domingo, 22 de setembro de 2013

33 - JAIME



As trombetas soaram num bramido de bronze e cortaram o ar parado e azul do ocaso. Josmyn Peckleton pôs-se em pé imediatamente, precipitando-se para o cinto da espada de seu chefe.
O rapaz tem bons instintos.
- Os fora da lei não fazem soar trombetas para anunciar sua chegada - disse-lhe Jaime. - Não precisarei da espada. Deve ser meu primo, o Protetor do Oeste.
Os recém-chegados desmontavam quando Jaime saiu da tenda; meia dúzia de cavaleiros, e uma vintena de arqueiros e homens de armas a cavalo.
- Jaime! - rugiu um homem desgrenhado que trajava cota de malha dourada e um manto de pele de raposa. - Tão magro, e todo de branco! E também barbado!
- Isto? Não passa de restolho, comparado a essa sua juba, primo - a barba eriçada e o cerrado bigode de Sor Daven transformavam-se em suíças tão densas quanto uma sebe, e estas fundiam-se com o emaranhado matagal amarelo que lhe cobria a cabeça, escondido pelo elmo que ele agora tirava. Em algum lugar, no meio de todos aqueles pelos, espreitava um nariz achatado e um par de vivos olhos cor de avelã. - Algum fora da lei roubou sua navalha?
- Jurei que não deixaria que me cortassem os cabelos até que meu pai fosse vingado - para um homem com um aspecto tão leonino, Daven Lannister soava estranhamente acanhado. - Mas o Jovem Lobo chegou primeiro ao Karstark. Roubou-me a vingança - entregou o elmo a um escudeiro e fez passar os dedos pelos cabelos, onde o peso do aço o esmagara. - Gosto de um pouco de cabelo. As noites estão ficando mais frias, e um pouco de folhagem ajuda a manter o rosto quente. Sim, e Tia Genna sempre disse que eu tinha um queixo de tijolo - agarrou os braços de Jaime. - Tememos por você depois do Bosque dos Murmúrios. Ouvimos dizer que o lobo gigante do Stark tinha rasgado sua goela.
- Chorou lágrimas amargas por mim, primo?
- Metade de Lanisporto estava de luto. A metade feminina - o olhar de Sor Daven dirigiu-se ao toco de Jaime - Então é verdade. Os bastardos lhe tiraram a mão da espada.
- Tenho uma nova, feita de ouro. Há muitas vantagens de só se ter uma mão. Bebo menos vinho por temer derramá-lo, e raramente me dá vontade de coçar o cu na corte.
- Sim, lá isso é verdade. Talvez deva cortar a minha também - o primo soltou uma gargalhada. - Foi Catelyn Stark quem a cortou?
- Vargo Hoat - de onde vêm essas histórias?
- O qohorik? -Sor Daven cuspiu. - Isso é para ele e para todos os seus Bravos Companheiros. Eu disse ao seu pai que cuidava da pilhagem, mas ele recusou. Algumas tarefas são adequadas aos leões, ele disse, mas é melhor deixar a pilhagem para os bodes e os cães.
Jaime sabia que aquelas eram as palavras exatas de Lorde Tywin; quase conseguia ouvir a voz do pai.
- Entre, primo. Precisamos conversar.
Garrett tinha acendido os braseiros, e os carvões incandescentes enchiam a tenda de Jaime com um calor rubro. Sor Daven libertou-se do manto e o atirou a Lew Pequeno.
- É um Piper, rapaz? - rosnou. - Tem ar de tampinha.
- Sou Lewys Piper, se aprouver ao senhor.
- Uma vez deixei seu irmão sangrando num corpo a corpo. O palerma do tampinha se ofendeu quando lhe perguntei se quem dançava nua em seu escudo era a irmã.
- Ela é o símbolo de nossa Casa. Não temos nenhuma irmã.
- Maior é a pena. Seu símbolo tem umas belas tetas. Mas que tipo de homem se esconde atrás de uma mulher nua? Cada vez que dava uma pancada no escudo do seu irmão me sentia pouco cavalheiresco.
- Basta - Jaime o repreendeu, rindo. - Deixe-o em paz. - Pia aquecia vinho para eles, mexendo a panela com uma colher. - Tenho de saber o que posso esperar encontrar em Correrrio.
O primo encolheu os ombros.
- O cerco arrasta-se. Peixe Negro senta-se dentro do castelo, nós nos sentamos aqui fora nos acampamentos. Uma chatice dos demônios, se quer saber a verdade - Sor Daven sentou-se num banco de acampamento - Tully devia fazer uma investida, para nos lembrar a todos de que ainda estamos em guerra. Também seria bom se nos libertasse de uns tantos Frey. De Ryman, para começar. O homem passa mais tempo bêbado do que sóbrio. Oh, e Edwyn. Não é tão obtuso quanto o pai, mas está tão cheio de ódio quanto um furúnculo de pus. E o nosso Sor Emmon... não, Lorde Emmon, que os Sete nos salvem, é melhor não esquecer seu novo título... Este nosso Senhor de Correrrio não faz nada além de me dizer como dirigir o cerco. Quer que eu tome o castelo sem danificá-lo, visto que agora é a sua casa senhorial.
- Esse vinho já está quente? - Jaime perguntou a Pia.
- Sim, senhor - a garota cobriu a boca quando falou. Peck serviu o vinho numa bandeja dourada. Sor Daven tirou as luvas e pegou uma taça.
- Obrigado, rapaz. E você, quem é?
- Josmyn Peckledon, se aprouver ao senhor.
- Peck foi um herói na Água Negra - Jaime disse - Matou dois cavaleiros e capturou outros dois,
- Deve ser mais perigoso do que parece, moço. Isso é uma barba ou esqueceu de lavar a sujeira da cara? A mulher de Stannis Baratheon tem um bigode mais farto. Quantos anos tem?
- Quinze, sor.
Sor Daven soltou uma fungadela.
- Sabe o que os heróis têm de melhor, Jaime? Morrem novos e deixam mais mulheres para o resto de nós - atirou a taça ao escudeiro. - Volte a encher isso até a borda, e eu também o chamarei de herói. Tenho sede.
Jaime ergueu sua taça com a mão esquerda e bebeu um gole. O calor se espalhou por seu peito.
- Falava dos Frey que queria ver mortos. Ryman, Edwyn, Emmon...
- E Walder Rivers - Daven completou - aquele filho da puta. Detesta ser bastardo, e detesta todos que não são. Mas Sor Perwyn parece ser um tipo decente, podemos poupá-lo. E às mulheres também, que vou me casar com uma delas, segundo ouvi dizer. Seu pai podia ter achado por bem me consultar sobre esse casamento. Meu pai estava em negociações com Paxter Redwyne antes de Cruzaboi, sabia? Redwyne tem uma filha com um belo dote...
- Desmera? - Jaime soltou uma gargalhada. - O que você acha de sardas?
- Se minhas alternativas são Frey ou sardas, bem... metade das descendentes de Lorde Walder se parecem com furões.
- Só metade? Dê-se por contente. Eu vi a mulher de Lancel em Darry.
- A Ami Portão, pela bondade dos deuses. Não consegui acreditar que Lancel a tenha escolhido. O que se passa com aquele rapaz?
- Tornou-se piedoso - Jaime respondeu - mas não foi ele quem fez a escolha. A mãe da Senhora Amerei é uma Darry. Nosso tio achou que isso ajudaria Lancel com o povo de Darry.
- Como? Fodendo-os? Sabe por que a chamam de Ami Portão? Ela ergue a porta levadiça para qualquer cavaleiro que passe por perto. É melhor que Lancel arranje um armeiro que lhe faça um elmo com cornos.
- Isso não será necessário. Nosso primo está a caminho de Porto Real, para tomar votos como uma das espadas do Alto Septão.
Sor Daven não teria parecido mais espantado se Jaime lhe tivesse dito que Lancel decidira se tornar macaco de saltimbanco.
- Não pode ser. Está brincando comigo. Ami Portão deve ser uma doninha ainda maior do que eu tinha ouvido falar se conseguiu levar o rapaz a fazer isso.
Quando Jaime se despediu da Senhora Amerei, ela chorava suavemente por causa da dissolução de seu casamento, enquanto permitia que Lyle Crakehall a consolasse. Suas lágrimas ficaram longe de perturbá-lo, tanto quanto os olhares duros de seus familiares espalhados pelo pátio.
- Espero que não pretenda também tomar votos, primo - disse a Daven. - Os Frey são suscetíveis no que diz respeito aos contratos de matrimônio. Detestaria voltar a desiludi-los.
Sor Daven fungou.
- Casarei e dormirei com minha doninha, nada tema. Sei o que aconteceu a Robb Stark. Mas pelo que Edwyn me diz, é melhor que eu escolha uma que ainda não floriu, caso contrário, é provável que descubra que Walder Negro esteve lá primeiro. Aposto que tomou Ami Portão, e mais do que três vezes. Isso talvez explique a religiosidade de Lancel e o humor do pai.
- Viu Sor Kevan?
- Sim. Ele passou por aqui a caminho do oeste. Pedi-lhe para me ajudar a tomar o castelo, mas Kevan nem quis ouvir falar no assunto. Ficou refletindo todo o tempo que passou aqui. Bastante cortês, mas frio. Jurei-lhe que nunca pedi para ser Protetor do Oeste, que a honra devia ter cabido a ele, e ele declarou que não tinha ressentimento, mas nunca poderia deduzir isto pelo seu tom, Ficou três dias, e quase nem me disse três palavras. Gostaria que tivesse ficado, seus conselhos me seriam úteis. Nossos amigos Frey não se atreveriam a contrariar Sor Kevan como me têm contrariado.
- Conte-me - Jaime pediu.
- Gostaria de contar, mas por onde começo? Enquanto eu construía aríetes e torres de cerco, Ryman Frey construiu um cadafalso. Todos os dias, à alvorada, aparece com Edmure Tully, põe-lhe uma corda em volta do pescoço e ameaça enforcá-lo, a menos que o castelo se renda. Peixe Negro não dá importância a essa farsa, de modo, que ao cair da noite, Lorde Edmure é de novo levado para baixo. A mulher está grávida, sabia?
Não sabia.
- Edmure a levou para a cama depois do Casamento Vermelho?
- Estava com ela na cama durante o Casamento Vermelho. Roslin é uma coisinha bonita, quase nem parece uma doninha. E gosta de Edmure, estranhamente. Perwyn me diz que ela reza por uma menina.
Jaime refletiu naquilo por um momento.
- Uma vez nascido o filho de Edmure, Lorde Walder deixará de ter necessidade dele.
- É também assim que vejo as coisas. Nosso tio Emm... ah, isto é, Lorde Emmon, quer ver Edmure enforcado de imediato. A presença de um Tully, Senhor de Correrrio, perturba-o quase tanto quanto o esperado nascimento de mais um. Implora-me diariamente para obrigar Sor Ryman a pendurar Tully, não importa como. Entretanto, tenho Lorde Gawen Westerling me puxando a outra manga. Peixe Negro tem a senhora sua esposa dentro do castelo, com três de suas crias ranhosas. Sua senhoria teme que Tully os mate se os Frey enforcarem Edmure. Uma delas é a rainhazinha do Jovem Lobo.
Jaime achava que tinha conhecido Jeyne Westerling, embora não conseguisse se lembrar de sua aparência. Deve ser realmente bela para valer um reino.
- Sor Brynden não matará crianças - assegurou ao primo. - Ele não é um peixe assim tão negro - começava a compreender por que Correrrio ainda não caíra. - Fale-me dos seus arranjos, primo.
- Temos o castelo bem cercado. Sor Ryman e os Frey estão a norte do Pedregoso. A sul do Ramo Vermelho encontra-se Lorde Emmon, com Sor Forley Prester e aquilo que resta de sua velha hoste, além dos senhores do rio que passaram para o nosso lado após o Casamento Vermelho. Um bando carrancudo, não me importo de assim afirmar. Prestam para ficar amuados nas respectivas tendas, mas não para muito mais. Meu acampamento fica entre os rios, diante do fosso e dos portões principais de Correrrio. Fizemos passar um dique flutuante através do Ramo Vermelho, a jusante do castelo, Manfryd Yew e Raynard Ruttiger estão a cargo de sua defesa, de modo que ninguém possa escapar por barco. Também lhes dei redes, para pescar. Ajuda a nos manter alimentados.
- Podemos derrotar o castelo pela fome?
Sor Daven balançou a cabeça.
- Peixe Negro expulsou de Correrrio todas as bocas inúteis e colheu tudo que havia nos campos. Tem reservas suficientes para manter homens e cavalos vivos durante dois anos.
- E como estamos aprovisionados?
- Enquanto houver peixe nos rios, não passaremos fome, embora eu não saiba como alimentaremos os cavalos. Os Frey têm trazido comida e forragem das Gêmeas, mas Sor Ryman diz que não tem o bastante para partilhar, portanto, temos de ser nós a nos abastecermos. Metade dos homens que mando em busca de comida não regressa. Alguns estão desertando. Encontramos outros apodrecendo debaixo das árvores, com corda em volta do pescoço.
- Deparamos com alguns, anteontem - Jaime confirmou. Os batedores de Addam Marbrand os tinham encontrado, pendendo, com rostos negros, sob uma macieira silvestre. Os cadáveres tinham sido desnudados, e cada homem tinha uma maçã enfiada entre os dentes. Nenhum mostrava ferimento; era evidente que tinham se rendido. Varrão Forte ficara furioso ao ver aquilo, jurando vingança sangrenta contra a cabeça de qualquer homem capaz de amarrar guerreiros e deixá-los para morrer como se fossem leitões.
- Podem ter sido os fora da lei - Sor Daven disse depois de Jaime ter contado a história - ou não. Ainda andam por aí bandos de nortenhos. E esses Senhores do Tridente podem ter dobrado o joelho, mas me parece que os corações continuam a ser... lupinos.
Jaime olhou de relance seus dois jovens escudeiros, que pairavam perto dos braseiros fingindo não escutar. Lewys Piper e Garrett Paege eram ambos filhos de senhores do rio. Criara amizade pelos dois, e detestaria ter de entregá-los a Sor Ilyn.
- As cordas sugerem-me Dondarrion.
- Seu senhor do relâmpago não é o único homem que sabe como atar um laço. Não me faça falar de Lorde Beric. Está aqui, está ali, está em todo lado, mas quando homens são enviados atrás dele, evapora-se como orvalho. Os senhores do rio o estão ajudando, não duvide disso nem por um momento. Um maldito senhor das marcas, se dá para acreditar em tal coisa. Um dia ouve-se dizer que o homem está morto, no segundo lhe contam que ele não pode ser morto - Sor Daven pousou a taça de vinho. - Meus batedores falam de fogueiras nos lugares elevados durante a noite. Fogueiras sinaleiras, julgam eles... como se houvesse um anel de vigilantes a nossa volta. E também há fogos nas aldeias. Algum novo deus...
Não, um antigo.
- Thoros, o sacerdote gordo de Myr que costumava beber com Robert, está com Dondarrion - Jaime tinha a mão de ouro pousada na mesa. Tocou-a e viu o ouro cintilar à luz abafada dos braseiros. -Lidaremos com Dondarrion se tiver de ser, mas Peixe Negro tem de vir primeiro. Ele deve saber que sua causa é perdida. Tentou negociar com ele?
- Sor Ryman tentou. Foi a cavalo até os portões do castelo, meio bêbado e fanfarrão, fazendo ameaças. Peixe Negro apareceu nas ameias durante tempo suficiente para dizer que não desperdiçaria boas palavras com homens sórdidos. Então, espetou uma flecha na garupa do palafrém de Ryman. O cavalo empinou, o Frey caiu na lama e eu ri tanto que quase mijei nas calças. Se fosse eu naquele castelo, teria enfiado aquela flecha na garganta mentirosa de Ryman.
- Usarei um gorjal quando for negociar com ele - Jaime disse com um meio sorriso. - Pretendo oferecer-lhe condições generosas - se conseguisse pôr fim àquele cerco sem derramar sangue, então não poderiam dizer que pegara em armas contra a Casa Tully.
- Tente à vontade, mas duvido que as palavras saiam vitoriosas. Temos de tomar o castelo de assalto.
Houvera uma época, não fazia muito tempo, em que Jaime aconselharia, sem a menor dúvida, o mesmo curso de ação. Sabia que não podia ficar ali durante dois anos para derrotar Peixe Negro pela fome.
- Não importa o que façamos, temos de agir depressa - disse a Sor Daven. - Meu lugar é em Porto Real, com o rei.
- Sim - o primo concordou. - Não duvido de que sua irmã precise de você. Por que ela mandou Sor Kevan embora? Achava que o nomearia Mão.
- Ele não quis aceitar o cargo - não foi tão cego quanto fui.
- Kevan devia ser Protetor do Oeste. Ou você. Não que eu não esteja grato pela honra, veja bem, mas nosso tio tem duas vezes a minha idade e mais experiência de comando. Espero que saiba que nunca pedi isso.
- Ele sabe.
- Como está Cersei? Tão bela como sempre?
- Deslumbrante - instável - Dourada - falsa como ouro dos tolos. Na noite anterior, sonhara ter flagrado a irmã fodendo o Rapaz Lua. Matara o bobo e, com a mão de ouro, fizera em lascas os dentes de Cersei, tal como Gregor Clegane fizera à pobre Pia. Em seus sonhos, Jaime tinha sempre duas mãos; uma era feita de ouro, mas funcionava tão bem quanto a outra. - Quanto mais depressa nos despacharmos com Correrrio, mais depressa regressarei para junto de Cersei - o que Jaime faria então, não sabia.
Conversou com o primo durante mais uma hora antes de o Protetor do Oeste finalmente se retirar. Depois de ele partir, Jaime prendeu a mão de ouro e o manto marrom para ir caminhar por entre as tendas.
Na verdade, gostava daquela vida. Sentia-se mais confortável entre soldados, em campo, do que alguma vez se sentira na corte. E seus homens também pareciam confortáveis com ele. Junto a uma fogueira, três besteiros ofereceram-lhe um pouco da lebre que tinham apanhado. Junto a outra, um jovem cavaleiro lhe pediu conselhos quanto à melhor maneira de se defender contra um martelo de guerra. Embaixo, junto ao rio, observou duas lavadeiras que travavam uma justa na água pouco profunda, ombro a ombro ao lado de um par de homens de armas. As garotas estavam meio bêbadas e seminuas, rindo e batendo uma na outra com mantos enrolados, enquanto uma dúzia de outros homens as incentivavam. Jaime apostou uma estrela de cobre na garota loira que montava Raff, o Querido, mas a perdeu quando as duas caíram na água por entre os juncos.
Do outro lado do rio lobos uivavam, e o vento soprava em rajadas através de um maciço de salgueiros, fazendo seus galhos se contorcerem e suspirar. Jaime encontrou Sor Ilyn Payne sozinho, em frente à tenda, passando uma pedra de amolar pela espada.
- Venha - disse, e o cavaleiro silencioso ergueu-se, com um pequeno sorriso. Ele gosta disso, compreendeu. Agrada-lhe me humilhar todas as noites. Talvez lhe agradasse ainda mais me matar. Gostaria de acreditar que melhorava, mas as melhorias eram lentas e não aconteciam sem um preço. Por baixo do aço, da lã e do couro fervido que trajava, Jaime Lannister era uma tapeçaria de cortes, crostas de sangue e manchas negras.
Uma sentinela os desafiou ao saírem do acampamento com os cavalos pela arreata. Jaime deu uma palmada no ombro do homem com a mão de ouro.
- Fique atento. Há lobos por aí - voltaram, ao longo do Ramo Vermelho, até as ruínas de uma aldeia por onde tinham passado naquela tarde. E foi ali que dançaram sua dança da meia-noite, entre pedras enegrecidas e cinzas velhas e frias. Durante algum tempo Jaime teve supremacia. Talvez a velha perícia estivesse voltando, permitiu-se pensar. Talvez naquela noite fosse Payne quem dormiria machucado e ensanguentado.
Foi como se Sor Ilyn tivesse ouvido seus pensamentos. Parou indolentemente o último golpe de Jaime e lançou um contra-ataque que empurrou o adversário para o rio, fazendo-o ir parar na lama pelo escorregão da bota que o fez perder o equilíbrio. Acabou de joelhos, com a espada do cavaleiro silencioso na garganta e a sua perdida entre os canaviais. Ao luar, as marcas de bexigas no rosto de Payne eram grandes como crateras. Ele fez aquele som de estalar que podia ter sido uma gargalhada e deslizou a espada pela garganta de Jaime até a ponta repousar entre seus lábios. Só então recuou e embainhou o aço.
Teria feito melhor se desafiasse Raff, o Querido, com uma puta às costas, pensou Jaime enquanto sacudia lama da mão dourada. Parte de si desejou arrancar aquela coisa e atirá-la ao rio. Não prestava para nada, e a esquerda não era muito melhor. Sor Ilyn voltara para junto dos cavalos, deixando-o sozinho para se pôr em pé. Pelo menos ainda tenho duas dessas.
O último dia da viagem foi frio e ventoso. O vento matraqueava por entre os galhos nos bosques nus e marrons e fazia os juncos do rio dobrarem-se ao longo do Ramo Vermelho. Ainda que coberto com a lã do manto de inverno da Guarda Real Jaime conseguia sentir os dentes de ferro do vento enquanto avançava ao lado do primo Daven. Foi ao fim da tarde que avistaram Correrrio, erguendo-se da ponta estreita onde o Pedregoso se juntava ao Ramo Vermelho. O castelo Tully parecia um grande navio de pedra, com sua proa apontando para jusante. Suas muralhas de arenito estavam ensopadas de uma luz de tom dourado-avermelhado, e pareciam mais altas e mais espessas do que Jaime se recordava. Essa noz não se quebrará com facilidade, pensou sombriamente. Se Peixe Negro não lhe desse ouvidos, não teria alternativa exceto quebrar a promessa que fizera a Catelyn Stark. A promessa que fizera ao seu rei tinha primazia.
O dique que atravessava o rio e os três grandes acampamentos do exército sitiante eram precisamente como o primo descrevera. O acampamento de Sor Ryman Frey, ao norte do Pedregoso, era o maior e o mais desordenado. Um grande cadafalso cinzento erguia-se acima das tendas, tão alto quanto qualquer catapulta. Nele encontrava-se uma figura solitária com uma corda em volta do pescoço. Edmure Tully. Jaime sentiu um acesso de piedade. Mantê-lo ali em pé dia após dia, com aquele laço em volta do pescoço... seria melhor cortar-lhe a cabeça e acabar com o assunto.
Por trás do cadafalso, tendas e fogueiras para cozinhar espalhavam-se numa desordem irregular. Os fidalgos Frey e seus cavaleiros tinham erguido os pavilhões confortavelmente a montante das fossas das latrinas; para jusante ficavam casinhotos lamacentos, carroças e carros de bois.
- Sor Ryman não quer que seus rapazes se aborreçam, de modo que lhes dá prostitutas e lutas de galos e de ursos - Sor Devan contou. - Até arranjou o raio de um cantor. Nossa tia trouxe Wat Sorriso-Branco de Lanisporto, se consegue acreditar em tal coisa, de modo que Ryman também tinha de ter um cantor. Não podíamos simplesmente represar o rio e afogar aquela cambada toda, primo?
Jaime via arqueiros deslocando-se por trás dos merlões nas ameias do castelo. Por cima deles, agitavam-se os estandartes da Casa Tully, a truta prateada desafiante em seu fundo listrado de vermelho e azul. Mas na torre mais alta esvoaçava uma bandeira diferente; um longo estandarte branco decorado com o lobo gigante dos Stark.
- A primeira vez que vi Correrrio, era um escudeiro tão verde como a grama estival - disse Jaime ao primo. - O velho Sumner Crakehall me mandou entregar uma mensagem, que ele jurou não poderia ser confiada a um corvo. Lorde Hoster reteve-me durante uma quinzena enquanto pensava na resposta, e sentou-me ao lado da filha Lysa a cada refeição.
- Pouco admira que tenha vestido o branco. Eu teria feito o mesmo.
- Oh, Lysa não era tão temível como nos últimos tempos - tinha sido uma garota bonita, para falar a verdade; com covinhas no rosto e delicada, de longos cabelos ruivos. Mas tímida. Dada a silêncios de língua atada e ataques de riso, sem nada do fogo de Cersei. A irmã mais velha parecera mais interessante, embora Catelyn estivesse prometida a um rapaz nortenho qualquer, o herdeiro de Winterfell... Mas naquela idade nenhuma garota chegava sequer perto de interessar Jaime tanto quanto o famoso irmão de Hoster, que ganhara renome ao combater os Reis das Nove Moedas nos Degraus. À mesa, ignorara a pobre Lysa, enquanto pressionava Brynden Tully, pedindo-lhe histórias sobre Maelys, o Monstruoso, e o Príncipe de Ébano. Sor Brynden era mais novo do que sou agora, refletiu Jaime, e eu mais novo do que Peck.
O vau mais próximo do Ramo Vermelho ficava a montante do castelo. Para chegar ao acampamento de Sor Daven, tinham de atravessar o de Emmon Frey, passando pelos pavilhões dos senhores do rio que tinham dobrado o joelho e sido aceitos de volta à paz do rei. Jaime reparou nos estandartes de Lychester e Vance, Roote e Goodbrood, nas bolotas da Casa Smallford e na donzela dançante de Lorde Piper, mas as bandeiras que não viu deram-lhe o que pensar. A águia prateada de Mallister não se via em lado nenhum, nem o cavalo vermelho de Bracken, o salgueiro dos Ryger, as serpentes entrelaçadas de Paege. Embora todos tivessem renovado sua lealdade ao Trono de Ferro, nenhum tinha vindo se juntar ao cerco. Jaime sabia que os Bracken estavam em guerra com os Blackwood, o que explicava sua ausência, mas os outros...
Nossos novos amigos não são amigos nenhuns. Sua lealdade não é mais profunda do que suas peles. Correrrio tinha de ser tomado, e depressa. Quanto mais tempo o cerco se arrastasse, mais ânimo daria a outros teimosos, como Tytos Blackwood.
No vau, Sor Kennos de Kayce soprou o Berrante de Herrock. Isso deve trazer Peixe Negro às ameias. Sor Hugo e Sor Dermot indicaram a Jaime o caminho através do rio, fazendo espirrar a lamacenta água vermelho-amarronzada com o estandarte branco da Guarda Real e o veado e o leão de Tommen esvoaçando. O resto da coluna os seguiu de perto.
O acampamento Lannister ressoava com o som de martelos de madeira, vindo de onde uma nova torre de cerco era erguida. Outras duas torres estavam completas, meio cobertas por peles de cavalo por curtir. Entre ambas encontrava-se um aríete rolante; um tronco de árvore com a ponta endurecida pelo fogo, suspenso por correntes sob uma cobertura de madeira. Meu primo não ficou parado, ao que parece.
- Senhor -perguntou Peck - onde quer sua tenda?
- Ali, naquela elevação - apontou com a mão de ouro, embora não se adequasse bem a tal tarefa. - Ali a logística, e lá as linhas dos cavalos. Usaremos as latrinas que meu primo tão bondosamente cavou para nós. Sor Addam, inspecione nosso perímetro, com os olhos abertos para quaisquer fraquezas - Jaime não previa um ataque, mas também não previra o Bosque dos Murmúrios.
- Devo convocar os furões para um conselho de guerra? - Daven perguntou.
- Só depois de eu ter falado com Peixe Negro - com um gesto, Jaime chamou Jon Imberbe Bettley. - Pegue um estandarte de paz e leve uma mensagem ao castelo. Informe Sor Brynden Tully de que quero trocar ideias com ele à primeira luz da aurora. Irei até a borda do fosso e me encontrarei com ele em sua ponte levadiça.
Peck pareceu alarmado.
- Senhor, os arqueiros poderiam...
- Não o farão - Jaime desmontou. - Erga minha tenda e plante meus estandartes - e veremos quem vem correndo, e com que rapidez.
Não precisou de muito tempo. Pia estava atarefada com um braseiro, tentando acender as brasas. Peck foi ajudá-la. Nos últimos tempos, era frequente que Jaime adormecesse com o som dos dois fodendo em um canto da tenda. Enquanto Garrett desprendia as fivelas das grevas de Jaime, a aba da tenda se abriu.
- Então, finalmente chegou? - trovejou sua tia. Enchia a entrada, com o marido espreitando por trás dela. - Já era mais que tempo. Não tem um abraço para dar à sua velha tia gorda? - estendeu os braços, não lhe deixando alternativa exceto ir abraçá-la.
Genna Lannister tinha sido uma mulher formosa na juventude, sempre ameaçando transbordar do corpete. Agora, a única forma que tinha era de um quadrado. O rosto era largo e liso; o pescoço, um grosso pilar cor-de-rosa; o busto, enorme. Transportava carne suficiente para fazer dois maridos. Jaime a abraçou obedientemente e esperou que a mulher lhe beliscasse a orelha, o que ela fazia desde sempre, mas naquele dia absteve-se. Em vez disso, espetou-lhe beijos moles e descuidados nas bochechas.
- Lamento sua perda.
- Mandei fazer uma mão nova, de ouro - e mostrou-lhe.
- Muito lindo. Também farão um pai de ouro para você? - a voz da Senhora Genna era penetrante. - A perda a que me referia era Tywin.
- Um homem como Tywin Lannister só surge uma vez em mil anos - declarou seu marido. Emmon Frey era um homem rabugento de mãos nervosas. Podia pesar sessenta quilos... mas só molhado, e vestido de cota de malha. Era um espeto envolto em lã, sem queixo aparente, falha esta que a proeminência do pomo de adão ostentada pela garganta tornava ainda mais absurda. Metade de seus cabelos desaparecera antes de ele fazer trinta anos. Agora tinha sessenta, e só restavam uns poucos fiapos brancos.
- Nos últimos tempos, nos tem chegado histórias estranhas - disse a Senhora Genna, depois de Jaime ter mandado embora Pia e os escudeiros. - Uma mulher quase não consegue saber em que acreditar. Poderá ser verdade que Tyrion matou Tywin? Ou é alguma calúnia que sua irmã espalhou?
- É verdade - o peso da mão de ouro tornara-se penoso. Remexeu nas correias que a prendiam ao pulso.
- Um filho erguer a mão contra um pai - Sor Emmon retrucou. - Monstruoso. São dias negros os que vivemos em Westeros. Temo por todos nós com Lorde Tywin desaparecido.
- Temia por todos nós quando ele estava entre os vivos - Genna instalou seu amplo traseiro num banco, que rangeu de forma alarmante sob seu peso. - Sobrinho, fale-nos de nosso filho Cleos e do modo como morreu.
Jaime desprendeu a última fivela e pôs a mão de lado.
- Fomos emboscados por um bando de fora da lei. Sor Cleos os fez dispersar, mas isso custou-lhe a vida - a mentira surgiu facilmente, e Jaime viu que tinha agradado a ambos.
- O rapaz tinha coragem, eu sempre disse. Estava em seu sangue - uma espuma rosada cintilava nos lábios de Sor Emmon quando falava, graças à folhamarga que gostava de mascar.
- Seus ossos deviam ser enterrados sob o Rochedo, no Salão dos Heróis - Senhora Genna declarou. - Onde ele foi posto em repouso?
Em lugar nenhum. Os Saltimbancos Sangrentos despiram-lhe o cadáver e deixaram a carne para banquetear os corvos.
- Junto a um riacho - mentiu. - Quando esta guerra terminar, encontrarei o lugar e o mandarei para casa - ossos eram ossos; naqueles dias, nada era mais fácil de arranjar.
- Esta guerra... - Lorde Emmon limpou a garganta, fazendo mover o pomo de adão para cima e para baixo - Deveria ter visto as máquinas de cerco. Aríetes, catapultas, torres. Não pode ser, Jaime. Daven pretende quebrar minhas muralhas, esmagar meus portões. Ele fala de piche queimando, de incendiar o castelo. O meu castelo - puxou uma manga para cima, tirou de lá um pergaminho e o atirou ao rosto de Jaime. - Tenho o decreto. Assinado pelo rei, por Tommen, vê? O selo real, o veado e o leão. Sou o legítimo senhor de Correrrio, e não o quero reduzido a uma ruína fumegante.
- Oh, guarde essa bobagem - exclamou a mulher. - Enquanto Peixe Negro se mantiver dentro de Correrrio, pode muito bem limpar o rabo com esse papel e todo o bem que ele nos traz - embora fosse uma Frey há cinquenta anos, Senhora Genna ainda era muito Lannister. Uma grande quantidade de Lannister. - Jaime lhe entregará o castelo.
- Com certeza - Lorde Emmon aquiesceu. - Sor Jaime, a fé que o senhor seu pai depositou em mim não foi mal dirigida, verá. Pretendo ser firme, mas justo, com meus novos vassalos. Blackwood e Bracken, Jason Mallister, Vance e Piper, todos aprenderão que têm um suserano justo em Emmon Frey. E meu pai também, sim. Ele é o Senhor da Travessia, mas eu sou o Senhor de Correrrio. Um filho tem o dever de obedecer ao pai, é verdade, mas um vassalo deve obedecer ao seu suserano.
Oh, pela bondade dos deuses.
- Você não é suserano dele, sor. Leia seu pergaminho. Foi-lhe atribuído Correrrio com suas terras e seus rendimentos, nada mais. Petyr Baelish é o Senhor Supremo do Tridente. Correrrio ficará sujeito à lei de Harrenhal.
Aquilo não agradou Lorde Emmon.
- Harrenhal é uma ruína, assombrada e amaldiçoada - objetou - e Baelish... o homem é um contador de moedas, não um senhor como deve ser, seu nascimento...
- Se está descontente com as nomeações, vá a Porto Real e leve o assunto à minha querida irmã - não tinha dúvidas de que Cersei devoraria Emmon Frey e palitaria os dentes com seus ossos. Isto é, se não estiver ocupada demais fodendo Osmund Kettleblack.
Senhora Genna soltou uma fungadela.
- Não há necessidade de incomodar Sua Graça com tal disparate. Emm, por que é que não vai até lá fora apanhar um pouco de ar?
- Um pouco de ar?
- Ou uma longa mijadela, se preferir. Meu sobrinho e eu temos assuntos de família a discutir.
Lorde Emmon corou.
- Sim, está quente aqui. Esperarei lá fora, senhora. Sor - sua senhoria enrolou o pergaminho, esboçou uma reverência dirigida a Jaime e saiu da tenda com um passo pouco seguro.
Era difícil não sentir desprezo por Emmon Frey. Chegara a Rochedo Casterly em seu décimo quarto ano para se casar com uma leoa com metade de sua idade. Tyrion costumava dizer que Lorde Tywin lhe dera uma barriga nervosa como presente de casamento. Genna também desempenhou seu papel. Jaime lembrava-se de muitos banquetes em que Emmon ficava espetando, carrancudo, os talheres na comida enquanto a esposa trocava gracejos obscenos com qualquer cavaleiro doméstico que se encontrasse sentado à sua esquerda, em conversas que eram interrompidas por sonoros ataques de riso. Ela deu ao Frey quatro filhos, é certo. Pelo menos diz que são dele. E ninguém em Rochedo Casterly teve coragem de sugerir o contrário, especialmente Sor Emmon.
Assim que ele saiu, a senhora sua esposa revirou os olhos.
- Meu dono e senhor. Em que seu pai pensava ao nomeá-lo Senhor de Correrrio?
- Imagino que pensasse em seus filhos.
- Eu também penso neles. Emm dará um senhor miserável. Ty poderá se sair melhor, se tiver o bom-senso de aprender comigo e não com o pai - passou os olhos pela tenda.
- Tem vinho?
Jaime descobriu um jarro e a serviu, com uma mão só.
- Por que está aqui, senhora? Devia ter permanecido em Rochedo Casterly até os combates terminarem.
- Assim que Emm soube que era um senhor, teve de vir imediatamente reclamar o que lhe pertencia - Senhora Genna bebeu um gole e limpou a boca na manga. - Seu pai devia ter nos dado Darry. Cleos casou-se com uma das filhas do homem do arado, se bem se lembra. Sua chorosa viúva está furiosa por as terras do senhor seu pai não terem sido entregues aos filhos. A Ami Portão é Darry só pelo lado da mãe. Minha nora Jeyne é sua tia, irmã da Senhora Mariya.
- Uma irmã mais nova - Jaime ressaltou - e Ty ficará com Correrrio, uma recompensa melhor do que Darry.
- Uma recompensa envenenada. A Casa Darry está extinta pela linhagem masculina, a Tully não. Aquele cabeça de carneiro do Sor Ryman põe um laço em volta do pescoço de Edmure, mas não quer enforcá-lo. E Roslin Frey tem uma truta crescendo na barriga. Meus netos nunca estarão seguros em Correrrio enquanto algum Tully permanecer vivo.
Jaime sabia que ela não se enganava.
- Se Roslin tiver uma filha...
- ... ela poderá se casar com Ty, desde que o velho Lorde Walder consinta. Sim, já tinha pensado nisso. Mas há a mesma probabilidade de nascer um garoto, e seu pauzinho enevoaria o assunto. E se Sor Brynden sobreviver ao cerco, pode se sentir inclinado a reclamar Correrrio em seu próprio nome... ou em nome do jovem Robert Arryn.
Jaime lembrava-se do pequeno Robert de Porto Real ainda mamando nas tetas da mãe aos quatro anos.
- Arryn não viverá o suficiente para gerar descendência. E por que o Senhor do Ninho da Águia precisaria de Correrrio?
- Por que um homem com um pote de ouro precisa de outro? Os homens são ambiciosos. Tywin devia ter dado Correrrio a Kevan, e Darry a Emm. Ter-lhe-ia dito isso, se ele tivesse se incomodado em me perguntar, mas quando foi que seu pai alguma vez consultou alguém além de Kevan? - soltou um profundo suspiro. - Veja, não culpo Kevan por querer a propriedade mais segura para o filho. Conheço-o bem demais.
- O que Kevan quer e o que Lancel deseja parecem ser coisas diferentes - contou-lhe a decisão que Lancel tomara de renunciar à esposa, terras e senhoria para lutar pela Fé Sagrada. - Se ainda quiser Darry, escreva a Cersei e apresente seus argumentos.
Senhora Genna sacudiu a taça numa recusa.
- Não, esse cavalo já abandonou o pátio. Emm tem enfiado na sua cabeça bicuda que vai governar as terras fluviais. E Lancel... Suponho que devíamos ter previsto o que aconteceria. Afinal de contas, uma vida dedicada a proteger o Alto Septão não é assim tão diferente de uma vida dedicada a proteger o rei. Temo que Kevan fique furioso. Tão furioso quanto Tywin ficou quando você meteu na cabeça vestir o branco. Pelo menos Kevan ainda tem Martyn como herdeiro. Pode casá-lo com a Ami Portão no lugar de Lancel. Que os Sete nos salvem a todos - a tia soltou um suspiro. - E por falar nos Sete, por que Cersei permitiria que a Fé voltasse a se armar?
Jaime encolheu os ombros.
- Tenho certeza de que teve motivos.
- Motivos? - Senhora Genna soltou um ruído mal-educado. - É melhor que sejam bons motivos. Os Espadas e Estrelas incomodaram até os Targaryen. O próprio Conquistador movia-se com cautela no que dizia respeito à Fé, para que não se lhe opusessem. E quando Aegon morreu e os lordes se ergueram contra os filhos, ambas as ordens estiveram no âmago dessa rebelião. Os senhores mais piedosos apoiavam-nos, bem como muitos dos plebeus. O Rei Maegor acabou por ter de lhes colocar a cabeça a prêmio. Pagou um dragão pela cabeça de um Filho do Guerreiro impenitente e um veado de prata pelo escalpe de um Pobre Companheiro, se bem me lembro da história. Milhares foram mortos, mas quase outros tantos continuaram a vagar pelo reino, em desafio, até que o Trono de Ferro matou Maegor e o Rei Jaehaerys concordou em perdoar todos aqueles que pusessem de lado suas espadas.
- Tinha me esquecido da maior parte disso - Jaime confessou.
- Tanto você quanto sua irmã - bebeu mais um trago de vinho. - É verdade que Tywin estava sorrindo no velório?
- Estava apodrecendo no velório. Isto fez que sua boca se torcesse.
- Não passou disso? - aquilo pareceu entristecê-la - Os homens dizem que Tywin nunca sorria, mas sorriu quando se casou com sua mãe, e quando Aerys o nomeou Mão. Quando o Solar Tarbeck ruiu sobre a Senhora Ellyn, aquela cadela intriguista, Tyg afirmou que, nesse momento, ele sorriu. E sorriu em seu parto, Jaime, vi-o com meus próprios olhos. Você e Cersei, rosados e perfeitos, tão parecidos como duas gotas de água... bem, exceto entre as pernas. Os pulmões que tinham!
- Ouça-nos rugir - Jaime sorriu. - Em seguida vai me dizer como ele gostava de rir.
- Não. Tywin desconfiava do riso. Tinha ouvido muitas pessoas rirem de seu avô - franziu as sobrancelhas. - Garanto-lhe, esta farsa de cerco não o teria divertido. Como pretende acabar com ela, agora que está aqui?
- Negociando com Peixe Negro.
- Isso não funcionará.
- Pretendo oferecer-lhe boas condições.
- Condições exigem confiança. Os Frey assassinaram convidados sob o seu teto, e você, bem... Não pretendo ofender, meu amor, mas matou um certo rei que tinha jurado proteger.
- E matarei Peixe Negro se não se render - seu tom era mais ríspido do que pretendera, mas não estava com disposição para que lhe atirassem Aerys Targaryen à cara.
- Como? Com a língua? - a voz dela era de escárnio. - Posso ser uma velha gorda, mas não tenho queijo entre as orelhas, Jaime. E Peixe Negro também não. Ameaças vazias não o intimidarão.
- O que aconselharia?
Ela encolheu pesadamente os ombros.
- Emm quer a cabeça de Edmure cortada. Desta vez talvez tenha razão. Sor Ryman nos transformou em motivo de chacota com aquele seu cadafalso. Precisa mostrar a Sor Brynden que suas ameaças têm dentes.
- Matar Edmure poderá endurecer a determinação de Sor Brynden.
- Determinação é uma coisa que nunca faltou a Brynden Peixe Negro. Hoster Tully poderia ter lhe dito isso - Senhora Genna bebeu o resto do vinho. - Bem, eu nunca ousaria lhe dizer como travar uma guerra. Sei qual é o meu lugar... ao contrário da sua irmã. É verdade que Cersei incendiou a Fortaleza Vermelha?
- Só a Torre da Mão.
A tia revirou os olhos.
- Teria feito melhor se tivesse deixado ficar a torre e queimado a Mão. Harys Swyft? Se algum homem algum dia mereceu suas armas, este é Sor Harys. E Gyles Rosby, que os Sete nos salvem... Pensava que ele tinha morrido havia anos. Merryweather... Seu pai costumava chamar o avô dele de "galhofas" é bom que saiba. Tywin afirmava que a única coisa em que o Merryweather era bom era em rir dos ditos espirituosos do rei. Sua senhoria atirou-se às gargalhadas para o exílio, se bem me lembro. Cersei também pôs um bastardo qualquer no conselho, e uma panela na Guarda Real. Tem a Fé armando-se e os bravosianos exigindo o pagamento de empréstimos por todo Westeros. Nada disso estaria acontecendo se tivesse tido o simples bom-senso de fazer de seu tio Mão do Rei.
- Sor Kevan recusou o cargo.
- Foi o que ele disse. Não explicou por quê. Houve muitas coisas que ele não disse. Não quis dizer - Senhora Genna fez uma careta. - Kevan sempre fez o que lhe era pedido. Não é de seu feitio virar as costas ao dever, qualquer que ele seja. Há algo errado aqui, consigo sentir o cheiro.
- Ele disse que estava cansado - ele sabe, dissera Cersei, estavam ambos junto ao cadáver do pai. Ele sabe de nós.
- Cansado? - a tia enrugou os lábios. - Imagino que tenha o direito de estar cansado. Foi duro para Kevan viver a vida inteira à sombra de Tywin. Foi duro para todos os meus irmãos. A sombra que Tywin lançava era longa e negra, e todos eles tiveram de lutar para encontrar um pouco de sol. Tygett tentou valer por si próprio, mas nunca conseguiu igualar seu pai, e isso só o encheu de raiva cada vez mais à medida que os anos passaram. Gerion fazia piadas. Mais vale troçar do jogo do que jogar e perder. Mas Kevan viu bem cedo em que pé as coisas estavam, de modo que arranjou para si um lugar ao lado de seu pai.
- E você? - Jaime quis saber.
- O jogo não é para garotas. Eu era a preciosa princesa do meu pai... E também a de Tywin, até desapontá-lo. Meu irmão nunca aprendeu a gostar do sabor do desapontamento - pôs-se em pé. - Já disse o que vim dizer, não tomarei mais seu tempo. Faça o que Tywin teria feito.
- Amava-o? - Jaime surpreendeu-se com a própria pergunta.
A tia o olhou com uma expressão estranha.
- Tinha sete anos quando Walder Frey convenceu o senhor meu pai a dar minha mão a Emm. Seu segundo filho, nem sequer seu herdeiro. Meu pai era o terceiro filho, e filhos mais novos anseiam pela aprovação de quem tem uma idade mais avançada. Frey detectou nele essa fraqueza, e meu pai concordou por nenhum motivo melhor do que agradá-lo. Meu noivado foi anunciado num banquete em que metade do ocidente se encontrava presente. Ellyn Tarbeck deu risada, e o Leão Vermelho saiu furioso do salão. Os outros sentaram-se sobre as línguas. Só Tywin se atreveu a falar contra a união. Um garoto de dez anos. Meu pai ficou branco como leite de égua, e Walder Frey tremia - ela sorriu. - Como podia não amá-lo depois daquilo? Isso não é o mesmo que dizer que aprovei tudo o que ele fez, ou que tenha apreciado muito a companhia do homem que se tornou... Mas todas as garotinhas precisam de um irmão mais velho para protegê-las. Tywin era grande mesmo enquanto pequeno - soltou um suspiro. - Quem nos protegerá agora?
Jaime a beijou no rosto.
- Ele deixou um filho.
- Sim, deixou. É isso o que temo mais, para falar a verdade.
Aquilo era um comentário estranho.
- Por que haveria de temer?
-Jaime - ela disse, puxando-lhe a orelha - querido, eu o conheço desde que era um bebê no colo de Joanna. Sorri como Gerion e luta como Tyg, e há um pouco de Kevan em você, caso contrário não usaria esse manto... Mas o filho de Tywin é Tyrion, não você. Certa vez, eu disse isso na cara de seu pai, e ele não falou comigo durante meio ano. Os homens são uns tremendos idiotas. Até aqueles que aparecem uma vez a cada mil anos.  

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