domingo, 22 de setembro de 2013

35 - SAMWELL



Vento de Canela era um navio cisne originário da Vila das Árvores Altas, nas Ilhas do Verão, onde os homens eram negros, as mulheres sensuais, e os deuses estranhos. Não havia um septão a bordo que os liderasse nas orações de passagem para o outro mundo, e por isso a tarefa coube a Samwell Tarly, em algum lugar ao largo da costa meridional e ressequida pelo sol de Dorne.
Sam vestiu seus panos negros para proferir as palavras, embora a tarde estivesse quente e úmida, quase sem uma aragem.
- Ele era um bom homem - começou... Mas assim que articulou as palavras soube que estavam erradas. - Não. Ele era um grande homem. Um meistre da Cidadela, acorrentado e juramentado, e Irmão Juramentado da Patrulha da Noite, sempre fiel. Quando nasceu, deram-lhe o nome de um herói que morrera novo demais, mas, embora tenha vivido muito, muito tempo, sua vida não foi menos heróica. Não há homem mais sábio, mais gentil, mais bondoso. Na Muralha, uma dúzia de Senhores Comandantes chegou e partiu durante seus anos de serviço, mas ele sempre esteve lá para lhes dar conselhos. Também aconselhou reis. Ele mesmo podia ter sido rei, mas quando lhe ofereceram a coroa disse-lhes que a deviam dar ao irmão mais novo. Quantos homens o fariam? - Sam sentiu as lágrimas lhe subirem aos olhos e soube que não conseguiria prosseguir durante muito tempo. - Ele era do sangue do dragão, mas agora seu fogo se apagou. Ele era Aemon Targaryen. E agora sua vigília terminou.
- E agora sua vigília terminou - murmurou Goiva quando ele se calou, embalando o bebê nos braços. Kojja Mo serviu-lhe de eco no Idioma Comum de Westeros, e depois repetiu as palavras na língua do verão para Xhondo, o pai e o resto da tripulação ali reunida. Sam deixou pender a cabeça e começou a chorar, com soluços tão sonoros e cheios de dor que faziam seu corpo todo tremer. Goiva colocou-se ao seu lado e o deixou chorar em seu ombro. Havia lágrimas em seus olhos também.
O ar estava úmido, e quente, e calmo de morte, enquanto Vento de Canela encontrava-se à deriva num mar de um azul profundo, bem longe de vista da terra.
- Sam Preto disse boas palavras - Xhondo falou. - Agora bebemos à sua vida - gritou qualquer coisa na língua do verão, e um casco de rum temperado foi rolado para o convés e aberto, para que aqueles que estavam de serviço pudessem emborcar uma taça em memória do velho dragão cego. A tripulação só o conhecera por pouco tempo, mas os ilhéus de verão reverenciavam os idosos e celebravam seus mortos.
Sam nunca tinha bebido rum. A bebida era estranha e subia à cabeça; a princípio doce, mas com um amargor de fogo que lhe queimou a língua. Estava cansado, muito cansado. Doía-lhe cada músculo do corpo, e havia outras dores em lugares onde Sam nem sabia que existiam músculos. Tinha os joelhos rígidos, as mãos cobertas de bolhas recém-surgidas e pedaços de pele pegajosos, em carne viva, onde as bolhas antigas tinham rebentado. Mas, assim mesmo, o rum e a tristeza pareceram afastar as dores para longe.
- Se tivéssemos conseguido levá-lo para Vilavelha, os arquimeistres podiam tê-lo salvo - disse a Goiva enquanto bebiam rum no alto castelo de proa do Vento de Canela. - Os curandeiros da Cidadela são os melhores dos Sete Reinos. Durante algum tempo pensei... esperei....
Em Bravos, a recuperação de Aemon parecera possível. A conversa de Xhondo sobre dragões quase pareceu fazer que o velho voltaria a ser quem fora. Naquela noite tinha comido até o fim aquilo que Sam lhe pusera na frente.
“Nunca ninguém procurou uma garota” dissera. “Fora um príncipe a ser prometido, não uma princesa. Rhaegar, pensava eu... a fumaça era do incêndio que devorou Solarestival no dia de seu nascimento, o sal vinha das lágrimas derramadas por aqueles que morreram. Ele partilhou minha crença quando era novo, mas mais tarde persuadiu-se de que seria o filho a cumprir a profecia, pois um cometa foi visto no céu de Porto Real na noite em que Aegon foi concebido, e Rhaegar tinha certeza de que a estrela sangrando era um cometa. Que tolos fomos por nos julgarmos tão sábios! O erro teve origem na tradução. Os dragões não são nem machos nem fêmeas, Barth viu aí a verdade, mas ora uma coisa, ora outra, tão mutáveis como chamas. A língua nos induziu em erro durante mil anos. A escolhida é Daenerys, nascida entre sal e fumaça. Os dragões assim nos provam.” Tinha bastado falar dela para parecer fortalecê-lo,“Tenho de ir ter com ela. Tenho de ir. Gostaria de ser ao menos dez anos mais novo.”
O velho tornou-se tão determinado que até subiu sozinho a prancha de embarque do Vento de Canela, depois de Sam ter negociado o transporte do grupo. Já dera a Xhondo a espada e a bainha, para compensar o grande imediato pelo manto de penas que estragara ao salvar Sam de morrer afogado. A única coisa de valor que ainda lhe restava eram os livros que tinham trazido das câmaras de Castelo Negro. Sam separara-se deles com um humor sombrio.
“Destinavam-se à Cidadela” disse, quando Xhondo lhe perguntou o que se passava. Quando o imediato traduziu aquelas palavras, o capitão deu risada.
“Quhuru Mo diz que os homens cinzentos ainda terão esses livros” dissera-lhe Xhondo, “só que os comprarão de Quhuru Mo. Os meistres dão boa prata por livros que não conseguem encontrar, e às vezes ouro vermelho e amarelo.”
O capitão também quis a corrente de Aemon, mas isto Sam recusara. Ceder a corrente era uma grande vergonha para qualquer meistre, explicou-lhe. Xhondo teve de voltar três vezes a essa parte até que Quhuru Mo a aceitasse. Quando o acordo foi feito, Sam estava reduzido às botas, aos panos pretos, à roupa de baixo e ao berrante quebrado que Jon Snow encontrara no Punho dos Primeiros Homens. Não tive alternativa, disse a si mesmo. Não podíamos ficar em Bravos e, fora roubar ou mendigar, não havia outra maneira de pagar pela passagem. Teria considerado barato três vezes aquele preço se tivessem conseguido levar Meistre Aemon a salvo até Vilavelha.
Mas a viagem para o sul tinha sido tempestuosa, e cada pé de vento cobrava seu preço nas forças e no ânimo do velho. Em Pentos, pedira para ser trazido para o convés, para que Sam pudesse pintar-lhe uma imagem da cidade com palavras, mas aquela tinha sido a última vez que saíra da cama do capitão. Pouco mais tarde, seu espírito recomeçara a vaguear. Quando Vento de Canela passou pela Torre que Sangra e entrou no porto de Tyrosh, Aemon já não falava em tentar encontrar um navio que o levasse para leste. Em vez disso, sua conversa virara-se para Vilavelha e os arquimeistres da Cidadela.
“Tem de lhes contar, Sam” dissera. “Aos arquimeistres. Tem de fazer que compreendam. Os homens que estavam na Cidadela nos meus tempos estão mortos há cinquenta anos. Esses outros não chegaram a me conhecer. Minhas cartas... em Vilavelha devem ter parecido os delírios de um velho desmiolado. Tem de convencê-los onde não consegui. Conte-lhes, Sam... conte-lhes como são as coisas na Muralha... as criaturas e os caminhantes brancos, o frio arrepiante...”
“Contarei” Sam tinha prometido. “Somarei minha voz à sua, meistre. Ambos diremos a eles, os dois, juntos.”
“Não” o velho lhe respondeu. “Terá de ser você. Conte-lhes. A profecia... O sonho do meu irmão... A Senhora Melisandre leu mal os sinais. Stannis... Stannis tem em si um pouco de sangue de dragão, é verdade. Os irmãos também tinham. Rhaelle, a filhinha do Ovo, foi através dela que o arranjaram... A mãe do pai deles... Costumava chamar-me Tio Meistre quando era pequena. Lembrei-me disso, por isso me permiti ter esperança... talvez quisesse... Todos nos enganamos a nós mesmos quando queremos acreditar. Acima de todos Melisandre, creio eu. A espada é a errada, ela precisa saber disso... Luz sem calor... Um brilho vazio... A espada é a errada, e a falsa luz só pode nos levar para uma escuridão mais profunda, Sam. Nossa esperança é Daenerys. Diga-lhes isso, na Cidadela. Obrigue-os a escutá-lo. Têm de lhe mandar um meistre. Daenerys deve ser aconselhada, instruída, protegida. Deixei-me ficar todos esses anos à espera, observando, e agora que o dia amanheceu sou velho demais. Estou morrendo, Sam.” Lágrimas brotaram de seus alvos olhos cegos quando assim admitiu. “A morte não devia provocar medo a um homem tão velho como eu, mas provoca. Não é uma tolice? E sempre escuro onde estou, por que deveria temer a escuridão? Mas não posso evitar me interrogar sobre o que se seguirá, quando o último calor abandonar meu corpo. Irei banquetear-me para sempre no salão dourado do Pai, como dizem os septões? Voltarei a conversar com o Ovo, encontrarei Dareon inteiro e feliz, ouvirei minhas irmãs cantar para seus filhos? E se forem os senhores dos cavalos quem têm razão? Cavalgarei para sempre pelo céu noturno num garanhão feito de chamas? Ou deverei regressar a este vale de sofrimento? Quem saberá dizê-lo, realmente? Quem esteve além da muralha da morte e viu? Só as criaturas, e nós sabemos como elas são. Nós sabemos.”
Havia muito pouco que Sam pudesse responder àquilo, mas oferecera ao velho o pouco conforto que conseguira dar. E Goiva entrara mais tarde e cantara-lhe uma canção, uma cantiga disparatada que aprendera com algumas das outras mulheres de Craster. A música fizera o velho sorrir e ajudara-o a adormecer.
Esse foi um de seus últimos dias bons. Depois disso, o velho passou mais tempo dormindo do que acordado, enrolado sob uma pilha de peles na cabine do capitão. Por vezes murmurava no sono. Quando acordava, chamava por Sam, insistindo que tinha de lhe dizer uma coisa, mas o mais frequente era que já tivesse se esquecido do que queria falar quando Sam chegava. Mesmo quando se lembrava, seu discurso era pura confusão. Falava de sonhos sem nunca mencionar o sonhador, de uma vela de vidro que não podia ser acesa e de ovos que não eclodiam. Dizia que a esfinge era a adivinha, não o adivinho, qualquer que fosse o significado que isso tivesse. Pedira a Sam que lhe lesse passagens de um livro escrito pelo Septão Barth, cujas obras tinham sido queimadas durante o reinado de Baelor, o Abençoado. Uma vez acordara chorando.
"O dragão tem de ter três cabeças” gemera, “mas eu sou velho e fraco demais para ser uma delas. Devia estar com ela, mostrando-lhe o caminho, mas o corpo traiu-me”.
Enquanto Vento de Canela abria caminho entre os Degraus, era mais frequente Meistre Aemon esquecer o nome de Sam do que se recordar dele. Em certos dias, tomava-o por um de seus falecidos irmãos.
- Ele estava fraco demais para uma viagem tão longa - Sam disse a Goiva no castelo de proa, após mais um trago de rum. - Jon devia ter sabido. Aemon tinha cento e dois anos, nunca devia ter sido enviado para o mar. Se tivéssemos permanecido em Castelo Negro, ele poderia ter vivido mais dez anos.
- Ou então ela talvez o queimasse. A mulher vermelha - até ali, a mil léguas da Muralha, Goiva sentia-se relutante em dizer o nome da Senhora Melisandre em voz alta. - Ela queria sangue de rei para seus fogos. Val sabia que sim. Lorde Snow também. Foi por isso que me obrigaram a levar o bebê de Dalla e deixar o meu no lugar dele. Meistre Aemon adormeceu e não acordou, mas, se tivesse ficado, ela o teria queimado.
Ele vai arder mesmo assim, Sam pensou, infeliz, só que agora serei eu a queimá-lo. Os Targaryen sempre entregavam seus caídos às chamas. Quhuru Mo não autorizara uma pira funerária a bordo do Vento de Canela, por isso o cadáver de Aemon foi enfiado em um barril de rum pançapreta a fim de ficar preservado até que o navio chegasse a Vilavelha.
- Na noite antes de morrer, ele perguntou se podia pegar o bebê - Goiva continuou. - Tive medo de que ele o deixasse cair, mas não deixou. Embalou-o e murmurou uma canção para ele, e o filho de Dalla estendeu a mãozinha e tocou-lhe o rosto. Puxou-lhe o lábio de uma tal maneira que pensei que podia machucá-lo, mas só fez o velho dar risada - ela afagou a mão de Sam. - Podíamos chamar o pequeno de Meistre, se quiser. Quando tiver idade, não agora. Podíamos.
- Meistre não é um nome. Mas poderia chamá-lo Aemon.
Goiva refletiu sobre aquilo.
- Dalla o deu à luz durante a batalha, enquanto as espadas cantavam à sua volta. Deve ser este o seu nome. Aemon Nascido em Batalha. Aemon Canção d'Aço.
Um nome que até o senhor meu pai poderia gostar. Um nome de guerreiro. O garoto era filho de Mance Rayder e neto de Craster, afinal de contas. Não tinha nada do sangue covarde de Sam.
- Sim. Dê-lhe esse nome.
- Quando ele fizer dois anos - ela prometeu, - antes não.
- Onde está o garoto? - de repente Sam perguntou. Por causa do rum e do sofrimento, demorara todo aquele tempo para perceber que Goiva não tinha o bebê consigo.
- Está com Kojja. Pedi a ela para tomar conta dele durante algum tempo.
- Oh - Kojja Mo era a filha do capitão, mais alta do que Sam e esguia como uma lança, com uma pele tão negra e lisa como azeviche polido. Também capitaneava os arqueiros vermelhos do navio e retesava um arco de amagodouro com dupla curvatura e capacidade para disparar uma flecha a quatrocentos metros. Quando os piratas os tinham atacado nos Degraus, as flechas de Kojja mataram uma dúzia, enquanto as de Sam caíram na água. As únicas coisas de que Kojja gostava mais do que do seu arco era de embalar o filho de Dalla sobre os joelhos e cantar-lhe na língua do verão. O príncipe selvagem transformara-se no queridinho de todas as mulheres da tripulação, e Goiva parecia confiá-lo a elas como nunca o confiara a nenhum homem.
- Isso foi gentil da parte de Kojja - disse Sam.
- A princípio, tive medo dela - Goiva confessou. - É tão escura, e tem uns dentes tão grandes e brancos que tive medo de que fosse cria de animal, ou um monstro, mas não é. É boa. Gosto dela.
- Eu sei que gosta - ao longo da maior parte de sua vida, o único homem que Goiva conhecera fora o aterrorizador Craster. O resto do seu mundo tinha sido feminino. Os homens a assustam, mas as mulheres não, Sam compreendeu. Conseguia entender por quê. Em Monte Chifre ele também tinha preferido a companhia das garotas. As irmãs eram boas para ele, e embora as outras garotas zombassem dele, por vezes era mais fácil ignorar palavras cruéis do que os socos e as bofetadas que recebia dos outros garotos do castelo. Mesmo agora, no Vento de Canela, Sam sentia-se mais confortável com Kojja Mo do que com seu pai, embora isso pudesse ser porque ela falava o Idioma Comum, e ele não.
- Também gosto de você, Sam - Goiva murmurou. - E gosto dessa bebida. Tem sabor de fogo.
Sim, Sam pensou, uma bebida para dragões. Tinham as taças vazias, por isso se dirigiu ao barril e voltou a enchê-las. Viu que o sol se encontrava baixo a oeste, inchado até ficar com o triplo do tamanho habitual. Sua luz avermelhada fazia que o rosto de Goiva parecesse corado e rubro. Beberam uma taça a Kojja Mo, outra ao filho de Dalla e uma terceira ao bebê de Goiva, que se encontrava na Muralha. E, depois disso, não podiam deixar de beber duas taças por Aemon, da Casa Targaryen,
- Que o Pai o julgue com justiça - Sam pediu, fungando. O sol já quase desaparecera quando acabaram com o brinde a Meistre Aemon. Só uma longa e fina linha vermelha ainda brilhava no horizonte ocidental, como uma fenda no céu. Goiva disse que a bebida fazia o navio rodopiar, por isso Sam a ajudou a descer a escada que levava aos aposentos das mulheres, à proa do navio.
Uma lanterna estava pendurada junto à porta da cabine, e nela ele bateu a cabeça ao entrar.
- Ai - disse, e Goiva perguntou:
- Machucou? Deixe-me ver - inclinou-se para ele...
... e o beijou na boca.
Sam deu por si respondendo ao beijo. Proferi o juramento, pensou, mas as mãos puxavam os panos negros, e os cordões dos calções. Interrompeu o beijo durante tempo suficiente para dizer:
- Não podemos
Mas Goiva respondeu:
- Podemos - e voltou a cobrir-lhe a boca com a sua. O Vento de Canela girava à volta deles, e Sam sentia o sabor do rum na língua de Goiva, e de repente os seios dela ficaram nus e ele os tocava. Proferi o juramento, voltou Sam a pensar, mas um dos mamilos de Goiva descobriu o caminho até seus lábios. Era rosado e estava duro, e quando o chupou, o leite dela encheu-lhe a boca, misturando-se com o sabor do rum, e ele nunca saboreara nada tão saudável, doce e bom. Se eu fizer isso, não sou melhor do que D areon, Sam pensou, mas era bom demais para parar. E de repente estava com o pau de fora, projetando-se de seus calções como um gordo mastro cor-de-rosa. Tinha um aspecto tão idiota ali em pé que ele poderia ter dado risada, mas Goiva o empurrou para a sua rede, ergueu as saias em volta das coxas e abaixou-se sobre ele com um pequeno som lamurioso. Aquilo era ainda melhor do que os mamilos. Ela é tão úmida, ele pensou, arquejando. Não sabia que uma mulher podia ficar tão úmida lá em baixo.
- Agora sou sua mulher - ela sussurrou, deslizando por ele, para cima e para baixo. E Sam gemeu e pensou: não, não pode ser, proferi o juramento, mas a única coisa que proferiu foi:
- Sim.
Quando terminaram, Goiva adormeceu com os braços em volta de Sam e o rosto pousado em seu peito. Sam também precisava dormir, mas estava embriagado de rum, leite materno e Goiva. Sabia que devia voltar para sua rede na cabine dos homens, mas estava gostando tanto de sentir a garota enrolada contra si que não conseguiu se mover.
Outros entraram, homens e mulheres, e Sam os ouviu beijando-se, rindo e copulando uns com os outros. Ilhéus do verão. É assim que fazem luto. Respondem à morte com a vida. Sam lera isso em algum lugar, havia muito tempo. Perguntou a si mesmo se Goiva saberia, se Kojja Mo lhe teria dito o que fazer.
Inspirou a fragrância de seus cabelos e prendeu os olhos na lanterna que balançava sobre sua cabeça. Nem mesmo a própria Velha me tiraria disto em segurança. A melhor coisa a fazer seria sair dali escondido e se atirar ao mar. Se me afogasse, ninguém nunca precisaria saber que me envergonhei e quebrei o juramento, e Goiva pode arranjar um homem melhor para si, um que não seja um grande covarde gordo.
Acordou na manhã seguinte em sua rede na cabine dos homens, com Xhondo berrando sobre o vento.
- Há vento - o imediato não parava de gritar. - Acorde e trabalhe, Sam Preto. Há vento - o que faltava a Xhondo em vocabulário, ele compensava com volume. Sam rolou de sua rede e pôs-se em pé, arrependendo-se de imediato. Tinha a cabeça a ponto de se partir, uma das bolhas na palma da mão abrira-se durante a noite, e sentia-se prestes a vomitar.
Mas Xhondo não tinha misericórdia, de modo que tudo que Sam pôde fazer foi lutar para voltar a vestir seus panos negros. Encontrou-os nas tábuas por baixo de sua cama de rede, todos enrolados numa pilha úmida. Cheirou-os, para ver se estariam muito sujos, e inalou o cheiro do sal, do mar e do piche, de lona úmida e de bolor, de fruta, de peixe e de rum pançapreta, de estranhas especiarias e madeiras exóticas, e um entontecedor aroma de seu próprio suor. Mas o cheiro de Goiva também se encontrava neles, o cheiro limpo de seus cabelos e o cheiro doce de seu leite, e aquilo o deixou contente por vesti-los. Contudo, teria dado tudo por meias quentes e secas. Uma espécie qualquer de fungo começara a crescer entre os dedos dos seus pés.
A arca de livros nem chegara perto de pagar a passagem para quatro desde Bravos até Vilavelha. Mas o Vento de Canela precisava de braços, e Quhuru Mo concordara em levá-los, desde que trabalhassem durante a viagem. Quando Sam protestara que Meistre Aemon estava fraco demais, que o garoto era um bebê de peito e que Goiva tinha terror do mar, Xhondo limitara-se a rir:
- Sam Preto é grande homem gordo, Sam Preto trabalha por quatro.
Na verdade, Sam era tão desajeitado que duvidava estar fazendo sequer o trabalho de um bom homem, mas tentava. Lavava conveses com escova e deixava-os lisos com pedras, puxava as correntes da âncora, enrolava cordas, caçava ratos, cosia velas rasgadas, remendava rombos com piche fervendo, preparava peixe e cortava frutas para o cozinheiro. Goiva também tentava. Era melhor manejando o cordame do que Sam, embora de tempos em tempos a visão de tanta água ainda a fizesse fechar os olhos.
Goiva, Sam pensou, o que vou eu fazer com ela?
Foi um longo dia calorento, tornado ainda mais longo pelo latejar em sua cabeça. Sam ocupou-se com as cordas, as velas e as outras obrigações que Xhondo lhe atribuíra, e tentou evitar que os olhos se desviassem para o barril de rum que continha o corpo do velho Meistre Aemon... ou para Goiva. Não podia encarar a garota selvagem naquele momento, não podia encará-la depois do que tinham feito na noite anterior. Quando ela subia ao convés, ele descia ao porão. Quando ela vinha para a proa, ele ia para a popa. Quando ela lhe sorria, ele virava-lhe as costas, sentindo-se desprezível. Devia ter me atirado ao mar enquanto ela ainda dormia, pensou. Sempre fui um covarde, mas nunca fui um traidor, até agora.
Se Meistre Aemon não tivesse morrido, Sam poderia ter lhe perguntado o que fazer. Se Jon estivesse a bordo, ou até Pyp e Grenn, podia ter recorrido a eles. Em vez deles, tinha Xhondo. Xhondo não compreenderia o que eu lhe diria. Se compreendesse, apenas me diria para voltar a foder a garota. "Foder” tinha sido a primeira palavra no Idioma Comum que Xhondo aprendera, e gostava muito dela.
Tinha a sorte de o Vento de Canela ser tão grande. A bordo do Melro, Goiva o teria encurralado em dois tempos. As grandes embarcações das Ilhas do Verão eram conhecidas como "navios cisne” nos Sete Reinos, por causa das suas encapeladas velas brancas e suas figuras de proa, a maior parte das quais representava aves. Grandes como eram, cavalgavam as ondas com uma graça que era só sua. Com um bom vento fresco de popa, Vento de Canela podia ultrapassar qualquer galé, embora ficasse impotente numa calmaria. E oferecia muitos lugares onde um covarde podia se esconder.
Perto do fim de seu turno, Sam finalmente foi encurralado. Descia uma escada quando Xhondo o agarrou pelo colarinho.
- Sam Preto vem com Xhondo - disse, arrastando-o pelo convés e largando-o aos pés de Kojja Mo.
Muito para o norte, via-se uma neblina baixa no horizonte. Kojja apontou para lá.
- Ali fica a costa de Dorne. Areia, pedras e escorpiões, e nenhum bom ancoradouro ao longo de centenas de léguas. Pode nadar para lá se quiser, e ir a pé até Vilavelha. Vai ter que atravessar as profundezas do deserto, escalar algumas montanhas e atravessar o Torentine a nado. Ou então pode ir ter com Goiva.
- Não compreende. Na noite passada, nós...
- ... honraram seus mortos e os deuses que fizeram a ambos. Xhondo fez o mesmo. Eu estava com a criança, caso contrário teria estado com ele. Vocês de Westeros transformam o amor em vergonha. Não há vergonha em amar. Se seus septões dizem que há, seus sete deuses devem ser demônios. Nas ilhas, sabemos melhor das coisas. Nossos deuses deram-nos pernas para correr, narizes para cheirar, mãos para tocar e sentir. Que deus louco e cruel daria a um homem olhos e depois lhe diria que deve mantê-los fechados para sempre e nunca olhar toda a beleza do mundo? Só um deus monstruoso, um demônio das trevas - Kojja pôs a mão entre as pernas de Sam. - Os deuses também te deram isto por uma razão, para... Qual é a palavra usada em Westeros?
- Foder - de pronto Xhondo sugeriu.
- Sim, para foder. Para dar prazer e fazer filhos. Não há vergonha nisso.
Sam afastou-se dela.
- Eu fiz um juramento. Não tomarei esposa e não gerarei filhos. Proferi as palavras.
- Ela conhece as palavras que proferiu. É uma criança em algumas coisas, mas não é cega. Sabe por que usa o negro, por que vai para Vilavelha. Sabe que não pode ficar com você. Quer você durante algum tempo, nada mais. Perdeu o pai e o marido, a mãe e as irmãs, e a casa, o seu mundo. Tudo que tem é você e o bebê. De modo que, ou vai ter com ela, ou vai nadar.
Sam olhou desesperado para a neblina que assinalava a costa distante. Sabia que nunca conseguiria nadar até tão longe.
E foi ter com Goiva.
- O que fizemos... se eu pudesse tomar uma esposa, preferia ter você do que qualquer princesa ou donzela bem-nascida, mas não posso. Continuo a ser um corvo. Proferi o juramento, Goiva. Fui com Jon para a floresta e disse as palavras diante de uma árvore-coração.
- As árvores nos vigiam - Goiva sussurrou, limpando as lágrimas do rosto de Sam. - Na floresta, elas veem tudo... mas aqui não há árvores. Só há água, Sam. Só água.  

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