Encontraram
o primeiro cadáver a uma milha do entroncamento.
Balançava
sob o galho de uma árvore morta, cujo tronco enegrecido ainda
ostentava as marcas do relâmpago que a vitimara. As gralhas-pretas
tinham estado trabalhando em seu rosto, e os lobos haviam se
banqueteado com a parte de baixo das pernas, que pendiam perto do
solo. Só restavam ossos e trapos abaixo dos joelhos... e um sapato
muito roído, semi coberto de lama e bolor.
- O que é
que ele tem na boca? - Podrick perguntou.
Brienne
teve de se erguer para olhar. O rosto do cadáver estava cinza, verde
e horrendo, a boca, aberta e distendida. Alguém enfiara uma pedra
branca e irregular entre seus dentes. Uma pedra, ou...
- Sal -
Septão Meribald respondeu.
Cinquenta
metros mais adiante viram o segundo corpo. Os necrófagos tinham-no
puxado para baixo, de modo que o que dele restava encontrava-se
espalhado no chão sob uma corda velha enrolada em volta do galho de
um ulmeiro. Brienne podia ter passado sem notá-lo, se Cão não o
tivesse farejado e saltado para as ervas daninhas, para cheirar mais
de perto.
- O que
você tem aí, Cão? - Sor Hyle desmontou, apressou-se a seguir o
animal e deparou com um meio elmo. O crânio do morto ainda se
encontrava lá dentro, acompanhado de algumas larvas e escaravelhos.
- Bom aço - anunciou - e não está muito amassado, embora o leão
tenha perdido a cabeça. Pod, quer um elmo?
- Esse
não. Tem vermes aí dentro.
- Os
vermes podem ser tirados, rapaz. É enjoado como uma garota.
Brienne
franziu as sobrancelhas.
- É
grande demais para ele.
- Ele há
de crescer.
- Mas não
quero - Podrick insistiu. Sor Hyle encolheu os ombros e atirou o elmo
partido para a floresta, com leão e tudo. Cão latiu e foi erguer a
perna contra a árvore.
Depois
daquilo, dificilmente avançavam cem metros sem encontrar um cadáver.
Pendiam sob freixos e amieiros, faias e vidoeiros, lariços e
ulmeiros, velhos salgueiros embranquecidos e faustosos castanheiros.
Cada homem tinha um laço em volta do pescoço e pendia de uma corda
de cânhamo, e a boca de todos estava cheia de sal. Alguns usavam
mantos cinzentos, azuis ou carmesins, embora a chuva e o sol os
tivessem desbotado tanto que era difícil distinguir as cores umas
das outras. Outros tinham símbolos cosidos ao peito. Brienne viu
machados, flechas, vários salmões, um pinheiro, uma folha de
carvalho, escaravelhos, pequenos galos, uma cabeça de javali, meia
dúzia de tridentes. Desertores, compreendeu, a escória de uma dúzia
de exércitos, os restos dos lordes.
Alguns
dos mortos tinham sido calvos, outros, barbudos, alguns eram novos,
outros, velhos, alguns tinham sido baixos, e alguns, altos; alguns
eram gordos, outros, magros. Inchados na morte, com rosto roído e
apodrecido, todos se assemelhavam. Na árvore da forca, todos os
homens são irmãos. Brienne lera isso num livro, embora não
conseguisse se recordar qual.
Foi Hyle
Hunt quem finalmente expressou em palavras o que todos tinham
compreendido.
- Foram
estes os homens que saquearam Salinas.
- Que o
Pai os julgue com dureza - disse Meribald, amigo do idoso septão da
vila.
Quem eles
eram estava longe de interessar tanto Brienne quanto quem os
enforcara. O laço era o método de execução preferido de Beric
Dondarrion e de seu bando de fora da lei, dizia-se. Se assim fosse, o
dito senhor do relâmpago poderia perfeitamente encontrar-se por
perto.
Cão
latiu, e Septão Meribald olhou em volta e franziu as sobrancelhas.
- Vamos
mais depressa? O sol vai se pôr em breve, e cadáveres são má
companhia à noite. Estes homens, vivos, eram negros e perigosos.
Duvido que a morte os tenha melhorado.
- Nisso
discordamos - Sor Hyle se manifestou. - Estes são precisamente o
tipo de homem que mais é aperfeiçoado pela morte - mesmo assim,
esporeou o cavalo e todos aumentaram um pouco a velocidade.
Mais à
frente, as árvores começaram a rarear, embora o mesmo não
acontecesse aos cadáveres. Os bosques deram lugar a campos
lamacentos, e os galhos das árvores, a cadafalsos. Nuvens de corvos
erguiam-se aos guinchos dos cadáveres quando os viajantes se
aproximavam, e voltavam a se instalar depois de passarem. Esses
homens eram maus, recordou Brienne a si mesma, mas ver aquilo
continuava a entristecê-la. Forçou-se a olhar para todos os homens,
um de cada vez, em busca de rostos familiares. Pensou reconhecer
alguns de Harrenhal, mas o estado em que estavam tornava difícil ter
certeza. Nenhum tinha um elmo em forma de cabeça de cão, mas eram
poucos os que tinham qualquer tipo de elmo. A maioria fora despida de
armas, armadura e botas antes de ser pendurados.
Quando
Podrick quis saber o nome da estalagem onde esperavam passar a noite,
Septão Meribald apegou-se avidamente à pergunta, talvez para
afastar do espírito de todos as horríveis sentinelas da beira da
estrada.
- Alguns
a chamam Velha Estalagem. Ali existe uma estalagem há muitas
centenas de anos, embora esta só tenha sido construída durante o
reinado do primeiro Jaehaerys, o rei que construiu a estrada do rei.
Dizem que Jaehaerys e sua rainha dormiam ali durante suas viagens.
Durante algum tempo, a estalagem foi conhecida como Duas Coroas, em
sua honra, até que um estalajadeiro construiu uma torre sineira e
mudou o nome para Estalagem do Toque de Sino. Mais tarde, passou para
um cavaleiro aleijado chamado Jon Comprido Heddle, que se dedicou a
trabalhar o ferro quando ficou idoso demais para combater. Ele forjou
um novo sinal para o pátio, um dragão de três cabeças em ferro
negro que pendurou em um poste de madeira. O animal era tão grande
que teve de ser feito em uma dúzia de peças, unidas com corda e
arame. Quando o vento soprava, tinia e ressoava, de modo que a
estalagem se tornou conhecida por todo lado como o Dragão
Ressonante.
- O sinal
do dragão ainda está lá? - Podrick qui saber também.
- Não -
Septão Meribald respondeu. - Quando o filho do ferreiro era já um
velho, um filho bastardo do quarto Aegon ergueu-se em rebelião
contra seu irmão legítimo e escolheu como símbolo um dragão
negro. Estas terras pertenciam então a Lorde Darry, e sua senhoria
era ferozmente leal ao rei. Ver o dragão de ferro negro o deixou
furioso, e por isso derrubou o poste, fez o sinal em pedaços e os
atirou ao rio. Uma das cabeças do dragão foi dar à costa na Ilha
Quieta muitos anos mais tarde, embora nessa época estivesse vermelha
de ferrugem. O estalajadeiro não voltou a pendurar outro sinal, e os
homens esqueceram-se do dragão e se acostumaram a chamar o lugar de
Estalagem do Rio. Nesses dias, o Tridente passava por baixo de sua
porta dos fundos, e metade dos quartos foi construída por cima da
água. Diz-se que os hóspedes podiam jogar uma linha pela janela e
apanhar trutas. Também havia ali um embarcadouro, de onde os
viajantes podiam atravessar para a Vila do Lorde Harroway e para
Alvasparedes.
-
Deixamos o Tridente ao sul daqui e temos avançado para o norte e o
oeste... não na direção do rio, mas para longe dele.
- Sim,
senhora - o septão confirmou. - O rio se deslocou. Foi há setenta
anos. Ou terá sido há oitenta? Foi quando o avô da velha Masha
Heddle era dono do lugar. Foi ela quem me contou toda essa história.
Uma mulher amável, a Masha, amiga de folhamarga e de bolos de mel.
Quando não tinha um quarto para mim, deixava-me dormir junto da
lareira, e nunca me mandou embora sem um pouco de pão e queijo e
alguns bolos duros.
- É ela
agora a estalajadeira? - Podrick perguntou.
- Não.
Os leões a enforcaram. Depois de irem embora, ouvi dizer que um dos
sobrinhos tentou reabrir a estalagem, mas as guerras tornaram as
estradas perigosas demais para as pessoas comuns viajarem, de modo
que havia pouca freguesia. Ele trouxe prostitutas, mas nem isso
conseguiu salvá-lo. Algum lorde também o matou, segundo ouvi dizer.
Sor Hyle
fez uma careta.
- Nunca
imaginei que ser dono de estalagem fosse um perigo tão mortal.
- O que é
perigoso é ter nascimento plebeu, quando os grandes senhores jogam
seu jogo dos tronos - Septão Meribald rebateu. - Não é verdade,
Cão? - Cão latiu seu acordo.
- E então
- disse Podrick - a estalagem tem algum nome agora?
- O povo
a chama de a Estalagem do Entroncamento. O Irmão Mais Velho me disse
que duas das sobrinhas de Masha Fleddle voltaram a abri-la à
clientela - ergueu o cajado. - Se os deuses forem bons, aquela fumaça
que se ergue atrás dos enforcados sai de suas chaminés.
- Podiam
chamar o lugar de Estalagem da Forca - Sor Hyle sugeriu.
Qualquer
que fosse o nome, a estalagem era grande, erguendo-se três andares
acima das estradas lamacentas, com paredes, torreões e chaminés
feitos de boa pedra branca que rebrilhava, pálida e fantasmagórica,
contra o céu cinzento. Sua ala sul tinha sido construída sobre
pesados pilares de madeira por cima de uma rachada e afundada
extensão de ervas daninhas e grama morta e marrom. Um estábulo com
telhado de colmo e uma torre sineira tinham sido ligados ao lado
norte. Todo o complexo era cercado por um muro baixo de pedras
brancas, quebradas e cobertas de musgo.
Pelo
menos ninguém a incendiou. Em Salinas, só tinham encontrado morte e
desolação. Quando Brienne e os companheiros chegaram de barco,
vindos da Ilha Quieta, os sobreviventes já tinham fugido, e os
mortos estavam entregues à terra, mas ficara o cadáver da própria
vila, em cinzas e por enterrar. O ar ainda cheirava a fumaça, e os
gritos das gaivotas flutuando na aragem pareciam quase humanos, como
lamentos de crianças perdidas. Até o castelo parecia esquecido e
abandonado. Cinzento como as cinzas da vila ao redor, ele consistia
de uma torre quadrada cercada por uma muralha exterior, construída
de forma a dominar o porto. Estava bem fechado quando Brienne e os
outros fizeram os cavalos sair do barco, sem nada em movimento nas
suas ameias, a não ser estandartes. Foi preciso um quarto de hora de
latidos do Cão e de batidas do Septão Meribald ao portão da frente
com o bastão para que uma mulher aparecesse por cima deles e
quisesse saber o que pretendiam.
Àquela
altura o barco já partira e começava a chover.
- Sou um
santo septão, minha boa senhora - Meribald gritou para cima - e
estes são honestos viajantes. Procuramos abrigo da chuva e um lugar
perto de sua lareira para passar a noite - a mulher não se deixou
comover por seu apelo.
- A
estalagem mais próxima fica no entroncamento, a oeste - ela
respondeu. - Não queremos estranhos aqui. Fora - depois de ela
desaparecer, nem as preces de Meribald, nem os latidos de Cão, nem
as pragas de Sor Hyle conseguiram trazê-la de volta. Por fim,
passaram a noite na floresta, sob um abrigo feito de galhos
entrelaçados.
Mas na
estalagem do entroncamento havia vida. Mesmo antes de chegarem ao
portão, Brienne ouviu o som de marteladas, tênues, mas contínuas.
Traziam um ressoar metálico.
- Uma
forja - Sor Hyle observou. - Ou têm com eles um ferreiro ou o
fantasma do velho estalajadeiro está fazendo outro dragão de ferro
- esporeou o cavalo. - Espero que também tenham um cozinheiro
fantasma. Um frango assado e estaladiço era coisa para pôr o mundo
nos eixos.
O pátio
da estalagem era um mar de lama marrom que sugava os cascos dos
cavalos. O clangor do aço era mais alto ali, e Brienne viu o brilho
rubro da forja para lá da extremidade mais distante dos estábulos,
por trás de um carro de bois com uma roda partida. Também via
cavalos nos estábulos, e um garoto pequeno se balançava pendurado
nas correntes enferrujadas da velha forca que se erguia acima do
pátio. Quatro garotas estavam no alpendre da estalagem,
observando-o. A mais nova não tinha mais de dois anos, e estava nua.
A mais velha, com nove ou dez anos, tinha os braços protetoralmente
em volta da pequena.
- Meninas
- gritou-lhes Sor Hyle - vão correndo buscar sua mãe.
O garoto
deixou-se cair da corrente e se precipitou para os estábulos. As
quatro garotas mostraram-se inquietas. Passado um momento, uma delas
disse:
- Não
temos mães.
E outra
acrescentou:
- Eu
tive, mas eles a mataram.
A mais
velha das quatro deu um passo adiante, empurrando a pequena para trás
de sua saia.
- Quem é
você? - quis saber.
-
Honestos viajantes em busca de abrigo. Meu nome é Brienne, e este é
o Septão Meribald, que é bem conhecido nas terras fluviais. O
garoto é meu escudeiro, Podrick Payne, e o cavaleiro é Sor Hyle
Hunt.
O
martelar parou de súbito. A garota no alpendre os examinou,
desconfiada como só alguém de dez anos sabe ser.
- Meu
nome é Willow. Vão querer camas?
- Camas,
cerveja e comida quente que nos encha a barriga - Sor Hyle Hunt
respondeu enquanto desmontava. - Você é a estalajadeira?
Ela
balançou a cabeça.
- A
estalajadeira é a minha irmã Jeyne. Ela não está aqui. Só temos
carne de cavalo para comer. Se vem em busca de prostitutas, não há.
Minha irmã correu com elas. Mas temos camas. Algumas com colchão de
penas, mas a maioria tem colchão de palha.
- E todas
elas têm pulgas, não duvido - Sor Hyle retrucou.
- Tem
moedas para pagar? Prata?
Sor Hyle
deu risada.
- Prata?
Por uma noite em uma cama e um pernil de cavalo? Pretende nos roubar,
criança?
-
Queremos prata. Caso contrário, podem dormir na floresta com os
mortos - Willow olhou de relance o burro e os barris e trouxas que
tinha ao lombo. - Aquilo é comida? Onde arranjou?
- Lagoa
da Donzela - Meribald respondeu. Cão latiu.
-
Interroga todos os seus hóspedes dessa maneira? - perguntou Sor
Hyle.
- Não
temos tantos hóspedes assim. Não é como antes da guerra. Hoje em
dia é principalmente pardais que andam pelas estradas, ou gente
pior.
- Pior? -
Brienne espantou-se.
- Ladrões
- disse uma voz de rapaz vinda dos estábulos. - Assaltantes.
Brienne
virou-se e viu um fantasma,
Renly.
Nenhum golpe de martelo no coração poderia tê-la abatido tanto.
- Senhor?
- arquejou.
- Senhor?
- o rapaz empurrou para trás uma madeixa de cabelos negros que lhe
caíra sobre os olhos. - Sou só um ferreiro.
Ele não
é Renly, Brienne compreendeu. Renly está morto. Renly morreu em
meus braços, e era um homem de vinte e um anos. Este é só um
rapaz. Um rapaz que se parecia com aquele Renly que viera pela
primeira vez a Tarth. Não, mais novo. Tem o queixo mais quadrado, e
as sobrancelhas mais espessas. Renly era esbelto e flexível, ao
passo que aquele rapaz tinha os ombros pesados e o braço direito
musculoso tão frequente nos ferreiros. Usava um longo avental de
couro, mas por baixo tinha o tronco nu. Uma barba escura por fazer
cobria-lhe as bochechas e o queixo, e tinha uma espessa cabeleira
negra que lhe tapava as orelhas. Os cabelos do Rei Renly eram daquele
negro de carvão, mas os dele sempre estavam limpos, escovados e
penteados. Por vezes os cortava curtos, outras, deixava-os cair,
soltos, sobre os ombros, ou presos num rabo de cavalo com uma fita
dourada, mas nunca se mostravam emaranhados ou empapados de suor. E
embora seus olhos fossem daquele mesmo azul profundo, os de Lorde
Renly sempre tinham sido calorosos e receptivos, cheios de risos, ao
passo que os daquele rapaz transbordavam de fúria e desconfiança.
O septão
também o viu.
- Não
pretendemos nenhum mal, rapaz. Quando esta estalagem era de Masha
Heddle, sempre teve um bolo de mel para mim. Por vezes, ela até me
deixava dormir em uma cama, se a estalagem não estivesse cheia.
- Ela
está morta - disse o rapaz. - Os leões a enforcaram.
-
Enforcar gente parece ser o passatempo preferido neste lugar - Sor
Hyle Hunt observou. - Gostaria de ter um pouco de terra por aqui.
Plantaria cânhamo, venderia corda e faria minha fortuna.
- Todas
essas crianças - disse Brienne para a garota chamada Willow. - São
suas... irmãs? Irmãos? Parentes diretos e primos?
- Não -
Willow a fitava de um modo que Brienne conhecia bem. - São só...
não sei... os pardais os trazem para cá, às vezes. Outros chegam
sozinhos. Se é uma mulher, por que se veste como um homem?
Septão
Meribald respondeu.
- Senhora
Brienne é uma donzela guerreira em uma demanda. Mas, neste momento,
precisa de uma cama seca e uma fogueira quente. Assim como todos nós.
Meus velhos ossos dizem que vai voltar a chover, e logo. Tem quartos
para nós?
- Não
-disse o jovem ferreiro.
- Sim -
disse a garota chamada Willow.
Trocaram
olhares furiosos. Então Willow bateu com o pé no chão.
- Eles
têm comida, Gendry. O s pequenos estão com fome - ela assobiou, e
surgiram mais crianças como que por magia; garotos esfarrapados com
madeixas por cortar saíram engatinhando por debaixo do alpendre, e
furtivas garotas surgiram em janelas que davam para o pátio. Alguns
traziam bestas, retesadas e carregadas.
- Podiam
chamar o lugar de a Estalagem das Bestas - Sor Hyle sugeriu.
A
Estalagem dos Órfãos seria mais apropriado, Brienne pensou.
- Wat,
ajude-os com os cavalos - disse Willow. - Will, jogue essa pedra
fora, eles não vieram nos fazer mal. Tanásia, Pate, vão buscar
lenha para alimentar o fogo. Jon Vintém, ajude o septão com aqueles
fardos. Eu lhes mostro uns quartos.
Por fim,
escolheram três quartos adjacentes uns aos outros, cada um com sua
cama com colchão de penas e sua janela. O de Brienne também tinha
uma lareira. Pagou mais algumas moedas por um pouco de lenha.
- Eu
durmo em seu quarto ou no de Sor Hyle? - perguntou Podrick enquanto
ela abria as janelas.
- Aqui
não é a Ilha Quieta - Bienne disse-lhe. - Pode ficar comigo - ao
amanhecer, pretendia que os dois partissem sozinhos. Septão Meribald
ia prosseguir para Nogueira, Meandro e para a Vila de Lorde Harroway,
mas Brienne não via sentido em continuar seguindo-o. Ele tinha Cão
para lhe fazer companhia, e o Irmão Mais Velho a persuadira de que
não encontraria Sansa Stark ao longo do Tridente. - Pretendo me
levantar antes de o sol nascer, enquanto Sor Hyle ainda estiver
dormindo - Brienne não lhe perdoara por Jardim de Cima... e, como
ele mesmo dissera, Hunt não prestara juramento algum a respeito de
Sansa.
- Para
onde vamos, sor? Quer dizer, senhora?
Brienne
não tinha resposta pronta para lhe dar. Tinham chegado a uma
encruzilhada, literalmente; o lugar onde a estrada do rei, a estrada
do rio e a estrada de altitude se juntavam. Esta última os levaria
para leste, através das montanhas, até o Vale de Arryn, onde a tia
da Senhora Sansa governara até sua morte. Para oeste, corria a
estrada do rio, que seguia o curso do Ram o Vermelho até Correrrio e
ao tio-avô de Sansa, que estava cercado, mas ainda vivo. Ou então
podiam seguir para o norte, pela estrada do rei, passando pelas
Gêmeas e pelo Gargalo, com seus pântanos e lodaçais. Se
conseguisse encontrar uma forma de passar por Fosso Cailin e por quem
quer que agora controlasse o castelo, a estrada do rei os levaria até
Winterfell.
Ou podia
seguir pela estrada do rei para o sul, pensou Brienne. Podia
escapulir de volta para Porto Real, confessar a Sor Jaime meu
fracasso, devolver-lhe a espada e arranjar um navio que me levasse
para Tarth, como Irmão Mais Velho me instou a fazer. A ideia era
amarga, mas havia uma parte de si que ansiava por Entardecer e pelo
pai, e outra que perguntava a si mesma se Jaime a confortaria caso
chorasse em seu ombro. Era isso o que os homens queriam, não era?
Mulheres delicadas e impotentes, que precisavam ser protegidas?
- Sor?
Senhora? Eu perguntei para onde vamos.
- Lá
para baixo, para a sala comum, jantar.
A sala
comum estava repleta de crianças. Brienne tentou contá-las, mas não
paravam quietas por um instante, de modo que contou algumas duas ou
três vezes e outras não chegou a contar, até finalmente desistir.
Tinham juntado as mesas para formar três longas fileiras, e os
garotos mais velhos carregavam bancos da parte de trás. Mais velho
queria dizer dez ou doze anos, Gendry era o que havia de mais próximo
a um homem-feito, mas era Willow quem gritava todas as ordens, como
se fosse uma rainha em seu castelo e as outras crianças não
passassem de criados.
Se ela
fosse bem-nascida, o comando lhe seria natural, assim como a
deferência para os outros. Brienne perguntou a si mesma se Willow
poderia ser mais do que aparentava. A garota era nova e simples
demais para ser Sansa Stark, mas tinha a idade certa para ser a irmã
caçula, e até a Senhora Catelyn dissera que faltava a Arya a beleza
da irmã. Cabelos castanhos, olhos castanhos, magricela... Poderia
ser? Lembrava-se de os cabelos de Arya Stark serem castanhos, mas
Brienne não estava certa quanto à cor de seus olhos. Ambos
castanhos, seria? Será que ela não tinha morrido em Salinas,
afinal?
Lá fora,
a última luz do dia apagava-se. Dentro da estalagem, Willow mandara
acender quatro gordurosas velas de sebo e dissera às garotas para
manter a lareira com fogo vivo e quente. Os garotos ajudaram Podrick
Payne a descarregar o burro e levaram para dentro o bacalhau salgado,
o carneiro, os legumes, as frutas secas e as rodelas de queijo,
enquanto Septão Meribald se dirigia à cozinha para se encarregar do
mingau de aveia.
-
Infelizmente, já não tenho laranjas, e duvido que veja mais alguma
até a primavera - disse ele a um garotinho. - Já comeu uma laranja,
menino? Alguma vez espremeu uma e chupou seu sumo? - quando o garoto
balançou a cabeça numa negativa, o septão despenteou-lhe os
cabelos. - Então eu lhe trarei uma, quando chegar a primavera, se
for um bom menino e me ajudar a mexer o mingau.
Sor Hyle
tirou as botas para aquecer os pés junto à lareira. Quando Brienne
se sentou ao seu lado, ele indicou com a cabeça o outro lado da
sala.
- Há
manchas de sangue no chão, ali onde o Cão está farejando. Foram
raspadas, mas o sangue introduziu-se profundamente na madeira, e não
há maneira de tirá-lo de lá.
- Foi
esta a estalagem em que Sandor Clegane matou três dos homens do
irmão - recordou Brienne.
- Sim,
foi - concordou Hunt - mas quem poderá dizer que foram os primeiros
a morrer aqui... ou que serão os últimos?
- Tem
medo de um punhado de crianças?
- Quatro
seriam um punhado. Dez seriam uma indigestão. Isto é uma cacofonia.
As crianças deviam ser embrulhadas em fraldas e penduradas na parede
até crescer o peito às garotas e os rapazes terem idade para fazer
a barba.
- Tenho
pena delas. Todas perderam a mãe e o pai. Algumas os viram ser
mortos.
Hunt
revirou os olhos.
-
Esqueci-me de que estava falando com uma mulher. Seu coração é tão
mole quanto o mingau de nosso septão. Será possível? Em algum
lugar dentro dessa espadachim está uma mãe aflita por dar à luz. O
que realmente deseja é um bebê cor-de-rosa para mamar em seu peito
- Sor Hyle abriu um sorriso. - Para isso precisa de um homem, segundo
ouvi dizer. Um marido, de preferência. Por que não eu?
- Ainda
espera ganhar sua aposta...
- O que
quero ganhar é você, a única descendente viva de Lorde Selwyn. Sei
de homens que se casaram com desmioladas e bebês de peito por
propriedades com um décimo do tamanho de Tarth. Não sou Renly
Baratheon, confesso, mas tenho a virtude de ainda estar entre os
vivos. Há quem diga que esta é a minha única virtude. O casamento
seria útil para ambos. Terras para mim, e um castelo cheio disto
para você - indicou as crianças com um movimento de mão. - Eu sou
capaz, asseguro-lhe. Gerei pelo menos uma bastarda, que eu saiba. Não
tenha medo, não a obrigarei a acolhê-la. Da última vez que fui
vê-la, a mãe me deu um banho com uma panela de sopa.
Um rubor
subiu pelo pescoço de Brienne.
- Meu pai
tem só quarenta e quatro anos. Não é velho demais para voltar a se
casar e ter um filho com sua nova esposa.
- Isso é
um risco... Se seu pai voltar a se casar e se sua noiva demonstrar
ser fértil e se o bebê for um garoto. Já fiz apostas piores.
- E
perdeu. Jogue seu jogo com outra, sor.
- Assim
fala uma donzela que nunca jogou o jogo com ninguém. Uma vez que o
jogue, adotará outro modo de ver as coisas. No escuro, é tão bela
quanto qualquer outra mulher. Seus lábios foram feitos para serem
beijados.
- São
lábios - disse Brienne. - Todos são iguais.
- E todos
os lábios são feitos para serem beijados - concordou Hunt em um tom
agradável. - Deixe a porta do seu quarto destrancada esta noite, e
eu me esgueirarei para sua cama para lhe demonstrar a verdade do que
digo.
- Se o
fizer, será um eunuco quando for embora - Brienne levantou-se e se
afastou dele.
Septão
Meribald perguntou se podia fazer com as crianças uma oração de
graças, ignorando a garotinha que engatinhava nua sobre a mesa.
- Sim -
Willow concordou, pegando a garota antes de ela conseguir chegar ao
mingau. E assim abaixaram juntos a cabeça e agradeceram ao Pai e à
Mãe as suas dádivas... Todos, menos o rapaz de cabelos negros da
forja, que cruzou os braços e ficou quieto, os olhos cheios de
fúria, enquanto os outros rezavam. Brienne não foi a única a
reparar nisso.
Quando a
oração terminou, Septão Meribald atravessou a mesa com o olhar e
disse:
- Não
tem amor pelos deuses, filho?
- Pelos
seus deuses, não - Gendry levantou-se abruptamente. - Tenho trabalho
a fazer - e saiu a passos largos, sem dar sequer uma mordida na
comida.
- Há
algum outro deus que ele adore? - Hyle Hunt quis saber.
- O
Senhor da Luz - esganiçou-se um garotinho esquelético, que não
teria mais de seis anos.
Willow
bateu-lhe com a colher.
- Ben
Boca Grande. Há comida. Devia estar comendo em vez de incomodar os
senhores com conversas.
As
crianças caíram sobre o jantar como lobos cairiam sobre um veado
ferido, discutindo por causa do bacalhau, fazendo em pedaços o pão
de centeio e enchendo tudo de mingau. Nem a enorme rodela de queijo
sobreviveu por muito tempo. Brienne contentou-se com peixe, pão e
cenouras, enquanto Septão Meribald dava duas colheradas ao cão a
cada uma que ele mesmo comia. Lá fora, começou a chover. Dentro, o
fogo crepitava e a sala comum estava cheia de ruídos de mastigar e
dos barulhos produzidos por Willow quando batia nas crianças com a
colher.
- Um dia,
aquela garota será uma temível esposa para um homem qualquer -
observou Sor Hyle. - Aquele pobre aprendiz, provavelmente.
- Alguém
devia levar-lhe alguma comida, antes que acabe.
- Você é
alguém.
Brienne
enrolou num pano uma cunha de queijo, uma fatia de pão, uma maçã
seca e dois pedaços de bacalhau frito desfazendo-se. Quando Podrick
se levantou para segui-la, ela lhe disse para voltar a se sentar e
comer.
- Não
demoro.
A chuva
caía pesadamente no pátio. Brienne cobriu a comida com uma dobra do
manto. Alguns dos cavalos relincharam para ela quando passou pelos
estábulos. Eles também têm fome.
Gendry
estava na forja, de peito nu por baixo de seu avental de couro.
Martelava uma espada como se desejasse que ela fosse um inimigo, com
os cabelos ensopados de suor caindo-lhe sobre a testa. Brienne ficou
a observá-lo por um momento. Ele tem os olhos de Renly e os cabelos
de Renly, mas não a sua constituição. Lorde Renly era mais esguio
do que musculoso... ao contrário do irmão, Robert, cuja força era
legendária.
Foi só
quando parou para limpar a testa que Gendry a viu ali parada.
- O que
você quer?
- Trouxe
o jantar - abriu o embrulho para ele ver.
- Se eu
quisesse comida, teria comido alguma.
- Um
ferreiro precisa comer para manter as forças.
- É
minha mãe?
- Não -
Brienne pousou a comida. - Quem era sua mãe?
- O que
você tem a ver com isso?
- Nasceu
em Porto Real - o modo como ele falava dava-lhe essa certeza.
- Eu e
muitos outros - e mergulhou a espada numa cuba de água da chuva para
temperá-la. O aço quente silvou, furioso.
- Quantos
anos tem? - Brienne quis saber. - Sua mãe ainda está viva? E seu
pai, quem era ele?
- Faz
perguntas demais - ele pousou a espada. - Minha mãe está morta, e
nunca conheci meu pai.
- É um
bastardo.
Ele tomou
aquilo como um insulto.
- Sou um
cavaleiro. Esta espada será minha em breve, assim que a terminar.
O que um
cavaleiro estaria fazendo trabalhando numa forja?
- Tem
cabelos negros e olhos azuis, e nasceu à sombra da Fortaleza
Vermelha. Nunca ninguém reparou na sua cara?
- O que
minha cara tem de errado? Não é tão feia quanto a sua.
- Em
Porto Real deve ter visto Rei Robert.
Ele
encolheu os ombros.
- As
vezes. Em torneios, de longe. Uma vez no Septo de Baelor. Os homens
de manto dourado empurraram-nos para o lado, para que ele pudesse
passar. Outra vez, estava brincando perto do Portão da Lama quando
ele voltou de uma caçada. Estava tão bêbado que quase me
atropelou. Era um grande beberrão gordo, mas melhor rei do que esses
seus filhos.
Eles não
são seus filhos. Stannis disse a verdade, naquele dia em que se
encontrou com Renly. Joffrey e Tommen nunca foram filhos de Robert.
Mas esse rapaz...
-
Escute-me - Brienne começou. Então ouviu Cão latir, ruidosa e
freneticamente. - Alguém vem vindo.
- Amigos
- Gendry respondeu, sem se mostrar preocupado.
- Que
tipo de amigos? - Brienne dirigiu-se à porta da forja para espreitar
através da chuva.
Ele
encolheu os ombros.
- Irá
conhecê-los bem depressa,
Posso não
querer conhecê-los, ela pensou, enquanto os primeiros cavaleiros
surgiam, espirrando água das poças no pátio. Sob o tamborilar da
chuva e os latidos do Cão, conseguiu ouvir o tênue tinir de espadas
e cotas de malha sob seus mantos esfarrapados. Contou-os à medida
que foram aparecendo. Dois, quatro, seis, sete. Alguns estavam
feridos, julgando pelo modo como cavalgavam. O último homem era
maciço e pesado, tão grande quanto dois dos outros. Seu cavalo
estava exausto e ensanguentado, e cambaleava sob seu peso. Todos os
cavaleiros tinham os capuzes erguidos contra a chuva intensa, exceto
ele. Seu rosto era largo e sem pelos, com uma palidez de verme, e as
bochechas redondas estavam cobertas de chagas.
Brienne
susteve a respiração e puxou pela Cumpridora de Promessas. Muitos,
pensou, com um sobressalto de medo, eles são muitos.
- Gendry
- disse em voz baixa - vai querer uma espada e armadura. Estes não
são seus amigos. Não são amigos de ninguém.
- Do que
está falando? - o rapaz aproximou-se e parou atrás dela, de martelo
na mão.
Um
relâmpago estalou para o sul enquanto os cavaleiros desmontavam.
Durante meio segundo, a escuridão transformou-se em dia. Um machado
cintilou num azul prateado, luz refletiu-se em cotas de malha e
placas de aço, e sob o escuro capuz do cavaleiro da frente Brienne
vislumbrou um focinho de ferro e fileiras de dentes de aço rosnando.
Gendry
também o viu.
-Ele.
- Não é
ele. É seu elmo - Brienne tentou manter o medo afastado da voz, mas
tinha a boca seca como poeira. Fazia uma ideia bastante precisa de
quem usava o elmo do Cão de Caça. As crianças, pensou.
A porta
da estalagem abriu-se com estrondo. Willow saiu para a chuva com uma
besta na mão. A garota gritava para os cavaleiros, mas um trovão
rolou pelo pátio, afogando suas palavras. Quando o estrondo se
desvaneceu, Brienne ouviu o homem dentro do elmo do Cão de Caça
dizer:
- Dispare
um dardo contra mim, e eu enfio essa besta na sua boceta e fodo você
com ela. Depois arranco o caralho de seus olhos e obrigo você a
comê-los - a fúria na voz do homem fez Willow recuar um passo,
tremendo.
Sete,
Brienne voltou a pensar, em desespero. Sabia que não tinha chance
contra sete. Nem chance, nem alternativa.
Saiu para
a chuva, com a Cumpridora de Promessas na mão.
- Deixe-a
em paz. Se quer violar alguém, experimente comigo.
Os fora
da lei viraram-se como um só homem. Um deles riu, e outro disse
qualquer coisa numa língua que Brienne não entendia. O enorme homem
com o largo rosto branco soltou um ssssssssssssss malévolo. O homem
com o elmo do Cão de Caça desatou a rir.
- É
ainda mais feia do que me lembrava. Mais depressa violava seu cavalo.
-
Cavalos, é isso que queremos - disse um dos homens feridos. -
Cavalos descansados e alguma comida. Alguns fora da lei vêm atrás
de nós. Dê-nos seus cavalos e vamos embora. Não queremos lhes
fazer mal.
- Que se
foda essa merda - o fora da lei com o elmo do Cão de Caça puxou da
sela um machado de batalha. - Quero cortar-lhe a merda das pernas.
Vou colocá-la em cima dos tocos pra que me veja foder a garota da
besta.
- Com o
quê? - Brienne o provocou. - Shagwell disse que cortaram seu membro
viril quando o deixaram sem nariz.
Queria
provocá-lo, e conseguiu. Berrando pragas, ele correu para ela,
fazendo saltar respingos de água negra enquanto atacava. Os outros
deixaram-se ficar para trás, a fim de assistir ao espetáculo, como
ela rezara para que fizessem. Brienne ficou imóvel como pedra, à
espera. O pátio estava escuro, e a lama, escorregadia sob os pés. É
melhor deixar que ele venha até mim. Se os deuses forem bons, há de
escorregar e cair.
Os deuses
não eram assim tão bons, mas a espada dela era. Cinco passos,
quatro passos, agora, contou Brienne, e a Cumpridora de Promessas
ergueu-se ao encontro do ímpeto dele. Aço bateu em aço quando a
lâmina de Brienne atravessou os farrapos do homem e abriu uma fenda
em sua cota de malha, no mesmo momento em que seu machado caía sobre
ela. Brienne esquivou-se para o lado, voltando a golpear-lhe o peito
na retirada.
Ele a
seguiu, cambaleando e sangrando, rugindo em fúria.
- Puta! -
trovejou. - Anormal! Cadela! Vou dar você ao meu cão para fodê-la,
sua cadela de merda! - seu machado rodopiava em arcos assassinos, uma
brutal sombra negra que se tornava prateada sempre que um relâmpago
surgia. Brienne não tinha escudo para parar os golpes. Tudo que
podia fazer era recuar, afastando-se dele, correndo para um lado ou
para outro, enquanto a cabeça do machado voava contra si. Um a vez,
a lama cedeu sob seu calcanhar e ela quase caiu, mas recuperou o
equilíbrio sem saber bem como, embora o machado tivesse raspado em
seu ombro esquerdo, deixando uma braseiro de dor em seu rastro.
- Atingiu
a puta - gritou um dos homens, e outro disse:
- Vamos
lá ver como é que ela dança para longe desse golpe.
E dançar
foi o que ela fez, aliviada por eles estarem assistindo. Antes isso
do que interferirem. Não podia lutar contra sete, sozinha não,
mesmo se um ou dois estivessem feridos. O velho Sor Goodwin estava
havia muito em sua tumba, e no entanto Brienne conseguia ouvi-lo
murmurando em seu ouvido. Os homens irão sempre subestimá-la,
dizia, e seu orgulho os fará querer vencê-la depressa, para que não
se diga que uma mulher lhes deu luta. Deixe-os gastar as forças em
ataques furiosos, enquanto conserva as suas. Espere e observe,
menina, espere e observe. E ela esperou, observando, movendo-se de
lado, e logo para trás, e então de novo para o lado, golpeando ora
o rosto dele, ora as pernas, ora o braço. Os golpes dele começaram
a cair mais devagar quando o machado se tornou mais pesado. Brienne
virou-o para que a chuva caísse sobre seus olhos e deu dois passos
rápidos para trás. Ele ergueu o machado uma vez mais, praguejando,
e saltou sobre ela, com um pé deslizando na lama...
... E ela
saltou para enfrentar seu ataque, com ambas as mãos no cabo da
espada. O ataque precipitado dele trouxe-o de encontro à ponta da
espada, e a Cumpridora de Promessas trespassou pano, cota de malha,
couro e mais pano, afundou-se profundamente em suas entranhas e saiu
por suas costas, fazendo um som de arranhar ao raspar-lhe a coluna. O
machado do homem caiu de seus dedos sem força, e ele tombou sobre
ela, esmagando o rosto de Brienne com o elmo da Cabeça de Cão.
Brienne sentiu o metal frio e molhado contra o rosto. Chuva caía em
rios pelo aço e, quando o relâmpago voltou a surgir, ela viu dor e
medo, e uma completa incredulidade através das fendas para os olhos.
- Safiras
- segredou-lhe, enquanto dava à sua lâmina uma forte torção que o
fez estremecer. O peso dele desabou sobre ela, e de repente era um
cadáver que abraçava, ali, na chuva negra. Deu um passo para trás
e o deixou cair...
... e o
Dentadas caiu sobre ela, aos guinchos.
Caiu como
uma avalanche de lã molhada e carne de um branco de leite,
erguendo-a no ar e atirando-a ao chão. Brienne caiu numa poça com
um splash que lhe atirou água pelo nariz e para dentro dos olhos.
Todo o ar foi forçado a sair de seus pulmões, e a cabeça estalou
com um crac de encontro a uma pedra semienterrada.
- Não -
foi tudo que teve tempo de dizer antes de Dentadas cair em cima dela,
enterrando-a mais na lama com seu peso. Uma das mãos dele estava em
seus cabelos, puxando sua cabeça para trás. A outra procurava sua
garganta às apalpadelas. A Cumpridora de Promessas desaparecera,
arrancada de suas mãos. Era tudo que tinha para lutar contra ele,
mas quando lhe atingiu o rosto com um punho, foi como esmurrar uma
bola de úmida e branca massa de pão. Ele silvou.
Brienne
voltou a bater nele, e de novo, e de novo, atingindo-lhe o olho com a
base da mão, mas ele não parecia sentir seus golpes. Arranhou-lhe
os pulsos, mas o aperto só se tornou mais forte, embora sangue
escorresse dos cortes que deixara ao arranhá-lo. Ele a estava
esmagando e sufocando. Ela empurrou seus ombros, para fazê-lo sair
de cima, mas ele era pesado como um cavalo, impossível de mover.
Quando tentou dar-lhe uma joelhada nas virilhas, não conseguiu mais
do que enfiar-lhe o joelho na barriga. Grunhindo, Dentadas
arrancou-lhe um punhado de cabelo.
Meu
punhal. Brienne agarrou-se àquele pensamento, desesperada. Conseguiu
enfiar a mão entre ambos, com os dedos contorcendo-se sob a pele
acre e sufocante do homem, procurando até finalmente encontrar o
cabo. Dentadas pôs as mãos em volta de seu pescoço e começou a
bater sua cabeça contra o chão. O relâmpago voltou a brilhar,
daquela vez dentro de seu crânio, mas de algum modo os dedos
apertaram-se, puxando o punhal de dentro da bainha. Com o homem em
cima de si, Brienne não conseguia erguer a lâmina para apunhalá-lo,
por isso a empurrou com força contra sua barriga. Algo quente e
úmido jorrou entre seus dedos. Dentadas voltou a silvar, mais alto
do que antes, e largou sua garganta apenas tempo suficiente para
esmurrá-la no rosto. Ouviu ossos a estalar, e a dor a cegou por um
instante. Quando tentou voltar a golpeá-lo, ele arrancou-lhe o
punhal dos dedos e espetou-lhe um joelho no braço, quebrando-o.
Então, voltou a pegar sua cabeça e retomou a tentativa de
arrancá-la de entre os ombros.
Brienne
conseguia ouvir Cão latindo, e havia homens gritando a toda a volta,
e entre os trovões ouviu o tinir de aço em aço. Sor Hyle, pensou,
Sor Hyle juntou-se ao combate, mas tudo aquilo parecia longínquo e
sem importância. Seu mundo não era maior do que as mãos em sua
garganta e o rosto que pairava em cima de si. A chuva escorreu do
capuz dele quando se inclinou para mais perto. O hálito do homem
fedia a queijo apodrecido.
Brienne
tinha o peito ardendo, e a tempestade encontrava-se atrás de seus
olhos, cegando-a. Ossos raspavam uns nos outros dentro de seu corpo.
A boca do Dentadas escancarou-se com uma amplidão impossível.
Brienne viu-lhe os dentes, amarelos e tortos, afiados em ponta.
Quando se fecharam na carne macia de sua bochecha, ela quase não o
sentiu. Sentia-se cair em espiral para a escuridão. A inda não
posso morrer, disse a si mesma, há um a coisa que ainda preciso
fazer.
A boca do
Dentadas libertou-se, cheia de sangue e de carne. Cuspiu, sorriu e
voltou a afundar os dentes pontiagudos em sua carne. Daquela vez
mastigou e engoliu. Ele está me comendo, Brienne compreendeu, mas já
não lhe restavam forças para lutar. Sentiu-se como se flutuasse
sobre si mesma, observando o horror como se estivesse acontecendo com
outra mulher qualquer, uma garota estúpida que pensava ser um
cavaleiro. Terminará logo, disse a si mesma. Então não importará
se ele me comer. Dentadas puxou a cabeça para trás e voltou a abrir
a boca, uivando, deitando-lhe a língua de fora. Terminava numa ponta
aguçada e pingava sangue, mais longa do que qualquer língua devia
ser. Deslizando de dentro de sua boca para fora, e para fora, e para
fora, rubra, úmida e cintilante, era algo hediondo e obsceno. Sua
língua tem trinta centímetros de comprimento, pensou Brienne, logo
antes de ser levada pela escuridão. Olha, parece quase uma espada.
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