segunda-feira, 30 de setembro de 2013

33 - TYRION


O Selaesori Qhoran estava a sete dias de Volantis quando Merreca finalmente saiu da cabine, subindo ao convés como se fosse uma tímida criatura da floresta emergindo de um longo sono de inverno.
Era crepúsculo, e o sacerdote vermelho acendera sua fogueira noturna no grande braseiro de ferro na meia-nau, enquanto a tripulação se reunia ao redor para rezar. A voz de Moqorro parecia um tambor que soava de algum lugar das profundezas de seu torso maciço.
- Nós agradecemos pelo seu sol que nos mantém aquecidos - orou. - Agradecemos pelas suas estrelas que nos vigiam enquanto navegamos por esse frio mar negro. - Um homem imenso, maior do que Sor Jorah, e largo o suficiente para fazer dois dele, o sacerdote vestia uma túnica escarlate bordada na manga, gola e bainha com chamas laranja de cetim. Sua pele era negra como breu, o cabelo branco como neve, e tinha chamas amarelas e laranja tatuadas nas bochechas e na testa. Seu bastão de ferro era tão alto quanto ele e coroado com uma cabeça de dragão; quando batia a ponta no convés, a boca do dragão cuspia crepitantes chamas verdes.
Seus guardas, cinco guerreiros escravos da Mão Ardente, davam as respostas. Cantavam na língua da Antiga Volantis, mas Tyrion já ouvira as orações o suficiente para pegar a essência. Ilumine nosso fogo e nos proteja da escuridão, blá, blá, ilumine nosso caminho e nos mantenha quentinhos, a noite é escura e cheia de terrores, salve-nos das coisas assustadoras, blá, blá, blá alguma coisa mais.
Ele sabia que era melhor não falar esses pensamentos em voz alta. Tyrion Lannister não tinha uso para nenhum deus, mas nesse navio era sábio demonstrar certo respeito pelo vermelho R'hllor. Jorah Mormont tirara suas correntes e grilhões assim que se puseram a caminho, e o anão não desejava dar nenhum motivo para ser acorrentado novamente.
O Selaesori Qhoran era uma banheira flutuante de quinhentas toneladas, com um casco profundo, altos castelos na proa e na popa, e um único mastro entre eles. A figura de proa era grotesca, um pouco carcomida, com um jeito constipado e um pergaminho embaixo do braço. Tyrion nunca vira navio tão feio. Sua tripulação não era mais bonita. O capitão, um homem de boca avarenta, impiedoso e barrigudo, com olhos juntos e gananciosos, era um mau jogador de cyvasse e um perdedor ainda pior. Sob suas ordens serviam quatro imediatos, todos libertos, e cinquenta escravos presos ao navio, cada um deles com uma versão imperfeita da figura de proa tatuada em um lado do rosto. Sem-Nariz, era como os marinheiros gostavam de chamar Tyrion, não importando quantas vezes tivesse dito que seu nome era Hugor Hill.
Três dos imediatos e mais de três quartos da tripulação eram adoradores fervorosos do Senhor da Luz. Tyrion tinha menos certeza a respeito do capitão, que sempre saía para as orações do fim de tarde, mas nunca tomava parte nelas. Mas Moqorro era o verdadeiro mestre do Selaesori Qhoran, pelo menos nessa viagem.
- Senhor da Luz, abençoe seu escravo Moqorro, e ilumine seu caminho nos locais escuros do mundo - o sacerdote vermelho trovejava. - E defenda seu honrado escravo Benerro. Conceda-lhe coragem. Conceda-lhe sabedoria. Encha seu coração com fogo.
Foi quando Tyrion percebeu Merreca, observando o espetáculo dos degraus da íngreme escada de madeira que descia para o castelo de popa. Ela estava em um dos degraus mais baixos, então apenas o topo de sua cabeça era visível. Sob seu capuz, seus olhos brilhavam grandes e brancos na luz da fogueira noturna. Tinha consigo, seu grande cão de caça cinzento, que cavalgava em imitação de justas.
- Minha senhora - Tyrion chamou suavemente. Na verdade ela não era nenhuma senhora, mas ele não podia pronunciar aquele nome bobo dela, e não iria chamá-la de garota ou anã.
Ela se encolheu.
- Eu ... eu não vi você.
- Bem, eu sou pequeno.
- Eu ... eu estava indisposta ... - O cachorro dela latiu.
Doente de tristeza, quer dizer.
- Se eu puder ser de alguma ajuda ...
- Não. - E rápido assim, ela se foi novamente, retirando-se para a cabine que dividia com o cão e a porca. Tyrion não podia culpá-la. A tripulação do Selaesori Qhoran ficara bastante satisfeita quando ele subiu a bordo; afinal, um anão era sinal de boa sorte. Sua cabeça fora esfregada tão frequentemente e tão vigorosamente que era incrível que não estivesse careca. Mas Merreca enfrentara reações mais variadas. Ela podia ser uma anã, mas também era uma mulher, e mulheres eram má sorte a bordo de um navio. Para cada homem que tentava esfregar sua cabeça, três outros murmuravam maldições quando ela passava.
E dar de cara comigo pode apenas colocar sal na ferida dela. Deceparam a cabeça de seu irmão na esperança que fosse a minha, e aqui estou eu como um maldito gárgula, oferecendo consolos vazios. Se eu fosse ela, tudo o que iria querer seria me atirar no mar.
Não sentia nada pela garota além de pena. Ela não merecia o horror sofrido em Volantis, não mais do que seu irmão. Na última vez que a vira, antes de deixarem o porto, seus olhos estavam feridos de tanto chorar, dois buracos vermelhos e medonhos em um rosto claro e pálido. Quando o navio levantou velas, ela se trancou na cabine com o cão e a porca, mas à noite era possível ouvi-la chorando. No dia anterior, ele escutara um dos imediatos dizer que deveriam jogá-la ao mar, antes que suas lágrimas inundassem o navio. Tyrion não estava completamente seguro de que aquilo fora uma brincadeira.
Quando as orações noturnas terminaram e a tripulação do navio mais uma vez se dispersou, alguns para suas rondas, outros para comer, beber rum ou deitar nas redes, Moqorro permaneceu ao lado da fogueira, como fazia todas as noites. O sacerdote vermelho descansava de dia, mas mantinha vigília durante as horas de escuridão, para manter suas chamas sagradas para que o sol pudesse retornar para eles ao amanhecer.
Tyrion se agachou diante dele e aqueceu as mãos do frio da noite. Moqorro não percebeu sua presença por vários momentos. Estava encarando as chamas cintilantes, perdido em alguma visão. Será que ele vê os dias que ainda virão, como afirma? Se fosse isso mesmo, era um dom assustador. Depois de algum tempo, o sacerdote ergueu os olhos para encontrar os do anão.
- Hugor Hill- disse, inclinando a cabeça em um aceno solene. - Veio rezar comigo?
- Alguém me disse que a noite é escura e cheia de terrores. O que você vê nessas chamas?
- Dragões - Moqorro respondeu, na Língua Comum de Westeros. Ele falava o idioma muito bem, com raros sinais de sotaque. Sem dúvida que essa era uma das razões pela qual o alto sacerdote Benerro o escolhera para levar a fé de R'hllor para Daenerys Targaryen. - Dragões velhos e novos, verdadeiros e falsos, brilhantes e sombrios. E você. Um homenzinho com uma grande sombra, rosnando no meio de todos.
- Rosnando? Um sujeito amável como eu? - Tyrion estava quase lisonjeado. E sem dúvida é isso que ele pretende. Todo tolo gosta de ouvir que é importante. - Talvez você tenha visto Merreca. Somos quase do mesmo tamanho.
- Não, meu amigo.
Meu amigo? Quando isso aconteceu, me pergunto?
- Por acaso você viu quanto tempo levará para chegarmos a Meereen?
- Está tão ansioso para encarar a libertadora do mundo?
Sim e não. A libertadora do mundo pode cortar minha cabeça, ou me dar para seus dragões como petisco.
- Não - disse Tyrion. - Por mim, tudo o que importa são as azeitonas. Embora tema que ficarei velho e morrerei antes de experimentar uma. Eu poderia gatinhar mais rápido do que estamos navegando. Diga-me, Selaesori Qhoran foi um triarca ou uma tartaruga?
O sacerdote vermelho riu.
- Nenhum dos dois. Qhoran é... não um governante, mas aquele que o serve e o aconselha e ajuda a conduzir seus assuntos. Vocês, em Westeros, poderiam dizer intendente ou magíster.
Mão do Rei? Aquilo o divertiu.
- E selaesori?
Moqorro tocou seu nariz.
- Imbuído de um aroma agradável. Perfumado, você diria? Floral?
- Então, Selaesori Qhoran significa Intendente Fedorento, mais ou menos?
- Intendente Perfumado, melhor.
Tyrion deu um sorriso torto.
- Acho que ficarei com Fedorento. Mas agradeço pela lição.
- Estou satisfeito por ter esclarecido você. Talvez algum dia me deixe ensiná-lo a verdade de R'hllor também.
- Algum dia. - Quando eu for uma cabeça em uma estaca.
Os alojamentos que dividia com Sor Jorah eram uma cabine apenas por cortesia; o úmido, escuro e malcheiroso cubículo mal tinha espaço suficiente para pendurar um par de redes de dormir, uma sobre a outra. Encontrou Mormont esticado na mais baixa, balançando lentamente com o movimento do navio.
- A garota finalmente colocou o nariz no convés - Tyrion lhe contou. - Um olhar para mim e correu para baixo de novo.
- Você não é uma visão bonita.
- Nem todos podemos ser tão graciosos como você. A garota está perdida. Não me surpreenderia se a pobre criatura não pulasse secretamente pela amurada para se afogar.
- O nome da pobre criatura é Merreca.
- Eu sei o nome dela. - Ele odiava o nome dela. O irmão da garota usava o nome de Tostão, embora na verdade se chamasse Oppo. Tostão e Merreca. Palavras que transmitem a ideia de valores ínfimos e, o que é pior, eles mesmos escolheram esses nomes. Isso deixou um gosto ruim na boca de Tyrion. - Independente do nome, ela precisa de um amigo.
Sor Jorah sentou-se em sua rede.
- Fique amigo dela, então. Case-se com ela, não me importo.
Aquilo deixou um gosto ruim em sua boca também.
- Igual com igual, é essa sua noção? Pretende encontrar uma ursa para si mesmo, sor?
- Foi você quem insistiu em trazê-la.
- Eu disse que não podíamos abandoná-la em Volantis. Isso não significa que queira fodê-la. Ela me quer morto, se esqueceu? Sou a última pessoa que ela quer como amigo.
- Vocês dois são anões.
- Sim, e o irmão dela também era, aquele que foi morto porque alguns estúpidos bêbados o tomaram por mim.
- Está se sentindo culpado, não está?
- Não. - Tyrion se arrepiou. - Tenho pecados suficientes pelos quais responder, não terei parte neste também. Posso ter nutrido alguma má vontade em relação a ela e ao irmão no que diz respeito à apresentação deles na noite do casamento de Joffrey, mas nunca lhes desejei mal.
- Você é uma criatura inofensiva, tenho certeza. Inocente como um cordeiro. - Sor Jorah se levantou. - A anã é seu fardo. Beije-a, mate-a ou evite-a, como quiser. Não é nada para mim. - Ele passou por Tyrion e saiu da cabine.
Duas vezes exilado, e não é de se admirar, Tyrion pensou. Eu o exilaria também, se pudesse. O homem é frio, ensimesmado, taciturno e surdo ao humor. E esses são seus pontos positivos. Sor Jorah passava a maior parte do tempo de sua vigília caminhando pela proa, ou inclinado no parapeito para olhar o mar. Procurando por sua rainha prateada. Procurando por Daenerys, esperando que o navio vá mais rápido. Bem, eu iria querer o mesmo se Tysha estivesse à espera em Meereen.
A Baía dos Escravos poderia ser para onde as putas vão? Parecia improvável. Pelo que ouvira, as cidades-escravos eram o lugar onde as putas eram feitas. Mormont deveria ter comprado uma para si. Uma escrava bonita poderia fazer maravilhas para melhorar seu temperamento ... particularmente uma com o cabelo prateado, como aquela puta que estava sentada sobre seu pau em Selhorys.
No rio, Tyrion teve que suportar Griff mas ao menos havia o mistério da verdadeira identidade do capitão para distraí-lo, e a companhia mais agradável do resto da pequena tripulação do barco. Nesse navio, infelizmente, todos eram exatamente o que pareciam ser, e ninguém era particularmente agradável, e apenas o sacerdote vermelho era interessante. Ele e, talvez, Merreca. Mas a garota me odeia, e deveria.
A vida a bordo do Selaesori Qhoran não era nada além de tediosa, Tyrion descobrira. A parte mais excitante do seu dia era cutucar os dedos dos pés e das mãos com uma faca. No rio, havia maravilhas para contemplar; tartarugas gigantes, cidades em ruínas, homens de pedra, septãs nuas. Nunca se sabia o que poderia estar à espreita na próxima curva. Os dias e noites no mar eram sempre os mesmos. Deixando Volantis, o barco navegara inicialmente com terra à vista, então Tyrion podia observar os costões que passavam, ver revoadas de aves marítimas se levantando de penhascos pedregosos e torres de vigia em ruínas, contar ilhas marrons e nuas na medida em que deslizavam por elas. Viu muitos outros navios também; barcos de pesca, pesados navios mercantes, galés orgulhosas com seus remos açoitando as ondas até formar espuma branca. Mas, assim que alcançaram águas mais profundas, havia apenas mar e céu, ar e água. A água parecia com água. O céu parecia com céu. Algumas vezes havia uma nuvem. E azul demais.
E as noites eram piores. Tyrion dormia mal no melhor dos tempos, e isto estava longe de ser assim. Dormir significava sonhar, provavelmente, e em seus sonhos os Sofrimentos esperavam, e um rei de pedra com a face de seu pai. Aquilo o deixava entre a cruz e a espada: ou subia em sua rede e escutava Jorah Mormont roncando embaixo dele, ou ficava no convés contemplando o mar. Em noites sem lua, a água era tão negra quanto tinta de meistre, de horizonte a horizonte. Escura, profunda e proibida, bonita, de um modo frio, mas quando a olhava por muito tempo, Tyrion se pegava refletindo sobre como deveria ser fácil deslizar sobre a amurada e se jogar na escuridão. Um respingo muito pequeno, e o patético e pequeno conto que era sua vida teria fim. Mas e se houver um inferno e meu pai estiver esperando por mim?
A melhor parte de cada noite era a ceia. A comida não era especialmente boa, mas era abundante, então foi para onde o anão foi em seguida. A cozinha em que tomava suas refeições era um espaço apertado e desconfortável, com um teto tão baixo que os passageiros mais altos sempre corriam o risco de quebrar a cabeça, um perigo ao qual os robustos soldados escravos da Mão Ardente pareciam particularmente propensos. Por mais que Tyrion gostasse de rir disso, teria preferido fazer suas refeições sozinho. Sentar em uma mesa lotada, com homens com os quais não tinha uma língua em comum, ouvi-los conversar e fazer piadas sem entender nada, em pouco tempo ficara cansativo demais. Especialmente depois que ele começou a se perguntar se as piadas e as risadas eram direcionadas a ele.
A cozinha também era o lugar onde os livros do navio eram guardados. Com o capitão sendo um homem especialmente dado à leitura, havia três livros a bordo: uma coleção de poesia naval que ia de ruim a pior, um tomo bem manuseado com as aventuras eróticas de uma jovem escrava em uma casa de travesseiros lisena e o quarto e último volume de A vida do Triarca Belicho, um famoso patriota volantino cuja sucessão ininterrupta de conquistas e triunfos terminou abruptamente quando ele foi devorado por gigantes. Tyrion terminara de ler todos em seu terceiro dia no mar. Então, na falta de outros livros, começou a lê-los novamente. A história da garota escrava era a mais mal escrita, mas a mais cativante, e era aquele livro que escolhera, naquela noite, para ler durante uma ceia de beterrabas na manteiga, ensopado frio de peixe e biscoitos que poderiam ter sido usados para bater pregos.
Estava lendo o relato da garota, do dia em que ela e sua irmã foram capturadas por traficantes de escravos, quando Merreca entrou na cozinha.
- Oh - ela disse - eu pensei ... não pretendi atrapalhar, 'nhor, eu ...
- Você não está me atrapalhando. Não está tentando me matar de novo, espero.
- Não. - Ela desviou o olhar, enrubescendo.
- Neste caso, eu apreciaria alguma companhia. Há pouco a se fazer a bordo deste navio. - Tyrion fechou o livro. - Venha. Sente-se. Coma. - A garota deixara a maior parte das refeições intocada do lado de fora da porta da cabine. Agora devia estar faminta. - O ensopado é quase comestível. O peixe é fresco, ao menos.
- Não, eu ... eu engasguei com uma espinha de peixe uma vez, não posso comer peixe.
- Então tome um pouco de vinho. - Encheu uma taça e deslizou na direção dela. - Com os cumprimentos do nosso capitão. Está mais perto de mijo do que de um dourado da Árvore, mas até mijo tem um gosto melhor do que aquele rum com alcatrão negro que os marinheiros bebem. Deve ajudá-la a dormir.
A garota não fez nenhum movimento para tocar na taça.
- Obrigada, 'nhor, mas não. - Ela se afastou. - Eu não deveria estar incomodando você.
- Pretende passar sua vida inteira fugindo? - perguntou Tyrion, antes que ela escapasse pela porta.
Aquilo a fez parar. Suas bochechas ficaram rosa brilhante, e ele teve medo de que ela começasse a chorar novamente. Em vez disso, encarou-o desafiadoramente e disse:
- Você está fugindo também.
- Estou - ele confessou - mas estou fugindo para e você está fugindo de, e há um mundo de diferença aí.
- Não teríamos tido que fugir desde o início, se não fosse por você.
Exige alguma coragem dizer isso na minha cara.
- Você está falando de Porto Real ou de Volantis?
- Dos dois. - Lágrimas brilharam em seus olhos. - De tudo. Por que você simplesmente não veio disputar a justa conosco, do jeito que o rei queria? Você não teria se machucado. O que teria custado, 'nhor, subir no nosso cão e cavalgá-lo numa disputa, para agradar o menino? Era só um pouco de diversão. Teriam rido de você, é tudo.
- Teriam rido de mim - disse Tyrion. - Eu os fiz rir de Joff em vez disso. Não foi um truque esperto?
- Meu irmão diz que isso é uma coisa boa, fazer as pessoas rirem. Uma coisa nobre e honrada. Meu irmão diz ... ele ... - As lágrimas rolaram por seu rosto.
- Sinto por seu irmão - Tyrion lhe dissera as mesmas palavras antes, ainda em Volantis, mas ela estava tão longe pela dor que duvidava que tivesse ouvido.
Ela as escutou agora.
- Sente. Você sente. - Seus lábios estavam trêmulos, suas bochechas, molhadas, seus olhos eram buracos com aros vermelhos. - Deixamos Porto Real naquela mesma noite. Meu irmão disse que era melhor, antes que alguém se perguntasse se tínhamos participado da morte do rei e decidisse nos torturar para descobrir. Fomos para Tyrosh primeiro. Meu irmão pensou que isso seria longe o suficiente, mas não era. Conhecemos um malabarista lá. Por anos e anos ele fizera malabarismos todos os dias na Fonte do Deus Bêbado. Era velho, então suas mãos não eram tão hábeis quanto haviam sido, e algumas vezes ele derrubava as bolas e tinha que caçá-las pela praça, mas os tyroshinos riam e atiravam moedas do mesmo jeito. Mas, uma manhã, escutamos que seu corpo havia sido encontrado no Templo de Trios. Trios tinha três cabeças, e há uma grande estátua dele ao lado das portas do templo. O velho havia sido cortado em três partes e empurrado para dentro das três bocas de Trios. Só que quando as partes foram juntadas, sua cabeça havia desaparecido.
- Um presente para minha doce irmã. Era outro anão.
- Um homem pequeno, sim. Como você e Oppo. Tostão. Você sente pelo malabarista também?
- Nunca soube da existência do seu malabarista até este momento... mas, sim, sinto que tenha morrido.
- Ele morreu por você. O sangue dele está em suas mãos.
A acusação doeu, vindo tão dura nos calcanhares das palavras de Jorah Mormont.
- O sangue dele está nas mãos da minha irmã e nas mãos dos bárbaros que o mataram. Minhas mãos estão incrustadas com sangue antigo, sim. Chame-me de assassino de parentes, e você não estará errada. Regicida, eu responderei por isso também. Matei mães, pais, sobrinhos, amantes, homens e mulheres, reis e putas. Um cantor certa vez me incomodou, e eu o fiz ensopado. Mas nunca matei um malabarista, nem um anão, e não tenho culpa pelo que aconteceu ao seu maldito irmão.
Merreca apanhou a taça de vinho que ele lhe servira e jogou-a em seu rosto. Exatamente como minha doce irmã. Ele ouviu a porta da cozinha bater, mas nunca a viu partir. Seus olhos estavam ardendo e o mundo era um borrão. Tudo isso por ser amigável com ela.
Tyrion Lannister tinha pouca experiência com outros anões. O senhor seu pai nunca acolhera bem qualquer lembrança das deformidades do filho, e as companhias de pantomimeiros que traziam pessoas pequenas em suas trupes logo aprenderam a ficar longe de Lannisporto e Rochedo Casterly, para não correr o risco de enfrentar seu descontentamento. Quando cresceu, Tyrion ouviu relatos de um anão bobo da corte na propriedade do dornense Lorde Fowler, de um anão meistre a serviço nos Dedos, e uma anã entre as irmãs silenciosas, mas nunca sentira necessidade de procurá-los. Histórias menos plausíveis chegaram aos seus ouvidos, como uma anã bruxa que assombrava uma colina no Tridente e uma anã puta em Porto Real, renomada por acasalar com cães. Sua doce irmã lhe fizera esse último relato, chegando a se oferecer para encontrar uma cadela no cio se ele quisesse experimentar. Quando lhe perguntou, polidamente, se ela se referia a si mesma, Cersei jogara uma taça de vinho em seu rosto. Aquele era vermelho, eu me lembro, e este é dourado. Tyrion secou o rosto com a manga. Seus olhos ainda ardiam.
Não viu Merreca novamente até o dia da tempestade.
O ar salgado estava parado e pesado naquela manhã, mas o céu ocidental era de um vermelho ardente, riscado com nuvens ameaçadoras que cintilavam tão brilhantes quanto o carmesim dos Lannister. Marinheiros saltavam sobre alçapões de tábuas, correndo linhas, limpando o convés, amarrando qualquer coisa que ainda não estivesse presa.
- Vento ruim vindo - um deles o avisou. - Sem-Nariz melhor descer.
Tyrion se lembrava da tempestade que enfrentara cruzando o mar estreito, o modo como o convés pulava sob seus pés, os rangidos medonhos que o navio fazia, o gosto de vinho e vômito.
- Sem-Nariz fica aqui em cima. - Se os deuses o quisessem, preferia morrer afogado do que asfixiado em seu próprio vômito. E, sobre sua cabeça, a vela do navio balançava lentamente, como o pelo de algum grande animal se agitando em um longo sono, então foi abalada por um súbito estalido que fez virar todas as cabeças do navio.
Os ventos levavam o navio bem longe do curso escolhido. Atrás deles, nuvens negras se empilhavam umas sobre as outras contra um céu vermelho-sangue. No meio da manhã, puderam ver um raio brilhando no oeste, seguido pelo distante rugido de um trovão. O mar ficou mais agitado, e ondas escuras se erguiam e batiam contra o casco do Intendente Fedorento. Em seguida, a tripulação começou a baixar a vela. Tyrion estava em pé a meia-nau, então foi até a proa e se agachou, saboreando as rajadas de chuva fria em seu rosto. O navio subia e descia, resistindo mais selvagemente que qualquer cavalo que já cavalgara, levantando com cada onda antes de deslizar para baixo, rangendo os ossos. Mesmo assim, era melhor aqui, onde ele podia ver, do que lá embaixo, trancado em alguma cabine sem ar.
Quando a tempestade se foi, a noite estava sobre eles e Tyrion Lannister estava ensopado até as roupas íntimas, e mesmo assim se sentia exultante... ainda mais quando, mais tarde, encontrou um Jorah Mormont bêbado em uma poça de vômito na cabine.
O anão permaneceu na cozinha após a ceia, celebrando sua sobrevivência compartilhando algumas doses de rum de alcatrão negro com o cozinheiro do navio, um volantino grande, gordurento e grosseiro que falava uma única palavra na Língua Comum (foda), mas jogava cyvasse de maneira feroz, especialmente quando bêbado. Disputaram três partidas naquela noite. Tyrion ganhou a primeira e perdeu as outras duas. Depois disso, decidiu que já era o suficiente e tropeçou de volta ao convés para limpar a cabeça do rum e dos elefantes.
Encontrou Merreca na proa do navio, onde frequentemente encontrava Sor Jorah, parada no parapeito ao lado da medonha figura de proa meio carcomida e olhando para fora, através do mar escuro. De costas, parecia tão vulnerável e pequena quanto uma criança.
Tyrion pensou que era melhor deixá-la tranquila, mas era tarde demais. Ela o escutara.
- Hugor Hill.
- Se preferir - Nós dois sabemos a verdade. - Sinto atrapalhá-la. Vou me retirar.
- Não. - O rosto dela estava pálido e triste, mas não parecia ter chorado. - Eu sinto também. Sobre o vinho. Não foi você quem matou meu irmão, ou aquele pobre velho em Tyrosh.
- Fiz parte disso, embora não por escolha.
- Sinto muita falta dele. Meu irmão. Eu ...
- Eu entendo. - Ele se pegou pensando em Jaime. Considere-se sortuda. Seu irmão morreu antes que pudesse trair você.
- Eu achava que queria morrer - ela disse. - Mas hoje, quando a tempestade veio e eu pensei que o navio poderia afundar, eu ... eu ...
- Você percebeu que quer viver apesar de tudo. - Já passei por isso também. Algo mais que temos em comum.
Os dentes dela eram tortos, o que a deixava tímida com seus sorrisos, mas sorriu agora.
- Você realmente cozinhou um cantor em um ensopado?
- Quem? Eu? Não. Eu não cozinho.
Quando Merreca riu, soou como a doce garota que era ... dezessete, dezoito, não mais do que dezenove.
- O que ele fez, esse cantor?
- Escreveu uma canção sobre mim. - Porque ela era seu tesouro secreto, sua vergonha e seu prazer. E a corrente e o forte nada são, comparados com beijos de mulher. Era estranho como as palavras voltaram rápidas. Talvez nunca o tivessem deixado. Mãos de ouro são sempre frias, mas há calor em mãos de mulher.
- Deve ter sido uma canção muito ruim.
- Não exatamente. Não era nenhuma Chuvas de Castamere, veja bem, mas algumas partes eram ... bem ...
- Como era?
Ele riu.
- Não. Você não vai querer me ouvir cantar.
- Minha mãe costumava cantar para nós, quando éramos crianças. Meu irmão e eu. Ela sempre dizia que não importava como era sua voz, desde que amasse a canção.
- Ela era ... ?
- ... uma pessoa pequena? Não, mas nosso pai era. Seu próprio pai o vendeu para um traficante de escravos quando ele tinha três anos, mas ele se tornou um pantomimeiro tão famoso que comprou sua liberdade. Viajou por todas as Cidades Livres e também por Westeros. Em Vilavelha costumavam chamá-lo de Fava Saltitante.
É claro que sim. Tyrion tentou não se crispar.
- Ele está morto agora - Merreca continuou. - Minha mãe também. Oppo ... era o último da minha família, e agora ele também se foi. - Ela virou a cabeça e olhou para o mar. - O que eu farei? Para onde vou? Não tenho ofício, só o espetáculo da justa, e para isso são necessários dois.
Não, pensou Tyrion. Esse não é um lugar para onde você quer ir, garota. Não me peça isso. Nem pense nisso.
- Encontre algum menino órfão disponível - ele sugeriu.
Merreca pareceu não ouvir.
- Foi ideia do pai fazer a disputa. Ele mesmo treinou o primeiro porco, mas então ficou doente demais para cavalgá-lo e Oppo tomou seu lugar. Eu sempre cavalguei o cão. Nós nos apresentamos para o Senhor do Mar de Bravos uma vez, e ele riu tanto que depois deu a cada um de nós um... um grande presente.
- Foi onde minha irmã encontrou vocês? Em Bravos?
- Sua irmã? - A garota pareceu perdida.
- A Rainha Cersei.
Merreca balançou a cabeça.
- Ela nunca ... foi um homem que veio até nós, em Pentos. Osmundo Não, Oswaldo Algo assim. Oppo se encontrou com ele, não eu. Oppo fez todos os arranjos. Meu irmão sempre sabia o que fazer, ou aonde iríamos em seguida.
- Meereen é para onde vamos em seguida.
Ela lhe deu um olhar intrigado.
- Qarth, você quer dizer. Vamos para Qarth, passando por Nova Ghis.
- Meereen. Você cavalgará seu cão para a rainha dragão e voltará com seu peso em ouro. Melhor começar a comer mais, para estar bonita e gorda quando disputar a justa diante de Sua Graça.
Merreca não sorriu de volta.
- Sozinha, tudo o que posso fazer é cavalgar em círculos. E mesmo se a rainha risse, aonde eu iria depois disso? Nunca ficamos muito tempo em um lugar. Da primeira vez que nos veem, eles riem e riem, mas na quarta ou quinta vez, já sabem o que vamos fazer antes que façamos. Então param de rir, e nós temos que ir para algum lugar novo. Fazemos a maior parte do dinheiro nas grandes cidades, mas eu sempre preferi as aldeias pequenas. Em lugares assim, as pessoas não têm prata, mas nos alimentam em suas próprias mesas, e as crianças nos seguem para todos os lugares.
Isso é porque nunca viram um anão antes, em suas aldeias de merda, Tyrion pensou. Os malditos pirralhos seguiriam um bode de duas cabeças se um aparecesse. Até que o bode os aborrecesse com seus berros e fosse abatido para a ceia. Mas não tinha vontade de fazê-la chorar novamente, então, em vez disso, disse:
- Daenerys tem um coração gentil e uma natureza generosa. - Era o que ela precisava ouvir. - Ela encontrará um lugar para você na corte, não tenho dúvida. Um lugar seguro, longe do alcance da minha irmã.
Merreca se virou para ele.
- E você estará lá também.
A menos que Daenerys decida que precisa de algum sangue Lannister para pagar pelo sangue Targaryen que meu irmão derramou.
- Estarei.
Depois disso, a anã era vista com mais frequência sobre o convés. No dia seguinte, Tyrion a encontrou na meia-nau com sua porca malhada, no meio da tarde, quando o ar estava morno e o mar, calmo.
- O nome dela é Bonita - a garota lhe disse, timidamente.
Bonita, a porca, e Merreca, a garota, ele pensou. Alguém tem que responder por isso. Merreca deu algumas bolotas a Tyrion, e ele deixou que Bonita as comesse em sua mão. Não pense que não sei o que você está fazendo, garota, pensou, enquanto a grande porca cheirava e guinchava.
Logo começaram a tomar suas refeições juntos. Algumas noites eram apenas os dois; as outras refeições eram lotadas com os guardas de Moqorro. Os dedos, Tyrion os chamava; afinal, eram homens da Mão Ardente e eram cinco. Merreca ria disso, um som doce, embora não fosse ouvido com frequência. Sua ferida era muito fresca, sua dor, muito profunda.
Ele logo a pegou chamando o navio de Intendente Fedorento, embora ela ficasse um tanto indignada cada vez que ele chamava bonita de “Toicinho”. Para reparar isso, Tyrion fez uma tentativa de lhe ensinar cyvasse, mas logo percebeu que era uma causa perdida.
- Não - disse uma dúzia de vezes - o dragão voa, não os elefantes.
Naquela mesma noite, ela perguntou se ele gostaria de uma disputa.
- Não - respondeu. Só mais tarde lhe ocorreu que talvez disputa não significasse disputa. Sua resposta ainda teria sido não, mas ele poderia não ter sido tão brusco.
De volta à cabine que dividia com Jorah Mormont, Tyrion se virou na rede de dormir por horas, entrando e saindo do sono. Seus sonhos eram cheios de mãos de pedra cinzenta buscando por ele pela neblina e uma escada que levava direto para seu pai.
Finalmente, ele se levantou e subiu em busca de um pouco de ar da noite. O Selaesori Qhoran içara suas grandes velas listradas para a noite, e o convés estava tudo menos deserto. Um dos imediatos estava no castelo de proa, e na meia-nau Moqorro estava sentado em seu braseiro, onde algumas chamas pequenas ainda dançavam entre as brasas.
Apenas as estrelas mais brilhantes eram visíveis, todas a oeste. Um brilho vermelho embotado iluminava o céu a nordeste, a cor de uma ferida sangrenta. Tyrion nunca havia visto uma lua tão grande. Gigantesca, inchada, parecia que tinha engolido o sol e acordado com febre.
- Que horas são? - perguntou para Moqorro. - Aquilo não pode ser o amanhecer, a menos que o leste tenha se movido. Por que o céu está vermelho?
- O céu está sempre vermelho sobre Valíria, Hugor Hill.
Um calafrio desceu por suas costas.
- Estamos próximos?
- Mais próximos do que a tripulação gostaria - Moqorro disse, com sua voz profunda. - Vocês conhecem a história lá no Reino do Pôr do Sol?
- Sei que alguns marinheiros dizem que qualquer homem que coloca os olhos naquela costa é condenado. - Ele não acreditava naquelas histórias, não mais do que seu tio acreditara. Gerion Lannister navegara para Valíria quando Tyrion tinha dezoito, com a pretensão de recuperar a ancestral lâmina perdida da Casa Lannister, e algum outro tesouro que pudesse ter sobrevivido à Condenação. Tyrion quis desesperadamente ir com ele, mas o senhor seu pai tinha apelidado a viagem de “busca de tolo” e o proibira de fazer parte.
E talvez ele não estivesse tão errado. Quase uma década se passara desde que o Leão Sorridente partira de Lannisporto, e Gerion nunca retornara. Os homens que Lorde Tywin enviara atrás dele conseguiram traçar seu percurso até Volantis, onde metade de sua tripulação desertou e ele comprou escravos para substituí-los. Nenhum homem livre iria de bom grado até um navio cujo capitão falava abertamente de suas intenções de navegar no Mar Fumegante.
- São os fogos das Catorze Chamas refletidos nas nuvens que estamos vendo?
- Catorze ou catorze mil. Que homem ousaria contá-las? Não é sensato para os mortais olharem tão profundamente para essas fogueiras, meu amigo. Aquelas são as fogueiras da ira de deus, e nenhum fogo humano pode se comparar a elas. Nós, homens, somos criaturas pequenas.
- Alguns são menores do que outros. - Valíria. Estava escrito que, no dia da Condenação, cada colina em um raio de oitocentos quilômetros tinha se partido, enchendo o ar com cinzas, fumaça e fogo, chamas tão quentes e famintas que até os dragões no céu foram engolidos e consumidos. Grandes fendas se abriram na terra, engolindo palácios, templos, cidades inteiras. Lagos ferveram e se tornaram ácidos, montanhas explodiram, fontes ardentes expeliram rocha derretida a trezentos metros de altura, nuvens vermelhas fizeram chover vidro de dragão e o sangue negro dos demônios, e, no norte, o solo se fragmentou e desabou, e o mar feroz invadiu tudo. A cidade mais orgulhosa do mundo se foi em um instante, seu fabuloso império desapareceu em um dia, e as Terras do Longo Verão queimaram, afogaram e ruíram.
Um império construído com sangue e fogo. Os valirianos colheram a semente que plantaram.
- Nosso capitão pretende testar a maldição?
- Nosso capitão preferia estar a trezentos quilômetros mais para o mar, bem longe desta costa amaldiçoada, mais eu ordenei que fizesse o menor percurso. Outros procuram Daenerys também.
Griff, com seu jovem príncipe. As notícias de que a Companhia Dourada navegava para oeste seriam uma farsa? Tyrion considerou dizer alguma coisa, mas então pensou melhor. Parecia, para ele, que a profecia que movia o sacerdote vermelho tinha lugar apenas para um herói. Um segundo Targaryen só serviria para confundi-lo.
- Viu esses outros em suas chamas? - perguntou, cautelosamente.
- Apenas as sombras deles - disse Moqorro. - Um mais do que todos. Uma coisa alta e retorcida, com um olho negro e dez longos braços, navegando em um mar de sangue. 

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