raio do Regicida, rapazes. Que eu seja fodido com uma
lança!
- E você,
quem é? - Jaime quis saber.
- Sor
costumava chamar-me Boca de Merda, se aprouver ao senhor - cuspiu nas
mãos e limpou a cara com elas, como se aquilo de algum modo o
deixasse mais apresentável.
-
Encantador. É você quem comanda aqui?
- Eu?
Não, merda. Senhor. Que me enrabem com a porra duma lança - Boca de
Merda tinha na barba migalhas suficientes para alimentar a guarnição.
Jaime teve de rir. O homem tomou aquilo como encorajamento. - Que me
enrabem com a porra duma lança - voltou a dizer, e também se pôs a
rir.
- Ouviu o
homem - disse Jaime a Ilyn Payne. - Arranje uma boa e longa lança e
enfie-lhe cu acima.
Sor Ilyn
não tinha uma lança, mas Jon Imberbe Bettley atirou-lhe uma de bom
grado. O riso ébrio de Boca de Merda parou abruptamente.
-
Mantenha a merda dessa coisa longe de mim.
-
Decida-se - Jaime ordenou. - Quem tem o comando aqui? Sor Gregor
nomeou um castelão?
-
Polliver - disse outro homem - só que o Cão de Caça o matou,
senhor. Ele e o Cócegas, e aquele moço Sarsfield.
Outra vez
o Cão de Caça.
- Sabe
que foi de Sandor? Você o viu?
- Nós
não, senhor. O estalajadeiro nos disse.
-
Aconteceu na estalagem do entroncamento, senhor - quem falou foi um
homem mais novo, com um matagal de cabelos cor de areia. Usava a
corrente de moedas que outrora pertencera a Vargo Hoat; moedas de
meia centena de cidades distantes, de prata e ouro, de cobre e
bronze, moedas quadradas e redondas, triângulos e anéis e bocados
de osso. - O estalajadeiro jurou que o homem tinha um lado da cara
todo queimado. As putas dele contaram a mesma história. Sandor tinha
um garoto qualquer com ele, um moço esfarrapado do campo. Fizeram
Polly e Cócegas em pedaços sangrentos e foram embora Tridente
abaixo.
- Mandou
homens atrás deles?
Boca de
Merda franziu as sobrancelhas, como se a ideia fosse dolorosa.
- Não,
senhor. Que nos fodam a todos, não mandamos.
- Quando
um cão enlouquece, corta-se sua garganta.
- Bem -
disse o homem, esfregando a boca - eu nunca gostei muito do Polly,
aquele merda, e o Cão era irmão do Sor, de modo que...
- Nós
somos maus, senhor - interrompeu o homem que usava as moedas - mas é
preciso ser doido para enfrentar Cão de Caça.
Jaime o
olhou de cima a baixo. Mais ousado do que os outros, e não tão
bêbado quanto Boca de Merda.
- Teve
medo dele.
- Eu não
diria medo, senhor. Diria que o estávamos deixando para homens
melhores que nós. Para alguém como o Sor. Ou você.
Eu,
quando tinha duas mãos. Jaime não se iludia. Agora Sandor trataria
dele em dois tempos.
- Tem
nome?
-
Rafford, se aprouver. A maioria me chama de Raff,
- Raff,
reúna a guarnição no Salão das Cem Lareiras. Os cativos também.
Vou querer vê-los. Inclusive aquelas putas da encruzilhada. Oh, e
Hoat. Fiquei perturbado quando soube que morreu. Gostaria de ver sua
cabeça.
Quando a
trouxeram, descobriu que os lábios do Bode tinham sido cortados, tal
como as orelhas e a maior parte do nariz. Os corvos tinham jantado
seus olhos. Mas ainda era possível reconhecê-lo ali. Jaime
reconheceria sua barba em qualquer lugar; uma absurda corda de pelos
com sessenta centímetros de comprimento que pendia de um queixo
pontiagudo. Além disso, só algumas fitas de pele com textura de
couro ainda aderiam ao crânio do qohorik.
- Onde
está o resto dele? - perguntou.
Ninguém
lhe queria dizer. Por fim, Boca de Merda baixou os olhos e resmungou:
-
Apodreceu, sor. E foi comida.
- Um dos
cativos andava sempre mendigando comida - admitiu Rafford - de modo
que o Sor disse para lhe dar bode assado. Mas o qohorik não tinha lá
muita carne. O Sor cortou-lhe primeiro as mãos e os pés, depois os
braços e as pernas.
- O
paneleiro gordo ficou com a maior parte, senhor - esclareceu Boca de
Merda - mas o Sor disse para a gente tratar de que todos os cativos
provassem um bocadinho. E o próprio Hoat também. Aquele filho da
puta babava-se quando a gente lhe dava de comer, e a gordura corria
por aquela barba fininha que ele tinha.
Pai,
pensou Jaime, ambos os seus cães enlouqueceram. Deu por si
recordando histórias que ouvira pela primeira vez na infância, em
Rochedo Casterly, sobre a louca Senhora Lothston que se banhava em
banheiras de sangue e presidia banquetes de carne humana dentro
daquelas mesmas muralhas.
De algum
modo, a vingança perdera o sabor.
- Leve
isto e jogue no lago - Jaime atirou a cabeça de Hoat a Peck e
voltou-se para falar à guarnição. - Até que Lorde Petyr chegue
para reclamar seus domínios, Sor Bonifêr Hasty controlará
Harrenhal em nome da coroa. Aqueles de vocês que desejarem, podem se
juntar a ele, se ele os aceitar. O resto seguirá comigo para
Correrrio.
Os homens
da Montanha olharam uns para os outros.
- Nós
estamos à espera de pagamento - um deles disse. -Foi promessa do
Sor. Ricas recompensas, ele disse.
- Foram
as palavras dele - concordou Boca de Merda. - Ricas recompensas para
quem seguir comigo - uma dúzia de outros pôs-se a clamar o acordo.
Sor
Bonifer ergueu uma mão enluvada.
-
Qualquer homem que permaneça comigo terá uma jeira de terra para
trabalhar, uma segunda jeira quando tomar esposa, e uma terceira
quando seu primeiro filho nascer.
- Terra,
sor? - Boca de Merda cuspiu. - Tô cagando pra isso. Se quiséssemos
arar a porra da terra, bem podíamos ter ficado em casa, com a sua
licença, sor. Ricas recompensas, disse o Sor. Querendo dizer ouro.
- Se
tiver alguma queixa, vá a Porto Real e leve-a à minha querida irmã
- Jaime virou-se para Rafford. - Quero ver agora esses cativos.
Começando por Sor Wylis Manderly.
- É o
gordo? - Rafford perguntou.
- Espero
piamente que sim. E não me conte histórias tristes sobre como ele
morreu, senão todo seu bando pode sofrer o mesmo.
Quaisquer
esperanças que pudesse ter nutrido de encontrar Shagwell, Pyg ou
Zoilo definhando nas masmorras foram tristemente desiludidas. Os
Bravos Companheiros tinham abandonado Vargo Hoat até o último
homem, aparentemente. Do pessoal da Senhora Whent, só restavam três:
o cozinheiro que abrira a porta secreta a Sor Gregor, um armeiro
corcunda chamado Ben Blackthumb e uma garota chamada Pia, que já não
era nem de perto tão bonita como fora da última vez que Jaime a
vira. Alguém lhe quebrara o nariz e lhe arrancara metade dos dentes.
A garota caiu aos pés de Jaime quando o viu, soluçando e
agarrando-se à sua perna com força histérica, até que Varrão
Forte a obrigou a soltá-la.
- Ninguém
lhe fará mal agora - disse à garota, mas isso só a fez soluçar
mais alto.
Os outros
cativos tinham sido mais bem tratados. Sor Wylis Manderly estava
entre eles, com vários outros nortenhos de elevado nascimento,
tomados prisioneiros pela Montanha Que Cavalga no combate nos vaus do
Tridente. Reféns úteis, todos eles valiam um resgate considerável.
Estavam todos esfarrapados, imundos e desgrenhados, e alguns tinham
manchas negras recentes, dentes quebrados e dedos em falta, mas seus
ferimentos tinham sido lavados e tratados, e nenhum passara fome,
Jaime perguntou a si mesmo se teriam alguma noção do que tinham
andado comendo, e decidiu que era melhor não perguntar.
Em nenhum
restava qualquer desafio; especialmente em Sor Wylis, uma banheira de
sebo de cara peluda com olhos mortiços e bochechas pálidas e
caídas. Quando Jaime lhe disse que seria escoltado até Lagoa da
Donzela e ali posto num navio com destino a Porto Branco, Sor Wylis
transformou-se numa poça no chão, e soluçou durante mais tempo e
mais ruidosamente do que Pia. Foram necessários quatro homens para
colocá-lo em pé. Muito bode assado, refletiu Jaime. Deuses, como
odeio este maldito castelo. Harrenhal vira mais horrores em seus
trezentos anos do que Rochedo Casterly testemunhara em três mil.
Jaime
ordenou que fossem acesos fogos no Salão das Cem Lareiras e enviou o
cozinheiro coxeando até as cozinhas para preparar uma refeição
quente para os homens de sua coluna.
-
Qualquer coisa, menos bode.
Quanto a
ele, jantou no Salão do Caçador com Sor Bonifer Hasty, uma solene
cegonha dada a salgar o discurso com apelos aos Sete.
- Não
quero nenhum dos seguidores de Sor Gregor - declarou enquanto cortava
uma pera tão seca quanto ele, assegurando-se de que o sumo
inexistente do fruto não mancharia seu imaculado gibão púrpura,
decorado com a faixa branca cotizada de sua Casa. - Não terei tais
pecadores ao meu serviço.
- Meu
septão costumava dizer que todos os homens são pecadores.
- Não se
enganava - Sor Bonifer admitiu - mas alguns pecados são mais negros
do que outros, e mais nauseabundos às narinas dos Sete.
E você
não tem mais nariz do que meu pequeno irmão, caso contrário meus
pecados o fariam se engasgar com essa pera.
- Muito
bem. Tirarei o bando de Gregor de suas mãos - podia sempre dar uso a
combatentes. Se não fosse outro, podia mandá-los subir as escadas
na frente, caso tivesse necessidade de assaltar as muralhas de
Correrrio.
- Leve
também a puta - pediu Sor Bonifer. - Sabe qual é. A garota das
masmorras.
- Pia -
da última vez que estivera ali, Qyburn mandara a garota à sua cama,
julgando que aquilo lhe agradaria. Mas a Pia que tinham trazido das
masmorras era uma criatura diferente da doce, simples e risonha
criatura que se lhe enfiara sob as mantas. Cometera o erro de falar
quando Sor Gregor queria silêncio, e a Montanha fizera-lhe os dentes
em lascas com um punho coberto de cota de malha e quebrara-lhe também
o belo narizinho. Teria feito pior, sem dúvida, se Cersei não o
tivesse chamado a Porto Real para enfrentar a lança da Víbora
Vermelha. Jaime não ficaria de luto por ele. - Pia nasceu neste
castelo - disse a Sor Bonifer. - É a única casa que alguma vez
conheceu.
- Ela é
uma fonte de corrupção - Sor Bonifer protestou. - Não a quero
perto de meus homens, exibindo as suas... formas.
- Julgo
que seus dias de exibição tenham ficado para trás - Jaime rebateu
- mas, se ela levanta tantas objeções a você, eu a levo - supunha
que podia fazer dela uma lavadeira. Seus escudeiros não se
importavam de lhe montar a tenda, tratar do cavalo ou limpar sua
armadura, mas a tarefa de cuidar da sua roupa era vista por eles como
pouco viril. - É capaz de defender Harrenhal apenas com a sua Santa
Centena? - Jaime quis saber. Na verdade, deviam chamá-los Santos
Oitenta e Seis, visto terem perdido catorze homens na Água Negra,
mas não havia dúvida de que Sor Bonifer recomporia as fileiras
assim que encontrasse recrutas suficientemente pios.
- Não
prevejo dificuldades. A Velha iluminará nosso caminho, e o Guerreiro
dará força aos nossos braços.
Ou,
então, o Estranho aparecerá em busca de todo o seu santo bando.
Jaime não tinha certeza de quem convencera a irmã de que Sor
Bonifer deveria ser nomeado castelão de Harrenhal, mas a nomeação
cheirava a Orton Merryweather. Julgava lembrar-se vagamente de que
Hasty outrora servira o avô de Merryweather. E o administrador de
justiça de cabelos cor de cenoura era mesmo o tipo de idiota
simplório capaz de partir do princípio de que alguém chamado “o
Bom” era a exata poção de que as terras fluviais necessitavam
para curar as feridas deixadas por Roose Bolton, Vargo Hoat e Gregor
Clegane.
Mas
talvez não se engane. Hasty provinha das terras da tempestade, de
modo que não tinha nem amigos nem inimigos ao longo do Tridente; não
havia contendas de sangue, nem dívidas a pagar, nem companheiros a
recompensar. Ele era sóbrio, justo e cumpridor, não havia nos Sete
Reinos soldados mais bem disciplinados do que os seus Santos Oitenta
e Seis, e davam um belo espetáculo quando faziam seus grandes
castrados cinzentos rodopiar e se empinar. Mindinho uma vez brincou
que Sor Bonifer também devia ter castrado os cavaleiros, de tão
imaculada era sua reputação.
Mesmo
assim, Jaime duvidava de quaisquer soldados que fossem mais
conhecidos por seus lindos cavalos do que pelos inimigos que tivessem
matado. Eles rezam bem, suponho, mas serão capazes de lutar? Não
tinham se desonrado na Água Negra, tanto quanto sabia, mas também
não tinham se distinguido. O próprio Sor Bonifer fora um cavaleiro
promissor na juventude, mas algo lhe acontecera, uma derrota, uma
desonra ou uma visão próxima da morte, e depois disso decidira que
justar era uma vaidade vazia e pusera definitivamente a lança de
lado.
Mas
Harrenhal tem de ser controlado, e o Baelor Olho do Cu aqui é o
homem que Cersei escolheu para controlá-lo.
- Este
castelo tem má reputação - preveniu-o - e uma reputação que foi
bem merecida. Diz-se que Harren e os filhos ainda vagueiam de noite
pelos salões, incendiados. Aqueles que os contemplam rebentam em
chamas.
- Não
temo sombras, sor. Está escrito na Estrela de Sete Pontas que
espíritos, criaturas de além-túmulo e mortos-vivos não podem
fazer mal a um homem piedoso, desde que ele esteja coberto pela
armadura de sua fé.
- Então,
arme-se de fé, com certeza, mas use também cota de malha e uma
placa de aço. Todos os homens que controlam este castelo parecem ter
triste fim. A Montanha, o Bode, até meu pai...
- Se
perdoar minha ousadia, eles não eram homens devotos, como nós
somos. O Guerreiro nos protege, e a ajuda está sempre próxima, caso
algum terrível inimigo nos ameace. Meistre Gulian ficará aqui com
seus corvos, Lorde Lancel está perto, em Darry, com a sua guarnição,
e Lorde Randyll controla Lagoa da Donzela. Juntos, nós três
perseguiremos e destruiremos quaisquer fora da lei que percorram esta
região. Depois disso, os Sete guiarão o bom povo de volta às suas
aldeias, para arar a terra, plantá-la e reconstruir.
Aqueles
que o Bode não matou, pelo menos. Jaime enganchou a haste de seu
cálice de vinho nos dedos de ouro.
- Se
algum dos Bravos Companheiros de Hoat cair em suas mãos, avise-me
imediatamente - o Estranho podia ter se escapulido com o Bode antes
de Jaime arranjar oportunidade para tratar dele, mas o gordo Zoilo
ainda andava por aí, com Shagwell, Rorge, Fiel Urswyck e os outros.
- Para
que possa torturá-los e matá-los?
- Suponho
que você os perdoaria se estivesse em meu lugar?
- Se se
arrependessem sinceramente de seus pecados... Sim, abraçaria a todos
como irmãos e rezaria com eles antes de mandá-los para o cepo. Os
pecados podem ser perdoados. Os crimes requerem punição - Hasty
fechou as mãos à sua frente, fazendo com elas uma espécie de
campanário, de um modo que fez que Jaime se lembrasse
desconfortavelmente do pai. - Se for Sandor Clegane que encontrarmos,
o que quer que eu faça?
Reze
muito, pensou Jaime, e fuja.
- Mande-o
juntar-se ao seu querido irmão, e fique feliz por os deuses terem
feito sete infernos. Apenas um não seria suficiente para encerrar
ambos os Clegane - pôs-se desajeitadamente em pé. - Beric
Dondarrion é diferente. Se o capturar, mantenha-o preso até o meu
regresso. Vou querer levá-lo para Porto Real com uma corda em volta
do pescoço e ordenar a Sor Ilyn que lhe corte a cabeça onde metade
do reino possa ver.
- E o tal
sacerdote de Myr que o acompanha? Diz-se que espalha sua falsa fé
por todo lado.
- Mate-o,
beije-o, ou reze com ele, faça o que quiser.
- Não
tenho nenhum desejo de beijar o homem, senhor.
- Não
tenho dúvidas de que ele diria o mesmo de você - o sorriso de Jaime
transformou-se num bocejo. - Perdão. Vou me retirar, se não tiver
objeções.
-
Nenhuma, senhor - disse Hasty. Certamente queria rezar.
Jaime
queria lutar. Atacou os degraus dois a dois, até onde o ar da noite
fosse frio e revigorante. No pátio iluminado por archotes, Varrão
Forte e Sor Flement Brax defrontavam-se enquanto um círculo de
homens de armas os aclamava. Sor Lyle levará a melhor nesta luta,
compreendeu. Tenho de encontrar Sor Ilyn. Tinha de novo a comichão
nos dedos. Seus passos afastaram-no do ruído e da luz. Passou por
baixo da ponte coberta e atravessou o Pátio das Lâminas antes de
perceber para onde se dirigia.
Ao se
aproximar da arena dos ursos, viu o brilho de uma lanterna e a pálida
luz invernal que ela derramava sobre as fileiras de íngremes bancos
de pedra. Parece que alguém chegou antes de mim. A arena seria um
belo local para dançar; talvez Sor Ilyn tivesse se antecipado.
Mas o
cavaleiro em pé junto à arena era maior; um homem rude e barbudo,
com um sobretudo vermelho e branco adornado com grifos. Connington. O
que ele faz aqui? Lá embaixo, a carcaça do urso ainda jazia na
areia, embora só restassem os ossos e a pele esfarrapada meio
enterrados. Jaime sentiu uma pontada de piedade pelo animal. Pelo
menos morreu em batalha.
- Sor
Ronnet - chamou - se perdeu? É um grande castelo, bem sei.
Ronnet
Vermelho ergueu a lanterna.
- Quis
ver o local onde o urso dançou com a donzela não muito bela - a
barba do homem brilhava à luz da lanterna como se estivesse em fogo.
Jaime sentiu o cheiro de vinho em seu hálito. - É verdade que a
garota dançou nua?
- Nua?
Não - perguntou a si mesmo como aquela mentira teria sido adicionada
à história. - Os Saltimbancos enfiaram-na num vestido de seda
cor-de-rosa e meteram-lhe uma espada de torneio na mão. O Bode
queria que sua morte fosse divertida. Se não fosse assim...
- ... a
visão de Brienne nua poderia ter feito o urso fugir aterrorizado -
Connington soltou uma gargalhada.
Jaime
não.
- Fala
como se conhecesse a senhora.
- Estive
prometido a ela.
Aquilo o
pegou de surpresa. Brienne nunca mencionara um noivado.
- O pai
arranjou-lhe uma união...
- Três
vezes - Connington ressaltou. - Eu fui o segundo. Ideia de meu pai.
Eu tinha ouvido dizer que a garota era feia, e foi o que lhe disse,
mas ele respondeu que todas as mulheres eram iguais depois de se
apagar a vela.
- Seu pai
- Jaime examinou o sobretudo do Ronnet Vermelho, onde dois grifos se
defrontavam num fundo vermelho e branco. Grifos dançantes. - Era...
irmão de nossa falecida Mão, não?
- Primo.
Lorde Jon não tinha irmãos.
- Não -
veio-lhe tudo à memória. Jon Connington fora amigo do Príncipe
Rhaegar. Quando Merryweather falhara tão tristemente em conter a
Rebelião de Robert e não fora possível encontrar o Príncipe
Rhaegar, Aerys virara-se para a segunda melhor opção e promovera
Connington ao cargo de Mão. Mas o Rei Louco andava sempre cortando
as Mãos. Cortara Lorde Jon depois da Batalha dos Sinos, despindo-o
de honrarias, terras e riquezas, e expulsando-o mar afora para ir
morrer no exílio, onde rapidamente bebera até a morte. Mas o primo,
pai do Ronnet Vermelho, juntara-se à rebelião e fora recompensado
com o Poleiro do Grifo após o Tridente. Mas só recebera o castelo;
Robert ficara com o ouro e outorgara a maior parte das terras dos
Connington a aliados mais fervorosos.
Sor
Ronnet era um cavaleiro com terras, nada mais. Para um homem como
ele, a Donzela de Tarth teria sido realmente um belo aperitivo.
- Por que
não se casou? - Jaime quis saber.
- Ora,
fui a Tarth e a vi. Era seis anos mais velho do que ela, mas a garota
conseguia me olhar nos olhos. Era uma porca vestida de seda, embora a
maioria das porcas tenha tetas maiores. Quando tentou falar, quase se
engasgou com a própria língua. Dei-lhe uma rosa, e disse a ela que
isso seria tudo que teria de mim - Connington olhou a arena de
relance. - O urso era menos peludo do que essa aberração. Eu...
A mão
dourada de Jaime atingiu-o na boca com tanta força que o outro
cavaleiro caiu aos tropeções degraus abaixo. A lanterna caiu e
esmagou-se, e o azeite se espalhou, em chamas.
- Estava
falando de uma senhora de elevado nascimento, Sor. Chame-a pelo nome.
Chame-a Brienne.
Connington
afastou-se das chamas que se espalhavam, apoiado nas mãos e nos
joelhos.
-
Brienne. Se agrada ao senhor - cuspiu um escarro de sangue aos pés
de Jaime. - Brienne, a Bela.
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