Os
tambores marcavam um ritmo de batalha enquanto o Vitória de Ferro
precipitava-se adiante, rompendo com o esporão as agitadas águas
verdes. O navio menor, à sua frente, virava de bordo, chicoteando o
mar com os remos. Rosas agitavam-se em seus estandartes; à proa e à
popa uma rosa branca num brasão vermelho, no topo do mastro uma
dourada num campo tão verde quanto a grama. O Vitória de Ferro
varreu-lhe o flanco com tanta força que metade do destacamento de
abordagem perdeu o equilíbrio. Remos se partiram e fizeram-se em
lascas, doce música para os ouvidos do capitão.
Saltou
sobre o talabardão, caindo no convés embaixo, com o manto dourado
tremulando atrás de si. As rosas brancas recuaram, como os homens
faziam sempre que viam Victarion Greyjoy armado e couraçado, de
rosto escondido atrás do elmo em forma de lula gigante. Seguravam
espadas, lanças e machados, mas nove em dez não trazia armadura, e
o décimo tinha apenas uma camisa de escamas cosidas umas às outras.
Estes não são homens de ferro, pensou Victarion. Ainda têm medo de
se afogar.
-
Peguem-no! - gritou um homem. - Está sozinho!
- VENHAM!
- rugiu em resposta. - Venham me matar, se conseguirem.
Os
guerreiros rosados convergiram de todos os lados, com aço cinzento
nas mãos e terror por trás dos olhos. Seu medo era tão palpável
que Victarion conseguia saboreá-lo. Golpeou à esquerda e à
direita, decepando o braço do primeiro homem pelo cotovelo e abrindo
uma grande fenda no ombro do segundo. O terceiro enterrou o machado
no macio pinho do escudo de Victarion, que o empurrou contra o rosto
do idiota, derrubou-o e o matou quando tentou se levantar. Enquanto
lutava para libertar o machado das costelas do morto, uma lança o
atingiu entre as omoplatas. Foi como se alguém lhe tivesse dado uma
palmada nas costas. Victarion rodopiou e atirou o machado contra a
cabeça do Lanceiro, sentindo o impacto no braço quando o aço
cortou, com estrondo, elmo, cabelos e crânio. O homem vacilou
durante meio segundo, até o capitão de ferro libertar o aço e
empurrar o cadáver, que cambaleou convés afora, sem força nos
membros, parecendo mais bêbado do que morto.
A essa
altura seus nascidos no ferro já o tinham seguido até o convés do
dracar quebrado. Ouviu Wulfe Uma-Orelha soltar um uivo quando se
lançou ao trabalho, vislumbrou Ragnor Pyke com sua cota de malha
enferrujada, viu Nute, o Barbeiro, fazer um machado de arremesso
rodopiar pelo ar e atingir um homem no peito. Victarion matou outro
homem, e depois mais um. Teria matado um terceiro, mas Ragnor o
abateu primeiro.
- Bom
golpe - berrou-lhe Victarion.
Quando se
virou em busca da próxima vítima do seu machado, viu o capitão do
outro lado do convés. Tinha o sobretudo branco manchado de sangue e
tripas, mas Victarion conseguia distinguir as armas que trazia no
peito, a rosa branca dentro de seu brasão vermelho. O homem
ostentava o mesmo símbolo no escudo, num fundo branco com uma
moldura ameiada de vermelho.
- Você!
- gritou o capitão de ferro através da carnificina. - Você, o da
rosa! Seria você o senhor de Escudossul?
O outro
ergueu a viseira para mostrar um rosto sem barba.
- Seu
filho e herdeiro, Sor Talbert Serry. E quem é você, lula?
- Sua
morte - Victarion investiu contra ele.
Serry
saltou para defrontá-lo. Sua espada era de bom aço forjado em
castelo, e o jovem cavaleiro a fazia cantar. Seu primeiro golpe foi
baixo, e Victarion o afastou com o machado. O segundo atingiu o
capitão de ferro no elmo antes que tivesse tempo de erguer o escudo.
Victarion respondeu com um golpe lateral de machado. O escudo de
Serry interpôs-se. Voaram lascas de madeira, e a rosa branca
fendeu-se de cima a baixo com um belo e penetrante crac. A espada do
jovem cavaleiro bateu-lhe na coxa, uma, duas, três vezes, gritando
contra o aço. Este rapaz é rápido, compreendeu o capitão de
ferro. Atingiu o rosto de Serry com o escudo e o fez cambalear para
trás, de encontro ao talabardão. Victarion ergueu o machado e pôs
todo seu peso no golpe, para rasgar o rapaz do pescoço às virilhas,
mas Serry rodopiou para longe. A cabeça do machado esmagou-se contra
a amurada, fazendo voar lascas, e ficou presa ali quando tentou
libertá-la. O convés moveu-se sob seus pés, e o homem de ferro
caiu sobre um joelho.
Sor
Talbert deitou fora o escudo quebrado e lançou um corte vertical com
a espada. O escudo de Victarion tinha feito metade da rotação
quando tropeçara. Apanhou a lâmina de Serry com um punho de ferro.
Aço articulado foi esmagado, e uma punhalada de dor o fez soltar um
grunhido, mas Victarion aguentou.
- Eu
também sou rápido, rapaz - disse enquanto arrancava a espada das
mãos do cavaleiro e a atirava ao mar.
Os olhos
de Sor Talbert esbugalharam-se.
- A minha
espada...
Victarion
atingiu o rapaz na garganta com um punho ensanguentado.
- Vá
buscá-la - disse, forçando-o a cair de costas, por cima da amurada,
para dentro da água manchada de sangue.
Com
aquilo conseguiu uma pausa para soltar o machado. As rosas brancas
recuavam diante da maré de ferro. Alguns tentavam fugir para dentro
do navio, enquanto outros gritavam por trégua. Victarion sentia
sangue quente escorrer por seus dedos, por baixo da cota de malha, do
couro e do aço articulado, mas isso não era nada. Do outro lado do
mastro, um espesso nó de inimigos continuava lutando, resistindo,
ombro contra ombro, num círculo. Aqueles pelo menos são homens.
Preferem morrer a se render. Victarion concederia a alguns esse
desejo. Bateu no escudo com o machado e avançou sobre eles.
O Deus
Afogado não esculpira Victarion Greyjoy para lutar com palavras em
assembleias de homens livres, nem para combater inimigos furtivos e
dissimulados em pântanos intermináveis. Era para aquilo que fora
posto na terra; para avançar vestido de aço com um machado rubro a
gotejar na mão, oferecendo a morte a cada golpe.
Atacaram-no
pela frente e pelas costas, mas, pelo dano que lhe causaram, as
espadas bem podiam ter sido chibatas de salgueiro. Não havia lâmina
capaz de atravessar o aço pesado de Victarion Greyjoy, e ele não
dava aos inimigos tempo suficiente para encontrar os pontos fracos
nas juntas, onde apenas cota de malha e couro o protegiam. Que três
homens o assaltassem, ou quatro, ou cinco; não fazia diferença.
Matava-os um de cada vez, confiando no aço para protegê-lo dos
outros. Quando um inimigo caía, direcionava sua fúria para o
seguinte.
O último
homem a enfrentá-lo devia ter sido um ferreiro; os ombros pareciam
os de um touro, e um deles era muito mais musculoso do que o outro.
Sua armadura era uma brigantina tachonada e um boné de couro
fervido. O único golpe que deu completou a destruição do escudo de
Victarion, mas a estocada que este atirou em resposta abriu-lhe a
cabeça em duas. Seria bom se pudesse lidar com Olho de Corvo com
essa simplicidade. Quando voltou a libertar o machado, o crânio do
ferreiro pareceu rebentar. Osso, sangue e cérebro saltaram para todo
lado, e o cadáver caiu para a frente, contra suas pernas. Tarde
demais para suplicar por trégua, pensou Victarion enquanto se
desenredava do morto.
A essa
altura, o convés encontrava-se escorregadio sob seus pés, e os
mortos e moribundos jaziam em pilhas por todos os lados. Deitou o
escudo fora e encheu os pulmões de ar.
- Senhor
capitão - ouviu o Barbeiro dizer ao seu lado - o dia é nosso.
A toda
volta o mar estava cheio de navios. Alguns ardiam, outros afundavam,
outros tinham sido feitos em lascas. Entre os cascos, a água estava
espessa como guisado, cheia de cadáveres, galhos quebrados e homens
agarrados aos destroços. A distância, meia dúzia dos dracares dos
homens do sul corria de volta ao Vago. Podem ir, pensou Victarion,
que contem a história. Depois de um homem virar as costas e fugir da
batalha, deixava de ser um homem.
Seus
olhos ardiam do suor que neles entrara durante a luta. Dois de seus
remadores ajudaram-no a desprender o elmo da lula gigante para que
pudesse tirá-lo. Victarion limpou a testa.
- Aquele
cavaleiro - resmungou - o cavaleiro da rosa branca. Algum de vocês o
puxou para fora? - o filho de um senhor valeria um resgate
considerável; do pai, se Lorde Serry tivesse sobrevivido àquele
dia. Ou talvez de seu suserano em Jardim de Cima.
Mas
nenhum de seus homens tinha visto o que acontecera ao cavaleiro
depois de cair navio afora. O mais provável era que tivesse se
afogado.
- Que se
banqueteie tão bem quanto lutou nos salões aquáticos do Deus
Afogado - embora os homens das Ilhas Escudo chamassem a si mesmos
marinheiros, cruzavam os mares aterrorizados e seguiam levemente
vestidos para a batalha, com medo do afogamento. O jovem Serry tinha
sido diferente. Um homem corajoso, pensou Victarion. Quase um nascido
no ferro .
Entregou
o navio capturado a Ragnor Pyke, nomeou uma dúzia de homens para
tripulá-lo e subiu de volta para o seu Vitória de Ferro.
- Retire
as armas e armaduras dos cativos e cuide de seus ferimentos - disse a
Nute, o Barbeiro. - Atire os moribundos ao mar. Se algum pedir
misericórdia, corte-lhe a garganta primeiro - só sentia desprezo
por homens assim; era melhor afogar-se em água do mar do que em
sangue. - Quero uma contagem dos navios que ganhamos e de todos os
cavaleiros e fidalgos que capturamos. Também quero seus estandartes
- um dia os penduraria em seu salão, para que quando se tornasse
velho e frágil pudesse recordar todos os inimigos que matara quando
era jovem e forte.
- Será
feito - Nute abriu um sorriso. - É uma bela vitória.
Sim,
pensou, uma grande vitória para o Olho de Corvo e seus feiticeiros.
Os outros capitães voltariam a gritar o nome do irmão quando as
notícias chegassem a Escudorroble. Euron seduzira-os com sua língua
fluente e olho sorridente, e prendera-os à sua causa com o saque de
meia centena de terras distantes; ouro e prata, armaduras
ornamentadas, espadas curvas com botões de punho dourados, punhais
de aço valiriano, peles listradas de tigres e de gatos malhados,
manticoras de jade e antigas esfinges valirianas, arcas de
noz-moscada, cravinho e açafrão, presas de marfim e chifres de
unicórnio, penas verdes, cor de laranja e amarelas vindas do Mar do
Verão, rolos de boa seda e cintilante samito... E, no entanto, tudo
isso era quase nada comparado com isto. Agora, deu-lhes conquista, e
são seus de uma vez por todas, pensou o capitão. O sabor que tinha
na língua era amargo. Essa vitória foi minha, não dele. Onde
estava? Em Escudorroble, descansando num castelo. Roubou-m e a esposa
e o trono, e agora me rouba a glória.
A
obediência era natural para Victarion Greyjoy; nascera nela.
Crescendo até a idade adulta à sombra dos irmãos, seguira
obedientemente Balon em tudo que fizera. Mais tarde, quando os filhos
de Balon nasceram, fora aos poucos aceitando a ideia de um dia também
se ajoelhar diante deles, quando um tomasse o lugar do pai na Cadeira
de Pedra do Mar. Mas o Deus Afogado chamara Balon e os filhos para
seus salões aquáticos, e Victarion não conseguia se dirigir a
Euron como “rei” sem sentir o gosto da bílis na garganta.
O vento
tornava-se mais fresco, e sentia uma sede furiosa. Depois de uma
batalha sempre desejava vinho. Entregou o convés a Nute e desceu. Em
sua apertada cabine de popa, foi encontrar a mulher morena, úmida e
pronta; a batalha talvez também tivesse aquecido seu sangue. Tomou-a
por duas vezes, em rápida sucessão. Quando terminaram, havia sangue
espalhado por seus seios, coxas e barriga, mas era sangue dele,
proveniente do golpe que tinha na palma da mão. A morena lavou o
ferimento com vinagre fervido.
- O plano
era bom, admito - disse Victarion quando ela se ajoelhou ao seu lado.
- O Vago agora está aberto para nós, como estava antigamente - o
rio era indolente, largo, lento e traiçoeiro com recifes e bancos de
areia. A maior parte das embarcações marítimas não se atrevia a
navegar para lá de Jardim de Cima, mas os dracares, com seus baixos
calados, podiam subir até Pontamarga. Nos tempos antigos, os
nascidos no ferro tinham velejado ousadamente pela estrada do rio e
feito pilhagens ao longo de todo o Vago e de seus afluentes... Até
que os reis da mão verde armaram os pescadores das quatro pequenas
ilhas ao largo da foz do Vago e os nomearam seus escudos.
Tinham se
passado dois mil anos, mas nas torres de vigia ao longo de suas
costas escarpadas os grisalhos ainda mantinham a antiga vigília. Ao
primeiro vislumbre de dracares, os velhos acendiam suas fogueiras
sinaleiras, e o chamado saltava de monte em monte e de ilha em ilha.
Medo! Inimigos! Atacantes! Atacantes! Quando os pescadores viam as
fogueiras ardendo nos locais altos, punham de lado as redes e os
arados e pegavam nas espadas e nos machados. Seus senhores saíam em
corrida dos castelos, servidos por cavaleiros e homens de armas.
Berrantes de guerra ecoavam sobre as águas, vindos de Escudoverde e
Escudogris, de Escudorroble e Escudossul, e seus dracares deslizavam
de enseadas de pedra coberta de musgo ao longo das costas, com os
remos relampejando, enquanto atravessavam em nuvens os estreitos e
iam selar o Vago e perseguir e assolar os atacantes rio acima até
sua destruição.
Euron
mandara Torwold Dente-Castanho e o Remador Vermelho para o Vago com
uma dúzia de dracares rápidos, para que os senhores das Ilhas
Escudo partissem em perseguição. Quando a frota principal chegara,
só restava um punhado de guerreiros para defender as ilhas
propriamente ditas. Os nascidos no ferro tinham vindo na maré do fim
da tarde, para que o clarão do poente os mantivesse escondidos dos
grisalhos nas torres de vigia até ser tarde demais. Tinham o vento
nas costas, como estivera ao longo de toda a viagem desde Velha Wyk.
Murmurava-se na frota que os feiticeiros de Euron tinham mais do que
muito a ver com isso, que o Olho de Corvo apaziguava o Deus da
Tempestade com sacrifícios de sangue. De que outra forma se
atreveria a velejar até tão longe para oeste, em vez de seguir a
linha da costa como era costume?
Os
nascidos no ferro encalharam seus dracares nas praias de cascalho e
jorraram para o crepúsculo púrpura com aço a cintilar nas mãos. A
essa altura, as fogueiras já ardiam nos locais elevados, mas poucos
tinham ficado para trás para pegar em armas. Escudogris, Escudoverde
e Escudossul caíram antes de o sol nascer, Escudorroble resistiu
mais meio dia. E quando os homens dos Quatro Escudos desistiram da
perseguição movida a Torwold e ao Remador Vermelho e viraram para
jusante, foram encontrar a Frota de Ferro à sua espera na foz do
Vago.
- Tudo
aconteceu como Euron disse - Victarion dirigiu-se à morena enquanto
ela enfaixava sua mão com linho. - Seus feiticeiros devem tê-lo
visto - o irmão tinha três a bordo do Silêncio, confidenciara
Quellon Humble num murmúrio. - Mas ainda precisa de mim para travar
suas batalhas - Victarion insistiu. - os feiticeiros podem ser muito
bons, mas é o sangue e o aço que vencem as guerras - o vinagre fez
o ferimento doer mais do que nunca. Afastou a mulher com um empurrão
e fechou o punho, carrancudo. - Traga-me vinho.
Bebeu na
escuridão, meditando sobre o irmão. Se não der o golpe com minha
própria mão, serei mesmo assim um fratricida? Não havia homem que
Victarion temesse, mas a maldição do Deus Afogado o fazia hesitar.
Se for outro a abatê-lo às minhas ordens, seu sangue manchará
também minhas mãos? Aeron Cabelo-Molhado saberia a resposta, mas o
sacerdote estava em algum lugar nas Ilhas de Ferro, ainda com
esperança de amotinar os nascidos no ferro contra seu rei
recém-coroado. Nute, o Barbeiro, é capaz de barbear um homem com um
machado arremessado a vinte metros de distância. E nenhum dos
mestiços de Euron conseguiria resistir a Wulfe Uma-Orelha ou a
Andrik, o Sério. Qualquer um deles poderia fazê-lo. Mas sabia que o
que um homem pode fazer e o que quer fazer eram duas coisas
diferentes.
“As
blasfêmias de Euron farão cair a fúria do Deus Afogado sobre todos
nós” profetizara Aeron, ainda em Velha Wyk. “Temos de detê-lo,
irmão. Ainda somos do sangue de Balon, não somos?”
“Ele
também é” Victarion respondera. "Não gosto disto mais do
que você, mas Euron é o rei. Sua assembleia de homens livres o
elegeu, e foi você mesmo quem lhe pôs na cabeça a coroa de madeira
trazida pelo mar!”
“Eu pus
a coroa em sua cabeça", dissera o sacerdote, com algas pingando
dos cabelos, “e de bom grado a arrancaria e coroaria você no
lugar. Só você tem força suficiente para lutar contra ele.”
“Foi o
Deus Afogado que o elevou” Victarion protestara. “Que seja o Deus
Afogado a derrubá-lo.”
Aeron
lançara-lhe um olhar sinistro, aquele que tinha fama de tornar
imprópria a água de poços e deixar estéreis as mulheres.
“Não
foi o deus que falou. Sabe-se que Euron tem feiticeiros e magos
malignos naquele seu navio vermelho. Eles jogaram algum feitiço
sobre nós para não conseguirmos ouvir o mar. Os capitães e os reis
estavam bêbados com toda aquela conversa de dragões.”
“Bêbados,
ou com medo daquele berrante. Ouviu o som que ele fez. Mas não
importa. Euron é o nosso rei.”
“Meu,
não”, o sacerdote declarara. “O Deus Afogado ajuda os valentes,
não aqueles que se abrigam dentro dos navios quando a tempestade
chega. Se não quer se mexer para remover Olho de Corvo da Cadeira de
Pedra do Mar, preciso eu mesmo pôr mãos nesta obra.”
“Como?
Não tem navios, não tem espadas.”
“Tenho
a minha voz” o sacerdote respondeu,“e o deus está comigo. Minha
é a força do mar, uma força à qual Olho de Corvo não pode
esperar resistir. As ondas podem se quebrar na montanha, mas
continuam a vir, onda atrás de onda, e no fim só restarão seixos
onde esteve a montanha. E em pouco tempo até os seixos serão
varridos para longe, para formar o chão sob o mar por toda a
eternidade.”
“Seixos?"
Victarion resmungou.“Está louco se pensa em derrubar Olho de Corvo
com conversas sobre ondas e seixos.”
“Os
nascidos no ferro serão as ondas” Cabelo-Molhado retrucou. “Não
os grandes e senhoriais, mas o povo simples, os que lavram a terra e
os que pescam no mar. Os capitães e os reis fizeram subir Euron, mas
o povo o derrubará. Irei a Grande Wyk, a Harlaw, a Montrasgo, à
própria Pyke. Minhas palavras serão ouvidas em cada vila e aldeia.
Nenhum homem sem deus pode se sentar na Cadeira de Pedra do Mar!”
balançou a cabeça hirsuta e penetrou a passos largos na noite.
Quando o sol se ergueu no dia seguinte, Aeron Greyjoy desaparecera da
Velha Wyk. Nem mesmo seus afogados sabiam para onde. Dizia-se que
Olho de Corvo se limitara a rir quando o informaram.
Mas,
embora o sacerdote tivesse desaparecido, seus terríveis avisos
permaneceram. Victarion deu por si lembrando-se também das palavras
de Baelor Blacktyde. “Balon era louco, Aeron é mais louco ainda, e
Euron é o mais louco de todos” O jovem senhor tentara zarpar para
casa após a assembleia de homens livres, recusando-se a aceitar
Euron como suserano. Mas a Frota de Ferro fechara a baía, pois o
hábito da obediência estava profundamente inculcado em Victarion
Greyjoy, e Euron usava a coroa de madeira trazida pelo mar. O Voador
da Noite fora apreendido, e Lorde Blacktyde, acorrentado, foi
entregue ao rei. Os mudos e mestiços de Euron tinham-no cortado em
sete partes para alimentar os sete deuses das terras verdes que ele
adorara.
Como
recompensa por seu leal serviço, o recém-coroado rei dera a
Victarion a morena, roubada de algum mercador de escravos a caminho
de Lys.
“Não
quero nenhuma de suas sobras”, dissera desdenhosamente ao irmão,
mas quando Olho de Corvo declarou que a mulher seria morta se não a
aceitasse, fraquejou. A língua dela tinha sido arrancada, mas exceto
por este pormenor estava intacta, e era também bela, com uma pele
tão castanha quanto teca oleada. Mas, por vezes, quando a olhava,
surpreendia-se lembrando da primeira mulher que o irmão lhe dera,
para fazer dele um homem.
Victarion
quis voltar a usar a morena, mas achou-se incapaz.
- Vá
buscar outro odre de vinho - disse-lhe - e depois saia - quando ela
regressou com um odre de tinto amargo, o capitão o levou para o
convés, onde podia respirar o ar limpo do mar. Bebeu metade do odre
e despejou o resto no mar, para todos os homens que tinham morrido.
O Vitória
de Ferro permaneceu durante horas ao largo da foz do Vago. Enquanto a
maior parte da Frota de Ferro se punha a caminho de Escudorroble,
Victarion manteve Luto, Lorde Dagon, Vento de Ferro e Desgraça da
Donzela ao seu redor como retaguarda. Içaram sobreviventes do mar e
viram Mão-Dura afundar-se lentamente, arrastado para o fundo pelo
destroço que abalroara, Quando o navio desapareceu sob as águas,
Victarion tinha a contagem que havia pedido. Perdera seis navios e
capturara trinta e oito.
- Servirá
- disse a Nute. - Aos remos. Regressemos à Vila de Lorde Flewett.
Os
remadores curvaram as costas em direção a Escudorroble, e o capitão
de ferro voltou para baixo.
- Podia
matá-lo - disse à morena. - Embora seja um grande pecado matar um
rei, e um pecado pior matar um irmão - franziu as sobrancelhas. -
Asha devia ter me dado sua voz - como ela pôde esperar conquistar os
capitães e os reis com suas pinhas e nabos? O sangue de Balon
corre-lhe nas veias, mas não deixa de ser uma mulher. Fugira após a
assembleia de homens livres. Na noite em que a coroa de madeira
trazida pelo mar fora colocada na cabeça de Euron, ela e sua
tripulação tinham se dissipado. Uma pequena parte de Victarion
sentia-se satisfeita com isso. Se a garota mantiver a cabeça no
lugar, casará com algum lorde nortenho e viverá com ele em seu
castelo, longe do mar e de Euron Olho de Corvo.
- A Vila
de Lorde Hewett, Senhor Capitão - gritou um tripulante.
Victarion
ergueu-se. O vinho abafara o latejar em sua mão. Talvez a levasse ao
meistre de Hewett para que a visse, se o homem não tivesse sido
morto. Regressou ao convés no momento em que dobravam um
promontório. O modo como o castelo de Lorde Hewett se erguia por
cima do porto fê-lo se lembrar de Fidalporto, embora aquela vila
fosse duas vezes maior. Uma vintena de dracares patrulhava as águas
além da enseada, com a lula gigante dourada tremulando em suas
velas. Centenas de outros navios encontravam-se encalhados ao longo
das praias de cascalho e içados para os pontões que cercavam o
porto. Num cais de pedra viam-se três grandes cocas e uma dúzia de
outras menores embarcando saque e provisões. Victarion deu ordens
para o Vitória de Ferro lançar âncora.
- Mande
preparar um bote.
A vila
parecia estranhamente parada quando se aproximaram. A maior parte das
lojas e casas tinha sido saqueada, como suas portas arrombadas e
janelas quebradas testemunhavam, mas só o septo fora passado no
archote. As ruas estavam atulhadas de cadáveres, todos eles com um
pequeno bando de gralhas-pretas prestando-lhes assistência. Um bando
de taciturnos sobreviventes deslocava-se entre eles, afastando as
aves negras e atirando os mortos para um carro, a fim de serem
enterrados. A ideia encheu Victarion de repugnância. Nenhum
verdadeiro filho do mar quereria apodrecer debaixo da terra. Como
encontraria os salões aquáticos do Deus Afogado para beber e
banquetear-se por toda a eternidade?
Silêncio
encontrava-se entre os navios por que passaram, O olhar de Victarion
foi atraído para sua figura de proa em ferro, a donzela sem boca,
com cabelos soprados pelo vento e braço estendido. Seus olhos de
madrepérola pareceram segui-lo. Ela tinha uma boca como qualquer
outra mulher, até Olho de Corvo costurá-la.
Ao se
aproximarem da costa, reparou numa fila de mulheres e crianças que
eram pastoreadas para o convés de uma das grandes cocas. Algumas
tinham as mãos atadas atrás das costas, e todas usavam laços de
corda de cânhamo em torno do pescoço.
- Quem
são? - perguntou aos homens que ajudaram a amarrar seu bote.
- Viúvas
e órfãos. Serão vendidos como escravos.
-
Vendidos? - não havia escravos nas Ilhas de Ferro, apenas servos. Um
servo estava obrigado a servir, mas não era um bem. Seus filhos
nasciam livres, desde que fossem entregues ao Deus Afogado. E os
servos nunca eram comprados ou vendidos em troca de ouro. Se um homem
não pagasse o preço de ferro por servos, não tinha nenhum. -
Deviam ser servas, ou esposas de sal - ele protestou.
- É por
decreto do rei - o homem respondeu.
- Os
fortes sempre tiraram dos fracos - Nute, o Barbeiro falou. - Servas
ou escravas, não tem importância. Seus homens não foram capazes de
defendê-las, portanto, agora são nossas, para fazermos com elas o
que quisermos.
O Costume
Antigo não é assim, podia ter dito, mas não houve tempo. Sua
vitória precedera-o, e os homens reuniam-se à sua volta para lhe
dar os parabéns. Victarion deixou-os adulá-lo, até que um se pôs
a elogiar a ousadia de Euron.
- É
ousado velejar longe da vista de terra, para que nenhuma notícia de
nossa aproximação chegasse a estas ilhas antes de nós - resmungou
- mas atravessar metade do mundo para ir caçar dragões, isto é
outra coisa - não esperou resposta e abriu caminho através da
aglomeração, dirigindo-se à fortaleza.
O castelo
de Lorde Hewett era pequeno, mas forte, com paredes espessas e
portões de carvalho com rebites que evocavam as antigas armas de sua
Casa, um brasão de carvalho com rebites de ferro sobre um fundo
ondulado de azul e branco. Mas era a lula gigante de Greyjoy que
flutuava agora no topo de suas torres de telhado verde, e finalmente
encontraram os grandes portões queimados e partidos. Nas ameias
caminhavam homens de ferro com lanças e machados, e também alguns
dos mestiços de Euron.
No pátio,
Victarion encontrou Gorold Goodbrother e o velho Drumm, conversando
em voz baixa com Rodrik Harlaw. Nute, o Barbeiro, soltou um grito ao
vê-los.
- Leitor
- gritou - por que a cara amarrada? Seus receios não serviram de
nada. O dia é nosso, e nossa é a recompensa!
A boca de
Lorde Rodrik franziu-se.
- Fala
destes rochedos? Os quatro juntos não chegam a fazer uma Harlaw.
Conquistamos umas tantas pedras, árvores e bugigangas, e a inimizade
da Casa Tyrell.
- As
rosas? - Nute soltou uma gargalhada. - Que rosa pode causar dano às
lulas gigantes das profundezas? Tiramos-lhes os escudos e fizemos
todos eles em pedaços. O que os protegerá agora?
-Jardim
de Cima - o Leitor respondeu. - Em breve, todo o poderio da Campina
será reunido contra nós, Barbeiro, e então pode ser que descubra
que há rosas com espinhos de aço.
Drumm
assentiu com a cabeça, com a mão no cabo de sua Rubra Chuva.
- Lorde
Tarly usa a espada Veneno do Coração, forjada em aço valiriano, e
está sempre na vanguarda Tyrell.
A ira de
Victarion estalou:
- Que
venha. Tornarei minha a espada dele, tal como seu antepassado tomou a
Rubra Chuva. Que venham todos, e que tragam também os Lannister. Um
leão pode ser bastante feroz em terra, mas no mar é a lula gigante
que tem o poder supremo - daria metade dos dentes pela chance de
experimentar o machado contra o Regicida ou o Cavaleiro das Flores.
Era este o tipo de batalha que compreendia. O fratricida era
amaldiçoado aos olhos dos deuses e dos homens, mas o guerreiro era
honrado e reverenciado.
- Não
tenha medo, Senhor Capitão - o Leitor disse. - Todos eles virão.
Sua Graça assim deseja. Por que outro motivo nos teria ordenado que
deixássemos voar os corvos de Hewett?
- Você
lê demais e não luta o suficiente - Nute interveio. - Seu sangue é
leite - mas o Leitor fingiu não ouvir.
Um festim
tempestuoso desenrolava-se quando Victarion entrou no salão.
Nascidos no ferro enchiam as mesas, bebendo, gritando e empurrando-se
uns aos outros, vangloriando-se dos homens que tinham matado, dos
feitos que tinham realizado, daquilo que tinham conquistado. Muitos
estavam ornamentados com objetos pilhados. Lucas Mão-Esquerda Codd e
Quellon Humble tinham arrancado tapeçarias das paredes para lhe
servirem de manto. Germund Botley usava um fio de pérolas e granadas
sobre sua dourada placa de peito Lannister. Andrik, o Sério, andava
por ali cambaleando com uma mulher debaixo de cada braço; embora
continuasse sério, tinha anéis em todos os dedos. Em vez de
travessas esculpidas em velho pão bolorento, os capitães comiam de
bandejas de prata maciça.
O rosto
de Nute, o Barbeiro, escureceu de fúria enquanto olhava em volta.
- Olho de
Corvo manda enfrentarmos os dracares enquanto seus homens tomam os
castelos e as aldeias e arrecadam todo o saque e as mulheres. Que foi
que deixou para nós?
- Nós
temos a glória.
- A
glória é boa - Nute respondeu - mas o ouro é melhor.
Victarion
encolheu os ombros.
- Olho de
Corvo diz que teremos Westeros inteiro. Árvore, Vilavelha, Jardim de
Cima... Será ali que encontrará seu ouro. Mas chega de conversas.
Tenho fome.
Por
direito de sangue, Victarion podia ter exigido um lugar no estrado,
mas não queria comer com Euron e suas criaturas. Em vez disso,
escolheu um lugar junto a Ralf, o Coxo, capitão do Lorde Quellon.
- Uma
grande vitória, Senhor Capitão - Coxo o cumprimentou. - Uma vitória
merecedora de uma senhoria. Devia ficar com uma ilha.
Lorde
Victarion. Sim, e por que não? Podia não ser a Cadeira de Pedra do
Mar, mas seria alguma coisa.
Hotho
Harlaw estava do outro lado da mesa, chupando carne de um osso.
Deitou-o fora com um piparote e dobrou-se para a frente.
- O
Cavaleiro vai ficar com Escudogris. Meu primo. Sabia?
- Não -
Victarion olhou para o outro lado do salão, para onde Sor Harras
Harlaw bebia vinho de uma taça dourada; um homem alto, de rosto
comprido e austero. - Por que Euron daria uma ilha àquele?
Hotho
ergueu sua taça de vinho vazia e uma pálida jovem com um vestido de
veludo azul e renda dourada voltou a enchê-la.
- O
Cavaleiro tomou Vila Severa sozinho. Plantou o estandarte junto ao
castelo e desafiou os Grimm a enfrentá-lo. Um assim fez, depois
outro, e outro a seguir. Matou-os todos... Bem, quase, dois se
renderam. Quando o sétimo homem caiu, o septão de Lorde Grimm
decidiu que os deuses tinham falado e entregou o castelo - Hotho
soltou uma gargalhada. - Ele vai ser Senhor de Escudogris, e que lhe
faça bom proveito. Com ele longe, sou eu o herdeiro do Leitor -
bateu no peito com a taça de vinho. - Hotho, o Corcunda, Senhor de
Harlaw.
- Sete,
você quer dizer - Victarion perguntou a si mesmo como Anoitecer se
aguentaria contra o seu machado. Nunca lutara contra um homem armado
com uma lâmina de aço valiriano, embora tivesse espancado muitas
vezes o jovem Harras Harlaw quando eram jovens. Ainda rapaz, Harlaw
tinha sido um grande amigo do filho mais velho de Balon, Rodrik, que
morrera à sombra das muralhas de Guardamar.
O
banquete era bom. O vinho, dos melhores, e havia boi assado,
malpassado e ensanguentado, e também pato recheado e baldes de
caranguejo fresco. O Senhor Comandante não deixou de reparar que as
garotas que serviam usavam finas lãs e faustosos veludos. Tomou-as
por ajudantes de cozinha vestidas com as roupas da Senhora Hewett e
de suas damas, até que Hoth lhe disse que eram a Senhora Hewett e
suas damas. Eram oito: sua senhoria, ainda bem atraente, embora
tivesse engordado, e sete mulheres mais jovens, com idade entre dez e
vinte e cinco anos, suas filhas e noras.
Lorde
Hewett em pessoa estava sentado em seu lugar habitual sobre o
estrado, vestido com todos os seus enfeites heráldicos. Os braços e
as pernas tinham sido atados à cadeira, e um enorme rabanete branco
fora enfiado entre seus dentes, para que não pudesse falar... embora
pudesse ver e ouvir, Olho de Corvo ocupara o lugar de honra à
direita de sua senhoria. Tinha uma garota bonita e roliça, de
dezessete ou dezoito anos, no colo, descalça e desgrenhada, com os
braços em volta de seu pescoço.
- Quem é
aquela? - Victarion perguntou aos homens que o rodeavam.
- A
bastarda de sua senhoria - disse Hotho com uma gargalhada. - Antes de
Euron tomar o castelo, era obrigada a servir os outros à mesa e a
fazer as refeições com os criados.
Euron
levou os lábios azuis ao pescoço da garota, ela soltou um risinho e
sussurrou-lhe qualquer coisa ao ouvido. Sorrindo, ele voltou a
beijar-lhe a garganta. A pele branca da garota estava coberta de
marcas vermelhas onde a boca dele estivera; formavam um colar rosado
em volta de seu pescoço e ombros. Outro sussurro ao ouvido, e desta
vez Olho de Corvo riu alto, após o que bateu com a taça de vinho na
mesa, pedindo silêncio.
- Boas
senhoras - gritou para suas criadas bem-nascidas - Falia está
preocupada com seus belos vestidos. Não quer vê-los manchados de
gordura, vinho e apalpadelas de dedos sujos, visto que lhe prometi
que podia escolher sua roupa entre os seus guarda-roupas depois do
banquete. Portanto, o melhor é que se dispam.
Um rugido
de gargalhadas varreu o grande salão, e o rosto de Lorde Hewett
ficou tão vermelho que Victarion julgou que sua cabeça rebentaria.
As mulheres não tiveram escolha exceto obedecer. A mais nova chorou
um pouco, mas a mãe a confortou e ajudou a desfazer os nós costas
abaixo. Depois, continuaram a servir como antes, movendo-se entre as
mesas com jarros cheios de vinho, para encher todas as taças vazias,
só que agora o faziam nuas.
Ele
envergonha Hewett como outrora me envergonhou, pensou o capitão,
recordando-se do modo como a esposa soluçara enquanto ele a
espancava. Sabia que os habitantes dos Quatro Escudos se casavam
frequentemente entre si, tal como os nascidos no ferro. Uma daquelas
criadas nuas podia perfeitamente ser esposa de Sor Talbert Serry. Uma
coisa era matar um inimigo, outra era desonrá-lo. Victarion fez um
punho. Tinha a mão ensanguentada onde o ferimento empapara o linho.
No
estrado, Euron empurrou sua cadela para o lado e trepou para cima da
mesa. Os capitães puseram-se a bater com as taças na mesa e os pés
no chão.
- EURON!
- gritavam. - EURON! EURON! EURON! - era de novo a assembleia de
homens livres.
- Jurei
dar Westeros a vocês - Olho de Corvo falou quando o tum ulto
esmoreceu - e aqui têm um pouco dele para saborear. Um pedaço, nada
mais do que isso... Mas nos banquetearemos antes do cair da noite! -
os archotes ao longo das paredes soltavam um brilho vivo, e ele
também, lábios azuis, olho azul e tudo o mais. - O que a lula
gigante agarra não larga. Estas ilhas outrora foram nossas, e agora
são de novo... Mas precisamos de homens fortes para defendê-las.
Portanto, erga-se, Sor Harras Harlaw, Senhor de Escudogris - o
Cavaleiro pôs-se em pé, com a mão apoiada no botão de pedra da
lua da Anoitecer. - Erga-se, Andrik, o Sério, Senhor de Escudossul -
Andrik empurrou suas mulheres para o lado e se levantou de um salto,
como uma montanha que se erguesse subitamente do mar. - Erga-se,
Maron Volmark, Senhor de Escudoverde - um rapazinho imberbe de
dezesseis anos, Volmark pôs-se hesitantemente em pé, parecendo um
senhor dos coelhos. - E erga-se, Nute, o Barbeiro, Senhor de
Escudorroble.
Os olhos
de Nute puseram-se cautelosos, como se temesse ser alvo de uma
brincadeira cruel.
- Um
lorde? - grasnou.
Victarion
tinha esperado que Olho de Corvo entregasse as senhorias às suas
criaturas, Stonehand, Remador Vermelho e Lucas Mão-Esquerda Codd. Um
rei tem de ser pródigo, tentou dizer a si mesmo, mas outra voz
sussurrou: Os presentes de Euron estão envenenados. Quando revirou a
ideia na cabeça, viu com clareza. O Cavaleiro era o herdeiro
escolhido pelo Leitor, e Andrik, o Sério, o forte braço direito de
Dunstan Drumm, Volmark é um rapaz inexperiente, mas tem em si o
sangue do Harren Negro por via materna. E o Barbeiro...
Victarion
o agarrou pelo antebraço.
- Recuse!
Nute
olhou para ele como se tivesse enlouquecido.
-
Recusar? Terras e uma senhoria? Irá fazer de mim um senhor? -
libertou o braço com um puxão e pôs-se em pé, gozando os vivas,
E agora
me rouba os homens, pensou Victarion.
Rei Euron
chamou pela Senhora Hewett, para que lhe trouxesse uma nova taça de
vinho e a ergueu bem alto acima da cabeça.
-
Capitães e reis, ergam as taças aos Senhores dos Quatro Escudos! -
Victarion bebeu com os outros. Não há vinho mais doce do que aquele
roubado de um inimigo. Alguém lhe dissera aquilo um dia. O pai, ou o
irmão Balon. Um dia beberei o seu vinho, Olho de Corvo, e roubarei
de você tudo que lhe é querido. Mas haveria alguma coisa que fosse
querida a Euron?
- Amanhã
nos prepararemos de novo para zarpar - o rei dizia. - Encham as
barricas de novo com água de nascente, levem todas as sacas de
cereais e barris de carne de vaca e todas as ovelhas e cabras que
possamos transportar. Os feridos que ainda estiverem suficientemente
vigorosos para puxar um remo remarão. Os outros ficarão aqui, para
ajudar a manter estas ilhas nas mãos de seus novos senhores. Torwold
e Remador Vermelho regressarão em breve com mais provisões. Nossos
conveses irão feder a porcos e galinhas na viagem para leste, mas
voltaremos com dragões.
- Quando?
- a voz era de Lorde Rodrik. - Quando regressaremos, Vossa Graça?
Dentro de um ano? Três anos? Cinco? Seus dragões estão a um mundo
de distância, e o outono chegou - o Leitor avançou, enumerando
todos os perigos. - Galés defendem os Estreitos Redwyne. A costa
dornesa é seca e estéril, quatrocentas léguas de redemoinhos,
falésias e baixios escondidos, quase desprovida de um
desembarcadouro seguro seja onde for. Depois, esperam-nos os Degraus,
com suas tempestades e seus ninhos de piratas lisenos e myranos. Se
um milhar de navios se fizer à vela, trezentos poderão chegar ao
outro lado do mar estreito... E então, o quê? Lys não nos dará as
boas-vindas, e Volantis tampouco. Onde encontrará água doce e
alimentos? A primeira tempestade nos dispersará por metade da terra.
Um
sorriso brincou nos lábios azuis de Euron.
- Eu sou
a tempestade, senhor. A primeira e a última. Levei Silêncio em
viagens mais longas do que esta, e em viagens muito mais perigosas.
Esquece-se? Naveguei pelo Mar Fumegante e vi Valíria.
Todos os
presentes sabiam que a Destruição ainda reinava em Valíria. Ali, o
próprio mar fervia e fumegava, e a terra fora invadida por demônios.
Dizia-se que qualquer marinheiro que sequer vislumbrasse as montanhas
de fogo de Valíria erguendo-se acima das ondas sofreria em breve uma
morte terrível, e, no entanto, Olho de Corvo estivera lá e
regressara.
- Ah,
viu? - perguntou o Leitor, muito suavemente.
O sorriso
azul de Euron eclipsou-se.
- Leitor
- Euron falou em meio ao silêncio - faria melhor se mantivesse o
nariz em seus livros.
Victarion
conseguia sentir o constrangimento no salão. Pôs-se em pé.
- Irmão
- trovejou. - Não respondeu às perguntas de Harlaw.
Euron
encolheu os ombros.
- O preço
dos escravos está subindo. Venderemos os nossos em Lys e Volantis.
Isto e o saque que capturamos aqui nos darão ouro suficiente para
comprar provisões.
- Agora
somos traficantes de escravos? - o Leitor questionou. - E para quê?
Dragões que nenhum dos presentes viu? Deveremos perseguir a fantasia
de um marinheiro bêbado qualquer até o longínquo fim da terra?
Suas
palavras geraram resmungos de assentimento.
- A Baía
dos Escravos é longe demais - gritou Ralf, o Coxo.
- E perto
demais de Valíria - gritou Quellon Humble. Fralegg, o Forte, disse:
- Jardim
de Cima é perto. Procuremos por dragões ali, digo eu. Da espécie
dourada! - Alvyn Sharp ecoou:
- Para
que navegar pelo mundo quando temos o Vago à nossa frente? - Ralf
Vermelho Stonehouse pôs-se em pé num salto:
-
Vilavelha é mais rica, e Árvore ainda mais. A frota Redwyne anda
longe. Só temos de estender a mão para colher a mais madura fruta
de Westeros.
- Fruta?
- o olho do rei parecia mais negro do que azul. - Só um covarde
rouba um fruto quando pode tomar o pomar.
- É a
Árvore que queremos - Ralf Vermelho retrucou, e outros homens o
acompanharam no grito. Olho de Corvo deixou-se varrer pelos gritos.
Então, saltou da mesa, agarrou sua cadela pelo braço e a arrastou
para fora do salão.
Fugiu
como um cão. O controle de Euron sobre a Cadeira de Pedra do Mar de
repente pareceu não estar tão firme como estivera momentos antes.
Eles não o seguirão até a Baía dos Escravos. Talvez não sejam
tão cães e tolos como temi. Aquilo era uma ideia tão animadora que
Victarion teve de empurrá-la para baixo. Esvaziou uma taça com o
Barbeiro, para lhe mostrar que não tinha má vontade por causa da
senhoria, mesmo tendo vindo da mão de Euron.
Lá fora,
o sol se pusera. A escuridão reunia-se para além das paredes, mas
dentro delas os archotes ardiam com um brilho alaranjado, e a fumaça
que soltavam concentrava-se sob as vigas do telhado como uma sombra
cinzenta. Bêbados puseram-se a dançar a dança dos dedos. A certa
altura, Lucas Mão-Esquerda Codd decidiu que desejava uma das filhas
de Lorde Hewett e a possuiu sobre a mesa enquanto as irmãs gritavam
e soluçavam.
Victarion
sentiu uma pancada no ombro. Um dos filhos mestiços de Euron estava
na sua frente, um garoto de dez anos com cabelos lanosos e a pele da
cor da lama.
- Meu pai
quer falar com você.
Victarion
ergueu-se, cambaleante. Era um homem grande, com uma vasta capacidade
para o vinho, mesmo assim bebera demais. Espanquei-a até a morte com
minhas próprias mãos, pensou, mas Olho de Corvo a matou quando se
enfiou nela. Eu não tive alternativa. Seguiu o pequeno bastardo para
fora do salão e pela espiral de uma escada de pedra acima. Os sons
da violação e da festança foram diminuindo à medida que subiam,
até restar apenas o suave raspar das botas na pedra,
Olho de
Corvo ocupara o quarto de Lorde Hewett com sua filha bastarda. Quando
Victarion entrou, a garota estava nua, deitada na cama, ressonando
baixinho. Euron encontrava-se em pé junto à janela, bebendo de uma
taça de prata. Usava o manto de zibelina que tirara de Blacktyde, a
pala de couro, e nada mais.
- Quando
era rapaz, sonhei que podia voar - anunciou. - Quando acordei, não
podia... ou pelo menos foi o que o meistre disse. Mas, e se ele
mentiu?
Victarion
sentia o cheiro do mar que entrava pela janela aberta, embora o
quarto fedesse a vinho, sangue e sexo. O frio ar salgado ajudou a
limpar-lhe a cabeça.
- O que
quer dizer com isso?
Euron
virou-se para encará-lo, com os machucados lábios azuis curvados
num meio sorriso.
- Talvez
possamos voar. Todos nós. Como saber, a menos que saltemos de uma
torre alta qualquer? - o vento entrava em rajadas pela janela e
sacudia-lhe o manto de zibelina. Havia algo de obsceno e perturbador
em sua nudez. - Não há homem que realmente saiba o que pode fazer a
menos que se atreva a fazer.
- A
janela está ali. Salte - Victarion não tinha paciência para
aquilo. A mão ferida o incomodava. - O que você quer?
- O mundo
- a luz da lareira cintilou no olho de Euron. Seu olho sorridente. -
Aceita uma taça do vinho de Lorde Hewett? Não há vinho cuja doçura
chegue aos calcanhares daquele que é tirado de um adversário
derrotado.
- Não -
Victarion afastou o olhar. - Cubra-se.
Euron
sentou-se e puxou o manto, de modo a cobrir-lhe as virilhas.
- Tinha
me esquecido de como meus nascidos no ferro são uma gente pequena e
barulhenta. Quero trazer-lhes dragões, e eles gritam por uvas.
- As uvas
são reais. Um homem pode se empanturrar de uvas. Seu sumo é doce e
fazem vinho. O que fazem os dragões?
-
Angústia - Olho de Corvo bebericou de sua taça de prata. - Uma vez
tive um ovo de dragão nesta mão, irmão. Um feiticeiro de Myr jurou
que conseguia fazê-lo eclodir se lhe desse um ano e todo o ouro que
me pedisse. Quando me cansei de suas desculpas, matei-o. Enquanto o
homem observava as entranhas deslizando-lhe por entre os dedos,
disse: “Mas não se passou um ano” - soltou uma gargalhada. -
Cragorn morreu, sabia?
- Quem?
- O homem
que soprou meu berrante de dragão. Quando o meistre o abriu, tinha
os pulmões carbonizados, negros como fuligem.
Victarion
estremeceu.
-
Mostre-me esse ovo de dragão.
-
Atirei-o ao mar durante um ataque de mau humor - Euron encolheu os
ombros. - Ocorre-me que o Leitor não se enganava. Uma frota grande
demais nunca poderá se manter unida ao longo de tal distância. A
viagem é longa demais e muito perigosa. Só nossos melhores navios e
tripulações podem esperar viajar até a Baía dos Escravos e
voltar. A Frota de Ferro.
A Frota
de Ferro é minha, Victarion pensou. Nada disse.
Olho de
Corvo encheu duas taças com um estranho vinho negro que fluía
espesso como mel.
- Beba
comigo, irmão. Prove isto - ofereceu uma das taças a Victarion.
O capitão
pegou a taça que Euron não oferecera, cheirou desconfiadamente seu
conteúdo. Visto de perto, o líquido parecia mais azul do que negro.
Era espesso e de aspecto oleoso, e cheirava a carne podre.
Experimentou um pequeno gole e o cuspiu imediatamente.
- Que
porcaria. Quer me envenenar?
- Quero
abrir seus olhos - Euron bebeu profundamente de sua taça e sorriu. -
Sombra da Tarde, o vinho dos magos. Encontrei um barril quando
capturei uma certa galeota vinda de Qarth, que trazia também
cravinho e noz-moscada, quarenta fardos de seda verde e quatro magos
que contaram uma curiosa história. Um deles ousou me ameaçar, de
modo que o matei e o dei para os outros três comerem. A princípio
recusaram-se a comer a carne do amigo, mas quando ficaram
suficientemente famintos mudaram de ideia. Os homens são carne.
Balon era
louco, Aeron é mais louco, e Euron é o mais louco de todos.
Victarion virava-se para ir embora quando Olho de Corvo disse:
- Um rei
tem de tomar uma esposa, para lhe dar herdeiros. Irmão, preciso de
você. Irá à Baía dos Escravos trazer o meu amor?
Outrora
eu também tive um amor. As mãos de Victarion fecharam-se em punhos,
e uma gota de sangue caiu no chão, com um pequeno ruído. Devia
espancar você até sangrar e dar seu corpo para os caranguejos
comerem, como fiz com ela.
- Você
tem filhos - disse ao irmão.
-
Mestiços ilegítimos, nascidos de putas e carpideiras.
- São
frutos do seu corpo.
- Também
o conteúdo do meu penico assim é. Nenhum deles é digno de se
sentar na Cadeira da Pedra do Mar, muito menos no Trono de Ferro.
Não, para fazer um herdeiro que o mereça preciso de uma mulher
diferente. Quando a lula gigante casa com o dragão, irmão, que o
mundo se acautele.
- Que
dragão? - Victarion quis saber, franzindo as sobrancelhas.
- A
última de sua linhagem. Dizem que é a mais bela mulher do mundo. Os
cabelos são louros prateados, e os olhos ametistas... Mas não
precisa aceitar minha palavra, irmão. Vá até a Baía dos Escravos,
contemple sua beleza e a traga para mim.
- Por que
haveria de fazer isso? - Victarion o questionou.
- Por
amor. Por dever. Porque seu rei assim ordena - Euron soltou um
risinho abafado. - E pela Cadeira de Pedra do Mar. É sua, assim que
eu reclamar para mim o Trono de Ferro. Você me sucederá como eu
sucedi Balon... E seus filhos legítimos o sucederão um dia.
Meus
filhos. Mas para ter um filho legítimo, primeiro um homem precisaria
ter uma esposa. Victarion não tinha sorte com esposas. Os presentes
de Euron estão envenenados, recordou a si mesmo, mas, ainda assim...
- A
escolha é sua, irmão. Viva como servo ou morra como rei. Atreve-se
a voar? Se não saltar, nunca saberá.
O olho
sorridente de Euron estava brilhante de escárnio.
- Ou será
que estou lhe pedindo muito? Velejar para além de Valíria é coisa
de meter medo.
- Eu
seria capaz de levar a Frota de Ferro até o inferno, se fosse
necessário - quando Victarion abriu a mão, a palma estava rubra de
sangue. - Sim, irei até a Baía dos Escravos. Descobrirei essa
mulher-dragão e a trarei de volta - mas não para você. Roubou e
espoliou minha mulher; portanto, eu ficarei com a sua. A mais bela
mulher do mundo, para mim.
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