A
septeria erguia-se numa ilha que se projetava da superfície, a meia
milha da costa, no local onde a extensa foz do Tridente se alargava
ainda mais para beijar a Baía dos Caranguejos. Sua prosperidade era
evidente até da costa. As encostas encontravam-se cobertas de campos
em terraços, com lagoas cheias de peixes na base e, no cume, um
moinho de vento, cujas velas de madeira e lona giravam lentamente
empurradas pela brisa que soprava da baía. Brienne viu ovelhas
pastando na vertente da colina e cegonhas caminhando pelas águas
pouco profundas que rodeavam o desembarcadouro.
- Salinas
fica mesmo em frente - disse Septão Meribald, apontando para o
norte, para lá da baía. - Os irmãos nos levarão até lá na maré
da manhã, embora tema o que iremos encontrar. Apreciemos uma boa
refeição quente antes de enfrentarmos isso. Os irmãos têm sempre
um osso a mais para o Cão - o Cão latiu e abanou a cauda. 
A maré
agora descia, e depressa. A água que separava a ilha da costa
recuava, deixando para trás uma larga extensão de cintilantes
lodaçais marrons, salpicados de lagoas de maré que resplandeciam
como moedas de ouro ao sol da tarde. Brienne coçou a parte de trás
do pescoço, onde um inseto a mordera. Prendera os cabelos no alto da
cabeça, e o sol aquecera-lhe a pele. 
- Por que
a chamam Ilha Quieta? - Podrick quis saber. 
- Aqueles
que lá habitam são penitentes, que procuram expiar seus pecados
através da contemplação, da reza e do silêncio. Só o Irmão Mais
Velho e seus funcionários têm autorização para falar, e estes
últimos só podem falar durante um dia a cada sete. 
- As
irmãs silenciosas nunca falam - Podrick retrucou. - Ouvi dizer que
não têm língua. 
Septão
Meribald sorriu. 
- As mães
já intimidavam as filhas com essa história quando eu tinha a sua
idade. Não havia nenhuma verdade nela naquela época, e continua a
não haver agora. Um voto de silêncio é um ato de contrição, um
sacrifício, através do qual demonstramos nossa devoção aos Sete
no Céu. Um mudo tomar um voto de silêncio seria como um homem sem
pernas desistir da dança - levou o burro pela ladeira, fazendo sinal
aos outros para o seguirem. - Se quiserem dormir sob um teto esta
noite, terão de desmontar e atravessar a lama comigo. Chamamos este
o caminho da fé. Só os fiéis podem atravessar em segurança. Os
malvados são engolidos pelas areias movediças ou se afogam quando a
maré sobe. Nenhum de vocês é malvado, espero eu. Mesmo assim, eu
teria cuidado com o lugar onde ponho os pés. Caminhem apenas por
onde eu caminhar, e chegarão ao outro lado. 
Brienne
não pôde deixar de reparar que o caminho da fé era tortuoso.
Embora a ilha parecesse se erguer a nordeste do local onde deixaram a
costa para trás, Septão Meribald não se dirigiu diretamente para
lá. Em vez disso, arrancou para leste, na direção das águas mais
profundas da baía, que cintilavam, azuis e prateadas, a distância.
A mole lama marrom esguichava por entre os dedos de seus pés.
Enquanto caminhava, parava de vez em quando para sondar o caminho em
frente com o cajado. O Cão mantinha-se junto aos seus calcanhares,
farejando todas as pedras, conchas e aglomerados de algas. Para
variar, não saltou na frente nem se pôs a vaguear. 
Brienne
seguiu-o, tendo o cuidado de se manter perto da fila de pegadas
deixadas pelo cão, pelo burro e pelo homem santo. Depois vinha
Podrick, e por fim Sor Hyle. A cem metros da margem, Meribald virou
subitamente para o sul, ficando praticamente de costas voltadas para
a septeria. Seguiu nessa direção por mais cem metros, levando-os
por entre duas lagoas de maré pouco profundas. O Cão enfiou o
focinho numa delas e ganiu quando um caranguejo o beliscou com a
pinça. Seguiu-se uma breve mas furiosa luta, até que o Cão
regressou a trote, molhado e salpicado de lama, com o caranguejo
entre as mandíbulas. 
- Não é
para lá que queremos ir? - gritou Sor Hyle lá de trás, apontando
para a septeria. - Parecemos caminhar para todos os lados, menos para
aquele lugar. 
- Fé -
pediu o Septão Meribald. - Acredite, persista e siga, assim
encontraremos o lugar que procuramos. 
Os
baixios cintilavam, úmidos, a toda a volta, salpicados de meia
centena de cores. A lama era de um marrom tão escuro que parecia
quase negro, mas havia também faixas de areia dourada, rochas que se
projetavam em tons de cinza e vermelho, e emaranhados de algas negras
e verdes. Cegonhas caminhavam por entre as lagoas de maré e deixavam
suas pegadas por todo lado, e caranguejos fugiam pela superfície de
águas pouco profundas. O ar cheirava a maresia e a putrefação, e o
terreno sugava-lhes os pés e só os largava com relutância, com um
estalo e um suspiro lamacento. Septão Meribald virou, voltou a
virar, e virou uma vez mais. Suas pegadas enchiam-se de água assim
que ele avançava. Quando o solo se tornou mais firme e começou a se
erguer sob seus pés, tinham caminhado pelo menos uma milha e meia. 
Três
homens estavam à espera deles quando subiram pelas pedras quebradas
que rodeavam a linha de costa da ilha. Trajavam as vestes
marrom-escuras de irmãos, com largas mangas em forma de sino e capuz
pontiagudo. Dois também tinham enrolado faixas de lã em volta da
metade inferior do rosto, de modo que tudo que se conseguia ver deles
eram os olhos. O terceiro irmão era aquele que falava. 
- Septão
Meribald - chamou. - Já se passou quase um ano. Seja bem-vindo. E
seus companheiros também. 
O Cão
abanou a cauda e Meribald sacudiu lama dos pés. 
- Podemos
pedir-lhes hospitalidade por uma noite? 
- Claro
que sim. Esta noite há guisado de peixe. Irá precisar do barco de
manhã? 
- Se não
for pedir muito - Meribald virou-se para os companheiros de viagem. -
Irmão Narbert é funcionário da ordem, de modo que lhe é permitido
falar um dia a cada sete. Irmão, estas boas pessoas ajudaram-me na
viagem. Sor Hyle Hunt é um galante cavaleiro vindo da Campina. O
garoto é Podrick Payne, originário das terras ocidentais. E esta é
a Senhora Brienne, conhecida como a Donzela de Tarth. 
Irmão
Narbert parou de repente. 
- Uma
mulher. 
- Sim,
irmão - Brienne soltou os cabelos e os sacudiu. - Não há mulheres
aqui? 
-
Atualmente, não - Narbert respondeu. - As mulheres que nos visitam
vêm até nós doentes, feridas ou muito grávidas. Os Sete
abençoaram nosso Irmão Mais Velho com mãos curativas. Ele devolveu
a saúde a muitos homens que nem mesmo os meistres conseguiam curar,
e a muitas mulheres também. 
- Não
estou doente, nem ferida, muito menos grávida. 
- Senhora
Brienne é uma donzela guerreira - confidenciou Septão Meribald - e
anda em busca do Cão de Caça. 
- Ah,
sim? - Narbert pareceu surpreso. - Para que fim? 
Brienne
tocou o cabo da Cumpridora de Promessas. 
- Para
este - respondeu. 
O
funcionário a estudou. 
- É...
musculosa para uma mulher, é verdade, mas... talvez deva levar este
assunto ao Irmão Mais Velho. Ele deve tê-la visto atravessar a
lama. Venha. 
Narbert
os levou por um caminho de seixos que penetrava um pomar de macieiras
e levava a um estábulo caiado com um bicudo telhado de colmo. 
- Podem
deixar aqui os animais. Irmão Gillam se assegurará de que lhes
sejam fornecidos alimentos e água. 
Mais de
três quartos do estábulo encontravam-se vazios. Num a das
extremidades via-se meia dúzia de mulas, que eram tratadas por um
pequeno irmão de pernas arqueadas que Brienne tomou por Gillam. Ao
fundo, na parte mais distante, bem afastado dos outros animais, um
enorme garanhão negro berrou ao ouvir as vozes dos recém-chegados e
escoiceou a porta de sua cocheira. 
Sor Hyle
deitou ao grande cavalo um olhar de admiração enquanto entregava as
rédeas a Irmão Gillam, 
- Um belo
animal. 
Irmão
Narbert suspirou. 
- Os Sete
enviam-nos bênçãos, e os Sete enviam-nos provações. Até pode
ser belo, mas o Trazido Pela Correnteza foi com certeza parido no
inferno. Quando tentamos atá-lo a um arado, escoiceou o Irmão
Rawney e partiu-lhe a tíbia em dois lugares. Tínhamos esperança de
que a castração pudesse melhorar o mau temperamento do animal,
mas... Irmão Gillam, pode mostrar a eles? 
Irmão
Gillam tirou o capuz. Por baixo dele havia cabelos loiros
embaraçados, uma tonsura no topo da cabeça e um curativo manchado
de sangue onde ficava uma orelha. 
Podrick
susteve a respiração, 
- O
cavalo arrancou sua orelha à dentada? 
Gillam
assentiu e voltou a cobrir a cabeça. 
-
Perdoe-me, irmão - disse Sor Hyle - mas eu poderia arrancar-lhe a
outra orelha, se se aproximasse de mim com uma tesoura. 
A
brincadeira não caiu bem para Irmão Narbert. 
- É um
cavaleiro, sor. O Trazido Pela Correnteza é um animal de carga. O
Ferreiro deu cavalos aos homens para ajudá-los em seu trabalho -
virou-se. - Por favor. O Irmão Mais Velho certamente está à
espera. 
O declive
era mais acentuado do que parecera do outro lado dos baixios. Para
facilitar a subida, os irmãos tinham subido um lance de escadas de
madeira, que vagueavam de um lado para o outro ao longo da vertente e
por entre os edifícios. Depois de um longo dia na sela, Brienne
sentiu-se contente pela oportunidade de esticar as pernas. 
Passaram
por uma dúzia de membros da ordem durante a subida; homens
encapuzados e vestidos de marrom-escuro que lhes lançavam olhares
curiosos ao passar, mas não proferiam nenhuma saudação. Um deles
levava um par de vacas leiteiras para um pequeno celeiro com telhado
coberto de grama; outro manejava uma batedeira de manteiga. Nas
vertentes mais elevadas viram três rapazes conduzindo ovelhas, e
ainda mais acima passaram por um cemitério, onde um irmão maior do
que Brienne lutava para cavar uma sepultura. Pelo modo como se movia,
era evidente que o homem era coxo. Ao atirar uma pá de solo
pedregoso por sobre um ombro, um punhado caiu sobre os pés do grupo.
- Mais
cuidado com isso - repreendeu-o Irmão Narbert. - Septão Meribald
podia ter ficado com a boca cheia de terra - o coveiro abaixou a
cabeça. Quando Cão foi farejá-lo, deixou cair a pá e coçou-lhe
uma orelha. 
- Um
noviço - Narbert explicou. 
- Para
quem é a sepultura? - Sor Hyle perguntou quando retomaram a subida
pelos degraus de madeira. 
- Para o
Irmão Clement, que o Pai o julgue com justiça. 
- Era
velho? - Podrick Payne quis saber, 
- Se
achar que quarenta e oito anos é velho, sim, mas não foram os anos
que o mataram. Morreu de ferimentos sofridos em Salinas. Tinha levado
um pouco de nosso hidromel ao mercado de lá, no dia em que os fora
da lei caíram sobre a vila. 
- Cão de
Caça? - Brienne falou. 
- Outro,
igualmente brutal. Cortou a língua do pobre Clement quando ele se
recusou a falar. Visto que tinha tomado um voto de silêncio, o
assaltante disse que não precisava dela. O Irmão Mais Velho há de
saber mais. Ele guarda para si o pior das notícias do exterior, para
não perturbar a tranquilidade da septeria. Muitos de nossos irmãos
vieram para cá para escapar aos horrores do mundo, não para
relembrá-los. Irmão Clement não foi o único homem ferido entre
nós. Há ferimentos que não se veem - Irmão Narbert fez um gesto
para a direita. - Ali fica o nosso pomar de verão. As uvas são
pequenas e ácidas, mas dão um vinho bebível. Também fazemos nossa
própria cerveja, e a fama do hidromel e da cidra que fazemos chega
longe. 
- A
guerra não chegou aqui? - Brienne perguntou. 
- Essa
guerra não, graças aos Sete. Nossas preces nos protegem.
- E as
suas marés - sugeriu Meribald, Cão latiu seu acordo. 
O topo do
monte era coroado por um muro baixo de pedra solta, que cercava um
aglomerado de grandes edifícios; o moinho, com as pás rangendo
enquanto giravam, os claustros onde os irmãos dormiam e o edifício
comum onde faziam as refeições, um septo de madeira para orações
e meditação, com janelas de vitral, largas portas esculpidas com
retratos da Mãe e do Pai, e um campanário de sete lados com um
terraço no topo. Por trás, estendia-se um jardim para cultivo de
legumes, onde alguns irmãos mais velhos arrancavam ervas daninhas.
Irmão Narbert fez os visitantes darem a volta em um castanheiro e os
levou até uma porta de madeira instalada na face do monte. 
- Uma
gruta com uma porta? - Sor Hyle exclamou, surpreso. 
Septão
Meribald sorriu. 
-
Chama-se Buraco do Eremita. O primeiro homem santo a descobrir o
caminho até aqui viveu lá dentro e alcançou tantas maravilhas que
outros vieram se juntar a ele. Isso foi há dois mil anos, segundo
dizem. A porta apareceu algum tempo mais tarde. 
Há dois
mil anos o Buraco do Eremita talvez tivesse sido um lugar úmido e
escuro, com chão de terra e ecos de água pingando, mas já não era
assim. A gruta em que Brienne e seus companheiros entraram tinha sido
transformada em um santuário quente e acolhedor. Tapetes de lã
cobriam o chão, tapeçarias enfeitavam as paredes. Altas velas de
cera de abelha davam uma luminosidade mais do que ampla. A mobília
era estranha, mas simples; uma longa mesa, um banco comprido de
costas altas, uma arca, várias estantes altas, cheias de livros, e
cadeiras. Tudo fora feito de madeira trazida pela correnteza, pedaços
com formas estranhas astuciosamente unidos e polidos até brilharem
com um profundo tom dourado à luz das velas. 
O Irmão
Mais Velho não era aquilo que Brienne esperava encontrar.
Dificilmente poderia ser chamado mais velho, para começar; enquanto
os irmãos que arrancavam ervas daninhas no jardim tinham os ombros
caídos e as costas encurvadas dos velhos, ele erguia-se alto e reto,
e se deslocava com o vigor de um homem no auge de seus anos. Tampouco
mostrava o rosto gentil e bondoso que ela tinha esperado de um
curandeiro. Sua cabeça era grande e quadrada, os olhos sagazes, e o
nariz vermelho e coberto de veias. Embora usasse uma tonsura, seu
couro cabeludo mostrava-se tão hirsuto quanto o pesado queixo. 
Parece-se
mais com um homem feito para quebrar ossos do que p ara curá-los,
pensou a Donzela de Tarth enquanto o Irmão Mais Velho atravessava a
sala em passos largos para ir abraçar Septão Meribald e fazer
festas ao Cão. 
- É
sempre um dia alegre quando nossos amigos Meribald e Cão nos honram
com outra visita - anunciou, antes de se virar para seus outros
hóspedes. - E novos rostos são sempre bem-vindos. Vemos tão
poucos... 
Meribald
entregou-se às cortesias de costume antes de se sentar no banco. Ao
contrário do Irmão Narbert, o Irmão Mais Velho não pareceu
consternado pelo sexo de Brienne, mas seu sorriso vacilou e se
desvaneceu quando o septão lhe contou o motivo por que ela e Sor
Hyle tinham vindo. 
- Entendo
- foi tudo que disse, antes de se virar para eles. - Devem ter sede.
Por favor, bebam um pouco de nossa cidra doce para lavar a poeira da
viagem de suas gargantas - ele mesmo os serviu. As taças também
tinham sido esculpidas em madeira trazida pela correnteza, e não
havia duas iguais. Quando Brienne as elogiou, disse: - A senhora é
muito gentil. Tudo que fazemos é cortar e polir a madeira. Aqui
somos abençoados. No local onde o rio se encontra com a baía, as
correntes e marés lutam umas contra as outras, e muitas coisas
estranhas e maravilhosas são empurradas em nossa direção e vêm
dar às nossas costas. A madeira é o de menos. Encontramos taças de
prata e potes de ferro, sacas de lã e fardos de seda, elmos
enferrujados e espadas cintilantes... sim, e também rubis. 
Aquilo
interessou Sor Hyle. 
- Os
rubis de Rhaegar? 
- Talvez.
Quem poderá dizer? A batalha aconteceu a muitas léguas daqui, mas o
rio é incansável e paciente. Foram encontrados seis. Estamos todos
à espera do sétimo. 
- Antes
rubis do que ossos - Septão Meribald esfregava o pé, fazendo cair
flocos de lama de sob os dedos. - Nem todos os presentes do rio são
agradáveis. Os bons irmãos também recolhem os mortos. Vacas e
veados afogados, porcos mortos inchados e com até metade do tamanho
de cavalos. Sim, e cadáveres. 
- Muitos
cadáveres, nos dias que correm - o Irmão Mais Velho suspirou. -
Nosso coveiro não tem descanso. Homens do rio, homens do ocidente,
homens do norte, todos vêm dar aqui à costa. Tanto cavaleiros
quanto canalhas. Nós os enterramos lado a lado, Stark e Lannister,
Blackwood e Bracken, Frey e Darry. E este o dever que o rio nos pede
em troca de todos os seus presentes, e nós o cumprimos o melhor que
podemos. Mas por vezes encontramos uma mulher... Ou, pior, uma
criança morta. Esses são os presentes mais cruéis - virou-se para
o Septão Meribald. - Espero que tenha tempo para absolver nossos
pecados. Desde que os assaltantes mataram o velho Septão Bennet, não
temos ninguém para nos ouvir em confissão. 
-
Arranjarei tempo - Meribald respondeu - embora espere que tenha
pecados melhores do que os da última vez em que passei por aqui -
Cão latiu. - Vê? Até o Cão se aborreceu. 
Podrick
Payne estava confuso. 
- Pensava
que ninguém podia falar. Bem, ninguém não. Os irmãos. Os outros
irmãos, vocês não. 
- É
permitido quebrar o silêncio em confissão - o Irmão Mais Velho
explicou. - É difícil falar de pecado com mímicas. 
-
Queimaram o septo em Salinas? - Hyle Hunt perguntou. 
O sorriso
sumiu. 
- Em
Salinas queimaram tudo, exceto o castelo. Só ele era feito de
pedra... embora pudesse perfeitamente ter sido feito de sebo, pelo
bem que fez à vila. Caiu sobre mim o dever de tratar alguns dos
sobreviventes. Os pescadores os trouxeram do outro lado da baía,
depois de as chamas terem se apagado e eles julgarem ser seguro rumar
para a terra. Uma pobre mulher tinha sido violada uma dúzia de
vezes, e seus seios... Senhora, usa cota de malha de homem, de modo
que não lhe pouparei a esses horrores... Seus seios tinham sido
rasgados, mastigados e comidos, como que por algum... animal cruel.
Fiz o que pude por ela, embora fosse bem pouco. Ao morrer, suas
piores pragas não foram dirigidas contra os homens que a tinham
violado, nem contra o monstro que devorara sua carne viva, mas contra
Sor Quincy Cox, que trancou os portões quando os fora da lei
entraram na vila e ficou a salvo atrás de muralhas de pedra enquanto
seu povo gritava e morria. 
- Sor
Quincy é um velho - disse com gentileza Septão Meribald. - Seus
filhos e netos andam distantes ou estão mortos, os netos ainda são
garotos, e tem duas filhas. O que poderia ter feito um homem contra
tantos? 
Poderia
ter tentado, pensou Brienne. Poderia ter morrido. Velho ou novo, um
verdadeiro cavaleiro jura proteger aqueles que são mais fracos do
que ele, ou morrer tentando. 
-
Palavras verdadeiras e sábias - disse o Irmão Mais Velho ao Septão
Meribald. - Quando fizer a travessia para Salinas, sem dúvida Sor
Quincy lhe pedirá perdão. Alegra-me que esteja aqui para dá-lo. Eu
não consegui - pôs de lado a taça de madeira trazida pela
correnteza e se levantou. - O sino para o jantar tocará em breve.
Meus amigos, querem vir comigo ao septo, rezar pelas almas da boa
gente de Salinas, antes de nos sentarmos para partir o pão e
compartilhar um pouco de comida e bebida? 
- De bom
grado - Meribald respondeu, e Cão latiu. 
O jantar
na septeria foi a refeição mais estranha que Brienne já comera,
embora não fosse de todo desagradável. A comida era simples, mas
muito boa; havia pães estaladiços e ainda quentes do forno,
recipientes de barro cheios de manteiga recém-batida, mel
proveniente das colmeias da septeria e um espesso guisado de
caranguejo, mexilhão e pelo menos três tipos de peixe. Septão
Meribald e Sor Hyle beberam do hidromel que os irmãos faziam e
declararam-no excelente, enquanto ela e Podrick contentavam-se com
mais cidra doce. E a refeição também não foi melancólica.
Meribald proferiu uma prece antes de ser servida a comida, e enquanto
os irmãos comiam em quatro longas mesas de montar, um deles tocou
harpa vertical, enchendo a sala de sons suaves e doces. Quando o
Irmão Mais Velho dispensou o músico para que fosse comer, Irmão
Narbert e outro funcionário se alternaram na leitura de trechos de A
Estrela de Sete Pontas. 
Quando as
leituras foram concluídas, o que restava da comida tinha sido levado
por noviços cuja tarefa era servir. A maioria era de garotos com
idade próxima à de Podrick, ou mais novos, mas havia também
adultos, incluindo o grande coveiro que tinham encontrado no monte,
que caminhava com o desajeitado porte oscilante de alguém que é
meio aleijado. Quando a sala se esvaziou, o Irmão Mais Velho pediu a
Narbert para levar Podrick e Sor Hyle para seus catres nos claustros.
- Não se
importam de partilhar uma cela, espero? Não é grande, mas irão
achá-la confortável. 
- Quero
ficar com o sor - disse Podrick. - Quer dizer, com a senhora. 
- O que
você e a Senhora Brienne fazem fora daqui é entre vocês e os Sete
- disse o Irmão Narbert - mas, na Ilha Quieta, os homens e as
mulheres não dormem sob o mesmo teto, a menos que sejam casados. 
- Temos
algumas cabanas modestas reservadas para as mulheres que nos visitam,
sejam senhoras nobres ou simples garotas de aldeia - disse o Irmão
Mais Velho. - Não são usadas com frequência, mas as mantemos
limpas e secas. Senhora Brienne, permita-me que lhe mostre o caminho?
- Sim,
obrigada. Podrick, vá com Sor Hyle. Aqui somos hóspedes dos irmãos
santos. Sob o teto deles, valem as suas regras. 
As
cabanas das mulheres ficavam do lado oriental da ilha, com vista para
uma larga extensão de lama e as águas distantes da Baía dos
Caranguejos. Ali fazia mais frio do que do lado abrigado, e era um
lugar mais selvagem. O monte era mais inclinado, e o caminho
meandrava de um lado para o outro por entre ervas e sarças, rochedos
esculpidos pelo vento e árvores retorcidas e espinhosas que se
agarravam tenazmente à vertente pedregosa. Em uma das curvas, o
Irmão Mais Velho fez uma pausa. 
- Num a
noite límpida, era possível ver daqui os incêndios de Salinas.
Fica logo ali, do outro lado da baía - ele apontou. 
- Não há
nada - Brienne observou. 
- Só
resta o castelo. Até os pescadores foram embora, os poucos
afortunados que estavam na água quando os assaltantes chegaram.
Viram as casas queimarem e ouviram os berros e os gritos flutuando
pelo porto, com medo demais para levar os barcos para terra. Quando
por fim desembarcaram, foi para enterrar amigos e familiares. O que
há agora para eles em Salinas além de ossos e memórias amargas?
Mudaram-se para Lagoa da Donzela ou para outras vilas - fez um gesto
com a lanterna, e retomaram a descida. -Salinas nunca foi um porto
importante, mas os navios visitavam-no de vez em quando. Era isso que
os assaltantes queriam, uma galé ou uma coca que os levasse para o
outro lado do mar estreito. Quando descobriram que não havia
nenhuma, fizeram cair a raiva e o desespero sobre o povo da vila.
Pergunto-me, senhora... O que espera encontrar ali? 
- Uma
garota - disse-lhe. - Uma garota bem-nascida de treze anos, com um
rosto bonito e cabelos ruivos. 
- Sansa
Stark? - o nome foi dito em voz baixa. - Acha que essa pobre criança
está com Cão de Caça? 
- O
dornês disse que ela ia a caminho de Correrrio. Timeon. Era
mercenário, um dos Bravos Companheiros, um assassino, violador e
mentiroso, mas não me parece que tenha mentido a respeito disso.
Disse que Cão de Caça a raptou e a levou consigo. 
- Entendo
- o caminho descreveu uma curva e ali estavam as cabanas, diante
deles. O Irmão Mais Velho referira-se a elas como modestas. E eram.
Pareciam colmeias feitas de pedra, baixas e arredondadas, sem
janelas. - Esta - disse, indicando a cabana mais próxima, a única
que tinha fumaça saindo do buraco no meio do telhado. Brienne teve
de se abaixar quando entrou, para evitar bater a cabeça no lintel.
Lá dentro encontrou um chão de terra batida, um catre de palha,
peles e mantas para mantê-la aquecida, uma pequena fogueira e duas
cadeiras baixas. O Irmão Mais Velho sentou-se numa e pousou a
lanterna. 
- Posso
ficar por um momento? Acho que devíamos conversar. 
- Se
quiser - Brienne desprendeu o cinto da espada e o pendurou na segunda
cadeira, após o que se sentou de pernas cruzadas sobre o catre. 
- Seu
dornês não mentiu - começou o Irmão Mais Velho - mas temo que não
o tenha compreendido. Anda perseguindo o lobo errado, senhora. Eddard
Stark tinha duas filhas. Foi a outra que Sandor Clegane capturou, a
mais nova. 
- Arya
Stark? - Brienne fitou o homem de boca aberta, estupefata, - Tem
certeza? A irmã da Senhora Sansa está viva? 
- Àquela
altura estava - o Irmão Mais Velho respondeu. - Agora... não sei.
Pode estar entre as crianças mortas em Salinas. 
As
palavras foram como uma faca em sua barriga. Não, pensou Brienne.
Não, isso seria cruel demais.
- Pode
estar... Quer dizer que não tem certeza...? 
- Estou
certo de que a pequena esteve com Sandor Clegane na estalagem junto
ao entroncamento, aquela que era da velha Masha Heddle antes de os
leões a enforcarem. Estou certo de que iam a caminho de Salinas.
Além disso... não. Não sei onde ela se encontra ou até se está
viva. Mas há uma coisa que sei. O homem que persegue está morto. 
Aquilo
foi outro choque. 
- Como
foi que ele morreu? 
- Como
viveu, pela espada. 
- Tem
certeza disso? 
- Fui eu
mesmo quem o enterrou. Posso lhe dizer onde fica a sepultura, se
quiser. Cobri-o com pedras para evitar que os necrófagos
desenterrassem sua carne, e pousei o elmo no topo do monte, para
identificar o local de seu último descanso. Este foi um grave erro.
Outro viajante qualquer descobriu minha marca e ficou com ela. O
homem que violou e matou em Salinas não foi Sandor Clegane, embora
talvez seja igualmente perigoso. As terras fluviais estão cheias
desse tipo de devoradores de carniça. Não os chamarei lobos. Estes
são mais nobres do que isso... e os cães também, julgo eu. Sei um
pouco sobre esse homem, Sandor Clegane. Foi escudo juramentado do
Príncipe Joffrey durante muitos anos, e até aqui ouvíamos falar de
seus feitos, tanto os bons como os maus. Se metade do que ouvimos é
verdade, tratava-se de uma alma amarga e atormentada, de um pecador
que troçava igualmente dos deuses e dos homens. Ele servia, mas não
encontrava orgulho no serviço. Lutava, mas não obtinha alegria da
vitória. Bebia para afogar a dor num mar de vinho. Não amava, e
tampouco era amado. Era o ódio que o movia. Embora cometesse muitos
pecados, nunca procurava perdão. Enquanto outros homens sonham com
amor, ou com riqueza, ou glória, esse Sandor Clegane sonhava matar o
próprio irmão, um pecado tão terrível que me faz estremecer só
de falar nele. E, no entanto, era esse o pão que o nutria, o
combustível que mantinha suas fogueiras queimando. Por ignóbil que
fosse, a esperança de ver o sangue do irmão em sua espada era tudo
aquilo para que vivia aquela triste e furiosa criatura... E até isso
lhe foi roubado, quando o Príncipe Oberyn de Dorne apunhalou Sor
Gregor com uma lança envenenada. 
- Parece
ter pena dele - disse Brienne. 
- E tive.
Você também teria se apiedado dele, se o tivesse visto no fim.
Deparei com ele junto ao Tridente, atraído por seus gritos de dor.
Suplicou-me que lhe desse a misericórdia, mas jurei não voltar a
matar. Em vez disso, banhei-lhe a testa febril com água do rio,
dei-lhe vinho e fiz um cataplasma para o ferimento, mas meus esforços
foram pequenos e tardios demais. Cão de Caça morreu ali, em meus
braços. Talvez tenha visto um grande garanhão negro em nossos
estábulos. Era seu cavalo de guerra, Estranho. Um nome blasfemo.
Preferimos chamá-lo de Trazido Pela Correnteza, uma vez que foi
encontrado junto ao rio. Temo que o animal tenha a natureza do antigo
dono.
O cavalo.
Vira o garanhão, ouvira-o escoicear, mas não tinha compreendido. Os
corcéis de batalha eram treinados para escoicear e morder. Na
guerra, eram uma arma, assim como os homens que os montavam. Como Cão
de Caça. 
- Então
é verdade - Brienne disse sem emoção na voz. - Sandor Clegane está
morto. 
- Repousa
- o Irmão Mais Velho fez uma pausa - É jovem, filha. Já contei
quarenta e quatro dias de meu nome... o que faz que tenha mais que o
dobro de sua idade, julgo eu. Você se surpreenderia em saber que já
fui um cavaleiro? 
- Não.
Parece mais um cavaleiro do que um homem santo - estava escrito em
seu peito e ombros e naquele grande maxilar quadrado. - Por que
desistiu da cavalaria? 
- Nunca a
escolhi. Meu pai era um cavaleiro, assim como o dele tinha sido. E
meus irmãos também, todos eles. Fui treinado para a batalha desde o
dia em que me acharam com idade suficiente para pegar em uma espada
de madeira. Vi minha cota de batalhas, e não me desgracei. Também
tive mulheres, e então me desgracei, pois algumas tomei pela força.
Havia uma garota com quem desejava me casar, a filha mais nova de um
pequeno lorde, mas era o terceiro filho de meu pai e não tinha nem
terras nem riquezas para lhe oferecer... só uma espada, um cavalo,
um escudo. Tudo somado, era um triste homem. Quando não estava
lutando, estava bêbado. Minha vida era escrita em vermelho, em
sangue e vinho. 
- Quando
foi que mudou? - Brienne quis saber. 
- Quando
morri na Batalha do Tridente, Lutei pelo Príncipe Rhaegar, embora
ele não tivesse chegado a saber meu nome. Não lhe saberia dizer o
porquê, exceto que o nobre que eu servia estava a serviço de um
nobre que servia um nobre que decidira apoiar o dragão e não o
veado. Se tivesse decidido de outra forma, eu poderia ter estado na
outra margem do rio. A batalha foi uma coisa sangrenta. Os cantores
querem nos fazer acreditar que foi apenas Rhaegar e Robert a lutar no
meio da correnteza por uma mulher que ambos afirmavam amar, mas
asseguro-lhe que outros homens também combatiam, e eu fui um deles.
Uma flecha atravessou minha coxa e outra trespassou-me o pé, e meu
cavalo foi morto entre minhas pernas, mas continuei lutando. Ainda me
lembro de quão desesperado estava por encontrar outro cavalo, pois
não tinha dinheiro para comprar um, e sem cavalo já não seria um
cavaleiro. Era só nisso que eu pensava, para falar a verdade. Não
cheguei a ver o golpe que me derrubou. Ouvi cascos atrás de mim e
pensei: “um cavalo!”, mas, antes de ter tempo para me virar, algo
se esmagou contra minha cabeça e me atirou ao rio, onde deveria ter
me afogado. Em vez disso, acordei aqui, na Ilha Quieta. O Irmão Mais
Velho me disse que tinha dado à costa na maré, nu como no dia de
meu nome. Só posso imaginar que alguém me tenha encontrado nos
baixios, despido-me de armadura, botas e calções, e voltado a me
empurrar para águas mais profundas. O rio fez o resto. Todos
nascemos nus, de modo que suponho que seja adequado que eu tenha
chegado à minha segunda vida de forma idêntica. Passei os dez anos
seguintes em silêncio. 
-
Compreendo - Brienne não sabia por que o homem lhe contara tudo
aquilo, ou que outra coisa deveria dizer. 
- Ah,
sim? - ele se inclinou para a frente, com as grandes mãos nos
joelhos. - Se compreende, desista dessa sua demanda. Cão de Caça
está morto e, seja como for, ele nunca teve a sua Sansa Stark.
Quanto ao animal que usa seu elmo, ele será encontrado e enforcado.
As guerras estão no fim, e esses fora da lei não podem sobreviver à
paz. Randyll Tarly anda à caça deles a partir de Lagoa da Donzela,
e Walder Frey a partir das Gêmeas, e há um jovem novo senhor em
Darry, um homem piedoso que certamente irá pôr suas terras nos
eixos. Vá para casa, filha. Você tem uma casa, o que é mais do que
muitos podem dizer nestes dias sombrios. Tem um pai nobre que
certamente a ama. Pense em seu desgosto, caso nunca regresse. Talvez
lhe levem sua espada e seu escudo depois de haver caído. Ele talvez
até os pendure em seu salão e os olhe com orgulho... Mas, se
perguntar a ele, sei que lhe diria que preferiria ter uma filha viva
do que um escudo estilhaçado. 
- Uma
filha - os olhos de Brienne encheram-se de lágrimas. - Ele merece
isso. Uma filha que possa cantar para ele, embelezar-lhe o salão e
lhe dar netos. Merece também um filho, um filho forte e galante, que
traga honra ao seu nome. Mas Galladon afogou-se quando eu tinha
quatro anos e ele oito, e Alysanne e Arianne morreram ainda no berço.
Sou a única criança com quem os deuses permitiram que ficasse. A
anormal, que não serve para ser um filho ou uma filha - tudo jorrou
então de Brienne, como sangue negro de uma ferida; as traições e
os noivados, Ronnet Vermelho e sua rosa, Lorde Renly dançando com
ela, a aposta sobre sua virgindade, as lágrimas amargas que
derramara na noite em que seu rei se casou com Margaery Tyrell, o
corpo a corpo em Pontamarga, o manto arco-íris de que tanto se
orgulhara, a sombra no pavilhão do rei, Renly morrendo em seus
braços, Correrrio e a Senhora Catelyn, a viagem ao longo do
Tridente, o duelo com Jaime nos bosques, os Saltimbancos Sangrentos,
Jaime gritando "Safiras”, Jaime na banheira em Harrenhal, com
vapor erguendo-se de seu corpo, o sabor do sangue de Vargo Hoat
quando lhe mordera a orelha, a arena dos ursos, Jaime saltando para a
areia, a longa viagem até Porto Real, Sansa Stark, a promessa que
fizera a Jaime, a promessa que fizera à Senhora Catelyn, a
Cumpridora de Promessas, Valdocaso, Lagoa da Donzela, Lesto Dick e a
Garra Rachada e os Murmúrios, os homens que matara... - Eu tenho de
encontrá-la - concluiu. - Outros andam à procura, todos eles
desejando capturá-la e vendê-la à rainha. Tenho de encontrá-la
primeiro. Prometi a Jaime. Ele batizou a espada de Cumpridora de
Promessas. Tenho de tentar salvá-la... ou morrer tentando.  
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