sábado, 21 de setembro de 2013

31 - BRIENNE



A septeria erguia-se numa ilha que se projetava da superfície, a meia milha da costa, no local onde a extensa foz do Tridente se alargava ainda mais para beijar a Baía dos Caranguejos. Sua prosperidade era evidente até da costa. As encostas encontravam-se cobertas de campos em terraços, com lagoas cheias de peixes na base e, no cume, um moinho de vento, cujas velas de madeira e lona giravam lentamente empurradas pela brisa que soprava da baía. Brienne viu ovelhas pastando na vertente da colina e cegonhas caminhando pelas águas pouco profundas que rodeavam o desembarcadouro.
- Salinas fica mesmo em frente - disse Septão Meribald, apontando para o norte, para lá da baía. - Os irmãos nos levarão até lá na maré da manhã, embora tema o que iremos encontrar. Apreciemos uma boa refeição quente antes de enfrentarmos isso. Os irmãos têm sempre um osso a mais para o Cão - o Cão latiu e abanou a cauda.
A maré agora descia, e depressa. A água que separava a ilha da costa recuava, deixando para trás uma larga extensão de cintilantes lodaçais marrons, salpicados de lagoas de maré que resplandeciam como moedas de ouro ao sol da tarde. Brienne coçou a parte de trás do pescoço, onde um inseto a mordera. Prendera os cabelos no alto da cabeça, e o sol aquecera-lhe a pele.
- Por que a chamam Ilha Quieta? - Podrick quis saber.
- Aqueles que lá habitam são penitentes, que procuram expiar seus pecados através da contemplação, da reza e do silêncio. Só o Irmão Mais Velho e seus funcionários têm autorização para falar, e estes últimos só podem falar durante um dia a cada sete.
- As irmãs silenciosas nunca falam - Podrick retrucou. - Ouvi dizer que não têm língua.
Septão Meribald sorriu.
- As mães já intimidavam as filhas com essa história quando eu tinha a sua idade. Não havia nenhuma verdade nela naquela época, e continua a não haver agora. Um voto de silêncio é um ato de contrição, um sacrifício, através do qual demonstramos nossa devoção aos Sete no Céu. Um mudo tomar um voto de silêncio seria como um homem sem pernas desistir da dança - levou o burro pela ladeira, fazendo sinal aos outros para o seguirem. - Se quiserem dormir sob um teto esta noite, terão de desmontar e atravessar a lama comigo. Chamamos este o caminho da fé. Só os fiéis podem atravessar em segurança. Os malvados são engolidos pelas areias movediças ou se afogam quando a maré sobe. Nenhum de vocês é malvado, espero eu. Mesmo assim, eu teria cuidado com o lugar onde ponho os pés. Caminhem apenas por onde eu caminhar, e chegarão ao outro lado.
Brienne não pôde deixar de reparar que o caminho da fé era tortuoso. Embora a ilha parecesse se erguer a nordeste do local onde deixaram a costa para trás, Septão Meribald não se dirigiu diretamente para lá. Em vez disso, arrancou para leste, na direção das águas mais profundas da baía, que cintilavam, azuis e prateadas, a distância. A mole lama marrom esguichava por entre os dedos de seus pés. Enquanto caminhava, parava de vez em quando para sondar o caminho em frente com o cajado. O Cão mantinha-se junto aos seus calcanhares, farejando todas as pedras, conchas e aglomerados de algas. Para variar, não saltou na frente nem se pôs a vaguear.
Brienne seguiu-o, tendo o cuidado de se manter perto da fila de pegadas deixadas pelo cão, pelo burro e pelo homem santo. Depois vinha Podrick, e por fim Sor Hyle. A cem metros da margem, Meribald virou subitamente para o sul, ficando praticamente de costas voltadas para a septeria. Seguiu nessa direção por mais cem metros, levando-os por entre duas lagoas de maré pouco profundas. O Cão enfiou o focinho numa delas e ganiu quando um caranguejo o beliscou com a pinça. Seguiu-se uma breve mas furiosa luta, até que o Cão regressou a trote, molhado e salpicado de lama, com o caranguejo entre as mandíbulas.
- Não é para lá que queremos ir? - gritou Sor Hyle lá de trás, apontando para a septeria. - Parecemos caminhar para todos os lados, menos para aquele lugar.
- Fé - pediu o Septão Meribald. - Acredite, persista e siga, assim encontraremos o lugar que procuramos.
Os baixios cintilavam, úmidos, a toda a volta, salpicados de meia centena de cores. A lama era de um marrom tão escuro que parecia quase negro, mas havia também faixas de areia dourada, rochas que se projetavam em tons de cinza e vermelho, e emaranhados de algas negras e verdes. Cegonhas caminhavam por entre as lagoas de maré e deixavam suas pegadas por todo lado, e caranguejos fugiam pela superfície de águas pouco profundas. O ar cheirava a maresia e a putrefação, e o terreno sugava-lhes os pés e só os largava com relutância, com um estalo e um suspiro lamacento. Septão Meribald virou, voltou a virar, e virou uma vez mais. Suas pegadas enchiam-se de água assim que ele avançava. Quando o solo se tornou mais firme e começou a se erguer sob seus pés, tinham caminhado pelo menos uma milha e meia.
Três homens estavam à espera deles quando subiram pelas pedras quebradas que rodeavam a linha de costa da ilha. Trajavam as vestes marrom-escuras de irmãos, com largas mangas em forma de sino e capuz pontiagudo. Dois também tinham enrolado faixas de lã em volta da metade inferior do rosto, de modo que tudo que se conseguia ver deles eram os olhos. O terceiro irmão era aquele que falava.
- Septão Meribald - chamou. - Já se passou quase um ano. Seja bem-vindo. E seus companheiros também.
O Cão abanou a cauda e Meribald sacudiu lama dos pés.
- Podemos pedir-lhes hospitalidade por uma noite?
- Claro que sim. Esta noite há guisado de peixe. Irá precisar do barco de manhã?
- Se não for pedir muito - Meribald virou-se para os companheiros de viagem. - Irmão Narbert é funcionário da ordem, de modo que lhe é permitido falar um dia a cada sete. Irmão, estas boas pessoas ajudaram-me na viagem. Sor Hyle Hunt é um galante cavaleiro vindo da Campina. O garoto é Podrick Payne, originário das terras ocidentais. E esta é a Senhora Brienne, conhecida como a Donzela de Tarth.
Irmão Narbert parou de repente.
- Uma mulher.
- Sim, irmão - Brienne soltou os cabelos e os sacudiu. - Não há mulheres aqui?
- Atualmente, não - Narbert respondeu. - As mulheres que nos visitam vêm até nós doentes, feridas ou muito grávidas. Os Sete abençoaram nosso Irmão Mais Velho com mãos curativas. Ele devolveu a saúde a muitos homens que nem mesmo os meistres conseguiam curar, e a muitas mulheres também.
- Não estou doente, nem ferida, muito menos grávida.
- Senhora Brienne é uma donzela guerreira - confidenciou Septão Meribald - e anda em busca do Cão de Caça.
- Ah, sim? - Narbert pareceu surpreso. - Para que fim?
Brienne tocou o cabo da Cumpridora de Promessas.
- Para este - respondeu.
O funcionário a estudou.
- É... musculosa para uma mulher, é verdade, mas... talvez deva levar este assunto ao Irmão Mais Velho. Ele deve tê-la visto atravessar a lama. Venha.
Narbert os levou por um caminho de seixos que penetrava um pomar de macieiras e levava a um estábulo caiado com um bicudo telhado de colmo.
- Podem deixar aqui os animais. Irmão Gillam se assegurará de que lhes sejam fornecidos alimentos e água.
Mais de três quartos do estábulo encontravam-se vazios. Num a das extremidades via-se meia dúzia de mulas, que eram tratadas por um pequeno irmão de pernas arqueadas que Brienne tomou por Gillam. Ao fundo, na parte mais distante, bem afastado dos outros animais, um enorme garanhão negro berrou ao ouvir as vozes dos recém-chegados e escoiceou a porta de sua cocheira.
Sor Hyle deitou ao grande cavalo um olhar de admiração enquanto entregava as rédeas a Irmão Gillam,
- Um belo animal.
Irmão Narbert suspirou.
- Os Sete enviam-nos bênçãos, e os Sete enviam-nos provações. Até pode ser belo, mas o Trazido Pela Correnteza foi com certeza parido no inferno. Quando tentamos atá-lo a um arado, escoiceou o Irmão Rawney e partiu-lhe a tíbia em dois lugares. Tínhamos esperança de que a castração pudesse melhorar o mau temperamento do animal, mas... Irmão Gillam, pode mostrar a eles?
Irmão Gillam tirou o capuz. Por baixo dele havia cabelos loiros embaraçados, uma tonsura no topo da cabeça e um curativo manchado de sangue onde ficava uma orelha.
Podrick susteve a respiração,
- O cavalo arrancou sua orelha à dentada?
Gillam assentiu e voltou a cobrir a cabeça.
- Perdoe-me, irmão - disse Sor Hyle - mas eu poderia arrancar-lhe a outra orelha, se se aproximasse de mim com uma tesoura.
A brincadeira não caiu bem para Irmão Narbert.
- É um cavaleiro, sor. O Trazido Pela Correnteza é um animal de carga. O Ferreiro deu cavalos aos homens para ajudá-los em seu trabalho - virou-se. - Por favor. O Irmão Mais Velho certamente está à espera.
O declive era mais acentuado do que parecera do outro lado dos baixios. Para facilitar a subida, os irmãos tinham subido um lance de escadas de madeira, que vagueavam de um lado para o outro ao longo da vertente e por entre os edifícios. Depois de um longo dia na sela, Brienne sentiu-se contente pela oportunidade de esticar as pernas.
Passaram por uma dúzia de membros da ordem durante a subida; homens encapuzados e vestidos de marrom-escuro que lhes lançavam olhares curiosos ao passar, mas não proferiam nenhuma saudação. Um deles levava um par de vacas leiteiras para um pequeno celeiro com telhado coberto de grama; outro manejava uma batedeira de manteiga. Nas vertentes mais elevadas viram três rapazes conduzindo ovelhas, e ainda mais acima passaram por um cemitério, onde um irmão maior do que Brienne lutava para cavar uma sepultura. Pelo modo como se movia, era evidente que o homem era coxo. Ao atirar uma pá de solo pedregoso por sobre um ombro, um punhado caiu sobre os pés do grupo.
- Mais cuidado com isso - repreendeu-o Irmão Narbert. - Septão Meribald podia ter ficado com a boca cheia de terra - o coveiro abaixou a cabeça. Quando Cão foi farejá-lo, deixou cair a pá e coçou-lhe uma orelha.
- Um noviço - Narbert explicou.
- Para quem é a sepultura? - Sor Hyle perguntou quando retomaram a subida pelos degraus de madeira.
- Para o Irmão Clement, que o Pai o julgue com justiça.
- Era velho? - Podrick Payne quis saber,
- Se achar que quarenta e oito anos é velho, sim, mas não foram os anos que o mataram. Morreu de ferimentos sofridos em Salinas. Tinha levado um pouco de nosso hidromel ao mercado de lá, no dia em que os fora da lei caíram sobre a vila.
- Cão de Caça? - Brienne falou.
- Outro, igualmente brutal. Cortou a língua do pobre Clement quando ele se recusou a falar. Visto que tinha tomado um voto de silêncio, o assaltante disse que não precisava dela. O Irmão Mais Velho há de saber mais. Ele guarda para si o pior das notícias do exterior, para não perturbar a tranquilidade da septeria. Muitos de nossos irmãos vieram para cá para escapar aos horrores do mundo, não para relembrá-los. Irmão Clement não foi o único homem ferido entre nós. Há ferimentos que não se veem - Irmão Narbert fez um gesto para a direita. - Ali fica o nosso pomar de verão. As uvas são pequenas e ácidas, mas dão um vinho bebível. Também fazemos nossa própria cerveja, e a fama do hidromel e da cidra que fazemos chega longe.
- A guerra não chegou aqui? - Brienne perguntou.
- Essa guerra não, graças aos Sete. Nossas preces nos protegem.
- E as suas marés - sugeriu Meribald, Cão latiu seu acordo.
O topo do monte era coroado por um muro baixo de pedra solta, que cercava um aglomerado de grandes edifícios; o moinho, com as pás rangendo enquanto giravam, os claustros onde os irmãos dormiam e o edifício comum onde faziam as refeições, um septo de madeira para orações e meditação, com janelas de vitral, largas portas esculpidas com retratos da Mãe e do Pai, e um campanário de sete lados com um terraço no topo. Por trás, estendia-se um jardim para cultivo de legumes, onde alguns irmãos mais velhos arrancavam ervas daninhas. Irmão Narbert fez os visitantes darem a volta em um castanheiro e os levou até uma porta de madeira instalada na face do monte.
- Uma gruta com uma porta? - Sor Hyle exclamou, surpreso.
Septão Meribald sorriu.
- Chama-se Buraco do Eremita. O primeiro homem santo a descobrir o caminho até aqui viveu lá dentro e alcançou tantas maravilhas que outros vieram se juntar a ele. Isso foi há dois mil anos, segundo dizem. A porta apareceu algum tempo mais tarde.
Há dois mil anos o Buraco do Eremita talvez tivesse sido um lugar úmido e escuro, com chão de terra e ecos de água pingando, mas já não era assim. A gruta em que Brienne e seus companheiros entraram tinha sido transformada em um santuário quente e acolhedor. Tapetes de lã cobriam o chão, tapeçarias enfeitavam as paredes. Altas velas de cera de abelha davam uma luminosidade mais do que ampla. A mobília era estranha, mas simples; uma longa mesa, um banco comprido de costas altas, uma arca, várias estantes altas, cheias de livros, e cadeiras. Tudo fora feito de madeira trazida pela correnteza, pedaços com formas estranhas astuciosamente unidos e polidos até brilharem com um profundo tom dourado à luz das velas.
O Irmão Mais Velho não era aquilo que Brienne esperava encontrar. Dificilmente poderia ser chamado mais velho, para começar; enquanto os irmãos que arrancavam ervas daninhas no jardim tinham os ombros caídos e as costas encurvadas dos velhos, ele erguia-se alto e reto, e se deslocava com o vigor de um homem no auge de seus anos. Tampouco mostrava o rosto gentil e bondoso que ela tinha esperado de um curandeiro. Sua cabeça era grande e quadrada, os olhos sagazes, e o nariz vermelho e coberto de veias. Embora usasse uma tonsura, seu couro cabeludo mostrava-se tão hirsuto quanto o pesado queixo.
Parece-se mais com um homem feito para quebrar ossos do que p ara curá-los, pensou a Donzela de Tarth enquanto o Irmão Mais Velho atravessava a sala em passos largos para ir abraçar Septão Meribald e fazer festas ao Cão.
- É sempre um dia alegre quando nossos amigos Meribald e Cão nos honram com outra visita - anunciou, antes de se virar para seus outros hóspedes. - E novos rostos são sempre bem-vindos. Vemos tão poucos...
Meribald entregou-se às cortesias de costume antes de se sentar no banco. Ao contrário do Irmão Narbert, o Irmão Mais Velho não pareceu consternado pelo sexo de Brienne, mas seu sorriso vacilou e se desvaneceu quando o septão lhe contou o motivo por que ela e Sor Hyle tinham vindo.
- Entendo - foi tudo que disse, antes de se virar para eles. - Devem ter sede. Por favor, bebam um pouco de nossa cidra doce para lavar a poeira da viagem de suas gargantas - ele mesmo os serviu. As taças também tinham sido esculpidas em madeira trazida pela correnteza, e não havia duas iguais. Quando Brienne as elogiou, disse: - A senhora é muito gentil. Tudo que fazemos é cortar e polir a madeira. Aqui somos abençoados. No local onde o rio se encontra com a baía, as correntes e marés lutam umas contra as outras, e muitas coisas estranhas e maravilhosas são empurradas em nossa direção e vêm dar às nossas costas. A madeira é o de menos. Encontramos taças de prata e potes de ferro, sacas de lã e fardos de seda, elmos enferrujados e espadas cintilantes... sim, e também rubis.
Aquilo interessou Sor Hyle.
- Os rubis de Rhaegar?
- Talvez. Quem poderá dizer? A batalha aconteceu a muitas léguas daqui, mas o rio é incansável e paciente. Foram encontrados seis. Estamos todos à espera do sétimo.
- Antes rubis do que ossos - Septão Meribald esfregava o pé, fazendo cair flocos de lama de sob os dedos. - Nem todos os presentes do rio são agradáveis. Os bons irmãos também recolhem os mortos. Vacas e veados afogados, porcos mortos inchados e com até metade do tamanho de cavalos. Sim, e cadáveres.
- Muitos cadáveres, nos dias que correm - o Irmão Mais Velho suspirou. - Nosso coveiro não tem descanso. Homens do rio, homens do ocidente, homens do norte, todos vêm dar aqui à costa. Tanto cavaleiros quanto canalhas. Nós os enterramos lado a lado, Stark e Lannister, Blackwood e Bracken, Frey e Darry. E este o dever que o rio nos pede em troca de todos os seus presentes, e nós o cumprimos o melhor que podemos. Mas por vezes encontramos uma mulher... Ou, pior, uma criança morta. Esses são os presentes mais cruéis - virou-se para o Septão Meribald. - Espero que tenha tempo para absolver nossos pecados. Desde que os assaltantes mataram o velho Septão Bennet, não temos ninguém para nos ouvir em confissão.
- Arranjarei tempo - Meribald respondeu - embora espere que tenha pecados melhores do que os da última vez em que passei por aqui - Cão latiu. - Vê? Até o Cão se aborreceu.
Podrick Payne estava confuso.
- Pensava que ninguém podia falar. Bem, ninguém não. Os irmãos. Os outros irmãos, vocês não.
- É permitido quebrar o silêncio em confissão - o Irmão Mais Velho explicou. - É difícil falar de pecado com mímicas.
- Queimaram o septo em Salinas? - Hyle Hunt perguntou.
O sorriso sumiu.
- Em Salinas queimaram tudo, exceto o castelo. Só ele era feito de pedra... embora pudesse perfeitamente ter sido feito de sebo, pelo bem que fez à vila. Caiu sobre mim o dever de tratar alguns dos sobreviventes. Os pescadores os trouxeram do outro lado da baía, depois de as chamas terem se apagado e eles julgarem ser seguro rumar para a terra. Uma pobre mulher tinha sido violada uma dúzia de vezes, e seus seios... Senhora, usa cota de malha de homem, de modo que não lhe pouparei a esses horrores... Seus seios tinham sido rasgados, mastigados e comidos, como que por algum... animal cruel. Fiz o que pude por ela, embora fosse bem pouco. Ao morrer, suas piores pragas não foram dirigidas contra os homens que a tinham violado, nem contra o monstro que devorara sua carne viva, mas contra Sor Quincy Cox, que trancou os portões quando os fora da lei entraram na vila e ficou a salvo atrás de muralhas de pedra enquanto seu povo gritava e morria.
- Sor Quincy é um velho - disse com gentileza Septão Meribald. - Seus filhos e netos andam distantes ou estão mortos, os netos ainda são garotos, e tem duas filhas. O que poderia ter feito um homem contra tantos?
Poderia ter tentado, pensou Brienne. Poderia ter morrido. Velho ou novo, um verdadeiro cavaleiro jura proteger aqueles que são mais fracos do que ele, ou morrer tentando.
- Palavras verdadeiras e sábias - disse o Irmão Mais Velho ao Septão Meribald. - Quando fizer a travessia para Salinas, sem dúvida Sor Quincy lhe pedirá perdão. Alegra-me que esteja aqui para dá-lo. Eu não consegui - pôs de lado a taça de madeira trazida pela correnteza e se levantou. - O sino para o jantar tocará em breve. Meus amigos, querem vir comigo ao septo, rezar pelas almas da boa gente de Salinas, antes de nos sentarmos para partir o pão e compartilhar um pouco de comida e bebida?
- De bom grado - Meribald respondeu, e Cão latiu.
O jantar na septeria foi a refeição mais estranha que Brienne já comera, embora não fosse de todo desagradável. A comida era simples, mas muito boa; havia pães estaladiços e ainda quentes do forno, recipientes de barro cheios de manteiga recém-batida, mel proveniente das colmeias da septeria e um espesso guisado de caranguejo, mexilhão e pelo menos três tipos de peixe. Septão Meribald e Sor Hyle beberam do hidromel que os irmãos faziam e declararam-no excelente, enquanto ela e Podrick contentavam-se com mais cidra doce. E a refeição também não foi melancólica. Meribald proferiu uma prece antes de ser servida a comida, e enquanto os irmãos comiam em quatro longas mesas de montar, um deles tocou harpa vertical, enchendo a sala de sons suaves e doces. Quando o Irmão Mais Velho dispensou o músico para que fosse comer, Irmão Narbert e outro funcionário se alternaram na leitura de trechos de A Estrela de Sete Pontas.
Quando as leituras foram concluídas, o que restava da comida tinha sido levado por noviços cuja tarefa era servir. A maioria era de garotos com idade próxima à de Podrick, ou mais novos, mas havia também adultos, incluindo o grande coveiro que tinham encontrado no monte, que caminhava com o desajeitado porte oscilante de alguém que é meio aleijado. Quando a sala se esvaziou, o Irmão Mais Velho pediu a Narbert para levar Podrick e Sor Hyle para seus catres nos claustros.
- Não se importam de partilhar uma cela, espero? Não é grande, mas irão achá-la confortável.
- Quero ficar com o sor - disse Podrick. - Quer dizer, com a senhora.
- O que você e a Senhora Brienne fazem fora daqui é entre vocês e os Sete - disse o Irmão Narbert - mas, na Ilha Quieta, os homens e as mulheres não dormem sob o mesmo teto, a menos que sejam casados.
- Temos algumas cabanas modestas reservadas para as mulheres que nos visitam, sejam senhoras nobres ou simples garotas de aldeia - disse o Irmão Mais Velho. - Não são usadas com frequência, mas as mantemos limpas e secas. Senhora Brienne, permita-me que lhe mostre o caminho?
- Sim, obrigada. Podrick, vá com Sor Hyle. Aqui somos hóspedes dos irmãos santos. Sob o teto deles, valem as suas regras.
As cabanas das mulheres ficavam do lado oriental da ilha, com vista para uma larga extensão de lama e as águas distantes da Baía dos Caranguejos. Ali fazia mais frio do que do lado abrigado, e era um lugar mais selvagem. O monte era mais inclinado, e o caminho meandrava de um lado para o outro por entre ervas e sarças, rochedos esculpidos pelo vento e árvores retorcidas e espinhosas que se agarravam tenazmente à vertente pedregosa. Em uma das curvas, o Irmão Mais Velho fez uma pausa.
- Num a noite límpida, era possível ver daqui os incêndios de Salinas. Fica logo ali, do outro lado da baía - ele apontou.
- Não há nada - Brienne observou.
- Só resta o castelo. Até os pescadores foram embora, os poucos afortunados que estavam na água quando os assaltantes chegaram. Viram as casas queimarem e ouviram os berros e os gritos flutuando pelo porto, com medo demais para levar os barcos para terra. Quando por fim desembarcaram, foi para enterrar amigos e familiares. O que há agora para eles em Salinas além de ossos e memórias amargas? Mudaram-se para Lagoa da Donzela ou para outras vilas - fez um gesto com a lanterna, e retomaram a descida. -Salinas nunca foi um porto importante, mas os navios visitavam-no de vez em quando. Era isso que os assaltantes queriam, uma galé ou uma coca que os levasse para o outro lado do mar estreito. Quando descobriram que não havia nenhuma, fizeram cair a raiva e o desespero sobre o povo da vila. Pergunto-me, senhora... O que espera encontrar ali?
- Uma garota - disse-lhe. - Uma garota bem-nascida de treze anos, com um rosto bonito e cabelos ruivos.
- Sansa Stark? - o nome foi dito em voz baixa. - Acha que essa pobre criança está com Cão de Caça?
- O dornês disse que ela ia a caminho de Correrrio. Timeon. Era mercenário, um dos Bravos Companheiros, um assassino, violador e mentiroso, mas não me parece que tenha mentido a respeito disso. Disse que Cão de Caça a raptou e a levou consigo.
- Entendo - o caminho descreveu uma curva e ali estavam as cabanas, diante deles. O Irmão Mais Velho referira-se a elas como modestas. E eram. Pareciam colmeias feitas de pedra, baixas e arredondadas, sem janelas. - Esta - disse, indicando a cabana mais próxima, a única que tinha fumaça saindo do buraco no meio do telhado. Brienne teve de se abaixar quando entrou, para evitar bater a cabeça no lintel. Lá dentro encontrou um chão de terra batida, um catre de palha, peles e mantas para mantê-la aquecida, uma pequena fogueira e duas cadeiras baixas. O Irmão Mais Velho sentou-se numa e pousou a lanterna.
- Posso ficar por um momento? Acho que devíamos conversar.
- Se quiser - Brienne desprendeu o cinto da espada e o pendurou na segunda cadeira, após o que se sentou de pernas cruzadas sobre o catre.
- Seu dornês não mentiu - começou o Irmão Mais Velho - mas temo que não o tenha compreendido. Anda perseguindo o lobo errado, senhora. Eddard Stark tinha duas filhas. Foi a outra que Sandor Clegane capturou, a mais nova.
- Arya Stark? - Brienne fitou o homem de boca aberta, estupefata, - Tem certeza? A irmã da Senhora Sansa está viva?
- Àquela altura estava - o Irmão Mais Velho respondeu. - Agora... não sei. Pode estar entre as crianças mortas em Salinas.
As palavras foram como uma faca em sua barriga. Não, pensou Brienne. Não, isso seria cruel demais.
- Pode estar... Quer dizer que não tem certeza...?
- Estou certo de que a pequena esteve com Sandor Clegane na estalagem junto ao entroncamento, aquela que era da velha Masha Heddle antes de os leões a enforcarem. Estou certo de que iam a caminho de Salinas. Além disso... não. Não sei onde ela se encontra ou até se está viva. Mas há uma coisa que sei. O homem que persegue está morto.
Aquilo foi outro choque.
- Como foi que ele morreu?
- Como viveu, pela espada.
- Tem certeza disso?
- Fui eu mesmo quem o enterrou. Posso lhe dizer onde fica a sepultura, se quiser. Cobri-o com pedras para evitar que os necrófagos desenterrassem sua carne, e pousei o elmo no topo do monte, para identificar o local de seu último descanso. Este foi um grave erro. Outro viajante qualquer descobriu minha marca e ficou com ela. O homem que violou e matou em Salinas não foi Sandor Clegane, embora talvez seja igualmente perigoso. As terras fluviais estão cheias desse tipo de devoradores de carniça. Não os chamarei lobos. Estes são mais nobres do que isso... e os cães também, julgo eu. Sei um pouco sobre esse homem, Sandor Clegane. Foi escudo juramentado do Príncipe Joffrey durante muitos anos, e até aqui ouvíamos falar de seus feitos, tanto os bons como os maus. Se metade do que ouvimos é verdade, tratava-se de uma alma amarga e atormentada, de um pecador que troçava igualmente dos deuses e dos homens. Ele servia, mas não encontrava orgulho no serviço. Lutava, mas não obtinha alegria da vitória. Bebia para afogar a dor num mar de vinho. Não amava, e tampouco era amado. Era o ódio que o movia. Embora cometesse muitos pecados, nunca procurava perdão. Enquanto outros homens sonham com amor, ou com riqueza, ou glória, esse Sandor Clegane sonhava matar o próprio irmão, um pecado tão terrível que me faz estremecer só de falar nele. E, no entanto, era esse o pão que o nutria, o combustível que mantinha suas fogueiras queimando. Por ignóbil que fosse, a esperança de ver o sangue do irmão em sua espada era tudo aquilo para que vivia aquela triste e furiosa criatura... E até isso lhe foi roubado, quando o Príncipe Oberyn de Dorne apunhalou Sor Gregor com uma lança envenenada.
- Parece ter pena dele - disse Brienne.
- E tive. Você também teria se apiedado dele, se o tivesse visto no fim. Deparei com ele junto ao Tridente, atraído por seus gritos de dor. Suplicou-me que lhe desse a misericórdia, mas jurei não voltar a matar. Em vez disso, banhei-lhe a testa febril com água do rio, dei-lhe vinho e fiz um cataplasma para o ferimento, mas meus esforços foram pequenos e tardios demais. Cão de Caça morreu ali, em meus braços. Talvez tenha visto um grande garanhão negro em nossos estábulos. Era seu cavalo de guerra, Estranho. Um nome blasfemo. Preferimos chamá-lo de Trazido Pela Correnteza, uma vez que foi encontrado junto ao rio. Temo que o animal tenha a natureza do antigo dono.
O cavalo. Vira o garanhão, ouvira-o escoicear, mas não tinha compreendido. Os corcéis de batalha eram treinados para escoicear e morder. Na guerra, eram uma arma, assim como os homens que os montavam. Como Cão de Caça.
- Então é verdade - Brienne disse sem emoção na voz. - Sandor Clegane está morto.
- Repousa - o Irmão Mais Velho fez uma pausa - É jovem, filha. Já contei quarenta e quatro dias de meu nome... o que faz que tenha mais que o dobro de sua idade, julgo eu. Você se surpreenderia em saber que já fui um cavaleiro?
- Não. Parece mais um cavaleiro do que um homem santo - estava escrito em seu peito e ombros e naquele grande maxilar quadrado. - Por que desistiu da cavalaria?
- Nunca a escolhi. Meu pai era um cavaleiro, assim como o dele tinha sido. E meus irmãos também, todos eles. Fui treinado para a batalha desde o dia em que me acharam com idade suficiente para pegar em uma espada de madeira. Vi minha cota de batalhas, e não me desgracei. Também tive mulheres, e então me desgracei, pois algumas tomei pela força. Havia uma garota com quem desejava me casar, a filha mais nova de um pequeno lorde, mas era o terceiro filho de meu pai e não tinha nem terras nem riquezas para lhe oferecer... só uma espada, um cavalo, um escudo. Tudo somado, era um triste homem. Quando não estava lutando, estava bêbado. Minha vida era escrita em vermelho, em sangue e vinho.
- Quando foi que mudou? - Brienne quis saber.
- Quando morri na Batalha do Tridente, Lutei pelo Príncipe Rhaegar, embora ele não tivesse chegado a saber meu nome. Não lhe saberia dizer o porquê, exceto que o nobre que eu servia estava a serviço de um nobre que servia um nobre que decidira apoiar o dragão e não o veado. Se tivesse decidido de outra forma, eu poderia ter estado na outra margem do rio. A batalha foi uma coisa sangrenta. Os cantores querem nos fazer acreditar que foi apenas Rhaegar e Robert a lutar no meio da correnteza por uma mulher que ambos afirmavam amar, mas asseguro-lhe que outros homens também combatiam, e eu fui um deles. Uma flecha atravessou minha coxa e outra trespassou-me o pé, e meu cavalo foi morto entre minhas pernas, mas continuei lutando. Ainda me lembro de quão desesperado estava por encontrar outro cavalo, pois não tinha dinheiro para comprar um, e sem cavalo já não seria um cavaleiro. Era só nisso que eu pensava, para falar a verdade. Não cheguei a ver o golpe que me derrubou. Ouvi cascos atrás de mim e pensei: “um cavalo!”, mas, antes de ter tempo para me virar, algo se esmagou contra minha cabeça e me atirou ao rio, onde deveria ter me afogado. Em vez disso, acordei aqui, na Ilha Quieta. O Irmão Mais Velho me disse que tinha dado à costa na maré, nu como no dia de meu nome. Só posso imaginar que alguém me tenha encontrado nos baixios, despido-me de armadura, botas e calções, e voltado a me empurrar para águas mais profundas. O rio fez o resto. Todos nascemos nus, de modo que suponho que seja adequado que eu tenha chegado à minha segunda vida de forma idêntica. Passei os dez anos seguintes em silêncio.
- Compreendo - Brienne não sabia por que o homem lhe contara tudo aquilo, ou que outra coisa deveria dizer.
- Ah, sim? - ele se inclinou para a frente, com as grandes mãos nos joelhos. - Se compreende, desista dessa sua demanda. Cão de Caça está morto e, seja como for, ele nunca teve a sua Sansa Stark. Quanto ao animal que usa seu elmo, ele será encontrado e enforcado. As guerras estão no fim, e esses fora da lei não podem sobreviver à paz. Randyll Tarly anda à caça deles a partir de Lagoa da Donzela, e Walder Frey a partir das Gêmeas, e há um jovem novo senhor em Darry, um homem piedoso que certamente irá pôr suas terras nos eixos. Vá para casa, filha. Você tem uma casa, o que é mais do que muitos podem dizer nestes dias sombrios. Tem um pai nobre que certamente a ama. Pense em seu desgosto, caso nunca regresse. Talvez lhe levem sua espada e seu escudo depois de haver caído. Ele talvez até os pendure em seu salão e os olhe com orgulho... Mas, se perguntar a ele, sei que lhe diria que preferiria ter uma filha viva do que um escudo estilhaçado.
- Uma filha - os olhos de Brienne encheram-se de lágrimas. - Ele merece isso. Uma filha que possa cantar para ele, embelezar-lhe o salão e lhe dar netos. Merece também um filho, um filho forte e galante, que traga honra ao seu nome. Mas Galladon afogou-se quando eu tinha quatro anos e ele oito, e Alysanne e Arianne morreram ainda no berço. Sou a única criança com quem os deuses permitiram que ficasse. A anormal, que não serve para ser um filho ou uma filha - tudo jorrou então de Brienne, como sangue negro de uma ferida; as traições e os noivados, Ronnet Vermelho e sua rosa, Lorde Renly dançando com ela, a aposta sobre sua virgindade, as lágrimas amargas que derramara na noite em que seu rei se casou com Margaery Tyrell, o corpo a corpo em Pontamarga, o manto arco-íris de que tanto se orgulhara, a sombra no pavilhão do rei, Renly morrendo em seus braços, Correrrio e a Senhora Catelyn, a viagem ao longo do Tridente, o duelo com Jaime nos bosques, os Saltimbancos Sangrentos, Jaime gritando "Safiras”, Jaime na banheira em Harrenhal, com vapor erguendo-se de seu corpo, o sabor do sangue de Vargo Hoat quando lhe mordera a orelha, a arena dos ursos, Jaime saltando para a areia, a longa viagem até Porto Real, Sansa Stark, a promessa que fizera a Jaime, a promessa que fizera à Senhora Catelyn, a Cumpridora de Promessas, Valdocaso, Lagoa da Donzela, Lesto Dick e a Garra Rachada e os Murmúrios, os homens que matara... - Eu tenho de encontrá-la - concluiu. - Outros andam à procura, todos eles desejando capturá-la e vendê-la à rainha. Tenho de encontrá-la primeiro. Prometi a Jaime. Ele batizou a espada de Cumpridora de Promessas. Tenho de tentar salvá-la... ou morrer tentando.  

Nenhum comentário:

Postar um comentário

NÃO DÊ SPOILERS!
Encontrou algum erro ortográfico no texto? Comente aqui para que possa arrumar :)
Se quer comentar e não tem uma conta no blogger ou google, escolha a opção nome/url e coloque seu nome. Nem precisa preencher o url.
Comentários anônimos serão ignorados