domingo, 22 de setembro de 2013

34 - GATA DOS CANAIS



Acordou antes de o sol nascer, no pequeno quarto sob a caleira que partilhava com as filhas de Brusco.
Gata era sempre a primeira a acordar. Estava quente e aconchegada sob as mantas, com Talea e Brea. Ouvia os sons suaves da respiração das garotas. Quando se moveu, sentando-se e procurando os chinelos às apalpadelas, Brea resmungou um protesto sonolento e virou-se para o outro lado. O frio das paredes de pedra cinzenta encheu a Gata de arrepios. Vestiu-se depressa na escuridão. Ao enfiar a túnica pela cabeça, Talea abriu os olhos e pediu:
- Gata, seja amiga e traga-me minha roupa - era uma garota desajeitada, toda ela pele, ossos e cotovelos, sempre queixando-se do frio.
Gata foi buscar a roupa, e Talea enfiou-se nela por baixo das mantas. Juntas, puxaram da cama a irmã mais velha de Talea, enquanto Brea resmungava ameaças sonolentas.
Quando as três desceram a escada que levava ao quarto sob a caleira, Brusco e os filhos já se encontravam no barco, no pequeno canal atrás da casa. Ele gritou às garotas para que se apressassem, como fazia todas as manhãs. Os filhos ajudaram Talea e Brea a entrar no barco. Gata era responsável por desamarrar a embarcação do pilar, atirar a corda a Brea e empurrar o barco para longe da doca com um pé enfiado numa bota. Os filhos de Brusco encostaram-se às suas varas. Gata correu e saltou por cima do espaço vazio, que se alargava entre a doca e o convés.
Depois disso, ficou sem nada para fazer além de se manter sentada, bocejando durante muito tempo, enquanto Brusco e os filhos os empurravam através da escuridão que antecedia a alvorada ao longo de uma confusão de pequenos canais. O dia parecia ser um dos raros naquele lugar: nítido, limpo e luminoso. Bravos só tinha três tipos de tempo; nevoeiro era ruim, chuva era pior, e chuva gelada o pior de todos. Mas, de vez em quando, chegava uma manhã em que a alvorada rebentava em tons de rosa e azul, e o ar ficava revigorante e salgado. Esses eram os dias de que Gata mais gostava.
Quando chegaram à larga e reta via aquática que era o Longo Canal, viraram para o sul, na direção do mercado de peixe. Gata sentou-se de pernas cruzadas, reprimindo um bocejo e tentando se lembrar dos detalhes de seu sonho. Sonhei que era de novo um lobo. Aquilo de que conseguia se lembrar melhor eram os cheiros: árvores e terra, seus irmãos de alcateia, os odores de cavalo, veado e homem, todos diferentes uns dos outros, e o penetrante cheiro acre do medo, sempre igual. Em certas noites, os sonhos de lobo eram tão vívidos que conseguia ouvir os irmãos uivando mesmo quando acordava, e uma vez Brea afirmara que ela rosnava no sono enquanto esperneava sob as mantas. Achou que aquilo era alguma mentira estúpida, mas Talea já dissera o mesmo.
Não devia andar sonhando sonhos de lobo, disse a si mesma. Agora sou uma gata, não uma loba. Sou a Gata dos Canais. Os sonhos de lobo pertenciam a Arya da Casa Stark. Mas, por mais que tentasse, não conseguia se livrar de Arya. Não fazia diferença alguma dormir sob o templo ou no pequeno quarto sob a caleira, com as filhas de Brusco; os sonhos de lobo continuavam a assombrá-la durante a noite... e por vezes outros sonhos também.
Os sonhos de lobo eram os bons. Neles, ela era rápida e forte, perseguindo as presas com a alcateia atrás de si. Era o outro sonho que odiava, aquele em que tinha duas pernas em vez de quatro patas. Neste, andava sempre à procura da mãe, aos tropeções, por uma terra devastada repleta de lama, sangue e fogo. Estava sempre chovendo nesse sonho, e ela conseguia ouvir a mãe gritar, mas um monstro com cabeça de cão não queria largá-la para que fosse em seu socorro. Neste sonho, estava sempre chorando, como uma garotinha assustada. Os gatos nunca choram, disse a si mesma, assim como os lobos. É só um sonho estúpido.
O Longo Canal levou o barco de Brusco a atravessar sob as verdes cúpulas de cobre do Palácio da Verdade e das grandes torres quadradas dos Prestayn e Antaryon, antes de passar sob os imensos arcos cinzentos do rio de água doce e entrar no bairro conhecido como Cidade de Lodo, onde os edifícios eram menores e menos grandiosos. Mais tarde, o canal ficaria entupido de barcos serpentinos e barcaças, mas na escuridão que antecedia a aurora tinham a via quase só para si. Brusco gostava de chegar ao mercado de peixe na hora em que o Titã rugia para anunciar a chegada do sol. O som reverberaria pela lagoa, atenuado pela distância, mas ainda seria suficientemente forte para acordar a cidade adormecida.
Quando Brusco e os filhos amarraram o barco junto do mercado de peixe, este encontrava-se repleto de vendedores de arenques e vendedoras de bacalhau, apanhadores de ostras, cavadores de amêijoas, intendentes, cozinheiros, governantas e marinheiros vindos das galés, todos negociando ruidosamente uns com os outros enquanto inspecionavam o pescado da manhã. Brusco caminhava de barco em barco, examinando qualquer marisco que encontrasse e batendo de tempos em tempos num barril ou gaiola com a bengala.
- Esta - dizia. - Sim - tap tap. - Esta - tap tap. - Não, essa não. Aqui - tap. Não era lá muito falador. Talea dizia que o pai era tão avaro com as palavras como com as moedas. Ostras, conquilhas, caranguejos, mexilhões, berbigões, por vezes grandes camarões... Brusco comprava de tudo, dependendo do que parecia melhor em cada dia. Cabia aos demais transportar para o barco as gaiolas ou barris em que ele batia com a bengala. Brusco tinha problemas nas costas e não conseguia erguer nada mais pesado do que uma caneca de cerveja marrom.
Gata ficava sempre fedendo a salitre e peixe quando empurravam o barco de volta para casa. Acostumara-se tanto ao cheiro que já quase nem o sentia. O trabalho não a incomodava. Quando seus músculos doíam de levantar coisas ou as costas ficavam doloridas por causa do peso de um barril, dizia a si mesma que estava ficando mais forte.
Com todos os barris carregados, Brusco voltou a afastá-los do cais, e os filhos varejaram de volta pelo Longo Canal. Brea e Talea sentaram-se na parte da frente do barco, trocando segredos uma com a outra. Gata sabia que estavam falando do rapaz de Brea, aquele que a fazia subir ao telhado para se encontrarem, depois de o pai adormecer.
“Aprenda três coisas novas antes de voltar para nós”, ordenara-lhe o homem amável, quando a enviara para a cidade. E assim ela fazia sempre. Por vezes, não passava de três palavras novas na língua de Bravos. Outras, levava-lhe histórias de marinheiro ou estranhos e maravilhosos acontecimentos do vasto mundo úmido que se estendia além das ilhas de Bravos, guerras e chuvas de sapos e dragões eclodindo. Outras, ainda, aprendia três novas piadas ou três novas adivinhas, ou truques de um ou de outro ofício. E de vez em quando descobria algum segredo.
Bravos era uma cidade feita para segredos, repleta de nevoeiros, máscaras e suspiros. A garota descobrira que a própria existência da cidade mantivera-se em segredo durante um século; sua localização estivera escondida durante três vezes mais tempo.
"As Nove Cidades Livres são as filhas da Valíria de outrora” ensinara-lhe o homem amável, “mas Bravos é o filho bastardo que fugiu de casa. Somos um povo mestiço, os filhos de escravos, prostitutas e ladrões. Nossos antepassados vieram de meia centena de terras até aqui em busca de refúgio, para escapar dos senhores dos dragões que os tinham escravizado. Meia centena de deuses veio com eles, mas existe um deus que todos tinham em comum”.
“O Das Muitas Faces.”
“E de muitos nomes” ele tinha lhe dito.“Em Qohor é a Cabra Preta; em Yi Ti, o Leão da Noite; em Westeros, o Estranho. Mas, no final, todos os homens têm de se submeter a Ele, não importa se adoram os Sete ou o Senhor da Luz, a Irmã da Lua, o Deus Afogado ou o Grande Pastor. Toda a humanidade lhe pertence... Caso contrário, em algum lugar no mundo haveria um povo que viveria para sempre. Conhece algum povo que viva para sempre?”
“Não” ela tinha respondido. “Todos os homens têm de morrer.”
Gata sempre encontrava o homem amável à sua espera quando se esgueirava de volta ao templo, no ápice da noite, quando a lua era negra.
“O que sabe agora que não sabia quando nos deixou?” ele lhe perguntava sempre.
“Sei o que o Beqqo Cego põe no molho quente que usa nas ostras” ela respondia. “Sei que os saltimbancos na Lanterna Azul vão apresentar O Senhor do Semblante Desgraçado, e os saltimbancos do Navio querem responder com Sete Remadores Bêbados. Sei que o livreiro Lotho Lornel dorme na casa do Capitão-Mercador Moredo Prestayn sempre que o honrado capitão mercador viaja, e se muda sempre que a Raposa retorna para casa.”
“É bom saber essas coisas. E quem é você?”
"Ninguém.”
"Mente. E a Gata dos Canais, eu a conheço bem. Vá dormir, filha. Amanhã tem de servir.”
“Todos os homens têm de servir.” E era o que ela fazia, por três dias a cada trinta. Quando a lua estava negra, ela não era ninguém, apenas uma criada do Deus das Muitas Faces com uma veste preta e branca. Caminhava ao lado do homem amável entre a escuridão odorífera levando sua lanterna de ferro. Lavava os mortos, revistava-lhes as roupas e contava suas moedas. Em certos dias, ainda ajudava Umma a cozinhar, cortando grandes cogumelos brancos e preparando o peixe. Mas só quando a lua estava negra. Durante o resto do tempo era uma garota órfã, com um par de botas gastas e grandes demais para seus pés e um manto marrom de bainha esfarrapada, que gritava “Mexilhões, amêijoas e conquilhas” enquanto empurrava o carro de mão pelo Porto do Trapeiro.
Sabia que a lua estaria negra naquela noite; na noite anterior não passara de uma lasca.
O que sabe agora que não sabia quando nos deixou? Perguntaria o homem amável assim que a visse. Sei que Brea, a filha de Brusco, se encontra com um rapaz no telhado quando o pai está dormindo, pensou. Talea diz que Brea deixa que ele a toque, mesmo ele sendo só uma ratazana dos telhados, e que supostamente todas as ratazanas dos telhados são ladrões. Mas essa era só uma coisa. Gata precisaria de mais duas. Não estava preocupada. Havia sempre coisas novas a aprender nos navios.
Quando voltaram para casa, Gata ajudou os filhos de Brusco a descarregar o barco. Brusco e as filhas dividiram o marisco entre três carrinhos de mão, dispondo-o sobre camadas de algas.
- Voltem quando tudo estiver vendido - ele disse às garotas, como fazia todas as manhãs, e elas partiram para anunciar o pescado, Brea levaria seu carrinho de mão até o Porto Púrpura, para vender aos marinheiros bravosianos cujos navios se encontravam ancorados ali. Talea experimentaria as vielas em volta da Lagoa da Lua, ou venderia entre os templos da Ilha dos Deuses. Gata se dirigiria para Porto do Trapeiro, como fazia nove dias em dez.
Só aos bravosianos era permitido o uso do Porto Púrpura, da Cidade Afogada e do Palácio do Senhor do Mar; navios pertencentes às cidades-irmãs e do resto do grande mundo tinham de usar o Porto do Trapeiro, mais pobre, violento e sujo. Também mais barulhento, pois marinheiros e mercadores de meia centena de terras se aglomeravam em seus cais e vielas, misturando-se com aqueles que os serviam e os depredavam. Era o lugar de que a Gata mais gostava em Bravos. Gostava do barulho e dos cheiros estranhos, e de ver que navios tinham chegado na maré da noite e que outros haviam partido. Também gostava dos marinheiros; dos ruidosos tyroshi com suas vozes trovejantes e barbas pintadas; dos lisenos de cabelos claros, sempre tentando baixar os preços mais uma ninharia; dos atarracados e peludos marinheiros do Porto de Ibben, rosnando pragas em vozes baixas e ásperas. Seus preferidos eram os ilhéus do verão, com suas peles tão lisas e escuras como teca. Usavam mantos de penas vermelhas, verdes e amarelas, e os grandes mastros e velas brancas de seus navios cisne eram magníficos.
Por vezes também havia gente de Westeros, remadores e marinheiros de carracas de Vilavelha, galés mercantes de Valdocaso, Porto Real e Vila Gaivota, cocas vinícolas de casco largo vindas da Árvore. Gata conhecia as palavras bravosianas para mexilhões, conquilhas e amêijoas, mas ao longo do Porto do Trapeiro apregoava a mercadoria em língua franca, a dos ancoradouros, docas e tabernas de marinheiro, uma grosseira confusão de palavras e frases numa dúzia de línguas, acompanhada por sinais e gestos de mãos, a maioria dos quais insultuosa. Era desses que Gata mais gostava. Qualquer homem que a incomodasse habilitava-se a ver a figa ou a ouvir-se descrito como caralho de burro ou cu de camelo.
"Talvez nunca tenha visto um camelo” dizia-lhes, “mas reconheço um cu de camelo quando sinto o cheiro”.
Muito de vez em quando aquilo enfurecia alguém, mas nas ocasiões em que isso acontecia, tinha sua lâmina de dedo. Mantinha-a muito afiada, e sabia como usá-la. Roggo Vermelho lhe ensinara uma noite, em Porto Feliz, enquanto esperava que Lanna ficasse livre. Mostrara-lhe como escondê-la na manga e fazê-la deslizar para fora só quando dela precisasse, e como cortar uma bolsa de um modo tão suave e rápido que as moedas estariam todas gastas antes que o dono desse por sua falta. Era bom saber aquilo, até o homem amável concordara; especialmente à noite, quando os espadachins e as ratazanas dos telhados andavam pelas ruas.
Gata fizera amigos ao longo dos atracadouros; carregadores e saltimbancos, cordoeiros e reparadores de velas, taberneiros, cervejeiros, padeiros, pedintes e prostitutas. Compravam-lhe amêijoas e conquilhas, contavam-lhe histórias verdadeiras sobre Bravos e mentiras sobre suas vidas, e riam-se do modo como as palavras saíam quando ela tentava falar bravosi. Nunca permitia que isso a incomodasse. Em vez disso, mostrava-lhes a figa e dizia-lhes que eram cus de camelo, o que os fazia rugir risadas. Gyloro Dothare ensinou-lhe canções sujas, e seu irmão Gyleno lhe disse quais eram os melhores lugares para apanhar enguias. Os saltimbancos do Navio mostraram-lhe a pose de um herói e lhe ensinaram discursos tirados da Canção do Roine, das Duas Esposas do Conquistador e da Lasciva Senhora do Mercador. Pena, o homenzinho de olhos tristes, que inventava todas as farsas obscenas para o Navio, ofereceu-se para lhe ensinar como uma mulher deve beijar, mas Tagganaro bateu-lhe com um bacalhau e pôs fim àquela conversa. Cossomo, o Prestidigitador, a instruiu em truques de mãos. Era capaz de engolir ratos e de tirá-los das orelhas.
- É magia - disse.
- Não é nada - Gata rebateu. - O rato esteve o tempo todo em sua manga. Eu o vi se mexer.
Ostras, amêijoas, conquilhas eram suas palavras mágicas, e, como todas as boas palavras mágicas, conseguiam levá-la a quase qualquer lugar. Abordara navios vindos de Lys, Vilavelha e do Porto de Ibben e vendera-lhes ostras em pleno convés. Em certos dias empurrava o carrinho de mão perto das torres dos poderosos, para oferecer amêijoas cozidas aos guardas que lhes protegiam os portões. Um a vez apregoara o pescado nos degraus do Palácio da Verdade, e quando outro vendedor ambulante tentara correr com ela, virou seu carro e espalhou suas ostras pela rua de pedra. Funcionários da alfândega do Porto Axadrezado compravam seus mariscos, e o mesmo faziam os remadores da Cidade Afogada, cujas cúpulas e torres afundadas se projetavam das águas verdes da lagoa. Certa vez, quando Brea ficara de cama por causa do sangue da lua, Gata empurrou o carrinho de mão até o Porto Púrpura para vender caranguejos e camarões aos remadores da barcaça de prazer do Senhor do Mar, coberta da proa à popa com rostos sorridentes. Em outros dias, seguia o rio de água doce até a Lagoa da Lua. Vendia a espadachins fanfarrões vestidos de cetim listrado e a guardiães das chaves e funcionários judiciais com seus monótonos casacos marrons e cinzentos. Mas regressava sempre ao Porto do Trapeiro.
Ostras, amêijoas, conquilhas, gritava a garota enquanto empurrava o carrinho de mão ao longo dos ancoradouros. Mexilhões, camarões e conquilhas. Um sujo gato cor de laranja pôs-se a segui-la, atraído pelo som de seu pregão. Mais à frente, um segundo gato surgiu, uma triste coisa cinzenta suja de lama, com a cauda cortada. Os gatos gostavam do cheiro da Gata. Em certos dias, acabava com uma dúzia deles atrás de si antes do pôr do sol. De vez em quando, a garota atirava-lhes uma ostra e ficava observando, para ver qual deles conseguia levá-la. Reparou que os machos maiores raramente ganhavam; o mais comum era que o prêmio coubesse a um animal menor e mais rápido, magro, mau e esfomeado. Com o eu, dizia a si mesma. Seu preferido era um velho macho muito magro, com uma orelha roída que a fazia se lembrar de um gato que outrora perseguira por toda a Fortaleza Vermelha. Não, isso foi outra garota qualquer, não fui eu.
Gata viu que dois dos navios que tinham estado ali no dia anterior haviam desaparecido, mas cinco novos tinham ancorado; uma pequena carraca chamada Macaco de Bronze, um enorme baleeiro ibenês que fedia a piche, sangue e óleo de baleia, duas cocas em mau estado provenientes de Pentos e uma esguia galé verde originária da Velha Volantis. Ela parou na base de todas as pranchas para apregoar suas amêijoas e ostras, uma vez na língua franca e outra no Idioma Comum de Westeros. Um tripulante do baleeiro a amaldiçoou tão alto, que afugentou os gatos que a acompanhavam, e um dos remadores de Pentos perguntou-lhe quanto queria pela amêijoa que tinha entre as pernas. Mas teve melhor sorte nos outros navios. Um imediato na galé verde devorou meia dúzia de ostras e contou-lhe como seu capitão havia sido morto pelos piratas lisenos que tinham tentado abordá-los perto dos Degraus.
- Foi aquele bastardo do Saan, com o Filho da Velha Mãe e seu grande Valiriana. Escapamos, mas por pouco.
O pequeno Macaco de Bronze revelou-se proveniente de Vila Gaivota, com uma tripulação de Westeros que ficou feliz por falar com alguém no Idioma Comum. Um deles perguntou como uma garota de Porto Real tornara-se vendedora de mexilhões nas docas de Bravos, de modo que foi obrigada a contar sua história.
- Ficamos aqui durante quatro dias e quatro longas noites - disse-lhe outro. - Onde um homem deve ir para encontrar um pouco de diversão?
- Os saltimbancos no Navio estão apresentando Os Sete Remadores Bêbados - ela respondeu - e há lutas de enguias na Adega Malhada, junto dos portões da Cidade Afogada. Ou, se quiserem, podem ir à Lagoa da Lua, onde os espadachins travam duelos à noite.
- Sim, isso é bom - disse outro marinheiro - mas o que Wat queria mesmo era uma mulher.
- As melhores prostitutas são as do Porto Feliz, lá embaixo, onde está ancorado o Navio dos saltimbancos - ela apontou o lugar. Algumas das prostitutas das docas eram perigosas, e os marinheiros recém-chegados nunca sabiam quais. S'vrone era a pior. Todos diziam que assaltara e matara uma dúzia de homens, fazendo rolar os corpos para os canais, a fim de alimentar as enguias. A Filha Bêbada podia ser amável quando sóbria, mas não quando tomada pelo vinho. E Jeyne Ulcera era, na realidade, um homem. - Pergunte pela Divertida. Seu verdadeiro nome é Meralyn, mas todo mundo a chama de Divertida, e é o que ela é - Divertida comprava uma dúzia de ostras toda vez que Gata passava pelo bordel e as partilhava com suas garotas. Tinha bom coração, todos diziam.“Isso, e o maior par de tetas de toda a Bravos” ela gostava de alardear sobre si mesma.
Suas garotas também eram simpáticas; Bethany Corada e Esposa do Marinheiro, Yna Zarolha, que sabia ler o destino numa gota de sangue, a pequena e bonita Lanna, até Assadora, a mulher ibenesa com bigode. Podiam não ser belas, mas eram gentis com ela.
- Porto Feliz é o lugar onde vão todos os carregadores - Gata garantiu aos homens do Macaco de Bronze. - “Os rapazes descarregam os navios” Divertida sempre diz, “e minhas garotas descarregam os rapazes que neles navegam”.
- E aquelas prostitutas finas sobre as quais os cantores cantam? - perguntou o macaco mais novo, um rapaz ruivo com sardas que não devia ter mais de dezesseis anos. - São tão bonitas como dizem? Onde é que arranjo uma delas?
Os camaradas olharam para ele e riram.
- Com os sete infernos, rapaz - disse um deles. - Pode ser que o capitão pudesse arranjar para si uma cortesã, mas só se vendesse a porra do navio. Esse tipo de boceta é para senhores e pessoas assim, não para gente como nós.
As cortesãs de Bravos tinham fama em todo o mundo. Cantores cantavam sobre elas, ourives e joalheiros banhavam-nas de presentes, artesãos suplicavam pela honra de fazerem negócio com elas, príncipes mercadores pagavam preços régios para tê-las nos braços em bailes, banquetes e espetáculos de saltimbancos, e espadachins matavam-se uns aos outros em nome delas. Enquanto ia empurrando o carrinho de mão ao longo dos canais, por vezes Gata vislumbrava uma delas flutuando por perto, a caminho de passar uma noite com um amante qualquer. Cada cortesã tinha sua própria barcaça e criados para levá-la aos seus encontros. Poetisa carregava sempre um livro na mão, Sombra de Lua usava apenas branco e prata, e Rainha Bacalhau nunca era vista sem suas Sereias, quatro jovens donzelas no rubor de sua primeira floração que lhe sustinham a cauda do vestido e lhe penteavam os cabelos. Cada cortesã era mais bela do que a outra. Até a Senhora Velada era bela, embora só aqueles que tomava como amantes chegassem a ver seu rosto.
- Vendi três conquilhas a uma cortesã - Gata disse aos marinheiros. - Chamou por mim quando saía da barcaça - Brusco deixara-lhe claro que nunca devia falar com uma cortesã, a menos que ela falasse primeiro, mas a mulher sorrira-lhe e lhe pagara em prata, dez vezes mais do que as conquilhas valiam.
- E quem era? A Rainha das Conquilhas?
- Pérola Negra - disse-lhes. Divertida afirmava que Pérola Negra era a mais famosa de todas as cortesãs.
“Essa descende dos dragões” a mulher lhe dissera. “A primeira Pérola Negra era uma rainha pirata. Um príncipe de Westeros tomou-a como amante e com ela teve uma filha, que cresceu para se tornar cortesã. Sua filha a sucedeu, e a filha desta sucedeu à mãe, até chegar à atual. Que foi que ela te disse, Gata?”
Ao que ela respondeu: “Disse ‘Quero três conquilhas’ e 'Tem um pouco de molho picante, pequena?’”
“E você disse o quê?”
“Disse ‘Não, minha senhora' e ‘Não me chame de pequena. Meu nome é Gata'. Devia ter molho picante. Beqqo tem, e vende três vezes mais ostras do que Brusco.”
Gata também contara ao homem amável sobre Pérola Negra.
- Seu verdadeiro nome é Bellegere Otherys - ela lhe disse. Aquela era uma das três coisas que tinha descoberto.
- Sim - disse o sacerdote em voz baixa. - A mãe era Bellonara, mas a primeira Pérola Negra também se chamava Bellegere.
Mas Gata sabia que os homens do Macaco de Bronze não se importavam com o nome da mãe de uma cortesã. Em vez disso, pediu-lhes notícias dos Sete Reinos e da guerra.
- Guerra? - um deles riu. - Que guerra? Não há guerra nenhuma.
- Não há guerra em Vila Gaivota - disse outro - Não há guerra no Vale. O pequeno senhor nos manteve fora dela, como a mãe já tinha feito.
Como a mãe já tinha feito. A senhora do Vale era irmã da sua mãe.
- A Senhora Lysa - disse - ela está...?
- ... morta? - concluiu o rapaz sardento cuja cabeça estava cheia de cortesãs. - Sim. Assassinada pelo seu próprio cantor.
- Oh - não é nada para mim. A Gata dos Canais nunca teve uma tia. Nunca teve. Ela ergueu o carrinho de mão e o empurrou, para longe do Macaco de Bronze, aos saltos nas ruas de pedra - Ostras, amêijoas e conquilhas - gritou. - Ostras, amêijoas e conquilhas - vendeu a maior parte das amêijoas aos carregadores que descarregavam a grande coca vinícola da Árvore, e o resto aos homens que reparavam uma galé mercante de Myr, danificada pelas tempestades.
Mais à frente, nas docas, encontrou Tagganaro sentado com as costas apoiadas num pilar, ao lado de Casso, o Rei das Focas. Comprou-lhe alguns mexilhões, e Casso latiu e deixou que ela lhe apertasse a barbatana.
- Venha trabalhar comigo, Gata - pediu Tagganaro enquanto chupava a carne dos mexilhões. Andava em busca de um novo parceiro desde que a Filha Bêbada espetara a faca na mão do Pequeno Narbo. - Pagaria mais do que Brusco, e você não ficaria cheirando a peixe.
- Casso gosta do meu cheiro - ela disse. O Rei das Focas latiu, como que concordando. - A mão de Narbo não está melhor?
- Três dedos não se dobram - lamentou-se Tagganaro, entre chupadas nos mexilhões. - Para que presta um ladrão que não pode usar os dedos? Narbo era bom em pegar bolsas, mas não tão bom em pegar prostitutas.
- Divertida diz o mesmo - Gata tinha pena. Gostava do Pequeno Narbo, mesmo ele sendo um ladrão. - O que ele vai fazer?
- Diz que vai puxar um remo. Bastam-lhe dois dedos para isso, ele acha, e o Senhor do Mar anda sempre à procura de mais remadores. Eu lhe digo: “Narbo, não. Esse mar é mais frio do que uma donzela e mais cruel do que uma puta. É melhor que corte a mão e se ponha a pedir” Casso sabe que tenho razão. Não sabe, Casso?
A foca latiu, e Gata não conseguiu deixar de sorrir. Atirou-lhe mais uma conquilha antes de voltar à sua vida.
O dia estava quase no fim quando ela chegou ao Porto Feliz, na viela em frente ao local onde o Navio estava atracado. Alguns dos saltimbancos encontravam-se sentados no topo do casco riscado, passando um odre de vinho de mão em mão, mas quando viram o carrinho da Gata desceram para comer algumas ostras. Ela lhes perguntou como iam os Sete Remadores Bêbados. Joss, o Sombrio, balançou a cabeça.
- Quence finalmente encontrou Allaquo na cama com Sloey. Atiraram-se um ao outro com espadas de brinquedo, e ambos nos deixaram. Segundo parece, esta noite seremos só cinco remadores bêbados.
- Tentaremos compensar em embriaguez aquilo que nos falta em remadores - declarou Myrmello. - Eu, pelo menos, estou à altura da tarefa.
- Pequeno Narbo quer ser remador - Gata lhes disse. - Se ficassem com ele, seriam seis.
- É melhor ir ter com a Divertida - Joss rebateu - Sabe muito bem como ela fica aborrecida quando lhe faltam as ostras.
Mas, quando Gata adentrou o bordel, foi encontrar Divertida sentada na sala comum, de olhos fechados, ouvindo Dareon tocar sua harpa. Yna também se encontrava ali, entrançando os belos e longos cabelos dourados de Lanna. Outra estúpida canção de amor. Lanna estava sempre pedindo ao cantor para lhe tocar estúpidas canções de amor. Era a mais nova das prostitutas, com apenas catorze anos. Gata sabia que a Divertida pedia por ela três vezes mais do que por qualquer uma das outras garotas.
Ver Dareon ali sentado, tão insolente, secando Lanna com os olhos enquanto os dedos dançavam nas cordas da harpa a irritou. As prostitutas o chamavam de o cantor negro, mas agora quase não havia negro nele. Com o dinheiro que as canções lhe trazia, o corvo transformara-se num pavão. Naquele dia usava um manto de veludo púrpura forrado com veiro, uma túnica com listras brancas e lilases, e calças de duas cores de espadachim, mas também possuía um manto de seda e outro feito de veludo borgonha que era forrado com pano de ouro. O único negro que trazia estava nas botas. A Gata ouvira-o dizer a Lanna que atirara todo o resto em um canal.
“Cansei de escuridão” ele tinha anunciado.
Ele é um homem da Patrulha da Noite, pensou, enquanto o cantor cantava sobre uma senhora estúpida qualquer que se atirara de uma estúpida torre porque seu estúpido príncipe estava morto. A senhora devia matar aqueles que assassinaram o príncipe. E o cantor devia estar na Muralha. Quando Dareon aparecera pela primeira vez em Porto Feliz, Arya quase perguntara se a levaria consigo para Atalaialeste, mas depois o ouvira dizer a Bethany que nunca regressaria.
“Camas duras, bacalhau salgado e patrulhas sem fim, a Muralha é isso” dissera. “ Além do mais, não há em Atalaialeste ninguém que chegue aos seus calcanhares em beleza. Como é que eu poderia deixá-la?” Gata ouvira dizer que ele falara o mesmo a Lanna, e a uma das prostitutas da Gataria, e até ao Rouxinol, na noite em que tocou na Casa das Sete Lâmpadas.
Gostaria de ter estado aqui na noite em que o gordo bateu nele. As prostitutas da Divertida ainda riam da cena. Yna disse que o gordo ficara vermelho como uma beterraba a cada vez que o tocara, mas quando a confusão começou a se armar, Divertida mandara arrastá-lo para fora e atirá-lo ao canal.
Gata pensava no gordo, lembrando-se de como o salvara de Terro e de Orbello, quando a Esposa do Marinheiro surgiu à sua frente.
- Ele canta uma canção bonita - murmurou em voz baixa, no Idioma Comum de Westeros. - Os deuses devem tê-lo amado para lhe dar uma voz assim, e aquele rosto bonito também.
Ele é bonito de rosto e feio de coração, Arya pensou, mas nada disse. Dareon casara-se uma vez com a Esposa do Marinheiro, que só se deitava com homens que a desposassem. Por vezes, Porto Feliz tinha três ou quatro casamentos por noite. Era frequente que Ezzelyno, o alegre e ensopado em vinho sacerdote vermelho, executasse os ritos. Quando não era ele, era Eustace, que outrora fora septão no Septo-do-Ultramar. Se nem sacerdote nem septão estivessem disponíveis, uma das prostitutas corria ao Navio e trazia um saltimbanco. Divertida afirmava sempre que os saltimbancos davam sacerdotes muito melhores do que os de verdade, especialmente Myrmello.
Os casamentos eram ruidosos e alegres, com muita bebida. Sempre que Gata aparecia com seu carrinho de mão, a Esposa do Marinheiro insistia para que seu novo marido lhe comprasse algumas ostras, para lhe dar potência para a consumação. Tinha essa maneira de ser boa, e também era rápida para rir, mas Gata achava que também havia algo de triste nela.
As outras prostitutas diziam que a Esposa do Marinheiro visitava a Ilha dos Deuses nos dias em que sua flor se encontrava em florescência, e que conhecia todos os deuses que ali viviam, até aqueles que Bravos esquecera. Diziam que ela ia rezar por seu primeiro marido, seu marido verdadeiro, que se perdera no mar quando ela não era mais velha do que Lanna.
“Acha que se encontrar o deus certo, ele talvez envie os ventos e sopre seu velho amor de volta para ela” dizia Yna Zarolha, que a conhecia havia mais tempo, “mas eu rezo para que isso nunca aconteça. Seu amor está morto, consegui saboreá-lo em seu sangue. Se alguma vez regressar para junto dela, será um cadáver”.
A canção de Dareon estava finalmente terminando. Enquanto as últimas notas se desvaneciam no ar, Lanna soltou um suspiro e o cantor pôs a harpa de lado e a puxou para seu colo. Tinha começado a lhe fazer cócegas quando Gata disse em voz alta:
- Há ostras, se alguém quiser - então, os olhos de Divertida se abriram.
- Ótimo - disse a mulher. - Traga-as aqui, filha. Yna, vá buscar um pouco de pão e vinagre.
O sol rubro e inchado pendia no céu por trás da fileira de mastros quando Gata se retirou de Porto Feliz, com uma gorda bolsa de moedas e um carrinho de mão vazio, exceto pelo sal e pelas algas. Dareon também estava saindo. Prometera cantar na Estalagem da Enguia Verde naquela noite, ele lhe disse enquanto caminhavam juntos.
- Todas as vezes que toco na Enguia saio de lá com prata - gabou-se - e em certas noites há capitães e donos de navios ali - cruzaram uma pequena ponte e abriram caminho por uma retorcida rua secundária enquanto as sombras do dia se tornavam mais longas. - Logo estarei tocando no Púrpura, e depois disso no Palácio do Senhor do Mar - prosseguiu Dareon. O carrinho vazio da Gata estrondeava nas ruas de pedra, fazendo sua própria espécie de música matraqueada. - Ontem comi arenque com as prostitutas, mas antes de se passar um ano estarei comendo caranguejo-imperador com as cortesãs.
- O que aconteceu ao seu irmão? - Gata lhe perguntou. - O gordo. Conseguiu arranjar navio para Vilavelha? Disse que estava previsto que embarcasse na Senhora Ushanora.
- Estava previsto que todos embarcássemos nesse navio. Ordens de Lorde Snow. Eu disse ao Sam: “deixe o velho” mas o idiota do gordo não quis me dar ouvidos - a última luz do sol poente brilhou em seus cabelos. - Bem, agora é tarde demais.
- Isso é certo - Gata respondeu quando penetraram nas sombras de uma pequena viela retorcida,
Quando ela voltou para a casa de Brusco, um nevoeiro noturno formava-se por cima do pequeno canal. Arrumou o carrinho de mão, encontrou Brusco em seu quarto das contas e deixou cair a bolsa com estrondo na mesa à sua frente, assim como as botas.
Brusco deu uma palmada na bolsa.
- Ótimo. Mas o que é isto?
- Botas.
- É difícil encontrar boas botas - disse Brusco - mas essas são pequenas demais para os meus pés. - Pegou um pé e o examinou de olhos semicerrados.
- A lua estará negra esta noite - ela o lembrou.
- Então é melhor rezar - Brusco pôs as botas de lado e despejou as moedas para contá-las. - Valar dohaeris.
Valar morgkulis, ela pensou.
Erguia-se nevoeiro por todo lado quando se pôs a caminho pelas ruas de Bravos. Tremia um pouco quando empurrou a porta de represeiro e entrou na Casa do Preto e Branco. Naquela noite só havia algumas velas ardendo, tremeluzindo como estrelas caídas. Na escuridão, todos os deuses eram estranhos.
Nas câmaras subterrâneas, desprendeu o manto esfarrapado da Gata, despiu pela cabeça a túnica marrom fedendo a peixe da Gata, descalçou com um pontapé as botas manchadas de sal da Gata, libertou-se da roupa de baixo da Gata e banhou-se em água com limão, a fim de se ver livre até do cheiro da Gata dos Canais. Quando emergiu, ensaboada e esfregada até ficar cor-de-rosa, e com os cabelos castanhos colados ao rosto, a Gata desaparecera. Envergou vestes limpas e um par de macios chinelos de tecido, e dirigiu-se às cozinhas, a fim de mendigar um pouco de comida a Umma. Os sacerdotes e acólitos já tinham comido, mas a cozinheira guardara para ela um pouco de bom bacalhau frito e uma porção de purê de nabo amarelo. Devorou a comida, lavou o prato e então foi ajudar a criança abandonada a preparar suas poções.
A parte que lhe competia era principalmente ir buscar coisas, escalando escadas acima para encontrar as ervas e as folhas de que a criança abandonada precisava.
- O sonodoce é o mais gentil dos venenos - disse-lhe a criança abandonada, enquanto esmagava um pouco com um almofariz e um pilão. - Alguns grãos abrandam os batimentos do coração, evitam que a mão trema e fazem que um homem se sinta calmo e forte. Uma pitada dá uma noite de sono profundo e sem sonhos. Três produzem aquele sono que não termina. O sabor é muito doce, por isso é melhor usá-lo em bolos, tortas e vinhos com mel. Tome, sinta o aroma da doçura - deixou-a absorver o cheiro, após o que a mandou escada acima buscar uma garrafa de vidro vermelho. - Este é um veneno mais cruel, mas não tem sabor nem cheiro, de modo que é mais fácil de esconder. Os homens o chamam lágrimas de Lys. Dissolvido em vinho ou água, corrói as entranhas e a barriga de um homem e mata como uma doença desses órgãos. Cheire - Arya obedeceu, e não sentiu cheiro de nada. A criança abandonada pôs as lágrimas de um lado e abriu um grosso frasco de pedra. - Esta pasta está temperada com sangue de basilisco. Dá um aroma saboroso à carne cozida, mas, se for comida, produz uma loucura violenta, tanto em animais como nos homens. Um rato atacará um leão depois de provar sangue de basilisco.
Arya mordeu o lábio.
- E isso funciona em cães?
- Em qualquer animal de sangue quente - a criança abandonada a esbofeteou.
Arya levou a mão ao rosto, mais surpresa do que magoada.
- Por que fez isso?
- É Arya da Casa Stark quem morde o lábio sempre que está pensando. É Arya da Casa Stark?
- Não sou ninguém - estava zangada. - Quem é você?
Não esperava que a criança abandonada respondesse, mas ela respondeu.
- Nasci filha única de uma Casa antiga, herdeira de meu nobre pai. Minha mãe morreu quando eu era pequena, não tenho nenhuma lembrança dela. Quando tinha seis anos, meu pai voltou a se casar. Sua nova esposa tratou-me bem até dar à luz uma filha sua. Então, foi seu desejo que eu morresse, para que seu sangue herdasse a riqueza de meu pai. Devia ter procurado o favor do Deus de Muitas Faces, mas não podia suportar o sacrifício que ele lhe pediria. Em vez disso, planejou ela mesma me envenenar. O veneno deixou-me como me vê agora, mas não morri. Quando os curandeiros da Casa das Mãos Vermelhas contaram ao meu pai o que ela tinha feito, ele veio até aqui e fez um sacrifício, oferecendo toda sua riqueza e a mim. O das Muitas Faces ouviu suas preces. Fui trazida para o templo para servir, e a esposa do meu pai recebeu o presente.
Arya observou-a, desconfiada.
- Isso é verdade?
- Há nisso verdade.
- E também há mentiras?
- Há uma falsidade, e um exagero.
Arya estivera observando o rosto da criança abandonada durante todo o tempo que passara contando a história, mas a outra garota não mostrara sinais.
- O Deus das Muitas Faces ficou com dois terços da riqueza do seu pai, não com a riqueza toda.
- Isso mesmo. Foi esse o meu exagero.
Arya sorriu, percebeu que estava sorrindo, e deu um beliscão na bochecha. Governe seu rosto, disse a si mesma. Meu sorriso é meu criado, deve surgir às minhas ordens.
- Qual parte era mentira?
- Nenhuma. Menti sobre a mentira.
- Mentiu? Ou está mentindo agora?
Mas antes de a criança abandonada ter tempo de responder, o homem amável entrou na sala, sorrindo.
- Regressou para junto de nós.
- A lua está negra.
- Está. Que três coisas sabe e não sabia da última vez que nos deixou?
Sei trinta coisas novas, quase respondeu.
- Três dos dedos do Pequeno Narbo não se dobram. Quer ser um remador.
- É bom saber disso. E o que mais?
Recordou seu dia.
- Quence e Alaquo lutaram um com o outro e deixaram o Navio, mas acho que vão voltar.
- Só acha, ou sabe?
- Só acho - teve de confessar, embora estivesse segura daquilo. Os saltimbancos tinham de comer, assim como os outros homens, e Quence e Alaquo não eram suficientemente bons para a Lanterna Azul.
- Isso mesmo - disse o homem amável. - E a terceira coisa?
Daquela vez não hesitou.
- Daeron está morto. O cantor negro que dormia no Porto Feliz. Era na verdade um desertor da Patrulha da Noite. Alguém lhe cortou a garganta e o empurrou para um canal, mas ficaram com as botas.
- Boas botas são difíceis de encontrar.
- Isso mesmo - tentou manter o rosto imóvel.
- Pergunto a mim mesmo quem poderia ter feito uma coisa dessas.
- Arya da Casa Stark - observou os olhos do homem, sua boca, os músculos do seu maxilar.
- Essa garota? Julgava que ela tinha deixado Bravos. Quem é você?
- Ninguém.
- Mente - virou-se para a criança abandonada. - Tenho a garganta seca. Faça-me um favor, traga uma taça de vinho para mim e leite quente para nossa amiga Arya, que regressou para junto de nós tão inesperadamente.
Ao longo da viagem pela cidade, Arya interrogara-se sobre o que o homem amável diria quando lhe contasse sobre Dareon. Talvez ficasse zangado com ela, ou talvez contente por ela ter dado ao cantor a dádiva do Deus das Muitas Faces. Representara aquela conversa na cabeça meia centena de vezes, como um saltimbanco num espetáculo. Mas nunca pensara em leite quente.
Quando o leite chegou, Arya o bebeu. Cheirava um pouco a queimado e deixava um sabor amargo na boca.
- Agora vá para a cama, filha - disse o homem amável. - Amanhã tem de servir.
Naquela noite voltou a sonhar que era um lobo, mas este era diferente dos outros. Neste sonho não havia alcateia. Vagueava só, saltando pelos telhados e caminhando em silêncio junto das margens de um canal, perseguindo sombras através do nevoeiro.
Quando acordou na manhã seguinte, estava cega.  

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