domingo, 22 de setembro de 2013

37 - BRIENNE



Encontraram o primeiro cadáver a uma milha do entroncamento.
Balançava sob o galho de uma árvore morta, cujo tronco enegrecido ainda ostentava as marcas do relâmpago que a vitimara. As gralhas-pretas tinham estado trabalhando em seu rosto, e os lobos haviam se banqueteado com a parte de baixo das pernas, que pendiam perto do solo. Só restavam ossos e trapos abaixo dos joelhos... e um sapato muito roído, semi coberto de lama e bolor.
- O que é que ele tem na boca? - Podrick perguntou.
Brienne teve de se erguer para olhar. O rosto do cadáver estava cinza, verde e horrendo, a boca, aberta e distendida. Alguém enfiara uma pedra branca e irregular entre seus dentes. Uma pedra, ou...
- Sal - Septão Meribald respondeu.
Cinquenta metros mais adiante viram o segundo corpo. Os necrófagos tinham-no puxado para baixo, de modo que o que dele restava encontrava-se espalhado no chão sob uma corda velha enrolada em volta do galho de um ulmeiro. Brienne podia ter passado sem notá-lo, se Cão não o tivesse farejado e saltado para as ervas daninhas, para cheirar mais de perto.
- O que você tem aí, Cão? - Sor Hyle desmontou, apressou-se a seguir o animal e deparou com um meio elmo. O crânio do morto ainda se encontrava lá dentro, acompanhado de algumas larvas e escaravelhos. - Bom aço - anunciou - e não está muito amassado, embora o leão tenha perdido a cabeça. Pod, quer um elmo?
- Esse não. Tem vermes aí dentro.
- Os vermes podem ser tirados, rapaz. É enjoado como uma garota.
Brienne franziu as sobrancelhas.
- É grande demais para ele.
- Ele há de crescer.
- Mas não quero - Podrick insistiu. Sor Hyle encolheu os ombros e atirou o elmo partido para a floresta, com leão e tudo. Cão latiu e foi erguer a perna contra a árvore.
Depois daquilo, dificilmente avançavam cem metros sem encontrar um cadáver. Pendiam sob freixos e amieiros, faias e vidoeiros, lariços e ulmeiros, velhos salgueiros embranquecidos e faustosos castanheiros. Cada homem tinha um laço em volta do pescoço e pendia de uma corda de cânhamo, e a boca de todos estava cheia de sal. Alguns usavam mantos cinzentos, azuis ou carmesins, embora a chuva e o sol os tivessem desbotado tanto que era difícil distinguir as cores umas das outras. Outros tinham símbolos cosidos ao peito. Brienne viu machados, flechas, vários salmões, um pinheiro, uma folha de carvalho, escaravelhos, pequenos galos, uma cabeça de javali, meia dúzia de tridentes. Desertores, compreendeu, a escória de uma dúzia de exércitos, os restos dos lordes.
Alguns dos mortos tinham sido calvos, outros, barbudos, alguns eram novos, outros, velhos, alguns tinham sido baixos, e alguns, altos; alguns eram gordos, outros, magros. Inchados na morte, com rosto roído e apodrecido, todos se assemelhavam. Na árvore da forca, todos os homens são irmãos. Brienne lera isso num livro, embora não conseguisse se recordar qual.
Foi Hyle Hunt quem finalmente expressou em palavras o que todos tinham compreendido.
- Foram estes os homens que saquearam Salinas.
- Que o Pai os julgue com dureza - disse Meribald, amigo do idoso septão da vila.
Quem eles eram estava longe de interessar tanto Brienne quanto quem os enforcara. O laço era o método de execução preferido de Beric Dondarrion e de seu bando de fora da lei, dizia-se. Se assim fosse, o dito senhor do relâmpago poderia perfeitamente encontrar-se por perto.
Cão latiu, e Septão Meribald olhou em volta e franziu as sobrancelhas.
- Vamos mais depressa? O sol vai se pôr em breve, e cadáveres são má companhia à noite. Estes homens, vivos, eram negros e perigosos. Duvido que a morte os tenha melhorado.
- Nisso discordamos - Sor Hyle se manifestou. - Estes são precisamente o tipo de homem que mais é aperfeiçoado pela morte - mesmo assim, esporeou o cavalo e todos aumentaram um pouco a velocidade.
Mais à frente, as árvores começaram a rarear, embora o mesmo não acontecesse aos cadáveres. Os bosques deram lugar a campos lamacentos, e os galhos das árvores, a cadafalsos. Nuvens de corvos erguiam-se aos guinchos dos cadáveres quando os viajantes se aproximavam, e voltavam a se instalar depois de passarem. Esses homens eram maus, recordou Brienne a si mesma, mas ver aquilo continuava a entristecê-la. Forçou-se a olhar para todos os homens, um de cada vez, em busca de rostos familiares. Pensou reconhecer alguns de Harrenhal, mas o estado em que estavam tornava difícil ter certeza. Nenhum tinha um elmo em forma de cabeça de cão, mas eram poucos os que tinham qualquer tipo de elmo. A maioria fora despida de armas, armadura e botas antes de ser pendurados.
Quando Podrick quis saber o nome da estalagem onde esperavam passar a noite, Septão Meribald apegou-se avidamente à pergunta, talvez para afastar do espírito de todos as horríveis sentinelas da beira da estrada.
- Alguns a chamam Velha Estalagem. Ali existe uma estalagem há muitas centenas de anos, embora esta só tenha sido construída durante o reinado do primeiro Jaehaerys, o rei que construiu a estrada do rei. Dizem que Jaehaerys e sua rainha dormiam ali durante suas viagens. Durante algum tempo, a estalagem foi conhecida como Duas Coroas, em sua honra, até que um estalajadeiro construiu uma torre sineira e mudou o nome para Estalagem do Toque de Sino. Mais tarde, passou para um cavaleiro aleijado chamado Jon Comprido Heddle, que se dedicou a trabalhar o ferro quando ficou idoso demais para combater. Ele forjou um novo sinal para o pátio, um dragão de três cabeças em ferro negro que pendurou em um poste de madeira. O animal era tão grande que teve de ser feito em uma dúzia de peças, unidas com corda e arame. Quando o vento soprava, tinia e ressoava, de modo que a estalagem se tornou conhecida por todo lado como o Dragão Ressonante.
- O sinal do dragão ainda está lá? - Podrick qui saber também.
- Não - Septão Meribald respondeu. - Quando o filho do ferreiro era já um velho, um filho bastardo do quarto Aegon ergueu-se em rebelião contra seu irmão legítimo e escolheu como símbolo um dragão negro. Estas terras pertenciam então a Lorde Darry, e sua senhoria era ferozmente leal ao rei. Ver o dragão de ferro negro o deixou furioso, e por isso derrubou o poste, fez o sinal em pedaços e os atirou ao rio. Uma das cabeças do dragão foi dar à costa na Ilha Quieta muitos anos mais tarde, embora nessa época estivesse vermelha de ferrugem. O estalajadeiro não voltou a pendurar outro sinal, e os homens esqueceram-se do dragão e se acostumaram a chamar o lugar de Estalagem do Rio. Nesses dias, o Tridente passava por baixo de sua porta dos fundos, e metade dos quartos foi construída por cima da água. Diz-se que os hóspedes podiam jogar uma linha pela janela e apanhar trutas. Também havia ali um embarcadouro, de onde os viajantes podiam atravessar para a Vila do Lorde Harroway e para Alvasparedes.
- Deixamos o Tridente ao sul daqui e temos avançado para o norte e o oeste... não na direção do rio, mas para longe dele.
- Sim, senhora - o septão confirmou. - O rio se deslocou. Foi há setenta anos. Ou terá sido há oitenta? Foi quando o avô da velha Masha Heddle era dono do lugar. Foi ela quem me contou toda essa história. Uma mulher amável, a Masha, amiga de folhamarga e de bolos de mel. Quando não tinha um quarto para mim, deixava-me dormir junto da lareira, e nunca me mandou embora sem um pouco de pão e queijo e alguns bolos duros.
- É ela agora a estalajadeira? - Podrick perguntou.
- Não. Os leões a enforcaram. Depois de irem embora, ouvi dizer que um dos sobrinhos tentou reabrir a estalagem, mas as guerras tornaram as estradas perigosas demais para as pessoas comuns viajarem, de modo que havia pouca freguesia. Ele trouxe prostitutas, mas nem isso conseguiu salvá-lo. Algum lorde também o matou, segundo ouvi dizer.
Sor Hyle fez uma careta.
- Nunca imaginei que ser dono de estalagem fosse um perigo tão mortal.
- O que é perigoso é ter nascimento plebeu, quando os grandes senhores jogam seu jogo dos tronos - Septão Meribald rebateu. - Não é verdade, Cão? - Cão latiu seu acordo.
- E então - disse Podrick - a estalagem tem algum nome agora?
- O povo a chama de a Estalagem do Entroncamento. O Irmão Mais Velho me disse que duas das sobrinhas de Masha Fleddle voltaram a abri-la à clientela - ergueu o cajado. - Se os deuses forem bons, aquela fumaça que se ergue atrás dos enforcados sai de suas chaminés.
- Podiam chamar o lugar de Estalagem da Forca - Sor Hyle sugeriu.
Qualquer que fosse o nome, a estalagem era grande, erguendo-se três andares acima das estradas lamacentas, com paredes, torreões e chaminés feitos de boa pedra branca que rebrilhava, pálida e fantasmagórica, contra o céu cinzento. Sua ala sul tinha sido construída sobre pesados pilares de madeira por cima de uma rachada e afundada extensão de ervas daninhas e grama morta e marrom. Um estábulo com telhado de colmo e uma torre sineira tinham sido ligados ao lado norte. Todo o complexo era cercado por um muro baixo de pedras brancas, quebradas e cobertas de musgo.
Pelo menos ninguém a incendiou. Em Salinas, só tinham encontrado morte e desolação. Quando Brienne e os companheiros chegaram de barco, vindos da Ilha Quieta, os sobreviventes já tinham fugido, e os mortos estavam entregues à terra, mas ficara o cadáver da própria vila, em cinzas e por enterrar. O ar ainda cheirava a fumaça, e os gritos das gaivotas flutuando na aragem pareciam quase humanos, como lamentos de crianças perdidas. Até o castelo parecia esquecido e abandonado. Cinzento como as cinzas da vila ao redor, ele consistia de uma torre quadrada cercada por uma muralha exterior, construída de forma a dominar o porto. Estava bem fechado quando Brienne e os outros fizeram os cavalos sair do barco, sem nada em movimento nas suas ameias, a não ser estandartes. Foi preciso um quarto de hora de latidos do Cão e de batidas do Septão Meribald ao portão da frente com o bastão para que uma mulher aparecesse por cima deles e quisesse saber o que pretendiam.
Àquela altura o barco já partira e começava a chover.
- Sou um santo septão, minha boa senhora - Meribald gritou para cima - e estes são honestos viajantes. Procuramos abrigo da chuva e um lugar perto de sua lareira para passar a noite - a mulher não se deixou comover por seu apelo.
- A estalagem mais próxima fica no entroncamento, a oeste - ela respondeu. - Não queremos estranhos aqui. Fora - depois de ela desaparecer, nem as preces de Meribald, nem os latidos de Cão, nem as pragas de Sor Hyle conseguiram trazê-la de volta. Por fim, passaram a noite na floresta, sob um abrigo feito de galhos entrelaçados.
Mas na estalagem do entroncamento havia vida. Mesmo antes de chegarem ao portão, Brienne ouviu o som de marteladas, tênues, mas contínuas. Traziam um ressoar metálico.
- Uma forja - Sor Hyle observou. - Ou têm com eles um ferreiro ou o fantasma do velho estalajadeiro está fazendo outro dragão de ferro - esporeou o cavalo. - Espero que também tenham um cozinheiro fantasma. Um frango assado e estaladiço era coisa para pôr o mundo nos eixos.
O pátio da estalagem era um mar de lama marrom que sugava os cascos dos cavalos. O clangor do aço era mais alto ali, e Brienne viu o brilho rubro da forja para lá da extremidade mais distante dos estábulos, por trás de um carro de bois com uma roda partida. Também via cavalos nos estábulos, e um garoto pequeno se balançava pendurado nas correntes enferrujadas da velha forca que se erguia acima do pátio. Quatro garotas estavam no alpendre da estalagem, observando-o. A mais nova não tinha mais de dois anos, e estava nua. A mais velha, com nove ou dez anos, tinha os braços protetoralmente em volta da pequena.
- Meninas - gritou-lhes Sor Hyle - vão correndo buscar sua mãe.
O garoto deixou-se cair da corrente e se precipitou para os estábulos. As quatro garotas mostraram-se inquietas. Passado um momento, uma delas disse:
- Não temos mães.
E outra acrescentou:
- Eu tive, mas eles a mataram.
A mais velha das quatro deu um passo adiante, empurrando a pequena para trás de sua saia.
- Quem é você? - quis saber.
- Honestos viajantes em busca de abrigo. Meu nome é Brienne, e este é o Septão Meribald, que é bem conhecido nas terras fluviais. O garoto é meu escudeiro, Podrick Payne, e o cavaleiro é Sor Hyle Hunt.
O martelar parou de súbito. A garota no alpendre os examinou, desconfiada como só alguém de dez anos sabe ser.
- Meu nome é Willow. Vão querer camas?
- Camas, cerveja e comida quente que nos encha a barriga - Sor Hyle Hunt respondeu enquanto desmontava. - Você é a estalajadeira?
Ela balançou a cabeça.
- A estalajadeira é a minha irmã Jeyne. Ela não está aqui. Só temos carne de cavalo para comer. Se vem em busca de prostitutas, não há. Minha irmã correu com elas. Mas temos camas. Algumas com colchão de penas, mas a maioria tem colchão de palha.
- E todas elas têm pulgas, não duvido - Sor Hyle retrucou.
- Tem moedas para pagar? Prata?
Sor Hyle deu risada.
- Prata? Por uma noite em uma cama e um pernil de cavalo? Pretende nos roubar, criança?
- Queremos prata. Caso contrário, podem dormir na floresta com os mortos - Willow olhou de relance o burro e os barris e trouxas que tinha ao lombo. - Aquilo é comida? Onde arranjou?
- Lagoa da Donzela - Meribald respondeu. Cão latiu.
- Interroga todos os seus hóspedes dessa maneira? - perguntou Sor Hyle.
- Não temos tantos hóspedes assim. Não é como antes da guerra. Hoje em dia é principalmente pardais que andam pelas estradas, ou gente pior.
- Pior? - Brienne espantou-se.
- Ladrões - disse uma voz de rapaz vinda dos estábulos. - Assaltantes.
Brienne virou-se e viu um fantasma,
Renly. Nenhum golpe de martelo no coração poderia tê-la abatido tanto.
- Senhor? - arquejou.
- Senhor? - o rapaz empurrou para trás uma madeixa de cabelos negros que lhe caíra sobre os olhos. - Sou só um ferreiro.
Ele não é Renly, Brienne compreendeu. Renly está morto. Renly morreu em meus braços, e era um homem de vinte e um anos. Este é só um rapaz. Um rapaz que se parecia com aquele Renly que viera pela primeira vez a Tarth. Não, mais novo. Tem o queixo mais quadrado, e as sobrancelhas mais espessas. Renly era esbelto e flexível, ao passo que aquele rapaz tinha os ombros pesados e o braço direito musculoso tão frequente nos ferreiros. Usava um longo avental de couro, mas por baixo tinha o tronco nu. Uma barba escura por fazer cobria-lhe as bochechas e o queixo, e tinha uma espessa cabeleira negra que lhe tapava as orelhas. Os cabelos do Rei Renly eram daquele negro de carvão, mas os dele sempre estavam limpos, escovados e penteados. Por vezes os cortava curtos, outras, deixava-os cair, soltos, sobre os ombros, ou presos num rabo de cavalo com uma fita dourada, mas nunca se mostravam emaranhados ou empapados de suor. E embora seus olhos fossem daquele mesmo azul profundo, os de Lorde Renly sempre tinham sido calorosos e receptivos, cheios de risos, ao passo que os daquele rapaz transbordavam de fúria e desconfiança.
O septão também o viu.
- Não pretendemos nenhum mal, rapaz. Quando esta estalagem era de Masha Heddle, sempre teve um bolo de mel para mim. Por vezes, ela até me deixava dormir em uma cama, se a estalagem não estivesse cheia.
- Ela está morta - disse o rapaz. - Os leões a enforcaram.
- Enforcar gente parece ser o passatempo preferido neste lugar - Sor Hyle Hunt observou. - Gostaria de ter um pouco de terra por aqui. Plantaria cânhamo, venderia corda e faria minha fortuna.
- Todas essas crianças - disse Brienne para a garota chamada Willow. - São suas... irmãs? Irmãos? Parentes diretos e primos?
- Não - Willow a fitava de um modo que Brienne conhecia bem. - São só... não sei... os pardais os trazem para cá, às vezes. Outros chegam sozinhos. Se é uma mulher, por que se veste como um homem?
Septão Meribald respondeu.
- Senhora Brienne é uma donzela guerreira em uma demanda. Mas, neste momento, precisa de uma cama seca e uma fogueira quente. Assim como todos nós. Meus velhos ossos dizem que vai voltar a chover, e logo. Tem quartos para nós?
- Não -disse o jovem ferreiro.
- Sim - disse a garota chamada Willow.
Trocaram olhares furiosos. Então Willow bateu com o pé no chão.
- Eles têm comida, Gendry. O s pequenos estão com fome - ela assobiou, e surgiram mais crianças como que por magia; garotos esfarrapados com madeixas por cortar saíram engatinhando por debaixo do alpendre, e furtivas garotas surgiram em janelas que davam para o pátio. Alguns traziam bestas, retesadas e carregadas.
- Podiam chamar o lugar de a Estalagem das Bestas - Sor Hyle sugeriu.
A Estalagem dos Órfãos seria mais apropriado, Brienne pensou.
- Wat, ajude-os com os cavalos - disse Willow. - Will, jogue essa pedra fora, eles não vieram nos fazer mal. Tanásia, Pate, vão buscar lenha para alimentar o fogo. Jon Vintém, ajude o septão com aqueles fardos. Eu lhes mostro uns quartos.
Por fim, escolheram três quartos adjacentes uns aos outros, cada um com sua cama com colchão de penas e sua janela. O de Brienne também tinha uma lareira. Pagou mais algumas moedas por um pouco de lenha.
- Eu durmo em seu quarto ou no de Sor Hyle? - perguntou Podrick enquanto ela abria as janelas.
- Aqui não é a Ilha Quieta - Bienne disse-lhe. - Pode ficar comigo - ao amanhecer, pretendia que os dois partissem sozinhos. Septão Meribald ia prosseguir para Nogueira, Meandro e para a Vila de Lorde Harroway, mas Brienne não via sentido em continuar seguindo-o. Ele tinha Cão para lhe fazer companhia, e o Irmão Mais Velho a persuadira de que não encontraria Sansa Stark ao longo do Tridente. - Pretendo me levantar antes de o sol nascer, enquanto Sor Hyle ainda estiver dormindo - Brienne não lhe perdoara por Jardim de Cima... e, como ele mesmo dissera, Hunt não prestara juramento algum a respeito de Sansa.
- Para onde vamos, sor? Quer dizer, senhora?
Brienne não tinha resposta pronta para lhe dar. Tinham chegado a uma encruzilhada, literalmente; o lugar onde a estrada do rei, a estrada do rio e a estrada de altitude se juntavam. Esta última os levaria para leste, através das montanhas, até o Vale de Arryn, onde a tia da Senhora Sansa governara até sua morte. Para oeste, corria a estrada do rio, que seguia o curso do Ram o Vermelho até Correrrio e ao tio-avô de Sansa, que estava cercado, mas ainda vivo. Ou então podiam seguir para o norte, pela estrada do rei, passando pelas Gêmeas e pelo Gargalo, com seus pântanos e lodaçais. Se conseguisse encontrar uma forma de passar por Fosso Cailin e por quem quer que agora controlasse o castelo, a estrada do rei os levaria até Winterfell.
Ou podia seguir pela estrada do rei para o sul, pensou Brienne. Podia escapulir de volta para Porto Real, confessar a Sor Jaime meu fracasso, devolver-lhe a espada e arranjar um navio que me levasse para Tarth, como Irmão Mais Velho me instou a fazer. A ideia era amarga, mas havia uma parte de si que ansiava por Entardecer e pelo pai, e outra que perguntava a si mesma se Jaime a confortaria caso chorasse em seu ombro. Era isso o que os homens queriam, não era? Mulheres delicadas e impotentes, que precisavam ser protegidas?
- Sor? Senhora? Eu perguntei para onde vamos.
- Lá para baixo, para a sala comum, jantar.
A sala comum estava repleta de crianças. Brienne tentou contá-las, mas não paravam quietas por um instante, de modo que contou algumas duas ou três vezes e outras não chegou a contar, até finalmente desistir. Tinham juntado as mesas para formar três longas fileiras, e os garotos mais velhos carregavam bancos da parte de trás. Mais velho queria dizer dez ou doze anos, Gendry era o que havia de mais próximo a um homem-feito, mas era Willow quem gritava todas as ordens, como se fosse uma rainha em seu castelo e as outras crianças não passassem de criados.
Se ela fosse bem-nascida, o comando lhe seria natural, assim como a deferência para os outros. Brienne perguntou a si mesma se Willow poderia ser mais do que aparentava. A garota era nova e simples demais para ser Sansa Stark, mas tinha a idade certa para ser a irmã caçula, e até a Senhora Catelyn dissera que faltava a Arya a beleza da irmã. Cabelos castanhos, olhos castanhos, magricela... Poderia ser? Lembrava-se de os cabelos de Arya Stark serem castanhos, mas Brienne não estava certa quanto à cor de seus olhos. Ambos castanhos, seria? Será que ela não tinha morrido em Salinas, afinal?
Lá fora, a última luz do dia apagava-se. Dentro da estalagem, Willow mandara acender quatro gordurosas velas de sebo e dissera às garotas para manter a lareira com fogo vivo e quente. Os garotos ajudaram Podrick Payne a descarregar o burro e levaram para dentro o bacalhau salgado, o carneiro, os legumes, as frutas secas e as rodelas de queijo, enquanto Septão Meribald se dirigia à cozinha para se encarregar do mingau de aveia.
- Infelizmente, já não tenho laranjas, e duvido que veja mais alguma até a primavera - disse ele a um garotinho. - Já comeu uma laranja, menino? Alguma vez espremeu uma e chupou seu sumo? - quando o garoto balançou a cabeça numa negativa, o septão despenteou-lhe os cabelos. - Então eu lhe trarei uma, quando chegar a primavera, se for um bom menino e me ajudar a mexer o mingau.
Sor Hyle tirou as botas para aquecer os pés junto à lareira. Quando Brienne se sentou ao seu lado, ele indicou com a cabeça o outro lado da sala.
- Há manchas de sangue no chão, ali onde o Cão está farejando. Foram raspadas, mas o sangue introduziu-se profundamente na madeira, e não há maneira de tirá-lo de lá.
- Foi esta a estalagem em que Sandor Clegane matou três dos homens do irmão - recordou Brienne.
- Sim, foi - concordou Hunt - mas quem poderá dizer que foram os primeiros a morrer aqui... ou que serão os últimos?
- Tem medo de um punhado de crianças?
- Quatro seriam um punhado. Dez seriam uma indigestão. Isto é uma cacofonia. As crianças deviam ser embrulhadas em fraldas e penduradas na parede até crescer o peito às garotas e os rapazes terem idade para fazer a barba.
- Tenho pena delas. Todas perderam a mãe e o pai. Algumas os viram ser mortos.
Hunt revirou os olhos.
- Esqueci-me de que estava falando com uma mulher. Seu coração é tão mole quanto o mingau de nosso septão. Será possível? Em algum lugar dentro dessa espadachim está uma mãe aflita por dar à luz. O que realmente deseja é um bebê cor-de-rosa para mamar em seu peito - Sor Hyle abriu um sorriso. - Para isso precisa de um homem, segundo ouvi dizer. Um marido, de preferência. Por que não eu?
- Ainda espera ganhar sua aposta...
- O que quero ganhar é você, a única descendente viva de Lorde Selwyn. Sei de homens que se casaram com desmioladas e bebês de peito por propriedades com um décimo do tamanho de Tarth. Não sou Renly Baratheon, confesso, mas tenho a virtude de ainda estar entre os vivos. Há quem diga que esta é a minha única virtude. O casamento seria útil para ambos. Terras para mim, e um castelo cheio disto para você - indicou as crianças com um movimento de mão. - Eu sou capaz, asseguro-lhe. Gerei pelo menos uma bastarda, que eu saiba. Não tenha medo, não a obrigarei a acolhê-la. Da última vez que fui vê-la, a mãe me deu um banho com uma panela de sopa.
Um rubor subiu pelo pescoço de Brienne.
- Meu pai tem só quarenta e quatro anos. Não é velho demais para voltar a se casar e ter um filho com sua nova esposa.
- Isso é um risco... Se seu pai voltar a se casar e se sua noiva demonstrar ser fértil e se o bebê for um garoto. Já fiz apostas piores.
- E perdeu. Jogue seu jogo com outra, sor.
- Assim fala uma donzela que nunca jogou o jogo com ninguém. Uma vez que o jogue, adotará outro modo de ver as coisas. No escuro, é tão bela quanto qualquer outra mulher. Seus lábios foram feitos para serem beijados.
- São lábios - disse Brienne. - Todos são iguais.
- E todos os lábios são feitos para serem beijados - concordou Hunt em um tom agradável. - Deixe a porta do seu quarto destrancada esta noite, e eu me esgueirarei para sua cama para lhe demonstrar a verdade do que digo.
- Se o fizer, será um eunuco quando for embora - Brienne levantou-se e se afastou dele.
Septão Meribald perguntou se podia fazer com as crianças uma oração de graças, ignorando a garotinha que engatinhava nua sobre a mesa.
- Sim - Willow concordou, pegando a garota antes de ela conseguir chegar ao mingau. E assim abaixaram juntos a cabeça e agradeceram ao Pai e à Mãe as suas dádivas... Todos, menos o rapaz de cabelos negros da forja, que cruzou os braços e ficou quieto, os olhos cheios de fúria, enquanto os outros rezavam. Brienne não foi a única a reparar nisso.
Quando a oração terminou, Septão Meribald atravessou a mesa com o olhar e disse:
- Não tem amor pelos deuses, filho?
- Pelos seus deuses, não - Gendry levantou-se abruptamente. - Tenho trabalho a fazer - e saiu a passos largos, sem dar sequer uma mordida na comida.
- Há algum outro deus que ele adore? - Hyle Hunt quis saber.
- O Senhor da Luz - esganiçou-se um garotinho esquelético, que não teria mais de seis anos.
Willow bateu-lhe com a colher.
- Ben Boca Grande. Há comida. Devia estar comendo em vez de incomodar os senhores com conversas.
As crianças caíram sobre o jantar como lobos cairiam sobre um veado ferido, discutindo por causa do bacalhau, fazendo em pedaços o pão de centeio e enchendo tudo de mingau. Nem a enorme rodela de queijo sobreviveu por muito tempo. Brienne contentou-se com peixe, pão e cenouras, enquanto Septão Meribald dava duas colheradas ao cão a cada uma que ele mesmo comia. Lá fora, começou a chover. Dentro, o fogo crepitava e a sala comum estava cheia de ruídos de mastigar e dos barulhos produzidos por Willow quando batia nas crianças com a colher.
- Um dia, aquela garota será uma temível esposa para um homem qualquer - observou Sor Hyle. - Aquele pobre aprendiz, provavelmente.
- Alguém devia levar-lhe alguma comida, antes que acabe.
- Você é alguém.
Brienne enrolou num pano uma cunha de queijo, uma fatia de pão, uma maçã seca e dois pedaços de bacalhau frito desfazendo-se. Quando Podrick se levantou para segui-la, ela lhe disse para voltar a se sentar e comer.
- Não demoro.
A chuva caía pesadamente no pátio. Brienne cobriu a comida com uma dobra do manto. Alguns dos cavalos relincharam para ela quando passou pelos estábulos. Eles também têm fome.
Gendry estava na forja, de peito nu por baixo de seu avental de couro. Martelava uma espada como se desejasse que ela fosse um inimigo, com os cabelos ensopados de suor caindo-lhe sobre a testa. Brienne ficou a observá-lo por um momento. Ele tem os olhos de Renly e os cabelos de Renly, mas não a sua constituição. Lorde Renly era mais esguio do que musculoso... ao contrário do irmão, Robert, cuja força era legendária.
Foi só quando parou para limpar a testa que Gendry a viu ali parada.
- O que você quer?
- Trouxe o jantar - abriu o embrulho para ele ver.
- Se eu quisesse comida, teria comido alguma.
- Um ferreiro precisa comer para manter as forças.
- É minha mãe?
- Não - Brienne pousou a comida. - Quem era sua mãe?
- O que você tem a ver com isso?
- Nasceu em Porto Real - o modo como ele falava dava-lhe essa certeza.
- Eu e muitos outros - e mergulhou a espada numa cuba de água da chuva para temperá-la. O aço quente silvou, furioso.
- Quantos anos tem? - Brienne quis saber. - Sua mãe ainda está viva? E seu pai, quem era ele?
- Faz perguntas demais - ele pousou a espada. - Minha mãe está morta, e nunca conheci meu pai.
- É um bastardo.
Ele tomou aquilo como um insulto.
- Sou um cavaleiro. Esta espada será minha em breve, assim que a terminar.
O que um cavaleiro estaria fazendo trabalhando numa forja?
- Tem cabelos negros e olhos azuis, e nasceu à sombra da Fortaleza Vermelha. Nunca ninguém reparou na sua cara?
- O que minha cara tem de errado? Não é tão feia quanto a sua.
- Em Porto Real deve ter visto Rei Robert.
Ele encolheu os ombros.
- As vezes. Em torneios, de longe. Uma vez no Septo de Baelor. Os homens de manto dourado empurraram-nos para o lado, para que ele pudesse passar. Outra vez, estava brincando perto do Portão da Lama quando ele voltou de uma caçada. Estava tão bêbado que quase me atropelou. Era um grande beberrão gordo, mas melhor rei do que esses seus filhos.
Eles não são seus filhos. Stannis disse a verdade, naquele dia em que se encontrou com Renly. Joffrey e Tommen nunca foram filhos de Robert. Mas esse rapaz...
- Escute-me - Brienne começou. Então ouviu Cão latir, ruidosa e freneticamente. - Alguém vem vindo.
- Amigos - Gendry respondeu, sem se mostrar preocupado.
- Que tipo de amigos? - Brienne dirigiu-se à porta da forja para espreitar através da chuva.
Ele encolheu os ombros.
- Irá conhecê-los bem depressa,
Posso não querer conhecê-los, ela pensou, enquanto os primeiros cavaleiros surgiam, espirrando água das poças no pátio. Sob o tamborilar da chuva e os latidos do Cão, conseguiu ouvir o tênue tinir de espadas e cotas de malha sob seus mantos esfarrapados. Contou-os à medida que foram aparecendo. Dois, quatro, seis, sete. Alguns estavam feridos, julgando pelo modo como cavalgavam. O último homem era maciço e pesado, tão grande quanto dois dos outros. Seu cavalo estava exausto e ensanguentado, e cambaleava sob seu peso. Todos os cavaleiros tinham os capuzes erguidos contra a chuva intensa, exceto ele. Seu rosto era largo e sem pelos, com uma palidez de verme, e as bochechas redondas estavam cobertas de chagas.
Brienne susteve a respiração e puxou pela Cumpridora de Promessas. Muitos, pensou, com um sobressalto de medo, eles são muitos.
- Gendry - disse em voz baixa - vai querer uma espada e armadura. Estes não são seus amigos. Não são amigos de ninguém.
- Do que está falando? - o rapaz aproximou-se e parou atrás dela, de martelo na mão.
Um relâmpago estalou para o sul enquanto os cavaleiros desmontavam. Durante meio segundo, a escuridão transformou-se em dia. Um machado cintilou num azul prateado, luz refletiu-se em cotas de malha e placas de aço, e sob o escuro capuz do cavaleiro da frente Brienne vislumbrou um focinho de ferro e fileiras de dentes de aço rosnando.
Gendry também o viu.
-Ele.
- Não é ele. É seu elmo - Brienne tentou manter o medo afastado da voz, mas tinha a boca seca como poeira. Fazia uma ideia bastante precisa de quem usava o elmo do Cão de Caça. As crianças, pensou.
A porta da estalagem abriu-se com estrondo. Willow saiu para a chuva com uma besta na mão. A garota gritava para os cavaleiros, mas um trovão rolou pelo pátio, afogando suas palavras. Quando o estrondo se desvaneceu, Brienne ouviu o homem dentro do elmo do Cão de Caça dizer:
- Dispare um dardo contra mim, e eu enfio essa besta na sua boceta e fodo você com ela. Depois arranco o caralho de seus olhos e obrigo você a comê-los - a fúria na voz do homem fez Willow recuar um passo, tremendo.
Sete, Brienne voltou a pensar, em desespero. Sabia que não tinha chance contra sete. Nem chance, nem alternativa.
Saiu para a chuva, com a Cumpridora de Promessas na mão.
- Deixe-a em paz. Se quer violar alguém, experimente comigo.
Os fora da lei viraram-se como um só homem. Um deles riu, e outro disse qualquer coisa numa língua que Brienne não entendia. O enorme homem com o largo rosto branco soltou um ssssssssssssss malévolo. O homem com o elmo do Cão de Caça desatou a rir.
- É ainda mais feia do que me lembrava. Mais depressa violava seu cavalo.
- Cavalos, é isso que queremos - disse um dos homens feridos. - Cavalos descansados e alguma comida. Alguns fora da lei vêm atrás de nós. Dê-nos seus cavalos e vamos embora. Não queremos lhes fazer mal.
- Que se foda essa merda - o fora da lei com o elmo do Cão de Caça puxou da sela um machado de batalha. - Quero cortar-lhe a merda das pernas. Vou colocá-la em cima dos tocos pra que me veja foder a garota da besta.
- Com o quê? - Brienne o provocou. - Shagwell disse que cortaram seu membro viril quando o deixaram sem nariz.
Queria provocá-lo, e conseguiu. Berrando pragas, ele correu para ela, fazendo saltar respingos de água negra enquanto atacava. Os outros deixaram-se ficar para trás, a fim de assistir ao espetáculo, como ela rezara para que fizessem. Brienne ficou imóvel como pedra, à espera. O pátio estava escuro, e a lama, escorregadia sob os pés. É melhor deixar que ele venha até mim. Se os deuses forem bons, há de escorregar e cair.
Os deuses não eram assim tão bons, mas a espada dela era. Cinco passos, quatro passos, agora, contou Brienne, e a Cumpridora de Promessas ergueu-se ao encontro do ímpeto dele. Aço bateu em aço quando a lâmina de Brienne atravessou os farrapos do homem e abriu uma fenda em sua cota de malha, no mesmo momento em que seu machado caía sobre ela. Brienne esquivou-se para o lado, voltando a golpear-lhe o peito na retirada.
Ele a seguiu, cambaleando e sangrando, rugindo em fúria.
- Puta! - trovejou. - Anormal! Cadela! Vou dar você ao meu cão para fodê-la, sua cadela de merda! - seu machado rodopiava em arcos assassinos, uma brutal sombra negra que se tornava prateada sempre que um relâmpago surgia. Brienne não tinha escudo para parar os golpes. Tudo que podia fazer era recuar, afastando-se dele, correndo para um lado ou para outro, enquanto a cabeça do machado voava contra si. Um a vez, a lama cedeu sob seu calcanhar e ela quase caiu, mas recuperou o equilíbrio sem saber bem como, embora o machado tivesse raspado em seu ombro esquerdo, deixando uma braseiro de dor em seu rastro.
- Atingiu a puta - gritou um dos homens, e outro disse:
- Vamos lá ver como é que ela dança para longe desse golpe.
E dançar foi o que ela fez, aliviada por eles estarem assistindo. Antes isso do que interferirem. Não podia lutar contra sete, sozinha não, mesmo se um ou dois estivessem feridos. O velho Sor Goodwin estava havia muito em sua tumba, e no entanto Brienne conseguia ouvi-lo murmurando em seu ouvido. Os homens irão sempre subestimá-la, dizia, e seu orgulho os fará querer vencê-la depressa, para que não se diga que uma mulher lhes deu luta. Deixe-os gastar as forças em ataques furiosos, enquanto conserva as suas. Espere e observe, menina, espere e observe. E ela esperou, observando, movendo-se de lado, e logo para trás, e então de novo para o lado, golpeando ora o rosto dele, ora as pernas, ora o braço. Os golpes dele começaram a cair mais devagar quando o machado se tornou mais pesado. Brienne virou-o para que a chuva caísse sobre seus olhos e deu dois passos rápidos para trás. Ele ergueu o machado uma vez mais, praguejando, e saltou sobre ela, com um pé deslizando na lama...
... E ela saltou para enfrentar seu ataque, com ambas as mãos no cabo da espada. O ataque precipitado dele trouxe-o de encontro à ponta da espada, e a Cumpridora de Promessas trespassou pano, cota de malha, couro e mais pano, afundou-se profundamente em suas entranhas e saiu por suas costas, fazendo um som de arranhar ao raspar-lhe a coluna. O machado do homem caiu de seus dedos sem força, e ele tombou sobre ela, esmagando o rosto de Brienne com o elmo da Cabeça de Cão. Brienne sentiu o metal frio e molhado contra o rosto. Chuva caía em rios pelo aço e, quando o relâmpago voltou a surgir, ela viu dor e medo, e uma completa incredulidade através das fendas para os olhos.
- Safiras - segredou-lhe, enquanto dava à sua lâmina uma forte torção que o fez estremecer. O peso dele desabou sobre ela, e de repente era um cadáver que abraçava, ali, na chuva negra. Deu um passo para trás e o deixou cair...
... e o Dentadas caiu sobre ela, aos guinchos.
Caiu como uma avalanche de lã molhada e carne de um branco de leite, erguendo-a no ar e atirando-a ao chão. Brienne caiu numa poça com um splash que lhe atirou água pelo nariz e para dentro dos olhos. Todo o ar foi forçado a sair de seus pulmões, e a cabeça estalou com um crac de encontro a uma pedra semienterrada.
- Não - foi tudo que teve tempo de dizer antes de Dentadas cair em cima dela, enterrando-a mais na lama com seu peso. Uma das mãos dele estava em seus cabelos, puxando sua cabeça para trás. A outra procurava sua garganta às apalpadelas. A Cumpridora de Promessas desaparecera, arrancada de suas mãos. Era tudo que tinha para lutar contra ele, mas quando lhe atingiu o rosto com um punho, foi como esmurrar uma bola de úmida e branca massa de pão. Ele silvou.
Brienne voltou a bater nele, e de novo, e de novo, atingindo-lhe o olho com a base da mão, mas ele não parecia sentir seus golpes. Arranhou-lhe os pulsos, mas o aperto só se tornou mais forte, embora sangue escorresse dos cortes que deixara ao arranhá-lo. Ele a estava esmagando e sufocando. Ela empurrou seus ombros, para fazê-lo sair de cima, mas ele era pesado como um cavalo, impossível de mover. Quando tentou dar-lhe uma joelhada nas virilhas, não conseguiu mais do que enfiar-lhe o joelho na barriga. Grunhindo, Dentadas arrancou-lhe um punhado de cabelo.
Meu punhal. Brienne agarrou-se àquele pensamento, desesperada. Conseguiu enfiar a mão entre ambos, com os dedos contorcendo-se sob a pele acre e sufocante do homem, procurando até finalmente encontrar o cabo. Dentadas pôs as mãos em volta de seu pescoço e começou a bater sua cabeça contra o chão. O relâmpago voltou a brilhar, daquela vez dentro de seu crânio, mas de algum modo os dedos apertaram-se, puxando o punhal de dentro da bainha. Com o homem em cima de si, Brienne não conseguia erguer a lâmina para apunhalá-lo, por isso a empurrou com força contra sua barriga. Algo quente e úmido jorrou entre seus dedos. Dentadas voltou a silvar, mais alto do que antes, e largou sua garganta apenas tempo suficiente para esmurrá-la no rosto. Ouviu ossos a estalar, e a dor a cegou por um instante. Quando tentou voltar a golpeá-lo, ele arrancou-lhe o punhal dos dedos e espetou-lhe um joelho no braço, quebrando-o. Então, voltou a pegar sua cabeça e retomou a tentativa de arrancá-la de entre os ombros.
Brienne conseguia ouvir Cão latindo, e havia homens gritando a toda a volta, e entre os trovões ouviu o tinir de aço em aço. Sor Hyle, pensou, Sor Hyle juntou-se ao combate, mas tudo aquilo parecia longínquo e sem importância. Seu mundo não era maior do que as mãos em sua garganta e o rosto que pairava em cima de si. A chuva escorreu do capuz dele quando se inclinou para mais perto. O hálito do homem fedia a queijo apodrecido.
Brienne tinha o peito ardendo, e a tempestade encontrava-se atrás de seus olhos, cegando-a. Ossos raspavam uns nos outros dentro de seu corpo. A boca do Dentadas escancarou-se com uma amplidão impossível. Brienne viu-lhe os dentes, amarelos e tortos, afiados em ponta. Quando se fecharam na carne macia de sua bochecha, ela quase não o sentiu. Sentia-se cair em espiral para a escuridão. A inda não posso morrer, disse a si mesma, há um a coisa que ainda preciso fazer.
A boca do Dentadas libertou-se, cheia de sangue e de carne. Cuspiu, sorriu e voltou a afundar os dentes pontiagudos em sua carne. Daquela vez mastigou e engoliu. Ele está me comendo, Brienne compreendeu, mas já não lhe restavam forças para lutar. Sentiu-se como se flutuasse sobre si mesma, observando o horror como se estivesse acontecendo com outra mulher qualquer, uma garota estúpida que pensava ser um cavaleiro. Terminará logo, disse a si mesma. Então não importará se ele me comer. Dentadas puxou a cabeça para trás e voltou a abrir a boca, uivando, deitando-lhe a língua de fora. Terminava numa ponta aguçada e pingava sangue, mais longa do que qualquer língua devia ser. Deslizando de dentro de sua boca para fora, e para fora, e para fora, rubra, úmida e cintilante, era algo hediondo e obsceno. Sua língua tem trinta centímetros de comprimento, pensou Brienne, logo antes de ser levada pela escuridão. Olha, parece quase uma espada.  

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