Vento de
Canela era um navio cisne originário da Vila das Árvores Altas, nas
Ilhas do Verão, onde os homens eram negros, as mulheres sensuais, e
os deuses estranhos. Não havia um septão a bordo que os liderasse
nas orações de passagem para o outro mundo, e por isso a tarefa
coube a Samwell Tarly, em algum lugar ao largo da costa meridional e
ressequida pelo sol de Dorne.
Sam
vestiu seus panos negros para proferir as palavras, embora a tarde
estivesse quente e úmida, quase sem uma aragem.
- Ele era
um bom homem - começou... Mas assim que articulou as palavras soube
que estavam erradas. - Não. Ele era um grande homem. Um meistre da
Cidadela, acorrentado e juramentado, e Irmão Juramentado da Patrulha
da Noite, sempre fiel. Quando nasceu, deram-lhe o nome de um herói
que morrera novo demais, mas, embora tenha vivido muito, muito tempo,
sua vida não foi menos heróica. Não há homem mais sábio, mais
gentil, mais bondoso. Na Muralha, uma dúzia de Senhores Comandantes
chegou e partiu durante seus anos de serviço, mas ele sempre esteve
lá para lhes dar conselhos. Também aconselhou reis. Ele mesmo podia
ter sido rei, mas quando lhe ofereceram a coroa disse-lhes que a
deviam dar ao irmão mais novo. Quantos homens o fariam? - Sam sentiu
as lágrimas lhe subirem aos olhos e soube que não conseguiria
prosseguir durante muito tempo. - Ele era do sangue do dragão, mas
agora seu fogo se apagou. Ele era Aemon Targaryen. E agora sua
vigília terminou.
- E agora
sua vigília terminou - murmurou Goiva quando ele se calou, embalando
o bebê nos braços. Kojja Mo serviu-lhe de eco no Idioma Comum de
Westeros, e depois repetiu as palavras na língua do verão para
Xhondo, o pai e o resto da tripulação ali reunida. Sam deixou
pender a cabeça e começou a chorar, com soluços tão sonoros e
cheios de dor que faziam seu corpo todo tremer. Goiva colocou-se ao
seu lado e o deixou chorar em seu ombro. Havia lágrimas em seus
olhos também.
O ar
estava úmido, e quente, e calmo de morte, enquanto Vento de Canela
encontrava-se à deriva num mar de um azul profundo, bem longe de
vista da terra.
- Sam
Preto disse boas palavras - Xhondo falou. - Agora bebemos à sua vida
- gritou qualquer coisa na língua do verão, e um casco de rum
temperado foi rolado para o convés e aberto, para que aqueles que
estavam de serviço pudessem emborcar uma taça em memória do velho
dragão cego. A tripulação só o conhecera por pouco tempo, mas os
ilhéus de verão reverenciavam os idosos e celebravam seus mortos.
Sam nunca
tinha bebido rum. A bebida era estranha e subia à cabeça; a
princípio doce, mas com um amargor de fogo que lhe queimou a língua.
Estava cansado, muito cansado. Doía-lhe cada músculo do corpo, e
havia outras dores em lugares onde Sam nem sabia que existiam
músculos. Tinha os joelhos rígidos, as mãos cobertas de bolhas
recém-surgidas e pedaços de pele pegajosos, em carne viva, onde as
bolhas antigas tinham rebentado. Mas, assim mesmo, o rum e a tristeza
pareceram afastar as dores para longe.
- Se
tivéssemos conseguido levá-lo para Vilavelha, os arquimeistres
podiam tê-lo salvo - disse a Goiva enquanto bebiam rum no alto
castelo de proa do Vento de Canela. - Os curandeiros da Cidadela são
os melhores dos Sete Reinos. Durante algum tempo pensei...
esperei....
Em
Bravos, a recuperação de Aemon parecera possível. A conversa de
Xhondo sobre dragões quase pareceu fazer que o velho voltaria a ser
quem fora. Naquela noite tinha comido até o fim aquilo que Sam lhe
pusera na frente.
“Nunca
ninguém procurou uma garota” dissera. “Fora um príncipe a ser
prometido, não uma princesa. Rhaegar, pensava eu... a fumaça era do
incêndio que devorou Solarestival no dia de seu nascimento, o sal
vinha das lágrimas derramadas por aqueles que morreram. Ele
partilhou minha crença quando era novo, mas mais tarde persuadiu-se
de que seria o filho a cumprir a profecia, pois um cometa foi visto
no céu de Porto Real na noite em que Aegon foi concebido, e Rhaegar
tinha certeza de que a estrela sangrando era um cometa. Que tolos
fomos por nos julgarmos tão sábios! O erro teve origem na tradução.
Os dragões não são nem machos nem fêmeas, Barth viu aí a
verdade, mas ora uma coisa, ora outra, tão mutáveis como chamas. A
língua nos induziu em erro durante mil anos. A escolhida é
Daenerys, nascida entre sal e fumaça. Os dragões assim nos provam.”
Tinha bastado falar dela para parecer fortalecê-lo,“Tenho de ir
ter com ela. Tenho de ir. Gostaria de ser ao menos dez anos mais
novo.”
O velho
tornou-se tão determinado que até subiu sozinho a prancha de
embarque do Vento de Canela, depois de Sam ter negociado o transporte
do grupo. Já dera a Xhondo a espada e a bainha, para compensar o
grande imediato pelo manto de penas que estragara ao salvar Sam de
morrer afogado. A única coisa de valor que ainda lhe restava eram os
livros que tinham trazido das câmaras de Castelo Negro. Sam
separara-se deles com um humor sombrio.
“Destinavam-se
à Cidadela” disse, quando Xhondo lhe perguntou o que se passava.
Quando o imediato traduziu aquelas palavras, o capitão deu risada.
“Quhuru
Mo diz que os homens cinzentos ainda terão esses livros”
dissera-lhe Xhondo, “só que os comprarão de Quhuru Mo. Os
meistres dão boa prata por livros que não conseguem encontrar, e às
vezes ouro vermelho e amarelo.”
O capitão
também quis a corrente de Aemon, mas isto Sam recusara. Ceder a
corrente era uma grande vergonha para qualquer meistre, explicou-lhe.
Xhondo teve de voltar três vezes a essa parte até que Quhuru Mo a
aceitasse. Quando o acordo foi feito, Sam estava reduzido às botas,
aos panos pretos, à roupa de baixo e ao berrante quebrado que Jon
Snow encontrara no Punho dos Primeiros Homens. Não tive alternativa,
disse a si mesmo. Não podíamos ficar em Bravos e, fora roubar ou
mendigar, não havia outra maneira de pagar pela passagem. Teria
considerado barato três vezes aquele preço se tivessem conseguido
levar Meistre Aemon a salvo até Vilavelha.
Mas a
viagem para o sul tinha sido tempestuosa, e cada pé de vento cobrava
seu preço nas forças e no ânimo do velho. Em Pentos, pedira para
ser trazido para o convés, para que Sam pudesse pintar-lhe uma
imagem da cidade com palavras, mas aquela tinha sido a última vez
que saíra da cama do capitão. Pouco mais tarde, seu espírito
recomeçara a vaguear. Quando Vento de Canela passou pela Torre que
Sangra e entrou no porto de Tyrosh, Aemon já não falava em tentar
encontrar um navio que o levasse para leste. Em vez disso, sua
conversa virara-se para Vilavelha e os arquimeistres da Cidadela.
“Tem de
lhes contar, Sam” dissera. “Aos arquimeistres. Tem de fazer que
compreendam. Os homens que estavam na Cidadela nos meus tempos estão
mortos há cinquenta anos. Esses outros não chegaram a me conhecer.
Minhas cartas... em Vilavelha devem ter parecido os delírios de um
velho desmiolado. Tem de convencê-los onde não consegui.
Conte-lhes, Sam... conte-lhes como são as coisas na Muralha... as
criaturas e os caminhantes brancos, o frio arrepiante...”
“Contarei”
Sam tinha prometido. “Somarei minha voz à sua, meistre. Ambos
diremos a eles, os dois, juntos.”
“Não”
o velho lhe respondeu. “Terá de ser você. Conte-lhes. A
profecia... O sonho do meu irmão... A Senhora Melisandre leu mal os
sinais. Stannis... Stannis tem em si um pouco de sangue de dragão, é
verdade. Os irmãos também tinham. Rhaelle, a filhinha do Ovo, foi
através dela que o arranjaram... A mãe do pai deles... Costumava
chamar-me Tio Meistre quando era pequena. Lembrei-me disso, por isso
me permiti ter esperança... talvez quisesse... Todos nos enganamos a
nós mesmos quando queremos acreditar. Acima de todos Melisandre,
creio eu. A espada é a errada, ela precisa saber disso... Luz sem
calor... Um brilho vazio... A espada é a errada, e a falsa luz só
pode nos levar para uma escuridão mais profunda, Sam. Nossa
esperança é Daenerys. Diga-lhes isso, na Cidadela. Obrigue-os a
escutá-lo. Têm de lhe mandar um meistre. Daenerys deve ser
aconselhada, instruída, protegida. Deixei-me ficar todos esses anos
à espera, observando, e agora que o dia amanheceu sou velho demais.
Estou morrendo, Sam.” Lágrimas brotaram de seus alvos olhos cegos
quando assim admitiu. “A morte não devia provocar medo a um homem
tão velho como eu, mas provoca. Não é uma tolice? E sempre escuro
onde estou, por que deveria temer a escuridão? Mas não posso evitar
me interrogar sobre o que se seguirá, quando o último calor
abandonar meu corpo. Irei banquetear-me para sempre no salão dourado
do Pai, como dizem os septões? Voltarei a conversar com o Ovo,
encontrarei Dareon inteiro e feliz, ouvirei minhas irmãs cantar para
seus filhos? E se forem os senhores dos cavalos quem têm razão?
Cavalgarei para sempre pelo céu noturno num garanhão feito de
chamas? Ou deverei regressar a este vale de sofrimento? Quem saberá
dizê-lo, realmente? Quem esteve além da muralha da morte e viu? Só
as criaturas, e nós sabemos como elas são. Nós sabemos.”
Havia
muito pouco que Sam pudesse responder àquilo, mas oferecera ao velho
o pouco conforto que conseguira dar. E Goiva entrara mais tarde e
cantara-lhe uma canção, uma cantiga disparatada que aprendera com
algumas das outras mulheres de Craster. A música fizera o velho
sorrir e ajudara-o a adormecer.
Esse foi
um de seus últimos dias bons. Depois disso, o velho passou mais
tempo dormindo do que acordado, enrolado sob uma pilha de peles na
cabine do capitão. Por vezes murmurava no sono. Quando acordava,
chamava por Sam, insistindo que tinha de lhe dizer uma coisa, mas o
mais frequente era que já tivesse se esquecido do que queria falar
quando Sam chegava. Mesmo quando se lembrava, seu discurso era pura
confusão. Falava de sonhos sem nunca mencionar o sonhador, de uma
vela de vidro que não podia ser acesa e de ovos que não eclodiam.
Dizia que a esfinge era a adivinha, não o adivinho, qualquer que
fosse o significado que isso tivesse. Pedira a Sam que lhe lesse
passagens de um livro escrito pelo Septão Barth, cujas obras tinham
sido queimadas durante o reinado de Baelor, o Abençoado. Uma vez
acordara chorando.
"O
dragão tem de ter três cabeças” gemera, “mas eu sou velho e
fraco demais para ser uma delas. Devia estar com ela, mostrando-lhe o
caminho, mas o corpo traiu-me”.
Enquanto
Vento de Canela abria caminho entre os Degraus, era mais frequente
Meistre Aemon esquecer o nome de Sam do que se recordar dele. Em
certos dias, tomava-o por um de seus falecidos irmãos.
- Ele
estava fraco demais para uma viagem tão longa - Sam disse a Goiva no
castelo de proa, após mais um trago de rum. - Jon devia ter sabido.
Aemon tinha cento e dois anos, nunca devia ter sido enviado para o
mar. Se tivéssemos permanecido em Castelo Negro, ele poderia ter
vivido mais dez anos.
- Ou
então ela talvez o queimasse. A mulher vermelha - até ali, a mil
léguas da Muralha, Goiva sentia-se relutante em dizer o nome da
Senhora Melisandre em voz alta. - Ela queria sangue de rei para seus
fogos. Val sabia que sim. Lorde Snow também. Foi por isso que me
obrigaram a levar o bebê de Dalla e deixar o meu no lugar dele.
Meistre Aemon adormeceu e não acordou, mas, se tivesse ficado, ela o
teria queimado.
Ele vai
arder mesmo assim, Sam pensou, infeliz, só que agora serei eu a
queimá-lo. Os Targaryen sempre entregavam seus caídos às chamas.
Quhuru Mo não autorizara uma pira funerária a bordo do Vento de
Canela, por isso o cadáver de Aemon foi enfiado em um barril de rum
pançapreta a fim de ficar preservado até que o navio chegasse a
Vilavelha.
- Na
noite antes de morrer, ele perguntou se podia pegar o bebê - Goiva
continuou. - Tive medo de que ele o deixasse cair, mas não deixou.
Embalou-o e murmurou uma canção para ele, e o filho de Dalla
estendeu a mãozinha e tocou-lhe o rosto. Puxou-lhe o lábio de uma
tal maneira que pensei que podia machucá-lo, mas só fez o velho dar
risada - ela afagou a mão de Sam. - Podíamos chamar o pequeno de
Meistre, se quiser. Quando tiver idade, não agora. Podíamos.
- Meistre
não é um nome. Mas poderia chamá-lo Aemon.
Goiva
refletiu sobre aquilo.
- Dalla o
deu à luz durante a batalha, enquanto as espadas cantavam à sua
volta. Deve ser este o seu nome. Aemon Nascido em Batalha. Aemon
Canção d'Aço.
Um nome
que até o senhor meu pai poderia gostar. Um nome de guerreiro. O
garoto era filho de Mance Rayder e neto de Craster, afinal de contas.
Não tinha nada do sangue covarde de Sam.
- Sim.
Dê-lhe esse nome.
- Quando
ele fizer dois anos - ela prometeu, - antes não.
- Onde
está o garoto? - de repente Sam perguntou. Por causa do rum e do
sofrimento, demorara todo aquele tempo para perceber que Goiva não
tinha o bebê consigo.
- Está
com Kojja. Pedi a ela para tomar conta dele durante algum tempo.
- Oh -
Kojja Mo era a filha do capitão, mais alta do que Sam e esguia como
uma lança, com uma pele tão negra e lisa como azeviche polido.
Também capitaneava os arqueiros vermelhos do navio e retesava um
arco de amagodouro com dupla curvatura e capacidade para disparar uma
flecha a quatrocentos metros. Quando os piratas os tinham atacado nos
Degraus, as flechas de Kojja mataram uma dúzia, enquanto as de Sam
caíram na água. As únicas coisas de que Kojja gostava mais do que
do seu arco era de embalar o filho de Dalla sobre os joelhos e
cantar-lhe na língua do verão. O príncipe selvagem transformara-se
no queridinho de todas as mulheres da tripulação, e Goiva parecia
confiá-lo a elas como nunca o confiara a nenhum homem.
- Isso
foi gentil da parte de Kojja - disse Sam.
- A
princípio, tive medo dela - Goiva confessou. - É tão escura, e tem
uns dentes tão grandes e brancos que tive medo de que fosse cria de
animal, ou um monstro, mas não é. É boa. Gosto dela.
- Eu sei
que gosta - ao longo da maior parte de sua vida, o único homem que
Goiva conhecera fora o aterrorizador Craster. O resto do seu mundo
tinha sido feminino. Os homens a assustam, mas as mulheres não, Sam
compreendeu. Conseguia entender por quê. Em Monte Chifre ele também
tinha preferido a companhia das garotas. As irmãs eram boas para
ele, e embora as outras garotas zombassem dele, por vezes era mais
fácil ignorar palavras cruéis do que os socos e as bofetadas que
recebia dos outros garotos do castelo. Mesmo agora, no Vento de
Canela, Sam sentia-se mais confortável com Kojja Mo do que com seu
pai, embora isso pudesse ser porque ela falava o Idioma Comum, e ele
não.
- Também
gosto de você, Sam - Goiva murmurou. - E gosto dessa bebida. Tem
sabor de fogo.
Sim, Sam
pensou, uma bebida para dragões. Tinham as taças vazias, por isso
se dirigiu ao barril e voltou a enchê-las. Viu que o sol se
encontrava baixo a oeste, inchado até ficar com o triplo do tamanho
habitual. Sua luz avermelhada fazia que o rosto de Goiva parecesse
corado e rubro. Beberam uma taça a Kojja Mo, outra ao filho de Dalla
e uma terceira ao bebê de Goiva, que se encontrava na Muralha. E,
depois disso, não podiam deixar de beber duas taças por Aemon, da
Casa Targaryen,
- Que o
Pai o julgue com justiça - Sam pediu, fungando. O sol já quase
desaparecera quando acabaram com o brinde a Meistre Aemon. Só uma
longa e fina linha vermelha ainda brilhava no horizonte ocidental,
como uma fenda no céu. Goiva disse que a bebida fazia o navio
rodopiar, por isso Sam a ajudou a descer a escada que levava aos
aposentos das mulheres, à proa do navio.
Uma
lanterna estava pendurada junto à porta da cabine, e nela ele bateu
a cabeça ao entrar.
- Ai -
disse, e Goiva perguntou:
-
Machucou? Deixe-me ver - inclinou-se para ele...
... e o
beijou na boca.
Sam deu
por si respondendo ao beijo. Proferi o juramento, pensou, mas as mãos
puxavam os panos negros, e os cordões dos calções. Interrompeu o
beijo durante tempo suficiente para dizer:
- Não
podemos
Mas Goiva
respondeu:
- Podemos
- e voltou a cobrir-lhe a boca com a sua. O Vento de Canela girava à
volta deles, e Sam sentia o sabor do rum na língua de Goiva, e de
repente os seios dela ficaram nus e ele os tocava. Proferi o
juramento, voltou Sam a pensar, mas um dos mamilos de Goiva descobriu
o caminho até seus lábios. Era rosado e estava duro, e quando o
chupou, o leite dela encheu-lhe a boca, misturando-se com o sabor do
rum, e ele nunca saboreara nada tão saudável, doce e bom. Se eu
fizer isso, não sou melhor do que D areon, Sam pensou, mas era bom
demais para parar. E de repente estava com o pau de fora,
projetando-se de seus calções como um gordo mastro cor-de-rosa.
Tinha um aspecto tão idiota ali em pé que ele poderia ter dado
risada, mas Goiva o empurrou para a sua rede, ergueu as saias em
volta das coxas e abaixou-se sobre ele com um pequeno som lamurioso.
Aquilo era ainda melhor do que os mamilos. Ela é tão úmida, ele
pensou, arquejando. Não sabia que uma mulher podia ficar tão úmida
lá em baixo.
- Agora
sou sua mulher - ela sussurrou, deslizando por ele, para cima e para
baixo. E Sam gemeu e pensou: não, não pode ser, proferi o
juramento, mas a única coisa que proferiu foi:
- Sim.
Quando
terminaram, Goiva adormeceu com os braços em volta de Sam e o rosto
pousado em seu peito. Sam também precisava dormir, mas estava
embriagado de rum, leite materno e Goiva. Sabia que devia voltar para
sua rede na cabine dos homens, mas estava gostando tanto de sentir a
garota enrolada contra si que não conseguiu se mover.
Outros
entraram, homens e mulheres, e Sam os ouviu beijando-se, rindo e
copulando uns com os outros. Ilhéus do verão. É assim que fazem
luto. Respondem à morte com a vida. Sam lera isso em algum lugar,
havia muito tempo. Perguntou a si mesmo se Goiva saberia, se Kojja Mo
lhe teria dito o que fazer.
Inspirou
a fragrância de seus cabelos e prendeu os olhos na lanterna que
balançava sobre sua cabeça. Nem mesmo a própria Velha me tiraria
disto em segurança. A melhor coisa a fazer seria sair dali escondido
e se atirar ao mar. Se me afogasse, ninguém nunca precisaria saber
que me envergonhei e quebrei o juramento, e Goiva pode arranjar um
homem melhor para si, um que não seja um grande covarde gordo.
Acordou
na manhã seguinte em sua rede na cabine dos homens, com Xhondo
berrando sobre o vento.
- Há
vento - o imediato não parava de gritar. - Acorde e trabalhe, Sam
Preto. Há vento - o que faltava a Xhondo em vocabulário, ele
compensava com volume. Sam rolou de sua rede e pôs-se em pé,
arrependendo-se de imediato. Tinha a cabeça a ponto de se partir,
uma das bolhas na palma da mão abrira-se durante a noite, e
sentia-se prestes a vomitar.
Mas
Xhondo não tinha misericórdia, de modo que tudo que Sam pôde fazer
foi lutar para voltar a vestir seus panos negros. Encontrou-os nas
tábuas por baixo de sua cama de rede, todos enrolados numa pilha
úmida. Cheirou-os, para ver se estariam muito sujos, e inalou o
cheiro do sal, do mar e do piche, de lona úmida e de bolor, de
fruta, de peixe e de rum pançapreta, de estranhas especiarias e
madeiras exóticas, e um entontecedor aroma de seu próprio suor. Mas
o cheiro de Goiva também se encontrava neles, o cheiro limpo de seus
cabelos e o cheiro doce de seu leite, e aquilo o deixou contente por
vesti-los. Contudo, teria dado tudo por meias quentes e secas. Uma
espécie qualquer de fungo começara a crescer entre os dedos dos
seus pés.
A arca de
livros nem chegara perto de pagar a passagem para quatro desde Bravos
até Vilavelha. Mas o Vento de Canela precisava de braços, e Quhuru
Mo concordara em levá-los, desde que trabalhassem durante a viagem.
Quando Sam protestara que Meistre Aemon estava fraco demais, que o
garoto era um bebê de peito e que Goiva tinha terror do mar, Xhondo
limitara-se a rir:
- Sam
Preto é grande homem gordo, Sam Preto trabalha por quatro.
Na
verdade, Sam era tão desajeitado que duvidava estar fazendo sequer o
trabalho de um bom homem, mas tentava. Lavava conveses com escova e
deixava-os lisos com pedras, puxava as correntes da âncora, enrolava
cordas, caçava ratos, cosia velas rasgadas, remendava rombos com
piche fervendo, preparava peixe e cortava frutas para o cozinheiro.
Goiva também tentava. Era melhor manejando o cordame do que Sam,
embora de tempos em tempos a visão de tanta água ainda a fizesse
fechar os olhos.
Goiva,
Sam pensou, o que vou eu fazer com ela?
Foi um
longo dia calorento, tornado ainda mais longo pelo latejar em sua
cabeça. Sam ocupou-se com as cordas, as velas e as outras obrigações
que Xhondo lhe atribuíra, e tentou evitar que os olhos se desviassem
para o barril de rum que continha o corpo do velho Meistre Aemon...
ou para Goiva. Não podia encarar a garota selvagem naquele momento,
não podia encará-la depois do que tinham feito na noite anterior.
Quando ela subia ao convés, ele descia ao porão. Quando ela vinha
para a proa, ele ia para a popa. Quando ela lhe sorria, ele
virava-lhe as costas, sentindo-se desprezível. Devia ter me atirado
ao mar enquanto ela ainda dormia, pensou. Sempre fui um covarde, mas
nunca fui um traidor, até agora.
Se
Meistre Aemon não tivesse morrido, Sam poderia ter lhe perguntado o
que fazer. Se Jon estivesse a bordo, ou até Pyp e Grenn, podia ter
recorrido a eles. Em vez deles, tinha Xhondo. Xhondo não
compreenderia o que eu lhe diria. Se compreendesse, apenas me diria
para voltar a foder a garota. "Foder” tinha sido a primeira
palavra no Idioma Comum que Xhondo aprendera, e gostava muito dela.
Tinha a
sorte de o Vento de Canela ser tão grande. A bordo do Melro, Goiva o
teria encurralado em dois tempos. As grandes embarcações das Ilhas
do Verão eram conhecidas como "navios cisne” nos Sete Reinos,
por causa das suas encapeladas velas brancas e suas figuras de proa,
a maior parte das quais representava aves. Grandes como eram,
cavalgavam as ondas com uma graça que era só sua. Com um bom vento
fresco de popa, Vento de Canela podia ultrapassar qualquer galé,
embora ficasse impotente numa calmaria. E oferecia muitos lugares
onde um covarde podia se esconder.
Perto do
fim de seu turno, Sam finalmente foi encurralado. Descia uma escada
quando Xhondo o agarrou pelo colarinho.
- Sam
Preto vem com Xhondo - disse, arrastando-o pelo convés e largando-o
aos pés de Kojja Mo.
Muito
para o norte, via-se uma neblina baixa no horizonte. Kojja apontou
para lá.
- Ali
fica a costa de Dorne. Areia, pedras e escorpiões, e nenhum bom
ancoradouro ao longo de centenas de léguas. Pode nadar para lá se
quiser, e ir a pé até Vilavelha. Vai ter que atravessar as
profundezas do deserto, escalar algumas montanhas e atravessar o
Torentine a nado. Ou então pode ir ter com Goiva.
- Não
compreende. Na noite passada, nós...
- ...
honraram seus mortos e os deuses que fizeram a ambos. Xhondo fez o
mesmo. Eu estava com a criança, caso contrário teria estado com
ele. Vocês de Westeros transformam o amor em vergonha. Não há
vergonha em amar. Se seus septões dizem que há, seus sete deuses
devem ser demônios. Nas ilhas, sabemos melhor das coisas. Nossos
deuses deram-nos pernas para correr, narizes para cheirar, mãos para
tocar e sentir. Que deus louco e cruel daria a um homem olhos e
depois lhe diria que deve mantê-los fechados para sempre e nunca
olhar toda a beleza do mundo? Só um deus monstruoso, um demônio das
trevas - Kojja pôs a mão entre as pernas de Sam. - Os deuses também
te deram isto por uma razão, para... Qual é a palavra usada em
Westeros?
- Foder -
de pronto Xhondo sugeriu.
- Sim,
para foder. Para dar prazer e fazer filhos. Não há vergonha nisso.
Sam
afastou-se dela.
- Eu fiz
um juramento. Não tomarei esposa e não gerarei filhos. Proferi as
palavras.
- Ela
conhece as palavras que proferiu. É uma criança em algumas coisas,
mas não é cega. Sabe por que usa o negro, por que vai para
Vilavelha. Sabe que não pode ficar com você. Quer você durante
algum tempo, nada mais. Perdeu o pai e o marido, a mãe e as irmãs,
e a casa, o seu mundo. Tudo que tem é você e o bebê. De modo que,
ou vai ter com ela, ou vai nadar.
Sam olhou
desesperado para a neblina que assinalava a costa distante. Sabia que
nunca conseguiria nadar até tão longe.
E foi ter
com Goiva.
- O que
fizemos... se eu pudesse tomar uma esposa, preferia ter você do que
qualquer princesa ou donzela bem-nascida, mas não posso. Continuo a
ser um corvo. Proferi o juramento, Goiva. Fui com Jon para a floresta
e disse as palavras diante de uma árvore-coração.
- As
árvores nos vigiam - Goiva sussurrou, limpando as lágrimas do rosto
de Sam. - Na floresta, elas veem tudo... mas aqui não há árvores.
Só há água, Sam. Só água.
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