Os campos
junto das muralhas de Darry estavam sendo cultivados novamente. As
culturas queimadas tinham sido aradas, e os batedores de Sor Addam
mencionaram ter visto mulheres arrancando ervas daninhas da terra
arada, enquanto uma parelha de bois rasgava novos sulcos nos limites
de um bosque próximo. Uma dúzia de homens barbudos com machados
mantinha-se de guarda enquanto o trabalho avançava.
Quando
Jaime e sua coluna chegaram ao castelo, todos tinham fugido para
dentro das muralhas. Foi encontrar Darry fechado em si mesmo, tal
como Harrenhal estivera. Gelidamente acolhido por meu próprio
sangue.
- Faça
soar o berrante - ordenou. Sor Kennos de Kayce pegou o Berrante de
Fíerrock que trazia a tiracolo e o fez soar. Enquanto esperava por
uma resposta vinda do castelo, Jaime observou o estandarte que
esvoaçava, marrom e carmesim, por sobre a barbacã do primo.
Aparentemente, Lancel decidira esquartelar o leão de Lannister com o
lavrador de Darry. Viu naquilo a mão do tio, tal como na escolha da
noiva para Lancel. A Casa Darry governava aquelas terras desde que os
ândalos derrubaram os Primeiros Homens. Não restava dúvida de que
Sor Kevan compreendera que o filho teria menos problemas se os
camponeses o vissem como uma continuação da antiga linhagem,
obtendo aquelas terras por direito de casamento, e não por decreto
real. Kevan devia ser a Mão de Tommen. Harys Swyft é um a
cavalgadura, e minha irmã é estúpida se pensa que não.
Os
portões do castelo abriram-se lentamente.
- Meu
primo não terá espaço para instalar mil homens - disse Jaime ao
Varrão Forte. - Acamparemos à sombra da muralha ocidental. Quero
fossos e estacas no perímetro. Ainda há bandos de fora da lei por
estes lados.
- Teriam
de ser loucos para atacar uma força tão poderosa como a nossa.
- Loucos
ou esfomeados - até ter uma ideia mais concreta sobre aqueles fora
da lei e sua força, Jaime não se sentia inclinado a correr riscos
com a defesa. - Fossos e estacas - voltou a dizer, antes de esporear
Honra na direção do portão. Sor Dermot seguiu ao seu lado, com o
veado e o leão reais, e Sor Hugo Vance com o estandarte branco da
Guarda Real. Jaime atribuíra ao Ronnet Vermelho a tarefa de levar
Wylis Manderly até Lagoa da Donzela, para não ter de continuar a
vigiá-lo.
Pia
seguia com os escudeiros de Jaime, no castrado que Peck lhe
arranjara.
- É como
um castelo de brinquedo - ouviu-a dizer. Ela não conheceu nenhum lar
além de Harrenhal, refletiu. Todos os castelos no reino lhe
parecerão pequenos, exceto o Rochedo.
Josmyn
Peckleton dizia a mesma coisa.
- Não
pode compará-lo com Harrenhal. Harren Negro construiu grande demais
- Pia o escutou com a solenidade de uma garota de cinco anos que
recebe lições da septã. Não passa disso, uma garotinha num corpo
de mulher, cheia de cicatrizes e assustada. Mas Peck estava cativado
por ela. Jaime suspeitava que o rapaz nunca conhecera uma mulher, e
Pia ainda era bastante bonita, desde que mantivesse a boca fechada.
Não seria ruim se ele dormisse com ela, suponho, desde que ela
queira.
Um dos
homens da Montanha tinha tentado violar a garota em Harrenhal, e
pareceu honestamente perplexo quando Jaime ordenara a Ilyn Payne que
lhe cortasse a cabeça.
"Já
a tive antes, uma centena de vezes” não parara de dizer enquanto o
obrigavam a se ajoelhar. “Uma centena de vezes, senhor. Todos a
tivemos.” Quando Sor Ilyn presenteara Pia com a cabeça do homem,
ela sorrira através de seus dentes arruinados.
Darry
mudara várias vezes de mãos durante a luta, e seu castelo tinha uma
vez sido queimado, e pelo menos duas saqueado, mas, aparentemente,
Lancel pouco tempo demorara para colocar as coisas em ordem. Os
portões do castelo estavam instalados novamente, pranchas toscas de
carvalho, reforçadas com tachões de ferro. Um novo estábulo estava
sendo construído no local onde o antigo fora passado pelo archote.
Os degraus que levavam à torre de menagem tinham sido substituídos,
bem como as portadas em muitas das janelas. Pedras enegrecidas
mostravam os locais onde as chamas as tinham lambido, mas o tempo e a
chuva tinham extinguido suas marcas.
Dentro
das muralhas, besteiros percorriam os adarves, alguns com manto
carmesim e elmo encimado por leões, outros com o azul e cinza da
Casa Frey. Quando Jaime atravessou o pátio a trote, galinhas fugiram
de sob os cascos de Honra, ovelhas baliram e camponeses fitaram-no
com olhos carrancudos. Camponeses armados, não lhe passou
despercebido. Alguns tinham foices, outros, cajados; outros, ainda,
enxadas de tal forma afiadas que exibiam pontas cruéis. Machados
também estavam à mostra, e vislumbrou vários homens barbudos com
estrelas vermelhas de sete pontas cosidas em túnicas esfarrapadas e
imundas. Mais dos malditos pardais. De onde veio toda essa gente?
Do tio
Kevan não viu sinal. Nem de Lancel. Só um meistre veio ao seu
encontro, com uma veste cinzenta esvoaçando em volta de suas pernas
descarnadas.
- Senhor
Comandante, Darry está honrado por esta... visita inesperada. Deve
nos perdoar pela falta de preparativos. Fomos levados a crer que se
dirigia para Correrrio.
- Darry
fica no caminho - Jaime mentiu. Correrrio pode esperar. E se por
acaso o cerco terminasse antes de chegar ao castelo, seria poupado da
necessidade de pegar em armas contra a Casa Tully.
Desmontando,
entregou Honra a um moço de estrebaria.
-
Encontrarei meu tio aqui? - não forneceu um nome. Sor Kevan era o
único tio que lhe restava, o último filho sobrevivente de Tytos
Lannister.
- Não,
senhor. Sor Kevan retirou-se após a boda - o meistre puxou pelo
colar de corrente, como se se tivesse se transformado demasiado
apertado para seu pescoço. - Sei que Lorde Lancel ficará contente
por vê-lo e... e a todos os seus galantes cavaleiros. Embora me doa
confessar que Darry não pode alimentar tantos homens.
- Nós
temos nossas próprias provisões. Você é...?
- Meistre
Ottomore, se aprouver ao senhor. A Senhora Amerei desejaria dar-lhe
as boas-vindas em pessoa, mas está tratando dos preparativos para um
banquete em sua honra. É sua esperança que o senhor e seus
principais cavaleiros e capitães nos façam companhia à mesa esta
noite.
- Uma
refeição quente será muito bem-vinda. Os dias têm estado frios e
úmidos - Jaime passou os olhos pelo pátio, pelo rosto barbudo dos
pardais. Muitos. E também os Frey são numerosos. - Onde poderei
encontrar Pedra-Dura?
-
Recebemos relatos sobre os fora da lei na outra margem do Tridente.
Sor Harwyn levou cinco cavaleiros e vinte arqueiros e foi lidar com
eles.
- E Lorde
Lancel?
- Está
em suas preces. Sua senhoria ordenou-nos para nunca o incomodarmos
quando está rezando.
Ele e Sor
Bonifer deverão se entender.
- Muito
bem - mais tarde haveria tempo suficiente para falar com o primo. -
Leve-me até os meus aposentos e ordene que um banho seja preparado
lá.
- Se
agradar ao senhor, o instalamos na Torre do Lavrador. Eu o levarei
até lá.
- Conheço
o caminho - Jaime não era estranho àquele castelo. Ele e Cersei
tinham estado hospedados ali por duas vezes, uma a caminho de
Winterfell com Robert, e a outra na viagem de volta a Porto Real.
Embora fosse pequeno para um castelo, era maior do que uma estalagem
e tinha boa caça ao longo do rio. Robert Baratheon nunca se mostrara
relutante em impor-se à hospitalidade de seus súditos.
A torre
era muito semelhante àquilo que dela recordava.
- As
paredes continuam despidas - observou Jaime enquanto o meistre o
levava ao longo de uma galeria.
- Lorde
Lancel espera um dia cobri-las com tapeçarias - Ottom ore comentou.
- Cenas de piedade e devoção.
Piedade e
devoção. Foi com dificuldade que evitou rir. As paredes também
tinham estado nuas em sua primeira visita. Tyrion indicara os
quadrados de pedra mais escura onde tapeçarias tinham estado
penduradas. Sor Raymun podia removê-las, mas não as marcas que
deixavam. Mais tarde, o Duende fizera deslizar um punhado de veados
para as mãos de um dos criados de Darry em troca da chave do porão
onde as tapeçarias em falta se encontravam escondidas. Mostrou-as a
Jaime à luz de uma vela, sorrindo; retratos tecidos de todos os reis
Targaryen, do primeiro Aegon até o segundo Aenys.
“Se
contar a Robert, ele talvez faça de mim Senhor de Darry” dissera o
anão, entre gargalhadas.
Meistre
Ottomore levou Jaime até o topo da torre.
- Espero
que fique confortável aqui, senhor. Há uma latrina, para quando a
natureza chamar. Sua janela dá para o bosque sagrado. O quarto está
ligado ao da senhora, com uma cela de criado entre ambos.
- Estes
são os aposentos do próprio Lorde Darry.
- Sim,
senhor,
- Meu
primo é generoso demais. Não pretendia pôr Lancel fora de seu
próprio quarto.
- Lorde
Lancel tem dormido no septo.
Dorme com
a Mãe e a Donzela, quando tem uma esposa quente atrás daquela
porta? Jaime não soube se deveria rir ou chorar. Talvez esteja
rezando para que o pau endureça. Em Porto Real havia o rumor de que
os ferimentos de Lancel o tinham deixado incapaz. Mesmo assim, devia
ter senso suficiente para tentar. A posse das novas terras pelo primo
não estaria segura até gerar um filho à esposa meio Darry. Jaime
começava a se arrepender do impulso que o trouxera ali. Agradeceu a
Ottomore, fez que se lembrasse do banho e mandou que Peck o
acompanhasse à porta.
O quarto
do senhor mudara desde sua última visita, e não para melhor. Velhas
esteiras apodrecidas cobriam o chão no lugar do bom tapete de Myr
que antes estivera lá, e toda a mobília era nova e malfeita. A cama
de Sor Raymun Darry era suficientemente grande para seis pessoas, com
cortinas de veludo marrom e colunas de carvalho esculpidas com
trepadeiras e folhas; a de Lancel era um granuloso catre de palha
posto abaixo da janela, onde a primeira luz da aurora com certeza o
acordaria. Sem dúvida que a outra cama teria sido queimada, esmagada
ou roubada, mesmo assim...
Quando a
banheira chegou, Lew Pequeno tirou as botas de Jaime e o ajudou a
remover sua mão de ouro, Peck e Garrett carregaram água, e Pia
arranjou qualquer coisa limpa para ensopar. A garota o olhou de
relance, timidamente, enquanto lhe tirava o gibão às sacudidelas.
Jaime ficou desconfortavelmente consciente das curvas dos quadris e
dos seios por baixo do vestido de tecido grosseiro marrom que ela
trazia. Deu por si recordando as coisas que Pia lhe segredara em
Harrenhal, na noite em que Qyburn a enviara à sua cama. Às vezes,
quando estou com um homem, dissera, fecho os olhos e finjo que é
você quem está em cima de mim.
Sentiu-se
grato quando o banho ficou suficientemente profundo para esconder sua
ereção. Quando mergulhou na água fumegante, recordou outro banho,
aquele que partilhara com Brienne. Estivera febril e enfraquecido
devido à perda de sangue, e o calor entontecera-o tanto que dera por
si falando coisas que era melhor deixar por dizer. Dessa vez não
tinha semelhante desculpa. Lembre-se de seus votos. Pia é mais digna
da cama de Tyrion do que da sua.
- Vá
buscar sabão e uma escova rija - disse a Peck. - Pia, pode nos
deixar.
- Sim,
senhor. Obrigada, senhor - ela cobria a boca quando falava, para
esconder os dentes quebrados.
-
Deseja-a? - perguntou Jaime a Peck depois de a garota sair.
O
escudeiro ficou vermelho como uma beterraba.
- Se ela
quiser você, tome-a. Com certeza lhe ensinará algumas coisas que
vai achar úteis na noite de núpcias, e não é provável que
arranje um bastardo com ela - Pia abrira as pernas para metade do
exército do pai e nunca engravidara; o mais provável era que a
garota fosse estéril. - Mas, se se deitar com ela, seja gentil.
- Gentil,
senhor? Como... como posso...?
-
Palavras doces. Toques gentis. Não quer se casar com ela, mas
enquanto estiver na cama trate-a como trataria sua noiva.
O rapaz
assentiu.
- Senhor,
eu... para onde posso levá-la? Nunca há lugar para... para...
- ...
ficar sozinho? - Jaime abriu um sorriso. - Passaremos várias horas
jantando. A palha parece cheia de grumos, mas há de servir.
Os olhos
de Peck esbugalharam-se.
- A cama
de sua senhoria?
- Quando
acabar, você também se sentirá um senhor, se Pia souber o que
fazer - e alguém devia dar algum uso àquele miserável colchão de
palha.
Quando
desceu para o banquete naquela noite, Jaime Lannister usava um gibão
de rico veludo fendido com pano de ouro e uma corrente de ouro
salpicada de diamantes negros. Também prendera a mão de ouro, que
fora polida até mostrar um belo e radiante brilho. Aquele não era
lugar apropriado para usar o branco. O dever esperava-o em Correrrio;
o que o trouxera ali fora uma necessidade mais sombria.
O Grande
Salão de Darry era grande só por cortesia. Mesas de montar
preenchiam-no de parede a parede e as vigas do teto estavam negras de
fumaça. Jaime foi colocado para se sentar no estrado, à direita da
cadeira vazia de Lancel.
- Meu
primo não irá se juntar a nós para o jantar? - perguntou ao se
sentar.
- Meu
senhor prefere jejuar - disse a esposa de Lancel, a Senhora Amerei. -
Está doente de desgosto pelo pobre Alto Septão - era uma garota
robusta, de pernas longas e peitos cheios, com cerca de dezoito anos;
uma garota saudável, pelo aspecto, embora seu rosto chupado e sem
queixo fizesse Jaime se lembrar de seu falecido e não lamentado
primo Cleos, que sempre tivera um certo aspecto de doninha.
Jejuar? É
um idiota ainda maior do que eu suspeitava. O primo devia andar
ocupado gerando na sua viúva um pequeno herdeiro com cara de
doninha, em vez de se matar de fome. Perguntou a si mesmo o que Sor
Kevan poderia ter dito acerca do novo fervor do filho. Poderia ter
sido esse o motivo da partida abrupta do tio?
Sobre
tigelas de sopa de feijão e toucinho, a Senhora Amerei contou a
Jaime como seu primeiro marido fora morto por Sor Gregor Clegane
quando os Frey ainda lutavam por Robb Stark.
-
Supliquei-lhe para não ir, mas meu Pate era, oh, tão corajoso, e
jurou que seria ele o homem que mataria aquele monstro. Queria
arranjar um grande renome para si.
Todos
queremos.
- Quando
eu era escudeiro, disse a mim mesmo que seria eu o homem que mataria
o Cavaleiro Sorridente.
- O
Cavaleiro Sorridente? - ela parecia confusa. - Quem foi esse?
A
Montanha da minha juventude. Com metade do tamanho e o dobro da
loucura.
- Um fora
da lei, há muito morto. Ninguém com quem vossa senhoria deva se
preocupar.
O lábio
de Amerei tremeu. Lágrimas rolaram-lhe dos olhos castanhos.
- Deve
perdoar minha filha - disse uma mulher mais velha. Senhora Amerei
trouxera consigo uma vintena de Frey para Darry; um irmão, um tio,
um tio em segundo grau, vários primos... e a mãe, que nascera
Darry. - Ainda chora pelo pai.
- Alguns
fora da lei o mataram - soluçou a Senhora Amerei. - O pai só tinha
ido resgatar Petyr Espinha. Ele levou-lhes o ouro que pediam, mas
penduraram-no mesmo assim.
-
Enforcaram, Ami. Seu pai não era uma tapeçaria - Senhora Mariya
voltou a se virar para Jaime. - Creio que o conhecia, sor.
-
Servimos juntos, outrora, como escudeiros, em Paço de Codorniz - não
chegaria a ponto de afirmar terem sido amigos. Quando Jaime chegara,
Merrett Frey era o valentão do castelo, dominava todos os rapazes
mais novos. Então tentou intimidar a mim. - Ele era... muito forte -
foi o único elogio que lhe ocorreu. Merrett mostrara-se lento,
desajeitado e estúpido, mas era forte.
- Lutaram
juntos contra a Irmandade da Mata de Rei - fungou a Senhora Amerei.
- Meu pai
costumava contar-me histórias.
Seu pai
costumava gabar-se e mentir, você quer dizer.
- Lutamos
- as principais contribuições do Frey para a luta tinham consistido
em contrair sífilis de uma seguidora de acampamentos e ser capturado
pela Cerva Branca. A rainha fora da lei queimara-lhe o rabo com seu
símbolo antes de devolvê-lo, após o resgate, a Sumner Crakehall.
Merrett passara uma quinzena sem conseguir se sentar, embora Jaime
duvidasse de que o ferro em brasa fosse tão desagradável quanto as
panelas de merda que os colegas escudeiros o tinham obrigado a comer
quando regressara. Os rapazes são as criaturas mais cruéis da face
da terra. Pôs a mão de ouro em volta da taça de vinho e a ergueu.
- À memória de Merrett - disse. Era mais fácil beber ao homem do
que falar dele.
Depois do
brinde, Senhora Amerei parou de chorar e a conversa à mesa virou-se
para os lobos, os de quatro patas. Sor Danwell Frey afirmou que havia
mais animais na região do que até o avô conseguia recordar.
-
Perderam todo o medo do homem. Alcateias atacaram nossa coluna
logística durante a viagem desde as Gêmeas. Nossos arqueiros
tiveram de encher de flechas uma dúzia antes de os outros fugirem -
Sor Addam Marbrand confessou que sua coluna enfrentara problemas
semelhantes no trajeto desde Porto Real.
Jaime
concentrou-se na comida que tinha diante de si, arrancando pedaços
de pão com a mão esquerda e atrapalhando-se com a taça de vinho
com a direita. Observou Addam Marbrand encantado com a garota que
tinha ao lado, observou Steffon Swyft voltar a travar a batalha de
Porto Real com pão, nozes e cenouras. Sor Kennos pôs uma criada no
colo, insistindo para que a garota lhe tocasse o pífaro, enquanto
Sor Dermot regalava alguns escudeiros com histórias sobre cavaleiros
vagueando pela mata de chuva. Mais ao fundo da mesa, Hugo Vance
fechara os olhos. Está refletindo sobre os mistérios da vida,
pensou Jaime. Ou isso ou cochilando entre um prato e o seguinte.
Voltou-se novamente para a Senhora Mariya.
- Os fora
da lei que mataram seu marido... eram do bando de Lorde Beric?
- Foi o
que pensamos a princípio - embora os cabelos da Senhora Mariya
estivessem salpicados de grisalho, ainda era uma mulher de aspecto
agradável. - Os assassinos se dispersaram quando saíram de
Pedravelhas. Lorde Vypren seguiu um bando até Feirajusta, mas ali
perdeu o rastro. Walder Negro levou cães de caça e caçadores para
o Atoleiro da Bruxa atrás dos outros. Os camponeses negaram tê-los
visto, mas quando foram interrogados intensamente cantaram uma
cantiga diferente. Falaram de um homem de um olho só e de outro que
usava manto amarelo... e de uma mulher, coberta por manto e capuz.
- Uma
mulher? - achava que a Cerva Branca tivesse ensinado Merrett a se
manter longe de garotas fora da lei. - Também havia uma mulher na
Irmandade da Mata de Rei.
- Eu sei
- e como não, sugeria seu tom de voz, se ela deixou sua marca no meu
marido? - A Cerva Branca era jovem e bela, segundo dizem. Essa mulher
encapuzada não é nem uma coisa nem outra. Os camponeses queriam
fazer que acreditássemos que seu rosto estava rasgado e cheio de
cicatrizes, e que seus olhos eram terríveis de contemplar. Dizem que
liderava os fora da lei.
-
Liderava-os? - Jaime achava difícil acreditar naquilo. - Beric
Dondarrion e o sacerdote vermelho...
- ... não
foram vistos - Senhora Mariya parecia ter certeza.
-
Dondarrion está morto - Varrão Forte interveio. - A Montanha
enfiou-lhe uma faca no olho, temos conosco homens que viram.
- Esta é
uma história - disse Addam Marbrand. - Outros lhe dirão que Lorde
Beric não pode ser morto.
- Sor
Harwyn diz que essas histórias são mentiras - Senhora Amerei
enrolou uma trança no dedo. - Ele me prometeu a cabeça de Lorde
Beric. É muito galante - corava por baixo das lágrimas.
Jaime se
lembrou da cabeça que dera a Pia. Quase conseguia ouvir o risinho do
seu irmão mais novo. O que aconteceu com dar flores às mulheres?
Tyrion poderia ter perguntado. Ele teria também algumas palavras
para Harwyn Plumm, embora galante não fosse uma delas. Os irmãos
Plumm eram tipos grandes e robustos, com pescoço grosso e rosto
vermelho; ruidosos e vigorosos, rápidos no riso, rápidos na ira,
rápidos no perdão. Harwyn era um tipo diferente de Plumm; de olhos
duros e taciturno, rancoroso... e mortal com o martelo na mão. Era
um bom homem para comandar uma guarnição, mas não para ser amado.
Se bem que... Jaime fitou Senhora Amerei.
Os
criados traziam o prato de peixe, um lúcio cozido numa crosta de
ervas e nozes moídas. A senhora de Lancel provou, aprovou e ordenou
que a primeira porção fosse servida a Jaime. Enquanto lhe serviam o
peixe, ela se debruçou sobre o lugar do marido para lhe tocar a mão
de ouro.
- Podia
matar Lorde Beric, Sor Jaime. Matou o Cavaleiro Sorridente. Por
favor, senhor, suplico-lhe, fique e nos ajude com Lorde Beric e Cão
de Caça - seus dedos pálidos acariciaram os de ouro de Jaime.
Será que
ela acha que consigo sentir?
- Foi o
Espada da Manhã quem matou o Cavaleiro Sorridente, senhora. Sor
Arthur Dayne, um cavaleiro melhor do que eu - Jaime recolheu seus
dedos de ouro e voltou-se para a Senhora Mariya. - Walder Negro
seguiu essa mulher encapuzada e seus homens até onde?
- Os cães
voltaram a farejar seu cheiro ao norte do Atoleiro da Bruxa -
disse-lhe a mulher mais velha. - Ele jura que não estava mais de
meio dia atrás deles quando desapareceram no Gargalo.
- Que
apodreçam lá - declarou alegremente Sor Kennos. - Se os deuses
forem bons, serão engolidos por areias movediças ou devorados por
lagartos-leões.
- Ou
acolhidos por comedores de rãs - disse Sor Danwell Frey. - Eu não
acharia os cranogmanos incapazes de abrigar alguns fora da lei.
- Bem
gostaria que fossem só eles - replicou a Senhora Mariya. - Alguns
dos senhores do rio também andam de mãos dadas com os homens de
Lorde Beric.
- Assim
como os plebeus - fungou a filha. - Sor Harwyn diz que os escondem e
os alimentam, e, quando lhes perguntam para onde foram, mentem.
Mentem para os próprios senhores!
- Mande
cortar-lhes a língua - sugeriu Varrão Forte.
- Boa
sorte em obter respostas depois disso - Jaime rebateu. - Se querem a
ajuda deles, terão de fazer que os amem. Foi assim que Arthur Dayne
agiu quando avançou contra a Irmandade da Mata de Rei. Pagou aos
plebeus por aquilo que comeu, levou suas queixas ao Rei Aerys,
expandiu as pastagens em volta de suas aldeias, até lhes conquistou
o direito de derrubar certo número de árvores todos os anos e
abater alguns dos veados do rei durante o outono. O povo da floresta
tinha se virado para Toyne para defendê-lo, mas Sor Arthur fez mais
por eles do que a Irmandade alguma vez podia almejar fazer e os
conquistou para o seu lado. Depois disso, o resto foi fácil.
- O
Senhor Comandante fala com sabedoria - Senhora Mariya observou. -
Nunca nos livraremos desses fora da lei até que os plebeus comecem a
amar Lancel da mesma forma que amaram meu pai e meu avô.
Jaime
lançou um relance ao lugar vazio do primo. Mas Lancel nunca
conquistará o amor deles com rezas.
Senhora
Amerei fez beicinho.
- Sor
Jaime, suplico-lhe, não nos abandone. Meu senhor precisa de você, e
eu também. Estes tempos são tão temíveis. Há noites em que quase
não consigo dormir, com medo.
- Meu
lugar é junto do rei, senhora.
- Eu
virei - ofereceu-se Varrão Forte. - Depois de terminarmos em
Correrrio, ficarei me coçando por outra luta. Não que seja provável
que Beric Dondarrion me dê uma. Lembro-me do homem de torneios
passados. Era um moço atraente, com um manto bonito. Franzino e
inexperiente.
- Isso
foi antes de morrer - o jovem Sor Arwood Frey disse. - O povo diz que
a morte o mudou. Pode matá-lo, mas ele não permanece morto. Como se
luta com um homem assim? E também há o Cão de Caça. Ele matou
vinte homens em Salinas.
Varrão
Forte soltou uma gargalhada roufenha.
- Vinte
estalajadeiros gordos, talvez. Vinte criados mijando nos calções.
Vinte irmãos mendicantes com tigelas. Mas não vinte cavaleiros. Não
a mim.
- Há um
cavaleiro em Salinas - Sor Arwood insistiu. - Ele se escondeu atrás
de suas muralhas enquanto Clegane e seus cães enlouquecidos
assolavam a vila. Não viu as coisas que ele fez, sor. Eu vi. Quando
as notícias chegaram às Gêmeas, avancei com Harys Haigh, o irmão
Donnel e meia centena de homens, arqueiros e homens de armas.
Pensávamos que aquilo tinha sido obra de Lorde Beric e esperávamos
encontrar seu rastro. Tudo que resta de Salinas é o castelo e o
velho Sor Quincy, tão assustado que não quis abrir os portões,
falou conosco das ameias, aos gritos. O resto são ossos e cinzas.
Uma vila inteira. Cão de Caça passou os edifícios no archote e o
povo na espada, e foi embora dando risada. As mulheres... não
acreditaria no que ele fez a algumas das mulheres. Não falarei disto
à mesa. Embrulhou-me o estômago quando vi.
- Chorei
quando ouvi contar - Senhora Amerei lamentou-se.
Jaime
bebericou o vinho.
- Como
pode ter certeza de que foi o Cão de Caça? - aquilo que descreviam
parecia mais trabalho de Gregor do que de Sandor. Sandor era duro e
brutal, é certo, mas o irmão mais velho é quem era o verdadeiro
monstro da Casa Clegane.
- Ele foi
visto - Sor Arwood confirmou. - Aquele seu elmo não é fácil de
confundir, ou de esquecer, e houve alguns que sobreviveram para
contar a história. A garota que violou, alguns rapazes que se
esconderam, uma mulher que encontramos presa sob uma viga enegrecida,
os pescadores que, de seus barcos, observaram a carnificina...
- Não
chame de carnificina - Senhora Mariya pediu em voz baixa. - Isto é
um insulto aos carniceiros honestos. Salinas foi obra de um animal
feroz em pele humana.
Estes
tempos são para feras, Jaime refletiu, para leões, lobos e cães
raivosos, para corvos e gralhas pretas.
- Uma
obra maligna - Varrão Forte voltou a encher a taça. - Senhora
Mariya, Senhora Amerei, sua angústia me comoveu. Dou-lhes minha
palavra, assim que Correrrio cair, regressarei para dar caça ao Cão
de Caça e matá-lo em seu nome. Os cães não me assustam.
Este
devia assustar. Ambos os homens eram grandes e poderosos, mas Sandor
Clegane era muito mais rápido e lutava com uma selvageria que Lyle
Crakehall não podia esperar igualar.
Mas a
Senhora Amerei estava entusiasmada.
- É um
verdadeiro cavaleiro, Sor Lyle, por ajudar uma dama em dificuldades.
Pelo
menos não chamou a si mesma “donzela”. Jaime estendeu a mão
para a taça, e a derrubou. A toalha de mesa, de linho, bebeu o
vinho. Seus companheiros fingiram não reparar na mancha vermelha que
se espalhava. Cortesia da mesa de honra, disse a si mesmo, mas tinha
gosto de piedade. Ergueu-se de repente.
-
Senhora. Peço que me dê licença.
Senhora
Amerei pareceu ofendida.
- Quer
nos deixar? Ainda há veado e capões recheados com cogumelos.
- Muito
bons, sem dúvida, mas não conseguiria dar nem mais uma dentada.
Tenho de falar com meu primo - com uma reverência, Jaime os deixou
entregue à sua comida.
Também
no pátio havia homens comendo. Os pardais tinham se reunido em volta
de uma dúzia de fogueiras para aquecer as mãos contra o frio do
ocaso e vigiar gordas salsichas que chiavam e pingavam sobre as
chamas. Não podiam ser menos de cem. Bocas inúteis. Jaime perguntou
a si mesmo quantas salsichas o primo tinha estocadas e como pretendia
alimentar os pardais depois de seus homens irem embora. Quando chegar
o inverno estarão comendo ratazanas, a menos que consigam uma
colheita. Com o outono tão avançado, as chances de mais uma
colheita não eram boas.
Encontrou
o septo depois do pátio interno do castelo; um edifício sem
janelas, de sete lados e parcialmente construído em madeira, com
portas de madeira entalhada e um telhado de telha. Três pardais
encontravam-se sentados nos degraus. Quando Jaime se aproximou,
ergueram-se.
- Onde
vai, senhor? - perguntou um deles. Era o menor dos três, mas tinha a
barba mais comprida.
- Lá
dentro.
- Sua
senhoria está lá, rezando.
- Sua
senhoria é meu primo.
- Bem,
neste caso, senhor - disse outro pardal, um homem enorme e calvo com
uma estrela de sete pontas pintada por cima de um olho - não vai
querer incomodar seu primo durante as preces.
- Lorde
Lancel pede orientação ao Pai no Céu - disse o terceiro pardal, o
que não tinha barba. Um rapaz, Jaime pensou, mas sua voz
identificava-o como uma mulher, vestida de trapos disformes e uma
camisa ferrugenta. - Reza pela alma do Alto Septão e de todos os
outros que morreram.
- Amanhã
continuarão mortos - Jaime lhe respondeu. - O Pai no Céu tem mais
tempo do que eu. Sabe quem sou?
- Um
lorde qualquer - disse o grandalhão com o olho estrelado.
- Um
aleijado qualquer - disse o pequeno com a comprida barba.
- O
Regicida - disse a mulher - mas nós não somos reis, somos apenas
Pobres Companheiros, e você não pode entrar, a menos que sua
senhoria permita - girou nas mãos uma maça com pregos, e o homem
pequeno ergueu um machado.
As portas
atrás deles abriram-se.
- Deixem
meu primo passar em paz, amigos - Lancel ordenou em voz baixa. -
Tenho estado à espera dele.
Os
pardais deram um passo para o lado.
Lancel
parecia ainda mais magro do que em Porto Real. Estava descalço,
vestido com uma túnica simples de lã não tingida que o fazia se
assemelhar mais a um pedinte do que a um lorde. Raspara o topo da
cabeça até deixá-lo liso, mas a barba crescera-lhe um pouco.
Chamar àquilo penugem de pêssego teria sido insultuoso para o
pêssego. Combinava estranhamente com os cabelos brancos que lhe
rodeavam as orelhas.
- Primo -
Jaime falou quando ficaram a sós dentro do septo - perdeu o raio do
juízo?
- Prefiro
dizer que encontrei a minha fé.
- Onde
está seu pai?
- Foi
embora. Discutimos - Lancel ajoelhou-se perante o altar de seu outro
Pai. - Quer rezar comigo, Jaime?
- Se eu
rezar bem, o Pai vai me dar uma mão nova?
- Não.
Mas o Guerreiro lhe dará coragem, o Ferreiro lhe emprestará força
e a Velha lhe dará sabedoria.
- É de
uma mão que preciso - os sete deuses erguiam-se por cima de altares
esculpidos cuja madeira escura brilhava à luz das velas. Um tênue
cheiro de incenso pairava no ar. - Dorme aqui embaixo?
- Todas
as noites faço a cama junto a um altar diferente, e os Sete
enviam-me visões.
Baelor, o
Abençoado, também havia tido visões. Especialmente quando jejuava.
- Há
quanto tempo não come?
- A fé é
todo o alimento de que necessito.
- A fé é
como mingau de aveia. É melhor com leite e mel.
- Sonhei
que viria. No sonho, sabia o que fiz. Como pequei. Você me matou por
isso.
- É mais
provável que seja você a se matar com todos esses jejuns. Não foi
Baelor, o Abençoado, que jejuou até o ataúde?
- Nossa
vida é como a chama de uma vela, segundo a Estrela de Sete Pontas.
Qualquer brisa errante pode nos apagar. A morte nunca está longe
neste mundo, e sete infernos esperam os pecadores que não se
arrependem de seus pecados. Reze comigo, Jaime.
- Se
assim fizer, comerá uma tigela de mingau? - quando o primo não
respondeu, Jaime suspirou. - Devia estar dormindo com sua mulher, não
com a Donzela. Precisa de um filho com sangue Darry se quiser manter
este castelo.
- Uma
pilha de pedras frias. Nunca a pedi. Nunca a desejei. Só desejava...
- Lancel estremeceu. - Que os Sete me salvem, mas eu desejava ser
você.
Jaime
teve de rir.
- É
melhor ser eu do que o Abençoado Baelor. Darry precisa de um leão,
primo. E nossa pequena Frey também. Ela fica úmida entre as pernas
sempre que alguém menciona Pedra-Dura. Se ainda não se deitou com
ele, deitará em breve.
- Se o
ama, desejo-lhes felicidade.
- Um leão
não devia ter cornos. Tomou a garota como esposa.
- Disse
algumas palavras e dei-lhe um manto vermelho, mas só para agradar a
meu pai. O casamento requer a consumação. O Rei Baelor foi obrigado
a se casar com a irmã Daena, mas nunca viveram como marido e mulher,
e ele a pôs de lado assim que foi coroado.
- O reino
teria ficado mais bem servido se ele tivesse fechado os olhos e
fodido a irmã. Conheço história suficiente para saber disso. Seja
como for, não é provável que o confundam com Baelor, o Abençoado.
- Não -
Lancel admitiu. - Ele era um espírito raro, puro, bravo e inocente,
intocado por todo o mal do mundo. Eu sou um pecador, com muitíssimo
a expiar.
Jaime
pousou a mão no ombro do primo.
- O que
você sabe sobre pecado, primo? Eu matei o meu rei.
- O homem
corajoso mata com uma espada, o covarde com um odre de vinho. Somos
ambos regicidas, sor.
- Robert
não era um verdadeiro rei. Há até quem diga que o veado é a presa
natural do leão - Jaime conseguia sentir os ossos sob a pele do
primo... e também algo mais. Lancel usava um cilício por baixo da
túnica. - Que mais fez que requeira tanta expiação? Diga-me.
O primo
abaixou a cabeça, com lágrimas deslizando pelo rosto.
Essas
lágrimas foram toda a resposta de que Jaime precisou.
- Matou o
rei -disse - e depois fodeu a rainha.
- Eu
nunca...
- ... se
deitou com a minha querida irmã? - diga. Diga!
- Nunca
derramei minha semente dentro... dentro...
- ... da
boceta? - Jaime sugeriu.
- ... do
ventre - Lancel concluiu. - Não é traição, a menos que se termine
lá dentro. Dei-lhe conforto, depois de o rei morrer. Você tinha
sido capturado, seu pai encontrava-se em campo, e seu irmão... ela
tinha medo dele, e com bons motivos. Ele me obrigou a traí-la.
- Ah
obrigou? - Lancel, Sor Osmund e quantos mais? Seria a parte sobre o
Rapaz Lua só um sarcasmo? - Forçou-o?
- Não!
Eu a amava. Queria protegê-la.
Queria
ser eu. Seus dedos fantasma coçaram. No dia em que a irmã viera à
Torre da Espada Branca para lhe suplicar que renunciasse aos seus
votos, rira-se depois de ele a recusar e vangloriara-se de lhe ter
mentido mil vezes. Jaime tomara aquilo como uma tentativa desajeitada
de feri-lo como ele a ferira. Pode ter sido a única coisa verdadeira
que ela alguma vez me disse.
- Não
pense mal da rainha - Lancel suplicou. - Toda carne é fraca, Jaime.
Nenhum mal proveio de nosso pecado. Nenhum... nenhum bastardo.
- Nenhum.
Os bastardos raramente são feitos na barriga - perguntou a si mesmo
o que o primo diria se lhe confessasse seus pecados, as três
traições a que Cersei dera os nomes de Joffrey, Tommen e Myrcella.
- Fiquei
zangado com Sua Graça depois da batalha, mas o Alto Septão disse
que eu devia perdoá-la.
- Ah,
confessou seus pecados a Sua Alta Santidade?
- Ele
rezou por mim quando fui ferido. Era um bom homem.
É um
homem morto. Fizeram soar os sinos por ele. Perguntou a si mesmo se o
primo faria alguma ideia do fruto que suas palavras tinham gerado.
- Lancel,
é um maldito tolo.
- Não se
engana - Lancel retrucou - mas minha tolice ficou para trás, sor.
Pedi ao Pai no Céu para me mostrar o caminho, e ele mostrou. Vou
renunciar a esta senhoria e a esta esposa. Pedra-Dura pode ficar com
ambas, se quiser. Amanhã regressarei a Porto Real e juramentarei
espada ao novo Alto Septão e aos Sete. Pretendo proferir votos e
juntar-me aos Filhos do Guerreiro.
O rapaz
não falava coisa com coisa.
- Os
Filhos do Guerreiro foram proscritos há trezentos anos.
- O novo
Alto Septão os fez renascer. Emitiu um chamado aos guerreiros de
mérito para colocarem a vida e a espada a serviço dos Sete. Os
Pobres Companheiros também serão restaurados.
- Por que
o Trono de Ferro permitiria tal coisa? - Jaime lembrava-se de que um
dos primeiros reis Targaryen lutara durante anos para suprimir as
duas ordens militares, embora não recordasse qual. Maegor, talvez,
ou o primeiro Jaehaerys. Tyrion saberia.
- Sua
Alta Santidade escreveu que o Rei Tommen deu seu consentimento.
Mostro-lhe a carta, se quiser.
- Mesmo
se isso for verdade... é um leão do Rochedo, um senhor. Tem esposa,
castelo, terras a defender, pessoas a proteger. Se os deuses forem
bons, terá filhos do seu sangue para sucedê-lo. Por que jogaria
tudo isso fora em troca... em troca de um voto qualquer?
- Por que
você o fez? - Lancel perguntou em voz baixa.
Por
honra, poderia ter dito Jaime. Por glória. Mas teria sido mentira. A
honra e a glória tinham desempenhado seus papéis, mas a maior parte
do motivo fora Cersei. Uma gargalhada escapou de seus lábios.
- Vai
correr para junto do Alto Septão ou de minha querida irmã? Reze por
isso, primo. Reze muito.
- Rezará
comigo, Jaime?
Olhou em
volta, para os deuses do septo. A Mãe, cheia de misericórdia. O
Pai, severo em julgamento. O Guerreiro, com uma mão sobre a espada.
O Estranho, nas sombras, com o rosto meio humano escondido sob um
capuz. Julgava que eu era o Guerreiro e Cersei a Donzela, mas todo o
tempo ela foi o Estranho, escondendo seu verdadeiro rosto do meu
olhar.
- Reze
por mim, se quiser - disse ao primo. - Esqueci todas as palavras.
Os
pardais ainda esvoaçavam em volta dos degraus quando Jaime voltou a
sair para a noite.
-
Obrigado - disse-lhes. - Agora me sinto muito mais santo.
E foi em
busca de Sor Ilyn e de um par de espadas.
O pátio
do castelo estava cheio de olhos e ouvidos. Para fugir deles,
procuraram o bosque sagrado de Darry. Ali não havia pardais, só
árvores nuas e sombrias, com galhos negros que arranhavam o céu. Um
tapete de folhas mortas rangia sob seus pés.
- Vê
aquela janela, sor? - Jaime usou uma espada para apontar. - Ali era o
quarto de Raymun Darry, Onde o Rei Robert dormiu, em nosso regresso
de Winterfell. A filha de Ned Stark tinha fugido depois de seu lobo
ter atacado Joff, deve se lembrar. Minha irmã quis que a garota
perdesse uma mão. A velha punição por bater em alguém de sangue
real. Robert disse-lhe que era cruel e louca. Levaram metade da noite
discutindo... Bem, Cersei discutiu, e Robert bebeu. Já depois da
meia-noite, a rainha me chamou. O rei estava sem sentidos, ressonando
no tapete de Myr. Perguntei à minha irmã se queria que o levasse
para a cama. Ela me disse que devia levá-la para a cama, e se
desembaraçou do roupão. Possuí-a na cama de Raymun Darry, depois
de passar por cima de Robert. Se Sua Graça tivesse acordado, eu o
teria matado naquele momento, naquele lugar. Não seria o primeiro
rei a morrer pela minha espada... Mas conhece essa história, não é
verdade? - golpeou um galho de árvore, partindo-o ao meio. -
Enquanto a fodia, Cersei gritou: “Eu quero". Julguei que se
referia a mim, mas o que ela queria era a garota Stark, mutilada ou
morta - as coisas que faço por amor. - Foi só por sorte que os
homens dos Stark encontraram a garota antes de mim. Se eu tivesse
dado com ela primeiro...
As marcas
de bexigas no rosto de Sor Ilyn eram buracos negros à luz do
archote, tão escuras como a alma de Jaime, e então ele fez aquele
som de estalar.
Está
rindo de mim, Jaime Lannister compreendeu.
- Tanto
quanto sei, você também fodeu minha irmã, seu bastardo de cara
bexigosa - cuspiu. - Bem, feche a merda da boca e me mate, se
conseguir.
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