O Septo
de Pedra era a maior localidade que Arya tinha visto desde Porto
Real, e Harwin disse-lhe que o pai dela ganhara ali uma batalha
famosa.
- Os
homens do Rei Louco andavam no encalço de Robert, tentando apanhá-lo
antes de conseguir se reunir com seu pai - disse-lhe enquanto se
aproximavam do portão. - Robert estava ferido, cercado de alguns
amigos que tratavam dele, quando Lorde Connington, a Mão, tomou a
cidade com uma força poderosa e ordenou buscas casa a casa. Mas
antes de conseguirem encontrá-lo, Lorde Eddard e seu avô caíram
sobre a cidade e assaltaram as muralhas. Lorde Connington retrucou
ferozmente. Lutou-se pelas ruas e pelos becos, e até nos telhados, e
todos os septões bateram os sinos para que o povo soubesse que devia
trancar as portas. Robert saiu do esconderijo para se juntar à luta
quando os sinos começaram a soar. Dizem que matou seis homens nesse
dia. Um deles foi Myles Mooton, um cavaleiro famoso que tinha sido
escudeiro do Príncipe Rhaegar. Teria matado também a Mão, mas a
batalha nunca os aproximou. Em contrapartida, Connington feriu
gravemente seu avô Tully, e matou Sor Denys Arryn, o predileto do
Vale. Mas quando viu que o dia estava perdido, fugiu com toda a
velocidade dos grifos de seu escudo. Depois, chamaram esse confronto
de a Batalha dos Sinos. Robert sempre disse que foi seu pai quem a
ganhou, e não ele.
Pelo
aspecto do lugar, Arya achou que batalhas mais recentes também
tinham sido travadas ali. Os portões da cidade eram feitos de
madeira nova e verde; do lado de fora das muralhas ainda se erguia
uma pilha de tábuas carbonizadas indicando o que acontecera com os
antigos. O Septo de Pedra estava bem fechado, mas quando o capitão
do portão viu quem eles eram, abriu uma porta de surtida para eles.
- Como
andam de comida? - perguntou Tom quando entraram.
- Não
tão mal quanto estávamos. O Caçador trouxe um rebanho de ovelhas,
e tem havido algum comércio ao longo da Água Negra. A colheita não
foi queimada a sul do rio. Claro, há um monte de gente que quer nos
tirar o que temos. Num dia lobos, no outro Saltimbancos. Aqueles que
não andam à procura de comida, andam à procura de saque ou de
mulheres pra estuprar, e aqueles que não andam por aí por causa de
ouro ou de moças andam à procura do maldito Regicida. Dizem que
escapuliu bem pelo meio dos dedos de Lorde Edmure.
- Lorde
Edrnure? - Limo franziu a testa. - Então Lorde Hoster está morto?
- Morto
ou morrendo. Acha que o Lannister pode vir pra Água Negra? O Caçador
jura que é o caminho mais rápido pra Porto Real. - O capitão não
esperou resposta. - Ele levou os cães pra cheirar por aí. Se Sor
Jaime anda por estas bandas, vai encontrá-lo. Já vi aqueles cães
darem cabo de ursos. Acha que vão gostar do sabor de sangue de leão?
- Um
cadáver mastigado não serve a ninguém - disse Limo. - O Caçador
também sabe muito bem disso.
- Quando
os ocidentais chegaram, estupraram a mulher e a irmã do Caçador,
passaram fogo em suas colheitas, comeram metade das ovelhas dele e
mataram a outra metade por vontade de fazer mal. Também mataram seis
cães e atiraram suas carcaças no poço. Eu diria que um cadáver
mastigado lhe serve perfeitamente. E a mim também.
- E
melhor que ele não faça isso - disse Limo. - E tudo que eu tenho a
dizer. E melhor que não faça isso, e você é um maldito de um
idiota.
Arya
seguiu entre Harwin e Anguy enquanto os fora da lei avançavam pelas
ruas em que o pai lutara antigamente. Via o septo em sua colina e,
por baixo, uma robusta fortaleza pouco elevada de pedra cinzenta, que
parecia muito menor do que devia ser para uma cidade tão grande. Mas
um terço das casas por onde passavam era uma casca enegrecida, e não
viu ninguém,
- Os
habitantes da cidade estão todos mortos?
- Só
desconfiados. - Anguy apontou para dois arqueiros num telhado, e para
um grupo de rapazes com o rosto coberto de fuligem acocorados nas
ruínas de uma cervejaria. Mais adiante, um padeiro escancarou uma
janela e gritou para Limo, O som da voz dele levou mais gente a sair
dos esconderijos, e Septo de Pedra pareceu voltar lentamente à vida
em volta deles. Na praça do mercado, no coração da cidade, havia
uma fonte com a forma de uma truta saltando, de onde corria água
para uma lagoa rasa. Mulheres enchiam ali baldes e jarros. A um par
de metros de distância, uma dúzia de gaiolas de ferro pendurava-se,
rangendo, de postes de madeira. Gaiolas para corvos, compreendeu
Arya. Os corvos estavam quase todos fora das gaiolas, chapinhando na
água ou empoleirados nas barras; dentro delas havia homens. Limo
puxou as rédeas do cavalo, franzindo a testa.
- O que é
isso agora?
- Justiça
- respondeu uma mulher junto à fonte.
- Que
foi, estão com falta de corda de cânhamo?
- Isso
foi feito por determinação de Sor Wilbert? - perguntou Tom.
Um homem
soltou uma gargalhada amarga.
- Os
leões mataram Sor Wilbert há um ano. Os filhos dele andam todos com
o Jovem Lobo, engordando no oeste. Acha que eles dão a mínima pra
gente como nós? Foi o Caçador Louco que apanhou esses lobos.
Lobos.
Arya gelou. Homens de Robb e do meu pai. Sentiu-se atraída para as
gaiolas. As barras deixavam tão pouco espaço que os prisioneiros
não podiam se sentar nem se virar; estavam em pé, nus, expostos ao
sol, ao vento e à chuva. As primeiras três gaiolas continham
mortos. Corvos tinham comido seus olhos, mas as órbitas vazias
pareciam segui-la. O quarto homem da fileira agitou-se quando ela
passou. Em volta da boca, a sua barba andrajosa estava repleta de
sangue e de moscas. Como que explodiram quando ele falou, zumbindo em
volta de sua cabeça.
- Água -
A palavra era um crocitar. - Por favor... água...
O homem
na gaiola seguinte abriu os olhos ao ouvir o som.
- Aqui -
disse. - Aqui, eu. - Era um velho; a barba era grisalha e o couro
cabeludo, calvo e pintalgado de marrom pela idade.
Depois do
velho havia outro morto, um grande homem de barba ruiva, com uma
atadura cinzenta em putrefação cobrindo a orelha esquerda e parte
da cabeça. Mas o pior estava entre as pernas, onde nada restava além
de um buraco marrom coberto por uma crosta e repleto de larvas.
Mais à
frente encontrava-se um gordo. A gaiola para corvos era tão
cruelmente estreita que era difícil entender como conseguiram
enfiá-lo lá dentro. O ferro enterrava-se dolorosamente em sua
barriga, fazendo sair protuberâncias por entre as barras. Longos
dias torrando ao sol tinham-no deixado dolorosamente vermelho da
cabeça aos pés. Quando mudou o ponto de apoio de seu peso, a gaiola
rangeu e balançou, e Arya viu listras brancas nos locais em que as
barras tinham bloqueado sua pele do sol.
- São
homens de quem? - perguntou-lhes.
Ao ouvir
o som de sua voz, o gordo abriu os olhos. A pele em volta deles
estava tão vermelha que pareciam ovos cozidos flutuando num prato de
sangue.
- Água...
uma bebida...
- De
quem? - repetiu.
- Não
ligue para eles, moço - disse-lhe o habitante da cidade. - Não
dizem respeito a você. Avance.
- O que
foi que eles fizeram? - perguntou-lhe Arya.
-
Passaram oito pessoas na espada na Cascata do Acrobata - disse ele. -
Queriam encontrar o Regicida, mas ele não estava lá, então
trataram de arranjar uns estupros e assassinatos. - Agitou um polegar
na direção do cadáver com larvas onde devia estar o membro viril.
- Foi aquele que estuprou. Agora avance.
- Uma
gota - gritou o gordo para baixo. - Misericórdia, rapaz, uma gota. -
O velho ergueu um braço para se agarrar às barras. O movimento fez
sua gaiola balançar violentamente.
- Água -
arquejou aquele que tinha moscas na barba.
Ela olhou
para o cabelo imundo, barbas macilentas e olhos vermelhos, para os
lábios secos, rachados e sangrentos. Lobos, voltou a pensar. Como
eu. Seria aquela a sua matilha? Como podem ser homens de Robb? Quis
bater neles. Quis machucá-los. Quis chorar. Todos pareciam olhá-la,
tanto os vivos como os mortos. O velho havia estendido três dedos
entre as barras.
- Água -
disse - água,
Arya
saltou do cavalo. Não podem me fazer mal, estão morrendo. Tirou sua
taça de dentro do rolo de dormir e dirigiu-se à fonte.
- O que
você acha que tá fazendo, moço? - disse o habitante da cidade num
tom incisivo. - Eles não dizem respeito a você. - Arya levou a taça
à boca do peixe. A água derramou-se sobre seus dedos e desceu por
sua manga, mas Arya não se mexeu até a taça começar a
transbordar. Quando virou-se de volta para as gaiolas, o habitante da
cidade pôs-se na sua frente. - Afaste-se deles, moço...
- Ela é
uma moça - disse Harwin. - Deixe-a.
- E -
disse Limo. - Lorde Beric não gosta de engaiolar homens pra que
morram de sede. Por que é que não os enforcam decentemente?
- Não
houve nada decente nas coisas que eles fizeram na Cascata do Acrobata
- rosnou-lhe o cidadão.
As barras
eram próximas demais para introduzir nelas uma taça, mas Harwin e
Gendry ajudaram-na a subir na gaiola. Apoiou um pé nas mãos de
Harwin, girou para cima dos ombros de Gendry e agarrou-se às barras
do topo da gaiola. O gordo virou o rosto para cima e encostou a
bochecha no ferro, e Arya despejou a água por cima dele. O homem
sugou-a avidamente e deixou que escorresse pela cabeça, rosto e
mãos, e depois lambeu a umidade que ficou nas barras. Teria lambido
os dedos de Arya se ela não os tivesse afastado. Quando serviu os
outros dois da mesma forma, uma multidão tinha se reunido para
observá-la.
- O
Caçador Louco vai ouvir falar disso - ameaçou um homem. - E não
vai gostar. Não vai gostar, não.
- Então
vai gostar ainda menos disto. - Anguy colocou uma corda no arco,
tirou uma flecha da aljava, encaixou-a, puxou a corda e soltou. O
gordo estremeceu quando a flecha se enterrou entre seus queixos, mas
a gaiola não o deixou cair. Outras duas flechas acabaram com os
outros dois nortenhos. O único som na praça do mercado era o
esparramar da água que caía e o zumbir das moscas.
Vaiar
morghulis, pensou Arya.
No lado
oriental da praça do mercado erguia-se uma modesta estalagem com
paredes caiadas e janelas quebradas. Metade de seu telhado queimara
recentemente, mas o buraco havia sido remendado. Por cima da porta
pendia uma telha de madeira onde se encontrava pintado um pêssego
com uma grande mordida. Desmontaram junto ao estábulo, que se
dispunha diagonalmente, e Barba-Verde berrou por cavalariços.
A
rechonchuda estalajadeira ruiva uivou de prazer ao vê-los e
prontamente passou a zombar deles.
-
Barba-Verde, é? Ou Barba-Grisalha? Pela misericórdia da Mãe,
quando foi que envelheceu tanto? Limo, é você? Ainda usa o mesmo
manto maltrapilho, hã? Eu sei por que é que nunca o lava, ah, se
sei. Tem medo de que o mijo saia todo e a gente veja que na verdade é
um cavaleiro da Guarda Real! O Tom das Sete, seu bode velho atrevido.
Vem visitar aquele seu filho? Bem, veio tarde, ele saiu pra caçar
com aquele maldito Caçador. E não me diga que não é seu!
- Ele não
tem a minha voz - protestou fracamente Tom.
- Mas tem
o seu nariz. Sim, e as outras partes também, pelo que dizem as
garotas. - Então viu Gendry, e deu-lhe um beliscão no rosto. - Olhe
para este belo e jovem boi. Espere só a Alyce ver estes braços. Oh,
e ainda por cima cora como uma donzela. Bem, a Alyce resolve esse seu
problema, rapaz, você vai ver.
Arya
nunca tinha visto Gendry ficar tão vermelho.
-
Tanásia, deixe o Touro em paz, ele é um bom rapaz - disse Tom
Sete-Cordas. - Tudo que precisamos de você é de camas seguras para
passar a noite.
- Fale
por si, cantor, - Anguy passou o braço em volta de uma jovem e
robusta criada, tão sardenta quanto ele.
- Camas,
temos - disse a ruiva Tanásia. - Nunca faltaram camas no Pêssego.
Mas vão todos à banheira primeiro. Da última vez que seu grupo
ficou debaixo do meu teto, deixou as pulgas aqui. - Espetou, o dedo
no peito do Barba-Verde - E as suas também eram verdes. Querem
comer?
- Se tem
comida sobrando, não diremos não - concedeu Tom.
- Ora, e
quando foi que você disse "não" a alguma coisa, Tom? -
gritou a mulher. - Vou assar um pouco de carneiro para os seus
amigos, e uma velha ratazana seca para você. E mais do que merece,
mas se me gargarejar uma ou duas canções, pode ser que eu amoleça.
Sempre tive piedade dos aflitos. Venham, venham. Cass, Lanna, ponham
as panelas no fogo. Jyzene, ajude-me a tirar a roupa deles, que
também vamos precisar fervê-la.
E cumpriu
todas as ameaças. Arya tentou dizer-lhes que tinham dado banho nela
duas vezes no Solar de Bolotas ainda não havia uma quinzena, mas a
ruiva não queria ouvir falar do assunto. Duas criadas levaram-na no
colo escada acima, discutindo sobre se seria um menino ou uma menina.
A que se chamava Helly ganhou, por isso a outra teve de ir buscar a
água quente e esfregar as costas de Arya com uma escova eriçada e
rígida que quase arrancou sua pele. Então roubaram toda a roupa que
a Senhora Smallwood tinha lhe dado e vestiram-na de linho e rendas,
como uma das bonecas de Sansa. Mas, pelo menos, quando acabaram, pôde
descer e comer.
Ao se
sentar na sala comum, em suas estúpidas roupas de menina, Arya
lembrou-se do que Syrio Forel havia lhe ensinado, o truque de olhar e
ver o que estava lá. Quando olhou, viu mais criadas do que qualquer
estalagem poderia querer, em sua maioria jovens e atraentes. E, ao
cair a noite, montes de homens começaram a entrar e sair do Pêssego.
Não ficavam muito tempo na sala comum, nem mesmo quando Tom pegou
sua harpa e começou a cantar "Seis donzelas numa lagoa".
Os degraus de madeira eram velhos e íngremes e rangiam furiosamente
sempre que um dos homens levava uma garota para cima.
- Aposto
que isto é um bordel - murmurou a Gendry.
- Você
nem sequer sabe o que é um bordel.
- Sei,
sim - insistiu ela. - E como uma estalagem, com garotas.
Ele
estava outra vez corando.
- Então
o que você está fazendo aqui? - quis saber. - Um bordel não é
lugar para uma maldita de uma senhora bem-nascida, todo mundo sabe.
Uma das
garotas sentou-se no banco ao lado dele.
- Quem é
senhora bem-nascida? A magricela? - Olhou para Arya e riu. - Eu sou
filha de um rei.
Arya
sabia que estavam caçoando dela.
- Não é
nada.
- Bem,
poderia ser. - Quando a garota encolheu os ombros, seu vestido
escorregou de um lado. - Dizem que o Rei Robert fodeu a minha mãe
quando se escondeu aqui, antes da batalha. Não que não tenha
possuído também todas as outras garotas, mas Leslyn diz que ele
gostava mais da minha mãe.
A garota
realmente tinha cabelos parecidos com os do antigo rei, pensou Arya;
uma grande e espessa cabeleira, preta como carvão. Mas isso não
quer dizer nada. Gendry também tem o mesmo tipo de cabelo. Um monte
de gente tem cabelos pretos.
- Sou
chamada de Sineta - disse a garota a Gendry. - Por causa da batalha.
Aposto que também conseguiria tocar o seu sino. Quer?
- Não -
disse ele bruscamente.
- Aposto
que quer, - Correu uma mão ao longo do braço dele. - Sou cortesia
para amigos de Thoros e do senhor do relâmpago.
- Eu
disse que não. - Gendry ficou abruptamente em pé e afastou-se da
mesa, saindo para a noite.
Sineta
virou-se para Arya.
- Ele não
gosta de garotas?
Arya
encolheu os ombros.
- É só
estúpido. Gosta de polir capacetes e bater espadas com martelos.
- Ah. -
Sineta ajeitou de novo o vestido no ombro e foi falar com Jack
Sortudo. Não muito tempo depois, estava sentada no colo dele, rindo
e bebendo vinho de sua taça. Barba-Verde tinha duas garotas, uma em
cada joelho. Anguy tinha desaparecido com a sua sardenta, e Limo
também tinha sumido. Tom Sete-Cordas estava sentado junto à
lareira, cantando "As donzelas que desabrocham na primavera".
Arya bebericou da taça de vinho aguado que a ruiva lhe autorizara,
escutando. Do outro lado da praça, os mortos apodreciam em suas
gaiolas de corvos, mas dentro do Pêssego todo mundo estava alegre.
Só que de algum modo lhe parecia que alguns deles estavam rindo alto
demais.
Teria
sido uma boa hora para escapar e roubar um cavalo, mas Arya não via
como isso a ajudaria. Só poderia chegar até os portões da cidade.
Aquele capitão nunca me deixaria passar, e se deixasse, Harwin viria
atrás de mim, e aquele Caçador com os seus cães também. Desejou
ter o mapa, para poder ver a que distância de Correrrio ficava Septo
de Pedra.
Quando
sua taça se esvaziou, Arya já bocejava. Gendry não tinha voltado.
Tom Sete-Cordas estava cantando "Dois corações que batem como
um só", e beijando uma garota diferente no fim de cada verso.
No canto, junto à janela, Limo e Harwin conversavam em voz baixa com
a ruiva Tanásia.
- ...
passou a noite na cela de Jaime - ouviu a mulher dizer. - Ela e outra
moça, aquela que matou Renly, Os três juntos, e ao chegar a manhã
a Senhora Catelyn libertou-o por amor. - Soltou uma gargalhadinha
gutural.
Não é
verdade, pensou Arya. Ela nunca faria isso. Sentiu-se triste, zangada
e solitária, tudo ao mesmo tempo. Um velho sentou-se ao seu lado.
- Ora,
aqui está um pessegozinho bonito - O hálito do homem cheirava quase
tão mal quanto os mortos nas gaiolas, e seus pequenos olhos de porco
percorriam-na de cima a baixo - O meu querido pessegozinho tem nome?
Durante
meio segundo, Arya esqueceu-se de quem se esperava que ela fosse. Não
era pêssego nenhum, mas também não podia ser Arya Stark, ali, para
um bêbado fedido que não conhecia.
- Eu
sou...
- Ela é
a minha irmã. - Gendry apoiou uma mão pesada no ombro do velho e
apertou. - Deixe-a em paz.
O homem
virou-se, desejoso de uma luta, mas, quando viu o tamanho de Gendry,
pensou duas vezes.
- Sua
irmã, é? Que raio de irmão é você? Nunca traria uma irmã minha
ao Pêssego, isso é certo. - Levantou-se do banco e afastou-se
resmungando, à procura de uma nova amiga.
- Por que
foi que disse aquilo? - Arya levantou-se em um salto. - Você não é
meu irmão.
- É
verdade - disse ele num tom irritado. - Meu nascimento é baixo
demais para ser da família de sua alteza.
Arya
surpreendeu-se pela fúria na voz dele.
- Não
foi isso que eu quis dizer.
- Foi,
sim senhora. - Gendry sentou-se no banco, aninhando uma taça de
vinho nas mãos. - Vá embora. Quero beber este vinho em paz. Depois,
de repente vou atrás daquela garota de cabelos pretos para tocar o
sino dela.
- Mas...
- Eu
disse: vá embora. Senhora.
Arya
virou-se e deixou-o ali. Um estúpido bastardo cabeça-dura é o que
ele é. Podia tocar todos os sinos que quisesse, ela não queria nem
saber.
O quarto
deles ficava no topo da escada, abaixo do beirai. No Pêssego, talvez
não faltassem camas, mas só havia uma para gente como eles. Era uma
cama grande, porém. Enchia o quarto quase por completo, e o
bolorento colchão estofado de palha parecia suficientemente grande
para acomodá-los todos. Por enquanto, no entanto, tinha-o todo para
si. Sua roupa de verdade estava pendurada em um gancho na parede,
entre as coisas de Gendry e as de Limo. Arya despiu o linho e a
renda, enfiou a túnica pela cabeça, subiu para a cama e enterrou-se
sob as mantas.
- Rainha
Cersei - sussurrou para a almofada. - Rei Joffrey, Sor Ilyn, Sor
Meryn. Dunsen, Raff e Polliver. Cócegas, Cão de Caça e Sor Gregor,
a Montanha. - As vezes gostava de embaralhar a ordem dos nomes. Isso
ajudava-a a recordar quem eram e o que tinham feito. Alguns talvez
estejam mortos, pensou. Talvez, em algum lugar, estejam dentro de
gaiolas de ferro, e os corvos estejam bicando seus olhos.
O sono
chegou assim que fechou os olhos. Nessa noite, sonhou com lobos,
caçando em uma floresta úmida com um pesado cheiro de chuva,
putrefação e sangue no ar. Mas, no sonho, eram cheiros bons, e Arya
sabia que nada tinha a temer. Era forte, ligeira e feroz, e a sua
matilha rodeava-a, seus irmãos e suas irmãs. Perseguiram juntos um
cavalo assustado, rasgaram sua garganta e banquetearam-se. E quando a
lua surgiu entre as nuvens, jogou a cabeça para trás e uivou.
Mas,
quando o dia chegou, acordou com o ladrar de cães.
Arya
sentou-se, bocejando. Gendry agitava-se à sua esquerda e Limo Manto
Limão roncava sonoramente à direita, mas os latidos lá fora quase
não deixavam que o ouvisse. Deve haver meia centena de cães lá
fora. Saiu de debaixo das mantas e saltou por cima de Limo, Tom e
Jack Sortudo, até chegar à janela. Quando escancarou as venezianas,
o vento, a umidade e o frio jorraram juntos para dentro do quarto. O
dia estava cinzento e encoberto. Embaixo, na praça, os cães latiam,
correndo em círculos, rosnando e uivando. Era uma matilha, grandes
mastins negros, lobeiros esguios e cães pastores pretos e brancos, e
raças que Arya não conhecia, animais hirsutos e malhados, com
grandes dentes amarelos. Entre a estalagem e a fonte encontrava-se
uma dúzia de cavaleiros montados em seus cavalos, observando os
homens da cidade que abriam a gaiola do gordo e o puxavam pelo braço
até que seu corpo inchado caiu no chão. Os cães caíram sobre ele
de imediato, arrancando pedaços de carne de seus ossos.
Arya
ouviu um dos cavaleiros rir.
- Aqui
está seu novo castelo, maldito bastardo Lannister - disse. - Um
tanto compacto para um cara como você, mas não se preocupe, a gente
enfia você lá dentro. - Ao seu lado estava sentado um prisioneiro,
carrancudo, com várias voltas de corda de cânhamo apertadas ao
redor dos pulsos. Alguns dos homens da cidade estavam atirando
esterco nele, mas o prisioneiro nem vacilava. - Vai apodrecer nessa
gaiola - seu captor gritava. - Os corvos vão comer seus olhos
enquanto nós gastamos todo este seu bom ouro Lannister! E quando os
corvos acabarem, vamos mandar o que sobrar de você ao seu maldito
irmão. Embora eu duvide que ele o reconheça.
O barulho
tinha acordado metade do Pêssego. Gendry enfiou-se ao lado de Arya
na janela, e Tom aproximou-se por trás deles, nu como no dia em que
nasceu.
- Que
diabo de gritaria é essa? - Limo protestou da cama. - Um homem tá
tentando dormir um pouco, diabos!
- Onde
está o Barba-Verde? - perguntou Tom.
- Na cama
com a Tanásia - disse o Limo. - Por quê?
- E
melhor ir atrás dele. E do Arqueiro também. O Caçador Louco
voltou, com mais um homem para as gaiolas.
-
Lannister - disse Arya. - Eu ouvi-o dizer Lannister.
- Pegaram
o Regicida? - quis saber Gendry.
Lá
embaixo, na praça, uma pedra atingiu o cativo no rosto, obrigando-o
a virar a cabeça. Não é o Regicida, pensou Arya quando viu seu
rosto. Os deuses tinham ouvido as suas preces, afinal.
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