As
trombetas soaram num bramido de bronze e cortaram o ar parado e azul
do ocaso. Josmyn Peckleton pôs-se em pé imediatamente,
precipitando-se para o cinto da espada de seu chefe.
O rapaz
tem bons instintos.
- Os fora
da lei não fazem soar trombetas para anunciar sua chegada -
disse-lhe Jaime. - Não precisarei da espada. Deve ser meu primo, o
Protetor do Oeste.
Os
recém-chegados desmontavam quando Jaime saiu da tenda; meia dúzia
de cavaleiros, e uma vintena de arqueiros e homens de armas a cavalo.
- Jaime!
- rugiu um homem desgrenhado que trajava cota de malha dourada e um
manto de pele de raposa. - Tão magro, e todo de branco! E também
barbado!
- Isto?
Não passa de restolho, comparado a essa sua juba, primo - a barba
eriçada e o cerrado bigode de Sor Daven transformavam-se em suíças
tão densas quanto uma sebe, e estas fundiam-se com o emaranhado
matagal amarelo que lhe cobria a cabeça, escondido pelo elmo que ele
agora tirava. Em algum lugar, no meio de todos aqueles pelos,
espreitava um nariz achatado e um par de vivos olhos cor de avelã. -
Algum fora da lei roubou sua navalha?
- Jurei
que não deixaria que me cortassem os cabelos até que meu pai fosse
vingado - para um homem com um aspecto tão leonino, Daven Lannister
soava estranhamente acanhado. - Mas o Jovem Lobo chegou primeiro ao
Karstark. Roubou-me a vingança - entregou o elmo a um escudeiro e
fez passar os dedos pelos cabelos, onde o peso do aço o esmagara. -
Gosto de um pouco de cabelo. As noites estão ficando mais frias, e
um pouco de folhagem ajuda a manter o rosto quente. Sim, e Tia Genna
sempre disse que eu tinha um queixo de tijolo - agarrou os braços de
Jaime. - Tememos por você depois do Bosque dos Murmúrios. Ouvimos
dizer que o lobo gigante do Stark tinha rasgado sua goela.
- Chorou
lágrimas amargas por mim, primo?
- Metade
de Lanisporto estava de luto. A metade feminina - o olhar de Sor
Daven dirigiu-se ao toco de Jaime - Então é verdade. Os bastardos
lhe tiraram a mão da espada.
- Tenho
uma nova, feita de ouro. Há muitas vantagens de só se ter uma mão.
Bebo menos vinho por temer derramá-lo, e raramente me dá vontade de
coçar o cu na corte.
- Sim, lá
isso é verdade. Talvez deva cortar a minha também - o primo soltou
uma gargalhada. - Foi Catelyn Stark quem a cortou?
- Vargo
Hoat - de onde vêm essas histórias?
- O
qohorik? -Sor Daven cuspiu. - Isso é para ele e para todos os seus
Bravos Companheiros. Eu disse ao seu pai que cuidava da pilhagem, mas
ele recusou. Algumas tarefas são adequadas aos leões, ele disse,
mas é melhor deixar a pilhagem para os bodes e os cães.
Jaime
sabia que aquelas eram as palavras exatas de Lorde Tywin; quase
conseguia ouvir a voz do pai.
- Entre,
primo. Precisamos conversar.
Garrett
tinha acendido os braseiros, e os carvões incandescentes enchiam a
tenda de Jaime com um calor rubro. Sor Daven libertou-se do manto e o
atirou a Lew Pequeno.
- É um
Piper, rapaz? - rosnou. - Tem ar de tampinha.
- Sou
Lewys Piper, se aprouver ao senhor.
- Uma vez
deixei seu irmão sangrando num corpo a corpo. O palerma do tampinha
se ofendeu quando lhe perguntei se quem dançava nua em seu escudo
era a irmã.
- Ela é
o símbolo de nossa Casa. Não temos nenhuma irmã.
- Maior é
a pena. Seu símbolo tem umas belas tetas. Mas que tipo de homem se
esconde atrás de uma mulher nua? Cada vez que dava uma pancada no
escudo do seu irmão me sentia pouco cavalheiresco.
- Basta -
Jaime o repreendeu, rindo. - Deixe-o em paz. - Pia aquecia vinho para
eles, mexendo a panela com uma colher. - Tenho de saber o que posso
esperar encontrar em Correrrio.
O primo
encolheu os ombros.
- O cerco
arrasta-se. Peixe Negro senta-se dentro do castelo, nós nos sentamos
aqui fora nos acampamentos. Uma chatice dos demônios, se quer saber
a verdade - Sor Daven sentou-se num banco de acampamento - Tully
devia fazer uma investida, para nos lembrar a todos de que ainda
estamos em guerra. Também seria bom se nos libertasse de uns tantos
Frey. De Ryman, para começar. O homem passa mais tempo bêbado do
que sóbrio. Oh, e Edwyn. Não é tão obtuso quanto o pai, mas está
tão cheio de ódio quanto um furúnculo de pus. E o nosso Sor
Emmon... não, Lorde Emmon, que os Sete nos salvem, é melhor não
esquecer seu novo título... Este nosso Senhor de Correrrio não faz
nada além de me dizer como dirigir o cerco. Quer que eu tome o
castelo sem danificá-lo, visto que agora é a sua casa senhorial.
- Esse
vinho já está quente? - Jaime perguntou a Pia.
- Sim,
senhor - a garota cobriu a boca quando falou. Peck serviu o vinho
numa bandeja dourada. Sor Daven tirou as luvas e pegou uma taça.
-
Obrigado, rapaz. E você, quem é?
- Josmyn
Peckledon, se aprouver ao senhor.
- Peck
foi um herói na Água Negra - Jaime disse - Matou dois cavaleiros e
capturou outros dois,
- Deve
ser mais perigoso do que parece, moço. Isso é uma barba ou esqueceu
de lavar a sujeira da cara? A mulher de Stannis Baratheon tem um
bigode mais farto. Quantos anos tem?
- Quinze,
sor.
Sor Daven
soltou uma fungadela.
- Sabe o
que os heróis têm de melhor, Jaime? Morrem novos e deixam mais
mulheres para o resto de nós - atirou a taça ao escudeiro. - Volte
a encher isso até a borda, e eu também o chamarei de herói. Tenho
sede.
Jaime
ergueu sua taça com a mão esquerda e bebeu um gole. O calor se
espalhou por seu peito.
- Falava
dos Frey que queria ver mortos. Ryman, Edwyn, Emmon...
- E
Walder Rivers - Daven completou - aquele filho da puta. Detesta ser
bastardo, e detesta todos que não são. Mas Sor Perwyn parece ser um
tipo decente, podemos poupá-lo. E às mulheres também, que vou me
casar com uma delas, segundo ouvi dizer. Seu pai podia ter achado por
bem me consultar sobre esse casamento. Meu pai estava em negociações
com Paxter Redwyne antes de Cruzaboi, sabia? Redwyne tem uma filha
com um belo dote...
-
Desmera? - Jaime soltou uma gargalhada. - O que você acha de sardas?
- Se
minhas alternativas são Frey ou sardas, bem... metade das
descendentes de Lorde Walder se parecem com furões.
- Só
metade? Dê-se por contente. Eu vi a mulher de Lancel em Darry.
- A Ami
Portão, pela bondade dos deuses. Não consegui acreditar que Lancel
a tenha escolhido. O que se passa com aquele rapaz?
-
Tornou-se piedoso - Jaime respondeu - mas não foi ele quem fez a
escolha. A mãe da Senhora Amerei é uma Darry. Nosso tio achou que
isso ajudaria Lancel com o povo de Darry.
- Como?
Fodendo-os? Sabe por que a chamam de Ami Portão? Ela ergue a porta
levadiça para qualquer cavaleiro que passe por perto. É melhor que
Lancel arranje um armeiro que lhe faça um elmo com cornos.
- Isso
não será necessário. Nosso primo está a caminho de Porto Real,
para tomar votos como uma das espadas do Alto Septão.
Sor Daven
não teria parecido mais espantado se Jaime lhe tivesse dito que
Lancel decidira se tornar macaco de saltimbanco.
- Não
pode ser. Está brincando comigo. Ami Portão deve ser uma doninha
ainda maior do que eu tinha ouvido falar se conseguiu levar o rapaz a
fazer isso.
Quando
Jaime se despediu da Senhora Amerei, ela chorava suavemente por causa
da dissolução de seu casamento, enquanto permitia que Lyle
Crakehall a consolasse. Suas lágrimas ficaram longe de perturbá-lo,
tanto quanto os olhares duros de seus familiares espalhados pelo
pátio.
- Espero
que não pretenda também tomar votos, primo - disse a Daven. - Os
Frey são suscetíveis no que diz respeito aos contratos de
matrimônio. Detestaria voltar a desiludi-los.
Sor Daven
fungou.
- Casarei
e dormirei com minha doninha, nada tema. Sei o que aconteceu a Robb
Stark. Mas pelo que Edwyn me diz, é melhor que eu escolha uma que
ainda não floriu, caso contrário, é provável que descubra que
Walder Negro esteve lá primeiro. Aposto que tomou Ami Portão, e
mais do que três vezes. Isso talvez explique a religiosidade de
Lancel e o humor do pai.
- Viu Sor
Kevan?
- Sim.
Ele passou por aqui a caminho do oeste. Pedi-lhe para me ajudar a
tomar o castelo, mas Kevan nem quis ouvir falar no assunto. Ficou
refletindo todo o tempo que passou aqui. Bastante cortês, mas frio.
Jurei-lhe que nunca pedi para ser Protetor do Oeste, que a honra
devia ter cabido a ele, e ele declarou que não tinha ressentimento,
mas nunca poderia deduzir isto pelo seu tom, Ficou três dias, e
quase nem me disse três palavras. Gostaria que tivesse ficado, seus
conselhos me seriam úteis. Nossos amigos Frey não se atreveriam a
contrariar Sor Kevan como me têm contrariado.
-
Conte-me - Jaime pediu.
-
Gostaria de contar, mas por onde começo? Enquanto eu construía
aríetes e torres de cerco, Ryman Frey construiu um cadafalso. Todos
os dias, à alvorada, aparece com Edmure Tully, põe-lhe uma corda em
volta do pescoço e ameaça enforcá-lo, a menos que o castelo se
renda. Peixe Negro não dá importância a essa farsa, de modo, que
ao cair da noite, Lorde Edmure é de novo levado para baixo. A mulher
está grávida, sabia?
Não
sabia.
- Edmure
a levou para a cama depois do Casamento Vermelho?
- Estava
com ela na cama durante o Casamento Vermelho. Roslin é uma coisinha
bonita, quase nem parece uma doninha. E gosta de Edmure,
estranhamente. Perwyn me diz que ela reza por uma menina.
Jaime
refletiu naquilo por um momento.
- Uma vez
nascido o filho de Edmure, Lorde Walder deixará de ter necessidade
dele.
- É
também assim que vejo as coisas. Nosso tio Emm... ah, isto é, Lorde
Emmon, quer ver Edmure enforcado de imediato. A presença de um
Tully, Senhor de Correrrio, perturba-o quase tanto quanto o esperado
nascimento de mais um. Implora-me diariamente para obrigar Sor Ryman
a pendurar Tully, não importa como. Entretanto, tenho Lorde Gawen
Westerling me puxando a outra manga. Peixe Negro tem a senhora sua
esposa dentro do castelo, com três de suas crias ranhosas. Sua
senhoria teme que Tully os mate se os Frey enforcarem Edmure. Uma
delas é a rainhazinha do Jovem Lobo.
Jaime
achava que tinha conhecido Jeyne Westerling, embora não conseguisse
se lembrar de sua aparência. Deve ser realmente bela para valer um
reino.
- Sor
Brynden não matará crianças - assegurou ao primo. - Ele não é um
peixe assim tão negro - começava a compreender por que Correrrio
ainda não caíra. - Fale-me dos seus arranjos, primo.
- Temos o
castelo bem cercado. Sor Ryman e os Frey estão a norte do Pedregoso.
A sul do Ramo Vermelho encontra-se Lorde Emmon, com Sor Forley
Prester e aquilo que resta de sua velha hoste, além dos senhores do
rio que passaram para o nosso lado após o Casamento Vermelho. Um
bando carrancudo, não me importo de assim afirmar. Prestam para
ficar amuados nas respectivas tendas, mas não para muito mais. Meu
acampamento fica entre os rios, diante do fosso e dos portões
principais de Correrrio. Fizemos passar um dique flutuante através
do Ramo Vermelho, a jusante do castelo, Manfryd Yew e Raynard
Ruttiger estão a cargo de sua defesa, de modo que ninguém possa
escapar por barco. Também lhes dei redes, para pescar. Ajuda a nos
manter alimentados.
- Podemos
derrotar o castelo pela fome?
Sor Daven
balançou a cabeça.
- Peixe
Negro expulsou de Correrrio todas as bocas inúteis e colheu tudo que
havia nos campos. Tem reservas suficientes para manter homens e
cavalos vivos durante dois anos.
- E como
estamos aprovisionados?
-
Enquanto houver peixe nos rios, não passaremos fome, embora eu não
saiba como alimentaremos os cavalos. Os Frey têm trazido comida e
forragem das Gêmeas, mas Sor Ryman diz que não tem o bastante para
partilhar, portanto, temos de ser nós a nos abastecermos. Metade dos
homens que mando em busca de comida não regressa. Alguns estão
desertando. Encontramos outros apodrecendo debaixo das árvores, com
corda em volta do pescoço.
-
Deparamos com alguns, anteontem - Jaime confirmou. Os batedores de
Addam Marbrand os tinham encontrado, pendendo, com rostos negros, sob
uma macieira silvestre. Os cadáveres tinham sido desnudados, e cada
homem tinha uma maçã enfiada entre os dentes. Nenhum mostrava
ferimento; era evidente que tinham se rendido. Varrão Forte ficara
furioso ao ver aquilo, jurando vingança sangrenta contra a cabeça
de qualquer homem capaz de amarrar guerreiros e deixá-los para
morrer como se fossem leitões.
- Podem
ter sido os fora da lei - Sor Daven disse depois de Jaime ter contado
a história - ou não. Ainda andam por aí bandos de nortenhos. E
esses Senhores do Tridente podem ter dobrado o joelho, mas me parece
que os corações continuam a ser... lupinos.
Jaime
olhou de relance seus dois jovens escudeiros, que pairavam perto dos
braseiros fingindo não escutar. Lewys Piper e Garrett Paege eram
ambos filhos de senhores do rio. Criara amizade pelos dois, e
detestaria ter de entregá-los a Sor Ilyn.
- As
cordas sugerem-me Dondarrion.
- Seu
senhor do relâmpago não é o único homem que sabe como atar um
laço. Não me faça falar de Lorde Beric. Está aqui, está ali,
está em todo lado, mas quando homens são enviados atrás dele,
evapora-se como orvalho. Os senhores do rio o estão ajudando, não
duvide disso nem por um momento. Um maldito senhor das marcas, se dá
para acreditar em tal coisa. Um dia ouve-se dizer que o homem está
morto, no segundo lhe contam que ele não pode ser morto - Sor Daven
pousou a taça de vinho. - Meus batedores falam de fogueiras nos
lugares elevados durante a noite. Fogueiras sinaleiras, julgam
eles... como se houvesse um anel de vigilantes a nossa volta. E
também há fogos nas aldeias. Algum novo deus...
Não, um
antigo.
- Thoros,
o sacerdote gordo de Myr que costumava beber com Robert, está com
Dondarrion - Jaime tinha a mão de ouro pousada na mesa. Tocou-a e
viu o ouro cintilar à luz abafada dos braseiros. -Lidaremos com
Dondarrion se tiver de ser, mas Peixe Negro tem de vir primeiro. Ele
deve saber que sua causa é perdida. Tentou negociar com ele?
- Sor
Ryman tentou. Foi a cavalo até os portões do castelo, meio bêbado
e fanfarrão, fazendo ameaças. Peixe Negro apareceu nas ameias
durante tempo suficiente para dizer que não desperdiçaria boas
palavras com homens sórdidos. Então, espetou uma flecha na garupa
do palafrém de Ryman. O cavalo empinou, o Frey caiu na lama e eu ri
tanto que quase mijei nas calças. Se fosse eu naquele castelo, teria
enfiado aquela flecha na garganta mentirosa de Ryman.
- Usarei
um gorjal quando for negociar com ele - Jaime disse com um meio
sorriso. - Pretendo oferecer-lhe condições generosas - se
conseguisse pôr fim àquele cerco sem derramar sangue, então não
poderiam dizer que pegara em armas contra a Casa Tully.
- Tente à
vontade, mas duvido que as palavras saiam vitoriosas. Temos de tomar
o castelo de assalto.
Houvera
uma época, não fazia muito tempo, em que Jaime aconselharia, sem a
menor dúvida, o mesmo curso de ação. Sabia que não podia ficar
ali durante dois anos para derrotar Peixe Negro pela fome.
- Não
importa o que façamos, temos de agir depressa - disse a Sor Daven. -
Meu lugar é em Porto Real, com o rei.
- Sim - o
primo concordou. - Não duvido de que sua irmã precise de você. Por
que ela mandou Sor Kevan embora? Achava que o nomearia Mão.
- Ele não
quis aceitar o cargo - não foi tão cego quanto fui.
- Kevan
devia ser Protetor do Oeste. Ou você. Não que eu não esteja grato
pela honra, veja bem, mas nosso tio tem duas vezes a minha idade e
mais experiência de comando. Espero que saiba que nunca pedi isso.
- Ele
sabe.
- Como
está Cersei? Tão bela como sempre?
-
Deslumbrante - instável - Dourada - falsa como ouro dos tolos. Na
noite anterior, sonhara ter flagrado a irmã fodendo o Rapaz Lua.
Matara o bobo e, com a mão de ouro, fizera em lascas os dentes de
Cersei, tal como Gregor Clegane fizera à pobre Pia. Em seus sonhos,
Jaime tinha sempre duas mãos; uma era feita de ouro, mas funcionava
tão bem quanto a outra. - Quanto mais depressa nos despacharmos com
Correrrio, mais depressa regressarei para junto de Cersei - o que
Jaime faria então, não sabia.
Conversou
com o primo durante mais uma hora antes de o Protetor do Oeste
finalmente se retirar. Depois de ele partir, Jaime prendeu a mão de
ouro e o manto marrom para ir caminhar por entre as tendas.
Na
verdade, gostava daquela vida. Sentia-se mais confortável entre
soldados, em campo, do que alguma vez se sentira na corte. E seus
homens também pareciam confortáveis com ele. Junto a uma fogueira,
três besteiros ofereceram-lhe um pouco da lebre que tinham apanhado.
Junto a outra, um jovem cavaleiro lhe pediu conselhos quanto à
melhor maneira de se defender contra um martelo de guerra. Embaixo,
junto ao rio, observou duas lavadeiras que travavam uma justa na água
pouco profunda, ombro a ombro ao lado de um par de homens de armas.
As garotas estavam meio bêbadas e seminuas, rindo e batendo uma na
outra com mantos enrolados, enquanto uma dúzia de outros homens as
incentivavam. Jaime apostou uma estrela de cobre na garota loira que
montava Raff, o Querido, mas a perdeu quando as duas caíram na água
por entre os juncos.
Do outro
lado do rio lobos uivavam, e o vento soprava em rajadas através de
um maciço de salgueiros, fazendo seus galhos se contorcerem e
suspirar. Jaime encontrou Sor Ilyn Payne sozinho, em frente à tenda,
passando uma pedra de amolar pela espada.
- Venha -
disse, e o cavaleiro silencioso ergueu-se, com um pequeno sorriso.
Ele gosta disso, compreendeu. Agrada-lhe me humilhar todas as noites.
Talvez lhe agradasse ainda mais me matar. Gostaria de acreditar que
melhorava, mas as melhorias eram lentas e não aconteciam sem um
preço. Por baixo do aço, da lã e do couro fervido que trajava,
Jaime Lannister era uma tapeçaria de cortes, crostas de sangue e
manchas negras.
Uma
sentinela os desafiou ao saírem do acampamento com os cavalos pela
arreata. Jaime deu uma palmada no ombro do homem com a mão de ouro.
- Fique
atento. Há lobos por aí - voltaram, ao longo do Ramo Vermelho, até
as ruínas de uma aldeia por onde tinham passado naquela tarde. E foi
ali que dançaram sua dança da meia-noite, entre pedras enegrecidas
e cinzas velhas e frias. Durante algum tempo Jaime teve supremacia.
Talvez a velha perícia estivesse voltando, permitiu-se pensar.
Talvez naquela noite fosse Payne quem dormiria machucado e
ensanguentado.
Foi como
se Sor Ilyn tivesse ouvido seus pensamentos. Parou indolentemente o
último golpe de Jaime e lançou um contra-ataque que empurrou o
adversário para o rio, fazendo-o ir parar na lama pelo escorregão
da bota que o fez perder o equilíbrio. Acabou de joelhos, com a
espada do cavaleiro silencioso na garganta e a sua perdida entre os
canaviais. Ao luar, as marcas de bexigas no rosto de Payne eram
grandes como crateras. Ele fez aquele som de estalar que podia ter
sido uma gargalhada e deslizou a espada pela garganta de Jaime até a
ponta repousar entre seus lábios. Só então recuou e embainhou o
aço.
Teria
feito melhor se desafiasse Raff, o Querido, com uma puta às costas,
pensou Jaime enquanto sacudia lama da mão dourada. Parte de si
desejou arrancar aquela coisa e atirá-la ao rio. Não prestava para
nada, e a esquerda não era muito melhor. Sor Ilyn voltara para junto
dos cavalos, deixando-o sozinho para se pôr em pé. Pelo menos ainda
tenho duas dessas.
O último
dia da viagem foi frio e ventoso. O vento matraqueava por entre os
galhos nos bosques nus e marrons e fazia os juncos do rio dobrarem-se
ao longo do Ramo Vermelho. Ainda que coberto com a lã do manto de
inverno da Guarda Real Jaime conseguia sentir os dentes de ferro do
vento enquanto avançava ao lado do primo Daven. Foi ao fim da tarde
que avistaram Correrrio, erguendo-se da ponta estreita onde o
Pedregoso se juntava ao Ramo Vermelho. O castelo Tully parecia um
grande navio de pedra, com sua proa apontando para jusante. Suas
muralhas de arenito estavam ensopadas de uma luz de tom
dourado-avermelhado, e pareciam mais altas e mais espessas do que
Jaime se recordava. Essa noz não se quebrará com facilidade, pensou
sombriamente. Se Peixe Negro não lhe desse ouvidos, não teria
alternativa exceto quebrar a promessa que fizera a Catelyn Stark. A
promessa que fizera ao seu rei tinha primazia.
O dique
que atravessava o rio e os três grandes acampamentos do exército
sitiante eram precisamente como o primo descrevera. O acampamento de
Sor Ryman Frey, ao norte do Pedregoso, era o maior e o mais
desordenado. Um grande cadafalso cinzento erguia-se acima das tendas,
tão alto quanto qualquer catapulta. Nele encontrava-se uma figura
solitária com uma corda em volta do pescoço. Edmure Tully. Jaime
sentiu um acesso de piedade. Mantê-lo ali em pé dia após dia, com
aquele laço em volta do pescoço... seria melhor cortar-lhe a cabeça
e acabar com o assunto.
Por trás
do cadafalso, tendas e fogueiras para cozinhar espalhavam-se numa
desordem irregular. Os fidalgos Frey e seus cavaleiros tinham erguido
os pavilhões confortavelmente a montante das fossas das latrinas;
para jusante ficavam casinhotos lamacentos, carroças e carros de
bois.
- Sor
Ryman não quer que seus rapazes se aborreçam, de modo que lhes dá
prostitutas e lutas de galos e de ursos - Sor Devan contou. - Até
arranjou o raio de um cantor. Nossa tia trouxe Wat Sorriso-Branco de
Lanisporto, se consegue acreditar em tal coisa, de modo que Ryman
também tinha de ter um cantor. Não podíamos simplesmente represar
o rio e afogar aquela cambada toda, primo?
Jaime via
arqueiros deslocando-se por trás dos merlões nas ameias do castelo.
Por cima deles, agitavam-se os estandartes da Casa Tully, a truta
prateada desafiante em seu fundo listrado de vermelho e azul. Mas na
torre mais alta esvoaçava uma bandeira diferente; um longo
estandarte branco decorado com o lobo gigante dos Stark.
- A
primeira vez que vi Correrrio, era um escudeiro tão verde como a
grama estival - disse Jaime ao primo. - O velho Sumner Crakehall me
mandou entregar uma mensagem, que ele jurou não poderia ser confiada
a um corvo. Lorde Hoster reteve-me durante uma quinzena enquanto
pensava na resposta, e sentou-me ao lado da filha Lysa a cada
refeição.
- Pouco
admira que tenha vestido o branco. Eu teria feito o mesmo.
- Oh,
Lysa não era tão temível como nos últimos tempos - tinha sido uma
garota bonita, para falar a verdade; com covinhas no rosto e
delicada, de longos cabelos ruivos. Mas tímida. Dada a silêncios de
língua atada e ataques de riso, sem nada do fogo de Cersei. A irmã
mais velha parecera mais interessante, embora Catelyn estivesse
prometida a um rapaz nortenho qualquer, o herdeiro de Winterfell...
Mas naquela idade nenhuma garota chegava sequer perto de interessar
Jaime tanto quanto o famoso irmão de Hoster, que ganhara renome ao
combater os Reis das Nove Moedas nos Degraus. À mesa, ignorara a
pobre Lysa, enquanto pressionava Brynden Tully, pedindo-lhe histórias
sobre Maelys, o Monstruoso, e o Príncipe de Ébano. Sor Brynden era
mais novo do que sou agora, refletiu Jaime, e eu mais novo do que
Peck.
O vau
mais próximo do Ramo Vermelho ficava a montante do castelo. Para
chegar ao acampamento de Sor Daven, tinham de atravessar o de Emmon
Frey, passando pelos pavilhões dos senhores do rio que tinham
dobrado o joelho e sido aceitos de volta à paz do rei. Jaime reparou
nos estandartes de Lychester e Vance, Roote e Goodbrood, nas bolotas
da Casa Smallford e na donzela dançante de Lorde Piper, mas as
bandeiras que não viu deram-lhe o que pensar. A águia prateada de
Mallister não se via em lado nenhum, nem o cavalo vermelho de
Bracken, o salgueiro dos Ryger, as serpentes entrelaçadas de Paege.
Embora todos tivessem renovado sua lealdade ao Trono de Ferro, nenhum
tinha vindo se juntar ao cerco. Jaime sabia que os Bracken estavam em
guerra com os Blackwood, o que explicava sua ausência, mas os
outros...
Nossos
novos amigos não são amigos nenhuns. Sua lealdade não é mais
profunda do que suas peles. Correrrio tinha de ser tomado, e
depressa. Quanto mais tempo o cerco se arrastasse, mais ânimo daria
a outros teimosos, como Tytos Blackwood.
No vau,
Sor Kennos de Kayce soprou o Berrante de Herrock. Isso deve trazer
Peixe Negro às ameias. Sor Hugo e Sor Dermot indicaram a Jaime o
caminho através do rio, fazendo espirrar a lamacenta água
vermelho-amarronzada com o estandarte branco da Guarda Real e o veado
e o leão de Tommen esvoaçando. O resto da coluna os seguiu de
perto.
O
acampamento Lannister ressoava com o som de martelos de madeira,
vindo de onde uma nova torre de cerco era erguida. Outras duas torres
estavam completas, meio cobertas por peles de cavalo por curtir.
Entre ambas encontrava-se um aríete rolante; um tronco de árvore
com a ponta endurecida pelo fogo, suspenso por correntes sob uma
cobertura de madeira. Meu primo não ficou parado, ao que parece.
- Senhor
-perguntou Peck - onde quer sua tenda?
- Ali,
naquela elevação - apontou com a mão de ouro, embora não se
adequasse bem a tal tarefa. - Ali a logística, e lá as linhas dos
cavalos. Usaremos as latrinas que meu primo tão bondosamente cavou
para nós. Sor Addam, inspecione nosso perímetro, com os olhos
abertos para quaisquer fraquezas - Jaime não previa um ataque, mas
também não previra o Bosque dos Murmúrios.
- Devo
convocar os furões para um conselho de guerra? - Daven perguntou.
- Só
depois de eu ter falado com Peixe Negro - com um gesto, Jaime chamou
Jon Imberbe Bettley. - Pegue um estandarte de paz e leve uma mensagem
ao castelo. Informe Sor Brynden Tully de que quero trocar ideias com
ele à primeira luz da aurora. Irei até a borda do fosso e me
encontrarei com ele em sua ponte levadiça.
Peck
pareceu alarmado.
- Senhor,
os arqueiros poderiam...
- Não o
farão - Jaime desmontou. - Erga minha tenda e plante meus
estandartes - e veremos quem vem correndo, e com que rapidez.
Não
precisou de muito tempo. Pia estava atarefada com um braseiro,
tentando acender as brasas. Peck foi ajudá-la. Nos últimos tempos,
era frequente que Jaime adormecesse com o som dos dois fodendo em um
canto da tenda. Enquanto Garrett desprendia as fivelas das grevas de
Jaime, a aba da tenda se abriu.
- Então,
finalmente chegou? - trovejou sua tia. Enchia a entrada, com o marido
espreitando por trás dela. - Já era mais que tempo. Não tem um
abraço para dar à sua velha tia gorda? - estendeu os braços, não
lhe deixando alternativa exceto ir abraçá-la.
Genna
Lannister tinha sido uma mulher formosa na juventude, sempre
ameaçando transbordar do corpete. Agora, a única forma que tinha
era de um quadrado. O rosto era largo e liso; o pescoço, um grosso
pilar cor-de-rosa; o busto, enorme. Transportava carne suficiente
para fazer dois maridos. Jaime a abraçou obedientemente e esperou
que a mulher lhe beliscasse a orelha, o que ela fazia desde sempre,
mas naquele dia absteve-se. Em vez disso, espetou-lhe beijos moles e
descuidados nas bochechas.
- Lamento
sua perda.
- Mandei
fazer uma mão nova, de ouro - e mostrou-lhe.
- Muito
lindo. Também farão um pai de ouro para você? - a voz da Senhora
Genna era penetrante. - A perda a que me referia era Tywin.
- Um
homem como Tywin Lannister só surge uma vez em mil anos - declarou
seu marido. Emmon Frey era um homem rabugento de mãos nervosas.
Podia pesar sessenta quilos... mas só molhado, e vestido de cota de
malha. Era um espeto envolto em lã, sem queixo aparente, falha esta
que a proeminência do pomo de adão ostentada pela garganta tornava
ainda mais absurda. Metade de seus cabelos desaparecera antes de ele
fazer trinta anos. Agora tinha sessenta, e só restavam uns poucos
fiapos brancos.
- Nos
últimos tempos, nos tem chegado histórias estranhas - disse a
Senhora Genna, depois de Jaime ter mandado embora Pia e os
escudeiros. - Uma mulher quase não consegue saber em que acreditar.
Poderá ser verdade que Tyrion matou Tywin? Ou é alguma calúnia que
sua irmã espalhou?
- É
verdade - o peso da mão de ouro tornara-se penoso. Remexeu nas
correias que a prendiam ao pulso.
- Um
filho erguer a mão contra um pai - Sor Emmon retrucou. - Monstruoso.
São dias negros os que vivemos em Westeros. Temo por todos nós com
Lorde Tywin desaparecido.
- Temia
por todos nós quando ele estava entre os vivos - Genna instalou seu
amplo traseiro num banco, que rangeu de forma alarmante sob seu peso.
- Sobrinho, fale-nos de nosso filho Cleos e do modo como morreu.
Jaime
desprendeu a última fivela e pôs a mão de lado.
- Fomos
emboscados por um bando de fora da lei. Sor Cleos os fez dispersar,
mas isso custou-lhe a vida - a mentira surgiu facilmente, e Jaime viu
que tinha agradado a ambos.
- O rapaz
tinha coragem, eu sempre disse. Estava em seu sangue - uma espuma
rosada cintilava nos lábios de Sor Emmon quando falava, graças à
folhamarga que gostava de mascar.
- Seus
ossos deviam ser enterrados sob o Rochedo, no Salão dos Heróis -
Senhora Genna declarou. - Onde ele foi posto em repouso?
Em lugar
nenhum. Os Saltimbancos Sangrentos despiram-lhe o cadáver e deixaram
a carne para banquetear os corvos.
- Junto a
um riacho - mentiu. - Quando esta guerra terminar, encontrarei o
lugar e o mandarei para casa - ossos eram ossos; naqueles dias, nada
era mais fácil de arranjar.
- Esta
guerra... - Lorde Emmon limpou a garganta, fazendo mover o pomo de
adão para cima e para baixo - Deveria ter visto as máquinas de
cerco. Aríetes, catapultas, torres. Não pode ser, Jaime. Daven
pretende quebrar minhas muralhas, esmagar meus portões. Ele fala de
piche queimando, de incendiar o castelo. O meu castelo - puxou uma
manga para cima, tirou de lá um pergaminho e o atirou ao rosto de
Jaime. - Tenho o decreto. Assinado pelo rei, por Tommen, vê? O selo
real, o veado e o leão. Sou o legítimo senhor de Correrrio, e não
o quero reduzido a uma ruína fumegante.
- Oh,
guarde essa bobagem - exclamou a mulher. - Enquanto Peixe Negro se
mantiver dentro de Correrrio, pode muito bem limpar o rabo com esse
papel e todo o bem que ele nos traz - embora fosse uma Frey há
cinquenta anos, Senhora Genna ainda era muito Lannister. Uma grande
quantidade de Lannister. - Jaime lhe entregará o castelo.
- Com
certeza - Lorde Emmon aquiesceu. - Sor Jaime, a fé que o senhor seu
pai depositou em mim não foi mal dirigida, verá. Pretendo ser
firme, mas justo, com meus novos vassalos. Blackwood e Bracken, Jason
Mallister, Vance e Piper, todos aprenderão que têm um suserano
justo em Emmon Frey. E meu pai também, sim. Ele é o Senhor da
Travessia, mas eu sou o Senhor de Correrrio. Um filho tem o dever de
obedecer ao pai, é verdade, mas um vassalo deve obedecer ao seu
suserano.
Oh, pela
bondade dos deuses.
- Você
não é suserano dele, sor. Leia seu pergaminho. Foi-lhe atribuído
Correrrio com suas terras e seus rendimentos, nada mais. Petyr
Baelish é o Senhor Supremo do Tridente. Correrrio ficará sujeito à
lei de Harrenhal.
Aquilo
não agradou Lorde Emmon.
-
Harrenhal é uma ruína, assombrada e amaldiçoada - objetou - e
Baelish... o homem é um contador de moedas, não um senhor como deve
ser, seu nascimento...
- Se está
descontente com as nomeações, vá a Porto Real e leve o assunto à
minha querida irmã - não tinha dúvidas de que Cersei devoraria
Emmon Frey e palitaria os dentes com seus ossos. Isto é, se não
estiver ocupada demais fodendo Osmund Kettleblack.
Senhora
Genna soltou uma fungadela.
- Não há
necessidade de incomodar Sua Graça com tal disparate. Emm, por que é
que não vai até lá fora apanhar um pouco de ar?
- Um
pouco de ar?
- Ou uma
longa mijadela, se preferir. Meu sobrinho e eu temos assuntos de
família a discutir.
Lorde
Emmon corou.
- Sim,
está quente aqui. Esperarei lá fora, senhora. Sor - sua senhoria
enrolou o pergaminho, esboçou uma reverência dirigida a Jaime e
saiu da tenda com um passo pouco seguro.
Era
difícil não sentir desprezo por Emmon Frey. Chegara a Rochedo
Casterly em seu décimo quarto ano para se casar com uma leoa com
metade de sua idade. Tyrion costumava dizer que Lorde Tywin lhe dera
uma barriga nervosa como presente de casamento. Genna também
desempenhou seu papel. Jaime lembrava-se de muitos banquetes em que
Emmon ficava espetando, carrancudo, os talheres na comida enquanto a
esposa trocava gracejos obscenos com qualquer cavaleiro doméstico
que se encontrasse sentado à sua esquerda, em conversas que eram
interrompidas por sonoros ataques de riso. Ela deu ao Frey quatro
filhos, é certo. Pelo menos diz que são dele. E ninguém em Rochedo
Casterly teve coragem de sugerir o contrário, especialmente Sor
Emmon.
Assim que
ele saiu, a senhora sua esposa revirou os olhos.
- Meu
dono e senhor. Em que seu pai pensava ao nomeá-lo Senhor de
Correrrio?
- Imagino
que pensasse em seus filhos.
- Eu
também penso neles. Emm dará um senhor miserável. Ty poderá se
sair melhor, se tiver o bom-senso de aprender comigo e não com o pai
- passou os olhos pela tenda.
- Tem
vinho?
Jaime
descobriu um jarro e a serviu, com uma mão só.
- Por que
está aqui, senhora? Devia ter permanecido em Rochedo Casterly até
os combates terminarem.
- Assim
que Emm soube que era um senhor, teve de vir imediatamente reclamar o
que lhe pertencia - Senhora Genna bebeu um gole e limpou a boca na
manga. - Seu pai devia ter nos dado Darry. Cleos casou-se com uma das
filhas do homem do arado, se bem se lembra. Sua chorosa viúva está
furiosa por as terras do senhor seu pai não terem sido entregues aos
filhos. A Ami Portão é Darry só pelo lado da mãe. Minha nora
Jeyne é sua tia, irmã da Senhora Mariya.
- Uma
irmã mais nova - Jaime ressaltou - e Ty ficará com Correrrio, uma
recompensa melhor do que Darry.
- Uma
recompensa envenenada. A Casa Darry está extinta pela linhagem
masculina, a Tully não. Aquele cabeça de carneiro do Sor Ryman põe
um laço em volta do pescoço de Edmure, mas não quer enforcá-lo. E
Roslin Frey tem uma truta crescendo na barriga. Meus netos nunca
estarão seguros em Correrrio enquanto algum Tully permanecer vivo.
Jaime
sabia que ela não se enganava.
- Se
Roslin tiver uma filha...
- ... ela
poderá se casar com Ty, desde que o velho Lorde Walder consinta.
Sim, já tinha pensado nisso. Mas há a mesma probabilidade de nascer
um garoto, e seu pauzinho enevoaria o assunto. E se Sor Brynden
sobreviver ao cerco, pode se sentir inclinado a reclamar Correrrio em
seu próprio nome... ou em nome do jovem Robert Arryn.
Jaime
lembrava-se do pequeno Robert de Porto Real ainda mamando nas tetas
da mãe aos quatro anos.
- Arryn
não viverá o suficiente para gerar descendência. E por que o
Senhor do Ninho da Águia precisaria de Correrrio?
- Por que
um homem com um pote de ouro precisa de outro? Os homens são
ambiciosos. Tywin devia ter dado Correrrio a Kevan, e Darry a Emm.
Ter-lhe-ia dito isso, se ele tivesse se incomodado em me perguntar,
mas quando foi que seu pai alguma vez consultou alguém além de
Kevan? - soltou um profundo suspiro. - Veja, não culpo Kevan por
querer a propriedade mais segura para o filho. Conheço-o bem demais.
- O que
Kevan quer e o que Lancel deseja parecem ser coisas diferentes -
contou-lhe a decisão que Lancel tomara de renunciar à esposa,
terras e senhoria para lutar pela Fé Sagrada. - Se ainda quiser
Darry, escreva a Cersei e apresente seus argumentos.
Senhora
Genna sacudiu a taça numa recusa.
- Não,
esse cavalo já abandonou o pátio. Emm tem enfiado na sua cabeça
bicuda que vai governar as terras fluviais. E Lancel... Suponho que
devíamos ter previsto o que aconteceria. Afinal de contas, uma vida
dedicada a proteger o Alto Septão não é assim tão diferente de
uma vida dedicada a proteger o rei. Temo que Kevan fique furioso. Tão
furioso quanto Tywin ficou quando você meteu na cabeça vestir o
branco. Pelo menos Kevan ainda tem Martyn como herdeiro. Pode casá-lo
com a Ami Portão no lugar de Lancel. Que os Sete nos salvem a todos
- a tia soltou um suspiro. - E por falar nos Sete, por que Cersei
permitiria que a Fé voltasse a se armar?
Jaime
encolheu os ombros.
- Tenho
certeza de que teve motivos.
-
Motivos? - Senhora Genna soltou um ruído mal-educado. - É melhor
que sejam bons motivos. Os Espadas e Estrelas incomodaram até os
Targaryen. O próprio Conquistador movia-se com cautela no que dizia
respeito à Fé, para que não se lhe opusessem. E quando Aegon
morreu e os lordes se ergueram contra os filhos, ambas as ordens
estiveram no âmago dessa rebelião. Os senhores mais piedosos
apoiavam-nos, bem como muitos dos plebeus. O Rei Maegor acabou por
ter de lhes colocar a cabeça a prêmio. Pagou um dragão pela cabeça
de um Filho do Guerreiro impenitente e um veado de prata pelo escalpe
de um Pobre Companheiro, se bem me lembro da história. Milhares
foram mortos, mas quase outros tantos continuaram a vagar pelo reino,
em desafio, até que o Trono de Ferro matou Maegor e o Rei Jaehaerys
concordou em perdoar todos aqueles que pusessem de lado suas espadas.
- Tinha
me esquecido da maior parte disso - Jaime confessou.
- Tanto
você quanto sua irmã - bebeu mais um trago de vinho. - É verdade
que Tywin estava sorrindo no velório?
- Estava
apodrecendo no velório. Isto fez que sua boca se torcesse.
- Não
passou disso? - aquilo pareceu entristecê-la - Os homens dizem que
Tywin nunca sorria, mas sorriu quando se casou com sua mãe, e quando
Aerys o nomeou Mão. Quando o Solar Tarbeck ruiu sobre a Senhora
Ellyn, aquela cadela intriguista, Tyg afirmou que, nesse momento, ele
sorriu. E sorriu em seu parto, Jaime, vi-o com meus próprios olhos.
Você e Cersei, rosados e perfeitos, tão parecidos como duas gotas
de água... bem, exceto entre as pernas. Os pulmões que tinham!
-
Ouça-nos rugir - Jaime sorriu. - Em seguida vai me dizer como ele
gostava de rir.
- Não.
Tywin desconfiava do riso. Tinha ouvido muitas pessoas rirem de seu
avô - franziu as sobrancelhas. - Garanto-lhe, esta farsa de cerco
não o teria divertido. Como pretende acabar com ela, agora que está
aqui?
-
Negociando com Peixe Negro.
- Isso
não funcionará.
-
Pretendo oferecer-lhe boas condições.
-
Condições exigem confiança. Os Frey assassinaram convidados sob o
seu teto, e você, bem... Não pretendo ofender, meu amor, mas matou
um certo rei que tinha jurado proteger.
- E
matarei Peixe Negro se não se render - seu tom era mais ríspido do
que pretendera, mas não estava com disposição para que lhe
atirassem Aerys Targaryen à cara.
- Como?
Com a língua? - a voz dela era de escárnio. - Posso ser uma velha
gorda, mas não tenho queijo entre as orelhas, Jaime. E Peixe Negro
também não. Ameaças vazias não o intimidarão.
- O que
aconselharia?
Ela
encolheu pesadamente os ombros.
- Emm
quer a cabeça de Edmure cortada. Desta vez talvez tenha razão. Sor
Ryman nos transformou em motivo de chacota com aquele seu cadafalso.
Precisa mostrar a Sor Brynden que suas ameaças têm dentes.
- Matar
Edmure poderá endurecer a determinação de Sor Brynden.
-
Determinação é uma coisa que nunca faltou a Brynden Peixe Negro.
Hoster Tully poderia ter lhe dito isso - Senhora Genna bebeu o resto
do vinho. - Bem, eu nunca ousaria lhe dizer como travar uma guerra.
Sei qual é o meu lugar... ao contrário da sua irmã. É verdade que
Cersei incendiou a Fortaleza Vermelha?
- Só a
Torre da Mão.
A tia
revirou os olhos.
- Teria
feito melhor se tivesse deixado ficar a torre e queimado a Mão.
Harys Swyft? Se algum homem algum dia mereceu suas armas, este é Sor
Harys. E Gyles Rosby, que os Sete nos salvem... Pensava que ele tinha
morrido havia anos. Merryweather... Seu pai costumava chamar o avô
dele de "galhofas" é bom que saiba. Tywin afirmava que a
única coisa em que o Merryweather era bom era em rir dos ditos
espirituosos do rei. Sua senhoria atirou-se às gargalhadas para o
exílio, se bem me lembro. Cersei também pôs um bastardo qualquer
no conselho, e uma panela na Guarda Real. Tem a Fé armando-se e os
bravosianos exigindo o pagamento de empréstimos por todo Westeros.
Nada disso estaria acontecendo se tivesse tido o simples bom-senso de
fazer de seu tio Mão do Rei.
- Sor
Kevan recusou o cargo.
- Foi o
que ele disse. Não explicou por quê. Houve muitas coisas que ele
não disse. Não quis dizer - Senhora Genna fez uma careta. - Kevan
sempre fez o que lhe era pedido. Não é de seu feitio virar as
costas ao dever, qualquer que ele seja. Há algo errado aqui, consigo
sentir o cheiro.
- Ele
disse que estava cansado - ele sabe, dissera Cersei, estavam ambos
junto ao cadáver do pai. Ele sabe de nós.
-
Cansado? - a tia enrugou os lábios. - Imagino que tenha o direito de
estar cansado. Foi duro para Kevan viver a vida inteira à sombra de
Tywin. Foi duro para todos os meus irmãos. A sombra que Tywin
lançava era longa e negra, e todos eles tiveram de lutar para
encontrar um pouco de sol. Tygett tentou valer por si próprio, mas
nunca conseguiu igualar seu pai, e isso só o encheu de raiva cada
vez mais à medida que os anos passaram. Gerion fazia piadas. Mais
vale troçar do jogo do que jogar e perder. Mas Kevan viu bem cedo em
que pé as coisas estavam, de modo que arranjou para si um lugar ao
lado de seu pai.
- E você?
- Jaime quis saber.
- O jogo
não é para garotas. Eu era a preciosa princesa do meu pai... E
também a de Tywin, até desapontá-lo. Meu irmão nunca aprendeu a
gostar do sabor do desapontamento - pôs-se em pé. - Já disse o que
vim dizer, não tomarei mais seu tempo. Faça o que Tywin teria
feito.
-
Amava-o? - Jaime surpreendeu-se com a própria pergunta.
A tia o
olhou com uma expressão estranha.
- Tinha
sete anos quando Walder Frey convenceu o senhor meu pai a dar minha
mão a Emm. Seu segundo filho, nem sequer seu herdeiro. Meu pai era o
terceiro filho, e filhos mais novos anseiam pela aprovação de quem
tem uma idade mais avançada. Frey detectou nele essa fraqueza, e meu
pai concordou por nenhum motivo melhor do que agradá-lo. Meu noivado
foi anunciado num banquete em que metade do ocidente se encontrava
presente. Ellyn Tarbeck deu risada, e o Leão Vermelho saiu furioso
do salão. Os outros sentaram-se sobre as línguas. Só Tywin se
atreveu a falar contra a união. Um garoto de dez anos. Meu pai ficou
branco como leite de égua, e Walder Frey tremia - ela sorriu. - Como
podia não amá-lo depois daquilo? Isso não é o mesmo que dizer que
aprovei tudo o que ele fez, ou que tenha apreciado muito a companhia
do homem que se tornou... Mas todas as garotinhas precisam de um
irmão mais velho para protegê-las. Tywin era grande mesmo enquanto
pequeno - soltou um suspiro. - Quem nos protegerá agora?
Jaime a
beijou no rosto.
- Ele
deixou um filho.
- Sim,
deixou. É isso o que temo mais, para falar a verdade.
Aquilo
era um comentário estranho.
- Por que
haveria de temer?
-Jaime -
ela disse, puxando-lhe a orelha - querido, eu o conheço desde que
era um bebê no colo de Joanna. Sorri como Gerion e luta como Tyg, e
há um pouco de Kevan em você, caso contrário não usaria esse
manto... Mas o filho de Tywin é Tyrion, não você. Certa vez, eu
disse isso na cara de seu pai, e ele não falou comigo durante meio
ano. Os homens são uns tremendos idiotas. Até aqueles que aparecem
uma vez a cada mil anos.
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