domingo, 22 de setembro de 2013

36 - CERSEI



O dia estava frio, cinzento e úmido. Tinha chovido a manhã inteira com intensidade, e mesmo depois de a chuva parar as nuvens se recusaram a partir. Não chegaram a ver o sol. Um tempo tão desgraçado era suficiente para desencorajar até a pequena rainha. Em vez de sair a cavalo com suas galinhas e sua comitiva de guardas e admiradores, acabou passando o dia inteiro na Arcada das Donzelas com as galinhas, ouvindo o Bardo Azul cantar.
O dia de Cersei tinha sido um pouco melhor, até o cair da noite. Quando o céu cinzento começava a se transformar em negro, disseram-lhe que o Doce Cersei entrara no porto na maré da noite, e que Aurane Waters se encontrava lá fora e solicitava uma audiência.
A rainha mandou que o troxessem imediatamente. Assim que ele entrou em seu aposento privado, soube que as notícias eram boas.
- Vossa Graça - ele disse com um largo sorriso - Pedra do Dragão lhe pertence.
- Magnífico - pegou-lhe nas mãos e o beijou na face. - Sei que Tommen também ficará contente. Isso significa que podemos libertar a frota de Lorde Redwyne e expulsar os homens de ferro dos Escudos - as notícias que chegavam da Campina tornavam-se mais terríveis a cada corvo. Aparentemente, os homens de ferro não tinham se contentado com seus novos rochedos. Assolavam o Vago com força, e tinham chegado ao ponto de atacar a Árvore e as ilhas menores que a cercavam. Os Redwyne não haviam mantido mais do que uma dúzia de navios de guerra em suas águas, e todos tinham sido subjugados, capturados ou afundados. E agora havia relatórios que diziam que esse louco que chamava a si mesmo Euron Olho de Corvo estava enviando navios para a Enseada dos Murmúrios, em direção a Vilavelha.
- Lorde Paxter embarcava provisões para a viagem para casa quando o Doce Cersei zarpou - relatou Lorde Waters. - Imagino que a essa altura sua frota principal já tenha se feito ao mar.
- Esperemos que façam uma viagem rápida e com melhor tempo do que o de hoje - a rainha puxou Waters para o banco da janela, ao seu lado. - Temos esse triunfo a agradecer a Sor Loras?
O sorriso dele desvaneceu-se.
- Alguns dirão que sim, Vossa Graça.
- Alguns? - a rainha lançou um olhar zombeteiro. - Você não?
- Nunca vi cavaleiro mais bravo - disse Waters - mas ele transformou num massacre aquilo que poderia ter sido uma vitória sem sangue. Mil homens estão mortos, ou tão perto disso que não faz diferença. A maioria homens nossos. E não são só homens comuns, Vossa Graça, mas cavaleiros e jovens senhores, os melhores e os mais bravos.
- E o próprio Sor Loras?
- Completará mil e um. Levaram-no para o castelo após a batalha, mas os ferimentos são graves. Perdeu tanto sangue que os meistres sequer o sangram.
- Oh, que tristeza. Tommen ficará com o coração partido. Ele admirava tanto nosso galante Cavaleiro das Flores.
- E o povo também - disse o seu almirante. - Teremos virgens chorando sobre o vinho por todo o reino quando Loras morrer.
A rainha sabia que ele não se enganava. Três mil pessoas comuns tinham se reunido junto do Portão da Lama para se despedir de Sor Loras no dia em que zarpara, e três em cada quatro eram mulheres. Ver aquilo só servira para encher Cersei de desprezo. Desejara gritar-lhes que eram ovelhas, dizer-lhes que tudo que alguma vez poderiam esperar de Loras Tyrell era um sorriso e uma flor. Mas, em vez disso, o proclamara o mais ousado cavaleiro dos Sete Reinos e sorrira quando Tommen o presenteara com uma espada cravejada de joias para levar para a batalha. O rei também lhe dera um abraço, o que não fazia parte dos planos de Cersei, mas agora não importava. Podia se dar ao luxo de ser generosa. Loras Tyrell estava moribundo.
- Conte-me - Cersei ordenou. - Quero saber tudo, do princípio ao fim.
A sala já escurecera quando ele terminou. A rainha acendeu algumas velas e mandou Dorcas às cozinhas para lhes trazer um pouco de pão e queijo e de carne cozida com raiz-forte. Enquanto jantavam, pediu a Aurane para voltar a lhe contar a história, a fim de se lembrar corretamente de todos os detalhes.
- Afinal de contas, não desejo que nossa preciosa Margaery ouça essas notícias de um estranho - justificou-se. - Eu mesma lhe contarei.
- Vossa Graça é bondosa - Waters disse com um sorriso. Um sorriso malévolo, pensou a rainha. Aurane não se parecia tanto com o Príncipe Rhaegar como ela julgara. Tem os mesmos cabelos, mas também os têm metade das prostitutas de Lys, se as histórias forem verdadeiras. Rhaegar era um homem. Este é um rapaz dissimulado, e nada mais. Contudo, útil à sua maneira.
Margaery estava na Arcada das Donzelas, bebericando vinho e tentando aprender com as três primas um novo jogo qualquer de Volantis. Embora fosse tarde, os guardas admitiram Cersei de imediato.
- Vossa Graça - começou - é melhor que ouça as notícias através de mim, Aurane regressou de Pedra do Dragão. Seu irmão é um herói.
- Sempre soube que era -Margaery não parecia surpresa. E por que haveria de estar? Já esperava isso desde o momento em que Loras suplicou o comando. Mas quando Cersei terminou a história, lágrimas cintilavam nas bochechas da rainha mais nova.
- Redwyne tinha mineiros trabalhando, a fim de fazer passar um túnel sob as muralhas do castelo, mas isso era lento demais para o Cavaleiro das Flores. Sem dúvida que pensava no povo do senhor seu pai sofrendo nos Escudos. Lorde Waters diz que ordenou o assalto menos de meio dia depois de tomar o comando, após o castelão de Lorde Stannis ter recusado sua oferta para decidir o cerco entre os dois, em combate singular. Loras foi o primeiro a passar pela brecha quando o aríete quebrou os portões do castelo. Cavalgou diretamente para a boca do dragão, dizem, todo de branco, brandindo a maça de armas em volta da cabeça, matando à esquerda e à direita.
MeggaTyrell já soluçava abertamente àquela altura.
- Como foi que ele morreu? - perguntou. - Quem o matou?
- Nenhum homem teve essa honra - Cersei responde. - Sor Loras foi atingido por um dardo na coxa e por outro no ombro, mas continuou a lutar galantemente, embora o sangue saísse em golfadas. Mais tarde sofreu um golpe de maça que lhe quebrou algumas costelas. Depois disso... Mas, não, desejo lhe poupar do pior.
- Diga-me - disse Margaery. - Eu ordeno.
Ordena? Cersei parou por um momento e decidiu que deixaria aquilo passar.
- Os defensores se retiraram para uma fortaleza interior, depois de a muralha exterior ser tomada. Loras também liderou o ataque ali. Tomou um banho de azeite fervente.
A Senhora Alia ficou branca como cal e fugiu da sala.
- Lorde Waters me garantiu que os meistres estão fazendo tudo que podem, mas temo que seu irmão esteja bastante queimado - Cersei tomou Margaery nos braços para confortá-la. - Ele salvou o reino - quando beijou a pequena rainha no rosto, sentiu o gosto salgado de suas lágrimas. - Jaime anotará todos os seus feitos no Livro Branco, e os cantores cantarão sobre ele durante mil anos.
Margaery soltou-se de seu abraço com tamanha violência que Cersei quase caiu.
- Estar moribundo não é estar morto - ela disse.
- Não, mas os meistres dizem...
- Estar moribundo não é estar morto!
- Só quis poupá-la...
- Eu sei o que quis. Saia.
Agora sabe como me senti na noite em que Joffrey morreu. Fez uma reverência, com o rosto numa máscara de fria cortesia.
- Querida filha. Sinto-me tão triste por você. Vou deixá-la com seu pesar.
Senhora Merryweather não apareceu naquela noite, e Cersei deu por si inquieta demais para dormir. Se Lord e Tywin pudesse me ver agora, saberia que tinha o seu herdeiro, um herdeiro merecedor do Rochedo, pensou, deitada na cama, com Jocelyn Swyft ressonando suavemente na outra almofada. Margaery logo estaria chorando as lágrimas amargas que devia ter chorado por Joffrey. Mace Tyrell talvez também chorasse, mas não lhe dera motivo para romper com ela. O que fizera, afinal, além de honrar Loras com a sua confiança? Ele pedira o comando de joelho dobrado, à vista de metade da corte.
Quando ele morrer, tenho de erguer uma estátua sua em algum lugar e dar-lhe um funeral como Porto Real nunca viu. O povo gostaria disso. Tommen também. Mace pode até me agradecer, pobre homem. E quanto à senhora sua mãe, se os deuses forem bons, essa notícia a matará.
O nascer do sol foi o mais bonito que Cersei vira em anos. Taena apareceu pouco depois e confessou ter passado a noite consolando Margaery e suas senhoras, bebendo vinho, chorando e contando histórias sobre Loras.
- Margaery continua convencida de que ele não morrerá - relatou, enquanto a rainha se vestia para uma audiência. - Planeja enviar seu meistre para cuidar dele. As primas estão rezando pela misericórdia da Mãe.
- Eu também rezarei. Amanhã, venha comigo ao Septo de Baelor, e acenderemos cem velas pelo nosso galante Cavaleiro das Flores - virou-se para a aia. - Dorcas, traga-me a coroa. A nova, por favor - era mais leve do que a antiga, de ouro tecido de um tom claro, encrustado de esmeraldas que relampejavam quando a rainha virava a cabeça.
- Vieram quatro por causa do Duende hoje de manhã - Sor Osmund anunciou quando Jocelyn o deixou entrar.
- Quatro? - a rainha estava agradavelmente surpresa. Havia um fluxo constante de informantes a caminho da Fortaleza Vermelha, afirmando saber de Tyrion, mas quatro em um só dia não era comum.
- Sim - Osmund confirmou. - Um deles lhe trouxe uma cabeça.
- Recebo-o primeiro. Traga-o ao aposento privado - que dessa vez não haja erros. Que eu me veja finalmente vingada, para que Joff possa repousar em paz. Os septões diziam que o número sete era sagrado para os deuses. Se assim fosse, essa sétima cabeça talvez lhe trouxesse o bálsamo pelo qual sua alma ansiava.
O homem revelou ser tyroshi; baixo, espadaúdo e suado, com um sorriso untuoso que a fazia lembrar-se de Varys e uma barba bifurcada pintada de verde e cor-de-rosa. Cersei não gostou dele assim que o viu, mas estava disposta a ignorar seus defeitos se realmente tivesse a cabeça de Tyrion dentro da arca que trazia. Era de cedro, com enfeites de marfim, num padrão de trepadeiras e flores, com dobradiças e presilhas de ouro branco. Uma coisa maravilhosa, mas o único interesse da rainha jazia no que poderia estar lá dentro. Pelo menos é suficientemente grande. Tyrion tinha uma cabeça grotescamente grande para alguém tão pequeno e atrofiado.
- Vossa Graça - murmurou o tyroshi, com uma profunda reverência - vejo que é tão adorável como rezam as histórias. Mesmo para lá do mar estreito ouvimos falar de sua grande beleza, e do desgosto que dilacera seu coração gentil. Não há homem que possa lhe devolver seu bravo e jovem filho, mas é minha esperança poder pelo menos oferecer-lhe algum bálsamo para a dor - pousou a mão na arca. - Trago-lhe justiça. Trago-lhe a cabeça de seu valonqar.
A velha palavra valiriana causou-lhe um arrepio, embora também lhe tivesse dado um tinido de esperança.
- O Duende já não é meu irmão, se é que alguma vez o foi - declarou. - E não direi seu nome. Outrora foi um nome orgulhoso, antes de ele desonrá-lo.
- Em Tyrosh, o chamamos Mãos-Vermelhas, devido ao sangue que escorre de seus dedos. O sangue de um rei, e o de um pai. Há quem diga que ele também matou a mãe, rasgando-lhe o ventre com selváticas garras ao nascer.
Que disparate, Cersei pensou.
- É verdade - disse. - Se a cabeça do Duende estiver nessa arca, farei de você senhor e lhe atribuirei ricas terras e fortalezas - os títulos eram mais baratos do que pó, e as terras fluviais estavam cheias de castelos arruinados, que se erguiam desolados por entre campos abandonados e aldeias incendiadas. - Minha corte me espera. Abra a caixa e deixe-me ver.
O tyroshi abriu a caixa com um floreio e deu um passo para trás, sorrindo. Lá dentro, a cabeça de um anão repousava sobre uma camada de macio veludo azul, fitando-a.
Cersei examinou-a longamente.
- Esse não é o meu irmão - tinha um sabor amargo na boca. Suponho que seria esperar demais, especialmente depois de Loras. Os deuses nunca são tão bons. - Esse homem tem olhos castanhos. Tyrion tinha um olho negro e o outro verde.
- Os olhos, é verdade... Vossa Graça, os olhos de seu irmão tinham... apodrecido, de certa forma. Tomei a liberdade de substituí-los por vidro... mas da cor errada, tal como disse.
Aquilo só a aborreceu mais.
- Sua cabeça pode ter olhos de vidro, mas eu não tenho. Há gárgulas em Pedra do Dragão mais parecidas com o Duende do que essa criatura. Este é careca, e duas vezes mais velho do que meu irmão. O que aconteceu com os dentes?
O homem se encolheu perante a fúria em sua voz.
- Ele tinha um belo conjunto de dentes de ouro, Vossa Graça, mas nós... lamento...
- Oh, ainda não. Mas vai lamentar - devia mandar estrangulá-lo. Que arqueje por ar até ficar com o rosto preto, como meu querido filho. As palavras estavam em seus lábios.
- Um engano honesto. Um anão parece-se tanto com os outros, e... Vossa Graça poderá observar, ele não tem nariz...
- Não tem nariz porque você o cortou.
- Não! - o suor na testa do homem traiu a mentira da negação.
- Sim - uma doçura venenosa insinuou-se no tom de Cersei. - Pelo menos teve esse bom-senso. O último idiota tentou me dizer que um feiticeiro ambulante tinha feito com que voltasse a crescer. Mesmo assim, parece-me que deve um nariz a esse anão. A Casa Lannister paga suas dívidas, e você também pagará. Sor Meryn, leve esta fraude a Qyburn.
Sor Meryn Trant pegou o braço do tyroshi, ainda protestando, e o puxou para fora da sala. Depois de os outros saírem, Cersei virou-se para Osmund Kettleblack.
- Sor Osmund, tire essa coisa da minha vista e mande entrar os outros três que afirmam ter informações sobre o Duende.
- Sim, Vossa Graça.
Infelizmente, os três candidatos a informantes não se mostraram mais úteis do que o tyroshi. Um disse que o Duende estava escondido num bordel de Vilavelha, dando prazer aos homens com a boca. Aquilo dava uma imagem engraçada, mas Cersei não acreditou nem por um instante. O segundo afirmava ter visto o anão num espetáculo de saltimbancos em Bravos. O terceiro insistiu que Tyrion se tornara eremita nas terras fluviais e vivia numa colina assombrada qualquer. A rainha respondeu o mesmo a todos.
- Se fizerem a bondade de levar alguns de meus bravos cavaleiros a esse anão, serão ricamente recompensados - prometeu. - Desde que seja o Duende. Caso contrário... Bem, meus cavaleiros têm pouca paciência para fraudes e para tolos que os fazem perseguir sombras. Um homem poderia perder a língua - e, de repente, os três informantes perderam a certeza e admitiram que talvez pudessem ter visto outro anão qualquer.
Cersei nunca se dera conta da existência de tantos anões.
- Estará o mundo inteiro transbordando desses monstrinhos retorcidos? - protestou, enquanto o último dos informantes era conduzido para fora. - Quantos poderá haver?
- Menos do que havia - retrucou a Senhora Merryweather. - Posso ter a honra de acompanhar Vossa Graça à audiência?
- Se conseguir suportar o tédio - Cersei respondeu. - Robert era um idiota no que dizia respeito à maioria das coisas, mas tinha razão num aspecto. Governar um reino é trabalho cansativo.
- Entristece-me ver Vossa Graça tão cheia de cuidados. Fuja, divirta-se, e deixe essas cansativas petições para a Mão do Rei. Podíamos nos vestir como criadas e passar o dia entre o povo, para ouvir o que eles têm a dizer sobre a queda de Pedra do Dragão. Eu conheço a estalagem onde o Bardo Azul toca quando não está cantando para a pequena rainha, e um certo porão onde um prestidigitador transforma chumbo em ouro, água em vinho e garotas em rapazes. Ele talvez pudesse aplicar seus feitiços em nós. Não divertiria Vossa Graça ser homem por uma noite?
Se eu fosse homem, seria Jaime, pensou a rainha. Se fosse homem, poderia governar este reino em meu próprio nome em vez de no de Tommen.
- Só se você permanecesse mulher - disse, sabendo que era isso o que Taena queria ouvir. - É uma malvada por me tentar assim, mas que tipo de rainha eu seria se pusesse meu reino nas mãos trêmulas de Harys Swyfit?
Taena fez beicinho.
- Vossa Graça é diligente demais,
- Sou - Cersei admitiu - e antes de terminar o dia, estarei arrependida de assim ser - deu o braço à Senhora Merryweather. - Venha.
Jalabhar Xho era o primeiro peticionário desse dia, como era próprio de seu estatuto como um príncipe no exílio. Por magnífico que parecesse em seu brilhante manto de penas, só tinha vindo mendigar. Cersei deixou-o fazer sua súplica habitual por homens e armas que o ajudassem a reconquistar o Vale da Flor Vermelha, e depois disse:
- Sua Graça está travando sua própria guerra, Príncipe Jalabhar. O rei não tem homens que possa dispensar para sua causa neste momento. Talvez ano que vem - Aquilo era o que Robert lhe dizia sempre. No ano seguinte lhe diria nunca, mas hoje não. Pedra do Dragão era sua.
Lorde Hallyne da Guilda dos Alquimistas apresentou-se para pedir autorização para os seus piromantes chocarem qualquer ovo de dragão que pudesse aparecer em Pedra do Dragão, agora que a ilha estava segura e de volta às mãos do rei.
- Se tivessem restado alguns ovos desses, Stannis os teria vendido para pagar por sua rebelião - disse-lhe a rainha. Absteve-se de dizer que o plano era louco. Desde que o último dragão Targaryen morrera, todas as tentativas do gênero tinham terminado em morte, desastre ou desgraça.
Um grupo de mercadores surgiu perante ela a fim de suplicar à coroa para interceder por eles junto ao Banco de Ferro de Bravos. Os bravosianos andavam exigindo o pagamento das dívidas por saldar, pelos vistos, e recusavam todos os novos empréstimos. Precisamos de nosso próprio banco, decidiu Cersei, o Banco Dourado de Lanisporto. Quando o trono de Tommen estivesse seguro, talvez pudesse fazer que isso acontecesse. No momento, tudo o que pôde fazer foi dizer aos mercadores para pagarem aos usurários bravosianos aquilo que lhes era devido.
A delegação da Fé era liderada por seu velho amigo, Septão Raynard. Seis dos Filhos do Guerreiro escoltaram-no pela cidade; juntos faziam sete, um número sagrado e favorável. O novo Alto Septão, ou Alto Pardal, como o Rapaz Lua o apelidara, fazia tudo em grupos de sete. Os cavaleiros usavam cinturões listrados com as sete cores da Fé. Cristais adornavam o punho de suas espadas e os espigões de seus elmos. Transportavam escudos em forma de estrela, num estilo que não era comum desde a Conquista, ostentando um símbolo que não era visto nos Sete Reinos havia séculos: uma espada arco-íris cintilando, brilhante, em fundo escuro. Cerca de uma centena de cavaleiros já se apresentara para juramentar suas vidas e espadas aos Filhos do Guerreiro, segundo Qyburn dizia, e apareciam mais todos os dias. Bêbados de deuses, todos eles. Quem haveria de pensar que o reino tinha tantos?
A maioria era de cavaleiros domésticos ou andantes, mas um punhado era de elevado nascimento; filhos mais novos de pequenos senhores, velhos que ansiavam pela expiação de velhos pecados. E havia Lancel. Julgara que Qyburn estava brincando quando lhe disse que o cretino de seu primo renunciara a castelo, terras e esposa e voltara à cidade para se juntar à Nobre e Poderosa Ordem dos Filhos do Guerreiro, mas ali estava ele com os outros tolos piedosos.
Cersei não gostava nada daquilo. E tampouco estava contente com a contínua truculência e ingratidão do Alto Pardal.
- Onde está o Alto Septão? - perguntou a Raynard. - Foi ele quem convoquei.
Septão Raynard adotou um tom pesaroso.
- Sua Alta Santidade mandou-me em seu lugar e me pediu para dizer a Vossa Graça que os Sete lhe ordenaram que fosse combater a maldade.
- Como? Pregando a castidade ao longo da Rua da Seda? Será que ele julga que rezar por prostitutas faz delas virgens novamente?
- Nosso corpo foi esculpido pelo Pai e pela Mãe para podermos juntar homem com mulher e gerar filhos legítimos - respondeu Raynard. - É vil e pecaminoso que as mulheres vendam as partes sagradas por dinheiro.
Aquele piedoso sentimento poderia ter sido mais convincente se a rainha não soubesse que Septão Raynard tinha amigas especiais em todos os bordéis da Rua da Seda. Não havia dúvida de que ele decidira que fazer eco aos chilreios do Alto Pardal era preferível a lavar assoalhos.
- Não se atreva a pregar comigo - disse-lhe. - Os encarregados dos bordéis têm andado se queixando, e com razão.
- Se os pecadores falam, por que os justos hão de lhes dar ouvidos?
- Esses pecadores alimentam os cofres reais - disse a rainha sem rodeios - e seu dinheiro ajuda a pagar os salários de meus homens de manto dourado e a construir galés para defender nossas costas. E também há o comércio a se levar em conta. Se Porto Real não tivesse bordéis, os navios iriam para Valdocaso ou Vila Gaivota. Sua Alta Santidade me prometeu paz nas minhas ruas. A prostituição ajuda a manter essa paz. Os homens comuns privados de prostitutas são capazes de recorrer à violação. Daqui em diante, que Sua Alta Santidade faça suas orações no septo, onde é o seu lugar.
A rainha também esperara ouvir notícias trazidas por Lorde Gyles, mas foi o Grande Meistre Pycelle quem surgiu em seu lugar, de rosto cinzento e apologético, para lhe dizer que Rosby se encontrava fraco demais para sair da cama.
- É triste dizê-lo, mas temo que Lorde Gyles tenha de se reunir em breve aos seus nobres antepassados. Que o Pai o julgue com justiça.
Se Rosby morrer, Mace Tyrell e a pequena rainha tentarão novamente forçar-me a aceitar Garth, o Grosso.
- Lorde Gyles já tem aquela tosse há anos, e ela nunca o matou - protestou. - Ele tossiu durante metade do reinado de Robert e durante todo o de Joffrey. Se agora está moribundo, só pode ser porque alguém quer vê-lo morto.
O Grande Meistre Pycelle pestanejou, incrédulo.
- Vossa Graça? Q-quem quereria ver Lorde Gyles morto?
- Seu herdeiro, talvez - ou a pequena rainha. - Alguma mulher que ele tenha desdenhado há tempos - Margaery, Mace e a Rainha dos Espinhos, por que não? Gyles está em seu caminho. - Um velho inimigo. Um novo. Você.
O velho empalideceu.
- V-vossa Graça graceja. Eu... eu purguei sua senhoria, sangrei-o, tratei dele com cataplasmas e infusões... os vapores dão-lhe algum alívio, e o sonodoce ajuda a acalmar a violência de sua tosse, mas temo que agora ele esteja cuspindo pedaços de pulmão com o sangue.
- Seja como for. Regressará para junto de Lorde Gyles e o informará de que não tem minha autorização para morrer.
- Se aprouver a Vossa Graça - Pycelle fez uma reverência rígida.
Havia mais, e mais, e mais, cada peticionário era mais aborrecido do que o anterior. E naquela noite, depois de o último finalmente ter partido, quando comia um jantar simples com o filho, disse-lhe:
- Tommen, quando fizer suas rezas antes de se deitar, diga à Mãe e ao Pai que é grato por ainda ser uma criança. Ser rei é trabalho duro. Garanto a você, não gostará. Bicam você como um bando de corvos. Todos querem um pedaço da sua carne.
- Sim, mãe - Tommen respondeu num tom triste. Cersei compreendeu que a pequena rainha lhe contara o que acontecera a Sor Loras. Sor Osmund disse que o garoto tinha chorado. Ele é novo. Quando for da idade de Joff, já não se lembrará da aparência de Loras.
- Mas eu não me importaria que eles me bicassem - prosseguiu o filho. - Devia ir com você todos os dias às audiências, para escutar. Margaery diz...
- ... muito mais do que devia - Cersei o interrompeu. - Por meia moeda, de bom grado mandaria arrancar-lhe a língua.
- Não diga isso - Tommen gritou de repente, com a pequena face redonda tornando-se vermelha. - Deixe-lhe a língua em paz. Não a toque. Eu sou o rei, e não você.
Cersei fitou-o, incrédula.
- O que foi que disse?
- O rei sou eu. Eu é que digo que línguas serão arrancadas, não você. Não deixarei que faça mal a Margaery. Não deixarei. Proíbo-a.
Cersei o agarrou pela orelha e o arrastou aos guinchos para a porta, onde Sor Boros Blount se encontrava de guarda.
- Sor Boros, Sua Graça se esqueceu do seu lugar. Tenha a bondade de escoltá-lo até o quarto e de trazer Pate. Dessa vez quero que seja o próprio Tommen a chicotear o garoto. Deverá continuar até que ele sangre de ambas as bochechas. Se Sua Graça recusar, ou disser uma palavra de protesto, chame Qyburn e diga-lhe para remover a língua de Pate, para que Sua Graça compreenda o custo da insolência.
- Às suas ordens - Sor Boros arquejou, olhando o rei de relance com constrangimento. - Vossa Graça, venha comigo, por favor.
Quando a noite caiu sobre a Fortaleza Vermelha, Jocelyn acendeu a lareira no quarto da rainha enquanto Dorcas acendia as velas junto da cama. Cersei abriu a janela para apanhar um pouco de ar e descobriu que as nuvens tinham voltado a esconder as estrelas.
- Que noite tão escura, Vossa Graça - Dorcas murmurou.
Sim, pensou, mas não tão escura como na Arcada das Donzelas, ou em Pedra do Dragão, onde Loras Tyrell jaz queimado e sangrando, ou lá em baixo, nas celas negras sob o castelo. A rainha não sabia por que motivo aquilo lhe ocorrera. Tinha decidido não dedicar a Falyse mais nenhum pensamento. Combate singular. Falyse devia ter tido o bom senso de não se casar com tamanho idiota. Segundo o que transpirara de Stokeworth, Senhora Tanda morrera de um resfriado no peito, causado pelo quadril quebrado. Lollys Desmiolada fora proclamada Senhora Stokeworth, sendo Sor Bronn seu senhor. Tanda morta e Gyles moribundo. Ainda bem que temos o Rapaz Lua, caso contrário a corte ficaria completamente privada de bobos. A rainha sorriu ao pousar a cabeça na almofada. Quando lhe beijei o rosto, saboreei o sal de suas lágrimas.
Sonhou um sonho antigo, sobre três garotas com manto marrom, uma velha encarquilhada e uma tenda que cheirava a morte.
A tenda da velha era escura, com um teto alto e bicudo. Ela não queria entrar, assim como não quisera aos dez anos, mas as outras garotas a observavam, por isso não podia recuar. No sonho eram três, tal como tinha sido em vida. A gorda Jeyne Farman deixou-se ficar para trás, como sempre fazia. Era um assombro que tivesse chegado tão longe. Melara Hetherspoon era mais corajosa, mais velha e mais bonita, à sua maneira sardenta. Envoltas em manto de tecido grosseiro, com os capuzes erguidos, as três tinham esgueirado-se para fora da cama e atravessado o terreno de torneios para ir em busca da feiticeira. Melara ouvira as criadas segredando que ela era capaz de amaldiçoar um homem ou fazê-lo se apaixonar, conjurar demônios e prever o futuro.
Em vida, as garotas tinham estado sem fôlego e entontecidas, segredando umas com as outras enquanto avançavam, com tanta excitação quanto medo. O sonho era diferente. Nele, os pavilhões encontravam-se cobertos de sombras, e os cavaleiros e criados por que passavam eram feitos de neblina. As garotas vaguearam por muito tempo antes de encontrar a tenda da velha. Quando o fizeram, todos os archotes já estavam se apagando. Cersei observou as garotas se juntarem, sussurrando umas com as outras. Voltem, tentou lhes dizer. Afastem-se. Não há nada aqui para vocês. Mas, embora movesse a boca, nenhuma palavra saiu.
A filha de Lorde Tywin foi a primeira a atravessar a aba, com Melara logo atrás. Jeyne Farman entrou por último e tentou se esconder atrás das outras duas, como sempre fazia.
O interior da tenda estava repleto de cheiros. Canela e noz-moscada. Pimenta vermelha, branca e preta. Leite de amêndoa e cebolas. Cravinho, erva-limão e o precioso açafrão, e especiarias mais estranhas, ainda mais raras. A única luz provinha de um braseiro de ferro com a forma de uma cabeça de basilisco, uma tênue luz verde que fazia as paredes da tenda parecer frias, mortas e apodrecidas. Teria também sido assim em vida? Cersei não parecia se lembrar.
No sonho, a feiticeira dormia, como um dia dormira em vida. Deixem-na em paz, quis gritar a rainha. Suas tolinhas, nunca acordem uma feiticeira adormecida. Sem língua, só podia observar enquanto a garota tirava o manto, dava um pontapé na cama da bruxa e dizia:
- Acorde, queremos saber sobre nosso futuro.
Quando Maggy, a Rã, abriu os olhos, Jeyne Farman soltou um guincho assustado e fugiu da tenda, mergulhando de cabeça na noite. Estúpida, rechonchuda, tímida, pequena Jeyne, de rosto pálido e gordo, assustada com cada sombra. No entanto, foi ela a sensata. Jeyne ainda vivia na Ilha Bela. Casara com um dos vassalos do senhor seu irmão e parira uma dúzia de filhos.
Os olhos da velha eram amarelos e estavam envoltos por uma crosta de uma coisa nojenta qualquer. Em Lanisporto dizia-se que ela era jovem e bela quando o marido a trouxera do leste com uma carga de especiarias, mas a idade e o mal tinham deixado em si suas marcas. Era baixa, atarracada e verrugosa, com bochechas esverdeadas e textura de gravilha. Já não tinha dentes, e as tetas pendiam-lhe até os joelhos. Se se ficasse perto demais dela, conseguia-se cheirar a doença, e quando falava o hálito era estranho, forte e malcheiroso.
- Fora - disse a velha às garotas, num murmúrio coaxante.
- Viemos para uma profecia - disse-lhe a jovem Cersei.
- Fora - coaxou a velha pela segunda vez.
- Ouvimos dizer que consegue ver o amanhã - disse Melara. - Só queremos saber com que homens vamos nos casar.
- Fora - coaxou Maggy, pela terceira vez.
Dê-lhe ouvidos, teria gritado a rainha se tivesse língua. Ainda têm tempo para fugir. Fujam, suas tolinhas!
A garota de cachos dourados pôs as mãos na cintura.
- Dê-nos a nossa profecia, senão vou falar com o senhor meu pai e ele manda chicoteá-la por insolência.
- Por favor - suplicou Melara. - Leia nosso futuro, e depois vamos embora.
- Algumas das que aqui estão não têm futuro - resmungou Maggy com sua terrível voz profunda. Aconchegou o roupão em volta dos ombros e fez um sinal às garotas para que se aproximassem. - Venham, se não querem ir. Tolas. Venham, sim. Tenho de saborear seu sangue.
Melara empalideceu, mas Cersei não. Uma leoa não teme a rã, por mais velha e feia que seja. Devia ter ido embora, devia ter escutado, devia ter fugido. Mas, em vez disso, pegou o punhal que Maggy lhe ofereceu e fez passar a retorcida lâmina de ferro pela ponta de seu polegar. Então fez o mesmo com Melara.
Na tenda verde e escura, o sangue parecia mais negro do que vermelho. A boca desdentada de Melara tremeu ao vê-lo.
- Aqui - sussurrou - dê-me aqui. - Quando Cersei ofereceu a mão, ela sugou o sangue com gengivas tão moles como as de um bebê recém-nascido. A rainha ainda se lembrava de como sua boca era estranha e fria.
- Pode fazer três perguntas - disse a velha, depois de terminar de beber. - Não vai gostar das minhas respostas. Pergunte, ou então vá embora.
Vá, pensou a rainha que sonhava, controle a língua e fuja. Mas a garota não tinha bom-senso suficiente para sentir medo.
- Quando é que me caso com o príncipe? - quis saber.
- Nunca. Casará com o rei.
Sob seus cachos dourados, o rosto da garota enrugou-se de perplexidade. Durante anos depois daquilo, pensou que aquelas palavras queriam dizer que não se casaria com Rhaegar até depois de o pai, Aerys, ter morrido.
- Mas vou ser rainha? - perguntou seu eu mais novo.
- Sim - a malícia cintilou nos olhos amarelos de Maggy. - Rainha será... até chegar outra, mais nova e mais bela, para derrubar você e roubar tudo aquilo que lhe for querido.
A ira relampejou no rosto da criança.
- Se ela tentar, mando meu irmão matá-la - nem mesmo então parou, sendo a criança obstinada que era. Ainda lhe era devida mais uma pergunta, mais um vislumbre da vida que a esperava. - O rei e eu teremos filhos? - perguntou.
- Oh, sim. Ele dezesseis, e você três.
Aquilo não fazia sentido para Cersei. O polegar latejava onde o cortara, e seu sangue pingava no tapete. Como é possível? Quis perguntar, mas já não tinha mais perguntas.
Porém, a velha ainda não terminara com ela.
- De ouro será sua coroa, e de ouro sua mortalha - disse. - E quando suas lágrimas a afogar, o valonqar enrolará as mãos em sua pálida garganta branca e a estrangulará até roubar sua vida.
- O que é um valonqar? Algum monstro? - a garota dourada não gostava daquela profecia. - É uma mentirosa, uma rã verrugosa e uma velha selvagem e malcheirosa, e não acredito em uma palavra que diz. Vamos embora, Melara. Não vale a pena ouvi-la.
- Eu também tenho três perguntas - insistiu a amiga. E quando Cersei lhe puxou o braço, ela se libertou e voltou outra vez para a velha. - Vou me casar com Jaime? - perguntou muito depressa.
Sua garota estúpida, pensou a rainha, ainda hoje zangada. Jaime nem sequer sabia que você existia. Nessa época, o irmão vivia apenas para as espadas, os cães e os cavalos... e para ela, sua gêmea.
- Nem Jaime, nem nenhum outro homem - Maggy respondeu. - Serão os vermes que ficarão com sua virgindade. A morte está aqui hoje, pequena. Sente o cheiro do hálito dela? Está muito perto.
- O único hálito que cheiramos é o seu - Cersei disse. Havia um jarro com uma poção espessa qualquer junto ao seu cotovelo, pousado numa mesa. Pegou o jarro e o atirou aos olhos da velha. Em vida, ela gritou numa estranha língua estrangeira qualquer e as amaldiçoou quando fugiram da sua tenda. Mas, no sonho, seu rosto se dissolveu, derretendo-se em fios de névoa cinzenta até que tudo o que restou foram dois olhos vesgos e amarelos, os olhos da morte.
O valonqar enrolará as mãos em sua garganta, ouviu a rainha, mas a voz não pertencia à velha. As mãos emergiram das névoas de seu sonho e envolveram-lhe o pescoço; mãos grossas e fortes. Por cima delas flutuava o rosto dele, olhando-a de esguelha com seus olhos desiguais. Não, a rainha tentou gritar, mas os dedos do anão enterraram-se profundamente em seu pescoço, afogando seus protestos. Esperneou e esganiçou-se, sem resultado. Não levou muito tempo para começar a fazer o mesmo som que o filho fizera, o terrível som agudo de sugar que assinalara a última inspiração de Joff nesta terra.
Acordou, arquejando, no escuro, com a manta enrolada em volta do pescoço. Cersei puxou-a com tamanha violência que a rasgou, e sentou-se na cama, com o peito arfando. Um sonho, disse a si mesma, um sonho antigo e um a colcha presa, não passou disso.
Taena de novo passava a noite com a pequena rainha, de modo que era Dorcas quem dormia ao seu lado. A rainha sacudiu rudemente a garota pelo ombro.
- Acorde e vá buscar Pycelle. Ele deve estar com Lorde Gyles, espero. Traga-o aqui imediatamente - ainda sonolenta, Dorcas saiu aos tropeções da cama e correu pelo aposento em busca de suas roupas, roçando os pés nus nas esteiras.
Séculos mais tarde, Grande Meistre Pycelle entrou arrastando os pés e parou diante dela com a cabeça baixa, pestanejando suas grossas pálpebras e lutando para não bocejar. Parecia que o peso da enorme corrente de meistre em volta do caniço que era seu pescoço o puxava para o chão. Que Cersei se lembrasse, Pycelle sempre fora velho, mas houve uma época em que também era magnífico: ricamente vestido, digno, impecavelmente cortês. Sua imensa barba branca lhe dava um ar de sabedoria. Mas Tyrion raspara sua barba, e aquilo que voltara a crescer era digno de dó, uns tufos irregulares de pelos finos e quebradiços que pouco faziam para esconder a pele solta e cor-de-rosa que tinha sob o queixo pendente. Isso não é um homem, pensou Cersei, são só as ruínas de um. As celas negras roubaram-lhe todas as forças que pudesse ter possuído. Isso e a navalha do Duende.
- Quantos anos tem? - Cersei perguntou abruptamente.
- Oitenta e quatro, se aprouver a Vossa Graça.
- Um homem mais novo me agradaria mais.
A língua de Pycelle surgiu momentaneamente entre seus lábios.
- Não tinha mais que quarenta e dois quando o Conclave me chamou. Kaeth tinha oitenta quando o escolheram, e Ellendor estava próximo dos noventa. As preocupações do cargo esmagaram-nos, e ambos estavam mortos menos de um ano depois de terem sido nomeados. Merion os sucedeu, com sessenta e seis apenas, mas morreu de um resfriado a caminho de Porto Real. Depois disso, o Rei Aegon pediu à Cidadela para mandar um homem mais novo. Foi o primeiro rei que servi. E Tommen será o último.
- Preciso que me forneça uma poção. Algo que me ajude a dormir.
- Uma taça de vinho antes de deitar freq...
- Eu bebo vinho, seu cretino desmiolado. Quero algo mais forte. Algo que não me permita sonhar.
- Você... Vossa Graça não deseja sonhar?
- O que foi que acabei de dizer? Terão seus ouvidos se tornado tão fracos quanto seu pau? É capaz de me fazer uma poção assim ou terei de ordenar a Lorde Qyburn para retificar mais uma de suas falhas?
- Não. Não há necessidade de envolver esse... de envolver Qyburn. Sono sem sonhos. Terá sua poção.
- Ótimo. Pode ir - mas, quando ele se virou para a porta, a rainha o chamou de volta. - Mais uma coisa. O que a Cidadela ensina a respeito de profecias? Nosso amanhã pode ser predito?
O velho hesitou. Uma mão enrugada tateou cegamente o peito, como que tentando afagar a barba que não estava lá.
- Nosso amanhã pode ser predito? - repetiu lentamente. - Talvez. Há certos feitiços nos livros antigos... Mas o que Vossa Graça devia perguntar é “Nosso amanhã deve ser predito?” E a isso responderia: “Não” Há portas que é melhor manter fechadas.
- Assegure-se de fechar a minha quando sair - devia saber de antemão que o homem lhe daria uma resposta tão inútil quanto ele próprio.
Na manhã seguinte quebrou o jejum com Tommen. O garoto parecia muito resignado; dar o castigo a Pate servira ao seu objetivo, segundo parecia. Comeram ovos fritos, pão frito, bacon e umas laranjas sanguíneas recém-chegadas de Dorne. O filho estava cercado por seus gatinhos. Ao observar os bichos brincando em volta dos pés dele, Cersei sentiu-se um pouco melhor. Nada de mal acontecerá a Tommen enquanto eu continuar viva. Mataria metade dos lordes de Westeros e todos os plebeus se fosse este o preço para mantê-lo a salvo.
- Vá com Jocelyn - disse ao garoto depois de comerem.
Então, mandou buscar Qyburn.
- Senhora Falyse ainda está viva?
- Viva, sim. Talvez não inteiramente... confortável.
- Sei - Cersei refletiu por um momento. - Esse homem, Bronn... Não posso afirmar que gosto da ideia de ter um inimigo tão próximo. Todo seu poder deriva de Lollys. Se apresentássemos a irmã mais velha...
- É pena - Qyburn soou em tom de lamento. - Temo que Senhora Falyse já não seja capaz de governar Stokeworth. Ou, na verdade, de se alimentar sozinha. Aprendi bastante com ela, agrada-me dizer, mas as lições não surgiram inteiramente livres de custos. Espero não ter excedido as instruções de Vossa Graça.
- Não - quaisquer que fossem suas intenções, agora era tarde demais. Não fazia sentido remoer coisas assim. É melhor que ela morra, disse a si mesma. Não ia desejar continuar a viver sem o marido. Apesar de ser o imbecil que era, a tola parecia gostar dele. - Há outro assunto. Na noite passada tive um sonho terrível.
- Todos sofrem com isso, de vez em quando.
- Esse sonho dizia respeito a uma bruxa que visitei quando criança.
- Uma bruxa da floresta? A maioria delas é de criaturas inofensivas. Sabem um pouco de ervas e algo sobre partos, mas, além disso...
- Ela era mais do que isso. Metade de Lanisporto ia ter com ela em busca de encantos e poções. Era mãe de um pequeno senhor, um mercador rico a quem foi dado um título pelo meu avô. O pai desse senhor encontrara-a enquanto fazia negócios no leste. Havia quem dissesse que ela o tinha enfeitiçado, embora seja mais provável que o único feitiço necessário tenha sido aquele que tinha entre as pernas. Nem sempre tinha sido hedionda, ou pelo menos é o que diziam. Não me lembro do nome da mulher. Qualquer coisa comprida, oriental e exótica. O povo a chamava Maggy.
- Maegi?
- É assim que se pronuncia? A mulher sugava-nos uma gota de sangue do dedo e dizia o que o futuro nos traria.
- A magia de sangue é a espécie mais negra de feitiçaria. Há quem diga que também é a mais poderosa.
Cersei não queria ouvir aquilo.
- Essa maegi fez certas profecias. A princípio, ri delas, mas... Ela predisse a morte de uma das minhas aias. Na época em que fez a profecia, a garota tinha onze anos, era saudável como um cavalinho e vivia a salvo no interior do Rochedo. Mas, pouco depois, caiu em um poço e se afogou - Melara suplicara-lhe que nunca falasse daquilo que tinham ouvido naquela noite na tenda da maegi. Se nunca falarmos sobre isso, logo esqueceremos, e então terá sido apenas um pesadelo, dissera-lhe. Os pesadelos nunca se tornam reais. Ambas eram tão novas que aquilo soara quase sensato.
- Ainda sofre por essa amiga de infância? - perguntou Qyburn. - É isso o que a perturba, Vossa Graça?
- Melara? Não. Quase nem consigo me lembrar de seu rosto. É só que... A maegi sabia quantos filhos eu teria, e sabia dos bastardos de Robert. Anos antes de ele gerar sequer o primeiro, ela sabia. Garantiu-me que eu seria rainha, mas disse que outra rainha chegaria... - mais nova e mais bela, ela disse. - ... Outra rainha, que me roubaria tudo aquilo que amo.
- E deseja se antecipar a essa profecia?
Mais do que qualquer outra coisa, pensou.
- Posso antecipar-me a ela?
- Oh, sim. Nunca duvide disso.
- Como?
- Penso que Vossa Graça sabe como.
E sabia. Sempre soube, pensou. Mesmo na tenda. “Se ela tentar, mando meu irmão matá-la.”
Mas saber o que precisava fazer era uma coisa, e como fazê-lo era outra bem diferente. Já não podia confiar em Jaime. Uma doença súbita seria o melhor, mas os deuses raramente se mostravam tão prestativos. Então, como? Uma faca, uma almofada, uma taça de veneno do coração? Todas essas opções criavam problemas. Quando um velho morria durante o sono, ninguém pensava duas vezes no assunto, mas uma garota de dezesseis anos encontrada morta na cama certamente levantaria questões incômodas. Além do mais, Margaery nunca dormia só. Mesmo com Sor Loras moribundo, havia espadas ao seu redor, dia e noite.
As espadas têm dois gumes, porém. Os próprios homens que a guardam podiam ser usados para derrubá-la. As provas teriam de ser tão esmagadoras que nem mesmo o senhor pai de Margaery teria alternativa exceto dar consentimento à sua execução. Isso não seria fácil. Não é provável que seus amantes confessem, sabendo que isso custaria tanto suas cabeças como a dela. A menos que...
No dia seguinte, a rainha encontrou Osmund Kettleblack no pátio, lutando com um dos gêmeos Redwyne. Qual não saberia dizer, nunca fora capaz de distingui-los. Observou o combate durante algum tempo, e então chamou Sor Osmund.
- Acompanhe-me por um momento - disse - e diga-me a verdade. Não quero elogios vazios, nada de conversas sobre como um Kettleblack é três vezes melhor do que qualquer outro cavaleiro. Muito pode depender de sua resposta. Seu irmão Osney. Quão bom espadachim ele é?
- É bom. Já o viu. Não é tão forte como eu ou Osfryd, mas é rápido na matança.
- Ele seria capaz de derrotar Sor Boros Blount, se se chegasse a esse ponto?
- Boros, a Barriga? - Sor Osmund riu alto. - Ele tem o quê? Quarenta anos? Cinquenta? Passa metade do tempo meio bêbado, e é gordo mesmo quando está sóbrio. Se alguma vez teve gosto pela batalha, perdeu-o. Sim, Vossa Graça, se Sor Boros quiser ser morto, Osney pode tratar disso com bastante facilidade. Por quê? Boros cometeu alguma traição?
- Não - ela disse. - Mas Osney sim.  

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