A noite
já tinha caído por completo quando encontraram a aldeia. Catelyn
deu por si querendo saber se o lugar teria nome. Se tivesse, seu povo
levara consigo esse conhecimento, quando fugiu com todas as suas
posses, incluindo até as velas do septo. Sor Wendel acendeu um
archote e atravessou com ela a porta baixa.
Lá
dentro, as sete paredes mostravam-se rachadas e tortas. Deus é uno,
ensinara-lhe Septão Osmynd quando era nova, com sete aspectos, tal
como o septo é um único edifício com sete paredes. Os septos ricos
das cidades possuíam estátuas dos Sete, e um altar a cada um. Em
Winterfell, Septão Chayle pendurava máscaras esculpidas nas
paredes. Ali, Catelyn encontrou apenas grosseiros desenhos a carvão.
Sor Wendel prendeu o archote numa arandela junto à porta, e saiu
para esperar lá fora com Robar Royce.
Catelyn
estudou os desenhos. O Pai tinha barba, como sempre. A Mãe sorria,
afetuosa e protetora. O Guerreiro tinha a espada esboçada sob o
rosto, e o Ferreiro, o martelo. A Donzela era linda, a Velha, mirrada
e sábia. E o sétimo rosto... o Estranho não era nem homem nem
mulher, mas ambos, o eterno pária, o vagabundo de lugares distantes,
menos e mais que humano, desconhecido e impossível de conhecer. Ali,
o rosto era oval e negro, uma sombra com estrelas no lugar dos olhos.
Deixava Catelyn inquieta. Pouco conforto conseguiria ali.
Ajoelhou-se
perante a Mãe,
-
Senhora, olhe a batalha com os olhos de uma mãe. Todos eles são
filhos, todos e cada um deles. Poupe-os se puder, e poupe meus filhos
também. Proteja Robb, Bran e Rickon. Bem que eu gostaria de estar
com eles.
Uma fenda
corria através do olho esquerdo da Mãe, fazendo que parecesse estar
chorando. Catelyn conseguia ouvir a voz trovejante de Sor Wendel, e
de vez em quando as respostas calmas de Sor Robar, enquanto os homens
conversavam sobre a batalha que se aproximava. Além deles, a noite
estava silenciosa. Nem sequer se ouvia um grilo, e os deuses
mantinham o silêncio. Seus deuses antigos alguma vez lhe respondiam,
Ned? Perguntou a si mesma. Quando se ajoelhava perante a sua
árvore-coração, eles o ouviam?
A luz
trêmula do archote dançava nas paredes, fazendo com que aqueles
rostos parecessem estar semi vivos, torcendo-se, alterando-se. As
estátuas nos grandes septos das cidades tinham os rostos que os
pedreiros lhes tinham dado, mas aqueles rabiscos a carvão eram tão
rudimentares que podiam representar qualquer pessoa. O rosto do Pai
levou Catelyn a pensar em seu próprio pai, morrendo em sua cama em
Correrrio. O Guerreiro era Renly e Stannis, Robb e Robert, Jaime
Lannister e Jon Snow. Até vislumbrou Arya naquelas feições, apenas
por um instante. Então, uma rajada de vento que penetrou pela porta
fez o archote crepitar, e a semelhança desapareceu, lavada num
brilho cor de laranja.
A fumaça
estava fazendo seus olhos arderem. Esfregou-os com as mãos cobertas
de cicatrizes. Quando voltou a olhar a Mãe, foi sua mãe que viu. A
Senhora Minisa Tully morrera durante o parto, tentando dar a Lorde
Hoster um segundo filho. O bebê pereceu com ela, e depois disso o
pai perdeu um pouco de sua vida. Ela era sempre tão calma, pensou
Catelyn, recordando as mãos suaves da mãe, seu sorriso quente. Se
tivesse sobrevivido, nossas vidas poderiam ter sido tão diferentes.
Perguntou a si mesma o que a Senhora Minisa teria achado da filha
mais velha, ali, ajoelhada na sua frente. Percorri tantos milhares de
léguas, e para quê? A quem servi? Perdi minhas filhas, Robb não me
quer com ele, e Bran e Rickon devem certamente me achar uma mãe fria
e desnaturada. Nem sequer estava com Ned quando ele morreu...
Sentiu a
cabeça leve, e o septo pareceu mover-se ao seu redor. As sombras
oscilaram e alteraram-se, animais furtivos correndo pelas paredes
rachadas e brancas. Catelyn não comera durante todo o dia. Talvez
não tivesse sido sensato. Tinha dito a si mesma que não tivera
tempo, mas a verdade era que a comida perdera o sabor num mundo sem
Ned. Quando cortaram sua cabeça, mataram-me também.
Atrás
dela, o archote cuspiu, e de súbito pareceu-lhe que o rosto na
parede era o da irmã, embora os olhos fossem mais duros do que se
recordava, não os de Lysa, mas os de Cersei. Cersei também é mãe.
Não importa quem é o pai daquelas crianças, ela sentiu-as chutando
em seu ventre, deu-lhes à luz com a sua dor e seu sangue,
alimentou-as em seu peito. Se forem mesmo de Jaime...
- Cersei
também ora a você, senhora? - perguntou Catelyn à Mãe. Conseguia
ver os traços orgulhosos, frios e belos da rainha Lannister gravados
na parede. A fenda ainda estava lá; mesmo Cersei era capaz de chorar
pelos filhos.
- Cada um
dos Sete incorpora todos os Sete - dissera-lhe um dia Septão Osmynd.
Havia tanta beleza na Velha como na Donzela, e a Mãe podia ser mais
feroz do que o Guerreiro quando seus filhos estivessem em perigo.
Sim...
Tinha
visto o suficiente de Robert Baratheon em Winterfell para saber que o
rei não olhava Joffrey com grande calor. Se fosse mesmo da semente
de Jaime, Robert teria matado o rapaz, bem como a mãe, e poucos o
teriam condenado. Bastardos eram bastante comuns, mas o incesto era
um pecado monstruoso, tanto para os velhos deuses como para os novos,
e os filhos de tal perversidade eram chamados de abominações tanto
no septo como no bosque sagrado. Os reis do dragão tinham casado os
irmãos com as irmãs, mas pertenciam ao sangue da antiga Valíria,
onde tais práticas tinham sido comuns e, tal como seus dragões, os
Targaryen não respondiam nem perante os deuses, nem perante os
homens.
Ned deve
ter sabido, e antes dele Lorde Arryn também. Pouco surpreende que a
rainha tenha matado os dois. Faria eu outra coisa por meus filhos?
Catelyn fechou as mãos, sentindo a rigidez dos dedos marcados onde o
aço do assassino cortara até o osso enquanto ela lutava para salvar
o filho.
- Bran
também sabe - sussurrou, abaixando a cabeça. Que os deuses sejam
bons, ele deve ter visto qualquer coisa, ouvido qualquer coisa, foi
por isso que tentaram matá-lo em seu leito.
Sentindo-se
perdida e cansada, Catelyn Stark entregou-se aos seus deuses.
Ajoelhou perante o Ferreiro, que consertava as coisas que estavam
quebradas, e pediu-lhe para dar proteção ao seu querido Bran.
Dirigiu-se à Donzela e suplicou-lhe que emprestasse coragem a Arya e
a Sansa, que as guardasse em sua inocência. Ao Pai, rezou por
justiça, pela força para procurá-la e pela sabedoria para
reconhecê-la, e pediu ao Guerreiro para manter Robb forte e
defendê-lo em suas batalhas. Por fim, virou-se para a Velha, cujas
estátuas a mostravam frequentemente com uma lâmpada em uma das
mãos.
-
Guie-me, sábia senhora - rezou. - Mostre-me o caminho que devo
percorrer, e não permita que tropece nos lugares escuros que me
esperam.
Por fim,
ela ouviu passos atrás de si, e um som na porta.
- Senhora
- disse Sor Robar com gentileza - perdoe-me, mas nosso tempo está
chegando ao fim. Temos que voltar antes do romper da aurora.
Catelyn
pôs-se rigidamente em pé. Seus joelhos doíam, e naquele momento
teria dado muito por uma cama de penas e uma almofada.
-
Obrigada, sor. Estou pronta.
Atravessaram
em silêncio bosques esparsos em que as árvores se inclinavam
ebriamente para longe do mar. Os relinchos nervosos dos cavalos e o
tinir do aço guiou-os de volta ao acampamento de Renly. As longas
fileiras de homens e cavalos estavam cobertas por uma armadura de
escuridão, tão negra que era como se o Ferreiro tivesse martelado a
própria noite para fabricar aço. Havia estandartes à sua esquerda
e à direita, mas à luz que antecedia a alvorada, nem as cores nem
os símbolos eram discerníveis. Um exército cinzento, pensou
Catelyn. Homens cinzentos sobre cavalos cinzentos, sob bandeiras
cinzentas. Enquanto montavam os cavalos, à espera, os cavaleiros de
sombra de Renly apontavam as lanças para cima, e Catelyn cavalgou
por uma floresta de altas árvores nuas, despojadas de folhas e de
vida. Onde ficava Ponta Tempestade via-se apenas uma escuridão mais
profunda, uma muralha de negrume, através da qual nenhuma estrela
conseguia brilhar, mas Catelyn via tochas movendo-se pelo campo onde
Lorde Stannis montara o acampamento.
As velas
dentro do pavilhão de Renly faziam que as trêmulas paredes de seda
parecessem brilhar, transformando a grande tenda num castelo mágico,
insuflado de luz esmeralda. Dois dos membros da Guarda Arco-íris
estavam de sentinela à porta do pavilhão real. A luz verde brilhava
de forma estranha através das plumas roxas da capa de Sor Parmen, e
dava um tom doentio aos girassóis que cobriam cada polegada da
armadura amarela esmaltada de Sor Emmon. Longas plumas de seda fluíam
de seus elmos, e mantos de arco-íris envolviam seus ombros.
Lá
dentro, Catelyn encontrou Brienne armando o rei para a batalha,
enquanto Lorde Tarly e Rowan conversavam sobre a colocação dos
homens no terreno e táticas. Estava um calor agradável lá dentro,
proveniente de carvões em brasa numa dúzia de pequenos braseiros de
ferro.
- Tenho
de falar com o senhor, Vossa Graça - disse Catelyn, tratando-o como
um rei, pela primeira vez, qualquer coisa para fazer com que
prestasse atenção nela.
- Dentro
de um momento, Senhora Catelyn - respondeu Renly. Brienne ajustou a
placa das costas à placa de peito por cima da túnica acolchoada do
rei. A armadura era de um verde profundo, o verde das folhas numa
floresta estivai, tão escuro que bebia a luz das velas. Realces
dourados brilhavam em relevos e presilhas como fogueiras distantes
nessa floresta, piscando sempre que ele se movia. - Por favor,
prossiga, Lorde Mathis.
- Vossa
Graça - disse Mathis Rowan, lançando um olhar de canto de olho para
Catelyn. - Como estava dizendo, nossas batalhas estão bem
delineadas. Por que esperar pelo nascer do dia? Faça soar a partida.
- Para
dizerem depois que ganhei por meios traiçoeiros, com um ataque pouco
cavaleiresco? A hora escolhida foi a alvorada.
-
Escolhida por Stannis - ressaltou Randyll Tarly. - Quer que avancemos
sob o sol nascente. Ficaremos meio cegos.
- Só até
o primeiro embate - Renly respondeu com confiança. - Sor Loras
quebrará suas linhas, e depois disso será o caos - Brienne apertou
tiras de couro verde e prendeu fivelas douradas. - Quando meu irmão
cair, assegurem-se de que nenhum insulto seja feito ao seu cadáver.
Ele pertence ao meu sangue, não quero ver sua cabeça por aí,
empalada na ponta de uma lança.
- E se
ele se render? - Lorde Tarly quis saber.
-
Render-se? - Lorde Rowan soltou uma gargalhada. - Quando Mace Tyrell
montou cerco a Ponta Tempestade, Stannis preferiu comer ratazanas a
abrir os portões.
- Bem me
lembro - Renly ergueu o queixo para deixar que Brienne prendesse seu
gorjal no lugar - Perto do fim, Sor Gawen Wylde e três de seus
cavaleiros tentaram se esgueirar por uma porta traseira, a fim de se
render. Stannis pegou-os e ordenou que fossem atirados das muralhas
com catapultas. Ainda vejo a cara de Gawen enquanto o amarravam. Era
o nosso mestre de armas.
Lorde
Rowan pareceu confuso.
- Ninguém
foi atirado das muralhas. Eu certamente me lembraria de tal coisa.
- Meistre
Cressen disse a Stannis que poderíamos ser forçados a comer nossos
mortos, e não se ganhava nada em atirar fora boa carne - Renly puxou
o cabelo para trás. Brienne atou-o com um fio de veludo e enfiou um
capuz almofadado na cabeça dele, para amortecer o peso do elmo. -
Graças ao Cavaleiro das Cebolas não acabamos reduzidos a comer
cadáveres, mas estivemos perto disso. Perto demais para Sor Gawen,
que morreu na cela.
- Vossa
Graça - Catelyn tinha esperado pacientemente, mas o tempo
escasseava. - Prometeu-me uma conversa.
Renly fez
um aceno.
- Tratem
de suas batalhas, senhores... Ah, e se Barristan Selmy estiver ao
lado do meu irmão, quero-o poupado.
- Não há
notícias de Sor Barristan desde que Joffrey o expulsou - retrucou
Lorde Rowan.
- Eu
conheço aquele velho. Precisa de um rei para defender, senão não
sabe quem é. Mas nunca veio até mim, e a Senhora Catelyn diz que
não está com Robb Stark em Correrrio. Onde mais estará a não ser
com Stannis?
- Será
como diz, Vossa Graça. Nenhum mal lhe acontecerá - os senhores
fizeram reverências profundas e se retiraram.
- Diga o
que tem a dizer, Senhora Stark - disse Renly. Brienne envolveu seus
ombros largos com o manto. Era de fios de ouro, pesado, com o veado
coroado dos Baratheon realçado por lascas de âmbar negro.
- Os
Lannister tentaram matar meu filho Bran. Perguntei mil vezes a mim
mesma por quê. Seu irmão deu-me a resposta. Houve uma caçada no
dia em que caiu. Robert, Ned e a maior parte dos outros homens
partiram em busca de javalis, mas Jaime Lannister permaneceu em
Winterfell, tal como a rainha.
Renly não
foi lento em perceber as implicações.
- Então
acredita que o rapaz os apanhou em incesto...
-
Suplico-lhe, senhor, dê-me licença para ir até seu irmão Stannis
e contar-lhe as minhas suspeitas.
- O que
objetiva com isso?
- Robb
porá de lado sua coroa se o senhor e seu irmão fizerem o mesmo -
disse, esperando que fosse verdade. Faria com que se tornasse
verdade, se fosse preciso; Robb a escutaria, mesmo que os seus
senhores não o fizessem. - Permita que vocês três convoquem um
Grande Conselho, um conselho como o reino não vê há cem anos.
Iremos a Winterfell, para que Bran possa contar sua história e todos
fiquem sabendo que os Lannister são os verdadeiros usurpadores.
Deixe que os senhores reunidos dos Sete Reinos escolham quem os
governará.
Renly
soltou uma gargalhada.
-
Diga-me, senhora, os lobos gigantes votam em quem deve liderar a
alcateia? - Brienne trouxe as manoplas e o elmo do rei, coroado com
chifres dourados que acrescentariam meio metro à sua altura. - O
tempo para conversas terminou. Agora veremos quem é mais forte -
Renly calçou uma manopla articulada verde e dourada na mão
esquerda, enquanto Brienne se ajoelhava para afivelar seu cinto,
carregado com o peso da espada e do punhal.
-
Suplico-lhe em nome da Mãe - começou a dizer Catelyn quando uma
súbita rajada de vento abriu a porta da tenda. Pensou vislumbrar
movimento, mas quando virou a cabeça viu apenas a sombra do rei
movendo-se nas paredes de seda. Ouviu Renly começar um gracejo, com
a sombra movendo-se, erguendo a espada, negra sobre verde, com as
velas tremeluzindo, estremecendo...
Algo
estava estranho, errado... E, então, viu a espada de Renly ainda na
sua bainha, ainda guardada, mas a espada de sombra...
- Frio -
disse Renly numa voz fraca e confusa, um instante antes de o aço de
seu gorjal se rasgar como um pedaço de queijo sob a sombra de uma
lâmina que não estava lá. Teve tempo para um pequeno arquejo antes
que o sangue começasse a jorrar de sua garganta.
- Vossa
Gr... Não! - Brienne, a Azul, gritou quando viu o maligno jorro,
parecendo tão assustada como uma garotinha. O rei caiu em seus
braços, com um lençol de sangue cobrindo a parte da frente de sua
armadura, uma maré vermelho-escura que afogou seu verde e ouro. Mais
velas tremeluziram e apagaram-se, Renly tentou falar, mas estava se
afogando em seu próprio sangue. Perdeu a força nas pernas, e só os
braços de Brienne o mantiveram em pé. A jovem atirou a cabeça para
trás e gritou, sem palavras em sua angústia.
A sombra.
Catelyn sabia que algo escuro e maligno tinha acontecido ali, algo
que nem podia começar a compreender. Aquela nunca foi a sombra de
Renly. A morte entrou por aquela porta e apagou sua vida tão
depressa como o vento extinguiu suas velas.
Só se
passaram alguns instantes antes de Robar Royce e Emmon Cuy entrarem
de rompante, embora parecesse ter durado metade da noite. Um par de
homens de armas juntou-se atrás deles com archotes. Quando viram
Renly nos braços de Brienne e ela ensopada no sangue do rei, Sor
Robar deu um grito de horror.
- Maldita
mulher! - gritou Sor Emmon, o do aço coberto de girassóis. -
Afaste-se dele, vil criatura!
- Deuses
benignos, Brienne, por quê? - Sor Robar perguntou,
Brienne
ergueu os olhos do corpo de seu rei. O manto arco-íris que pendia de
seus ombros tinha se tornado vermelho onde o sangue do rei o
ensopara.
- Eu...
eu...
- Morrerá
por isso - Sor Emmon tirou um machado de batalha de cabo longo de
entre as armas que estavam empilhadas junto à porta. - Pagará pela
vida do rei com a sua!
- NÃO! -
Catelyn Stark gritou, encontrando por fim a voz, mas era tarde
demais, a loucura do sangue tinha se apossado deles, e correram em
frente com gritos que se sobrepuseram às suas palavras mais suaves.
Brienne
moveu-se mais depressa do que Catelyn julgaria possível. Não tinha
sua espada à mão; tirou a de Renly da bainha e a ergueu para parar
a queda do machado de Emmon. Uma centelha brilhou,
azul-esbranquiçada, quando o aço caiu sobre aço com um estrondo
dilacerante, e Brienne ficou em pé com um salto, atirando rudemente
para o lado o corpo do rei morto. Sor Emmon tropeçou nele quando
tentou se aproximar, e a lâmina de Brienne cortou o cabo de madeira
e fez saltar a cabeça do machado num rodopio. Outro homem atirou em
suas costas um archote em chamas, mas o manto arco-íris estava
empapado demais de sangue para arder. Brienne girou e desferiu um
golpe, e archote e mão voaram. Chamas espalharam-se pelo tapete. O
homem mutilado desatou aos gritos. Sor Emmon deixou cair o machado e
tateou em busca da espada.
O segundo
homem de armas lançou uma estocada em Brienne. A Azul parou, e as
espadas dançaram e voltaram a retinir uma contra a outra. Quando
Emmon Cuy retomou o ataque, Brienne foi forçada a se retirar, mas de
algum modo logrou mantê-los afastados. No chão, a cabeça de Renly
rolou repugnantemente para um lado, e uma segunda e terrível boca
escancarou-se, com o sangue agora saindo em ondas lentas.
Sor Robar
tinha ficado para trás, incerto, mas agora estendia a mão até o
cabo da espada.
- Robar,
não, escute - Catelyn o agarrou pelo braço. - Estão cometendo uma
injustiça, não foi ela. Ajude-a! Escute-me, foi Stannis - o nome
estava em seus lábios antes mesmo de conseguir pensar no modo como
lá chegara, mas, quando o proferiu, soube que era verdade. - Juro,
você me conhece, foi Stannis quem o matou.
O jovem
cavaleiro do arco-íris fitou aquela louca com olhos claros e
assustados.
-
Stannis? Como?
- Não
sei. Feitiçaria, alguma magia negra, havia uma sombra, uma sombra -
até para si mesma a voz soava descontrolada e enlouquecida, mas as
palavras jorravam descontroladas enquanto as lâminas continuavam
retinindo atrás dela. - Uma sombra com uma espada, juro, eu vi. São
cegos? A moça o amava! Ajude-a! - olhou de relance para trás, viu o
segundo guarda cair, a espada largada por dedos sem força. Lá fora
ouviam-se gritos. Sabia que mais homens zangados irromperiam sobre
eles a qualquer momento. - Ela é inocente, Robar. Tem a minha
palavra, pela tumba do meu esposo e por minha honra como Stark.
Aquilo o
fez se decidir.
- Eu os
conterei - Sor Robar respondeu. - Leve-a - então, virou-se e saiu.
O fogo
tinha chegado à parede e subia pelo lado da tenda. Sor Emmon
pressionava duramente Brienne, ele vestido de aço esmaltado amarelo
e ela de lã. Esquecera Catelyn, até que o braseiro de ferro se
esmagou contra sua nuca. Como estava com o elmo, o golpe não fez
nenhum mal duradouro, mas deixou-o de joelhos.
-
Brienne, comigo - Catelyn ordenou. A moça não foi lenta para ver a
oportunidade. Um golpe e a seda verde abriu-se. Saíram para a
escuridão e o frio da alvorada. Vozes alteradas vinham do outro lado
do pavilhão. - Por aqui - pediu Catelyn - e devagar. Não devemos
correr, senão vão nos perguntar por quê. Caminhe descontraída,
como se nada houvesse de errado.
Brienne
enfiou a espada no cinto e pôs-se ao lado de Catelyn. O ar da noite
cheirava a chuva. Atrás delas, o pavilhão do rei ardia, com as
chamas erguendo-se, altas, contra a escuridão. Ninguém fez um
movimento para pará-las. Homens passavam por elas correndo, gritando
sobre fogo, assassinato e feitiçaria. Outros reuniam-se em pequenos
grupos e conversavam em voz baixa. Alguns rezavam, e um jovem
escudeiro estava de joelhos, soluçando abertamente.
As forças
de Renly já começavam a se desagregar à medida que os rumores se
espalhavam de boca em boca. As fogueiras noturnas estavam quase
extintas e, à medida que o leste começava a se iluminar, a imensa
massa de Ponta Tempestade ia emergindo como um sonho de pedra,
enquanto farrapos de névoa branca corriam pelo campo, fugindo do sol
em asas de vento. Catelyn ouvira um dia a Velha Ama chamá-los de
fantasmas da manhã, espíritos que regressavam às suas tumbas. E
Renly era agora um deles, morto como o irmão Robert, como seu
querido Ned,
- Nunca o
tive nos braços, a não ser quando morreu - disse Brienne em voz
baixa enquanto caminhavam por entre o crescente caos. A voz soava
como se fosse se quebrar a qualquer instante. - Num momento estava
rindo, e de repente havia sangue por todo lado... Senhora, não
compreendo. Você viu, você...?
- Vi uma
sombra. Pensei a princípio que fosse a sombra de Renly, mas era a do
irmão.
- Lorde
Stannis?
-
Senti-o. Não faz sentido, sei disso.
Fazia
sentido suficiente para Brienne.
- Vou
matá-lo - declarou a moça alta e simples. - Com a espada do meu
senhor, vou matá-lo. Juro. Juro. Juro.
Hal
Mollen e o resto de sua escolta esperavam com os cavalos. Sor Wendel
Manderly coçava-se para saber o que estava acontecendo.
-
Senhora, o acampamento enlouqueceu - exclamou ao vê-las. - Lorde
Renly, ele está... - parou de súbito, com os olhos fitos em Brienne
e no sangue que a ensopava.
- Morto,
mas não por nossas mãos.
- A
batalha... - começou Hal Mollen.
- Não
haverá batalha - Catelyn montou, e a escolta adotou uma formação
ao seu redor, com Sor Wendel à esquerda e Sor Perwyn Frey à
direita. - Brienne, trouxemos montarias suficientes para o dobro de
nós. Escolha uma e venha conosco.
- Eu
tenho meu próprio cavalo, senhora. E a minha armadura...
-
Deixe-os. Temos de estar bem longe antes que pensem em nos procurar.
Estávamos ambas com o rei quando ele foi morto. Isso não será
esquecido - sem uma palavra, Brienne virou-se e fez o que lhe era
pedido. - Vamos - ordenou Catelyn à escolta depois de todos terem
montado. - Se alguém tentar nos parar, abatam-no.
A medida
que os longos dedos da alvorada se abriam em leque pelos campos, a
cor voltava ao mundo. Onde havia homens cinzentos, montados em
cavalos cinzentos e armados com lanças de sombras, cintilavam agora
as pontas de dez mil lanças numa frieza prateada, e na miríade de
bandeiras agitando-se Catelyn viu o desabrochar do vermelho, rosa e
laranja, a riqueza de azuis e marrons, a chama do dourado e do
amarelo. Todo o poderio de Ponta Tempestade e Jardim de Cima, o
poderio que tinha sido de Renly uma hora antes. Pertencem agora a
Stannis, compreendeu, mesmo que eles próprios ainda não saibam
disso. Para onde mais devem se voltar, se não para o último
Baratheon? Stannis conquistou a todos com um único golpe maligno.
Eu sou o
rei legitimo, declarara ele, com o maxilar cerrado, duro como ferro,
e seu filho não é menos traidor do que meu irmão aqui. O seu dia
também chegará.
Um
arrepio percorreu sua espinha.
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