segunda-feira, 23 de setembro de 2013

39 - CERSEI



Grande Meistre Pycelle já era velho quando Cersei o conheceu, mas parecia ter envelhecido mais cem anos nas três últimas noites. Precisou de uma eternidade para dobrar o joelho enferrujado à sua frente, e depois de fazê-lo não conseguiu voltar a se erguer até Sor Osmund o agarrar e pô-lo em pé.
Cersei o estudou com desagrado.
- Lorde Qyburn informou-me que Lorde Gyles tossiu pela última vez.
- Sim, Vossa Graça. Fiz o melhor que pude para aliviar suas últimas horas.
- Fez? - a rainha virou-se para a Senhora Merryweather. - Eu disse que queria Rosby vivo, não disse?
- Disse, Vossa Graça.
- Sor Osmund, o que se lembra da conversa?
- Ordenou ao Grande Meistre Pycelle que salvasse o homem, Vossa Graça. Todos ouvimos.
A boca de Pycelle abriu-se e se fechou.
- Vossa Graça tem de saber que fiz tudo que podia ser feito pelo pobre homem.
- Assim como fez com Joffrey? E o pai dele, meu querido marido? Robert era tão forte quanto qualquer homem nos Sete Reinos, e, no entanto, o perdeu para um javali. Oh, e não nos esqueçamos de Jon Arryn. Sem dúvida teria matado também Ned Stark, se eu tivesse deixado que ficasse com ele mais tempo. Diga-me, meistre, foi na Cidadela que aprendeu a apertar as mãos e a arranjar desculpas?
A voz dela fez o velho se encolher.
- Ninguém poderia ter feito mais, Vossa Graça. Eu... eu sempre prestei um serviço leal.
- Quando aconselhou o Rei Aerys a abrir os portões à aproximação da hoste de meu pai, era essa a sua ideia de serviço leal?
- Isso... eu avaliei mal o...
- Foi esse um bom conselho?
- Vossa Graça certamente tem de saber...
- O que eu sei é que, quando meu filho foi envenenado, você se mostrou ser menos útil do que o Rapaz Lua. O que eu sei é que a coroa tem uma necessidade desesperada de ouro, e nosso senhor tesoureiro está morto.
O velho idiota agarrou-se àquilo.
- Eu... eu esboçarei uma lista de homens capazes para ocupar o lugar de Lorde Gyles no conselho.
- Uma lista - Cersei divertiu-se com o atrevimento. - Posso bem imaginar o tipo de lista que me arranjaria. Grisalhos, tolos gananciosos e Garth, o Grosso - seus lábios se comprimiram. - Tem andado muito na companhia da Senhora Margaery nos últimos tempos.
- Sim. Sim, eu... a Rainha Margaery tem estado muito perturbada por causa de Sor Loras. Eu forneço à Sua Graça preparados para dormir e... outros tipos de poção.
- Sem dúvida. Diga-me, foi nossa pequena rainha quem lhe ordenou que matasse Lorde Gyles ?
- M - matar? - os olhos do Grande Meistre Pycelle ficaram do tamanho de ovos cozidos. - Vossa Graça não pode acreditar... Foi a sua tosse, por todos os deuses, eu... Sua Graça não faria... Ela não tinha má vontade contra Lorde Gyles, por que haveria a Rainha Margaery de querê-lo...
- ... morto? Ora, para plantar outra rosa no conselho de Tommen. É cego ou foi comprado? Rosby estava em seu caminho, de modo que o pôs na cova. Com a sua conivência.
- Vossa Graça, juro-lhe, Lorde Gyles pereceu devido à tosse - sua boca tremia. - Minha lealdade sempre esteve com a coroa, com o reino... c-com a Casa Lannister.
Nesta ordem ? O medo de Pycelle era palpável. Está suficientemente maduro. É hora de espremer o fruto e provar seu sumo.
- Se é tão leal como diz, por que está mentindo para mim? Não se incomode em negar. Começou a dançar em volta da Donzela Margaery antes de Sor Loras partir para Pedra do Dragão, portanto, poupe-me de mais histórias sobre só desejar consolar nossa nora em sua dor. O que o leva tão frequentemente à Arcada das Donzelas? Não é, certamente, a desenxabida conversa de Margaery. Anda cortejando aquela sua septã de cara bexiguenta? Anda fazendo festinhas na pequena Senhora Bulwer? É seu espião, informando-a sobre mim para alimentar suas maquinações?
- Eu... eu obedeço. Um meistre jura servir.
- Um grande meistre jura servir o reino.
- Vossa Graça, ela... ela é a rainha...
- Eu sou a rainha.
- Quis dizer... ela é a esposa do rei e...
- Eu sei quem ela é. O que quero saber é por que precisa de você. Minha nora está doente?
- Doente? - o velho puxou a coisa a que chamava de barba, aquela sementeira remendada de pelos finos e brancos que brotava da saliência solta e rosada que tinha sob o queixo. - N -não está doente, Vossa Graça, não exatamente. Meus votos me proíbem de divulgar...
- Seus votos serão pequeno conforto nas celas negras - avisou-o a rainha. - Ou eu ouço a verdade ou você passará a usar correntes.
Pycelle ruiu sobre os joelhos.
- Suplico-lhe... Fui um homem do senhor seu pai, e um amigo seu no problema de Lorde Arryn. Não poderia sobreviver às masmorras, de novo não...
- Por que é que Margaery manda chamá-lo?
- Ela deseja... ela... ela...
- Diga!
O velho encolheu-se de medo.
- Chá de lua - sussurrou. - Chá de lua, para...
- Eu sei para que é usado o chá de lua - aí está. - Muito bem. Endireite esses joelhos vergados e tente se lembrar de como é ser um homem. - Pycelle lutou para se levantar, mas levou tanto tempo que teve de pedir para Osmund Kettleblack lhe dar outro puxão. - E quanto a Lorde Gyles, não há dúvida de que o Pai no Céu o julgará com justiça. Não deixou filhos?
- Não há filhos de sua semente, mas há um protegido...
- ... que não é do seu sangue - Cersei ignorou aquele aborrecimento com um golpe de mão. - Gyles conhecia nossa terrível necessidade de ouro. Sem dúvida que lhe falou do desejo que tinha de deixar todas as suas terras e fortuna a Tommen - o ouro de Rosby ajudaria a refrescar seus cofres, e as terras e o castelo de Rosby podiam ser outorgados a um dos seus como recompensa por serviços leais. Lorde Waters, talvez. Aurane tinha andado sugerindo a necessidade que sentia de uma propriedade, sua senhoria não passava de uma honraria vazia sem propriedades. Cersei sabia que o homem tinha os olhos postos em Pedra do Dragão, mas mirava alto demais. Rosby seria mais adequado ao seu nascimento e estatuto.
- Lorde Gyles adorava Vossa Graça de todo o coração - Pycelle disse - mas... seu protegido...
- ... sem dúvida irá compreender, depois de ouvir você falar do desejo expresso por Lorde Gyles ao morrer. Vá, e cuide do assunto.
- Se aprouver a Vossa Graça - Grande Meistre Pycelle quase tropeçou na própria veste com a pressa de sair.
Senhora Merryweather fechou a porta nas costas dele.
- Chá de lua - disse, voltando-se para a rainha. - Que tolice da parte dela. Por que haveria de fazer uma coisa dessas, de correr tal risco?
- A pequena rainha tem apetites que Tommen por enquanto é novo demais para satisfazer - isso era sempre um perigo, quando uma mulher-feita era casada com uma criança. Ainda mais com uma viúva. Ela pode afirmar que Renly nunca a tocou, mas não acredito. As mulheres só bebiam chá de lua por um motivo; as donzelas não tinham nenhuma necessidade da bebida. - Meu filho foi traído. Margaery tem um amante. Isto é alta traição, punível com a morte - só podia esperar que a bruxa com cara de ameixa seca da mãe de Mace Tyrell sobrevivesse o suficiente para assistir ao julgamento. Ao insistir que Tommen e Margaery casassem de imediato, Senhora Olenna condenara sua preciosa rosa à espada de um carrasco. - Jaime levou Sor Ilyn Payne. Suponho que terei de encontrar outro Magistrado do Rei para lhe fazer voar a cabeça.
- Eu farei isso - ofereceu-se Osmund Kettleblack com um sorriso fácil. - Margaery tem um pescocinho bonito. Uma boa espada afiada o atravessará sem dificuldade.
- Atravessaria - Taena interveio - mas há um exército Tyrell em Ponta Tempestade e outro em Lagoa da Donzela. Eles também têm espadas afiadas.
Estou inundada por rosas. Era um aborrecimento. Ainda precisava de Mace Tyrell, mesmo que não precisasse da filha. Pelo menos até que Stannis seja derrotado. Depois, não precisarei de nenhum deles. Mas, como podia se livrar da filha sem perder o pai?
- Traição é traição - disse - mas precisamos de provas, algo mais substancial do que chá de lua. Se se provar que ela é infiel, até o próprio pai terá de condená-la, caso contrário a vergonha dela se transformará na sua.
Kettleblack mordeu uma ponta do bigode.
- Temos de apanhá-los durante o ato.
- Como? Qyburn tem olhos postos nela dia e noite. Seus criados aceitam minhas moedas, mas só nos trazem ninharias. E, no entanto, ninguém viu esse amante. Os ouvidos à sua porta ouvem cantos, risos, mexericos, nada que possamos usar.
- Margaery é astuta demais para ser apanhada assim tão facilmente - Senhora Merryweather observou. - Suas mulheres são as muralhas de seu castelo. Dormem com ela, vestem-na, rezam com ela, leem com ela, fazem costura com ela. Quando não está fazendo falcoaria ou passeando a cavalo, está brincando de entra-no-meu-castelo com a pequena Alysanne Bulwer. Sempre que há homens por perto, a septã encontra-se presente, ou então as primas.
- Em algum momento ela tem que se livrar das galinhas - a rainha insistiu. Então, uma ideia a assaltou. - A menos que as senhoras também participem... Nem todas, talvez, mas algumas.
- As primas? - até Taena mostrou dúvidas. - Todas as três são mais novas do que a pequena rainha, e também mais inocentes.
- Libertinas vestidas com o branco de donzelas. Isto só torna seus pecados mais chocantes. Seus nomes perdurarão em vergonha - de repente, a rainha pôde quase saboreá-lo. - Taena, o senhor seu marido é o meu administrador de justiça. Vocês dois devem jantar comigo esta noite - queria aquilo feito depressa, antes de Margaery enfiar na cabecinha a ideia de regressar a Jardim de Cima ou zarpar para Pedra do Dragão para acompanhar o irmão ferido às portas da morte. - Ordenarei aos cozinheiros que preparem um javali para nós. E claro que precisamos de alguma música, para ajudar nossa digestão.
Taena foi muito rápida em compreender.
- Música. Exatamente.
- Vá informar o senhor seu marido e fazer preparativos para o cantor - Cersei ordenou. - Sor Osmund, pode ficar. Temos muito a discutir. Também precisarei de Qyburn.
Infelizmente, as cozinhas revelaram-se desprovidas de javalis, e não havia tempo para pôr caçadores em campo. Em vez disso, os cozinheiros mataram uma das porcas do castelo e serviram-lhes pernil guarnecido com cravinho, untado com mel e cerejas secas. Não era o que Cersei queria, mas contentou-se com o que havia. Para sobremesa, tinham maçãs cozidas com um forte queijo branco. Senhora Taena saboreou cada garfada. Não se pode dizer o mesmo de Orton Merryweather, cujo rosto redondo se manteve manchado e pálido com o caldo de queijo. Bebeu muito, e não parou de lançar olhares de soslaio ao cantor.
- Uma grande pena o que aconteceu a Sor Gyles - Cersei disse por fim. - Contudo, atrevo-me a dizer que nenhum de nós sentirá falta de sua tosse.
- Não, penso que não.
- Vamos precisar de um novo senhor tesoureiro. Se o Vale não estivesse tão instável, traria de volta Petyr Baelish, mas... Estou com ideias de testar Sor Harys no cargo. Ele não pode ser pior do que Gyles, e pelo menos não tosse.
- Sor Harys é Mão do Rei - Taena refutou.
Sor Harys é um refém, e até nisso é fraco.
- Já é hora de Tommen ter uma Mão mais enérgica.
Lorde Orton levantou o olhar da taça de vinho.
- Enérgica. Com certeza - hesitou. - Quem...?
- Você, senhor. Está em seu sangue. Seu bisavô ocupou o lugar de meu pai como Mão de Aerys - substituir Tywin Lannister por Owen Merryweather revelara-se semelhante a trocar um cavalo de batalha por um burro, era certo, mas Owen já era um homem velho e acabado quando Aerys o promovera, amável, ainda que ineficaz. O neto era mais novo, e... Bem, ele tem uma mulher forte. Era uma pena que Taena não pudesse servir como Mão. Era três vezes mais homem do que o marido, e muito mais divertida. No entanto, também nascera em Myr e era mulher, de modo que Orton teria de servir. - Não tenho dúvidas de que é mais capaz do que Sor Harys - o conteúdo de meu penico é mais capaz do que Sor Harys. - Consentirá em servir?
- Eu... Sim, claro. Vossa Graça concede-me uma grande honra.
Uma honra maior do que merece.
- Serviu-me habilmente como administrador de justiça, senhor. E continuará a fazê-lo nos... tempos difíceis que se aproximam - quando viu que Merryweather compreendera o que queria dizer, a rainha virou seu sorriso para o cantor. - E você também deve ser recompensado, por todas as doces canções que tocou para nós enquanto comíamos. Os deuses lhe concederam um dom.
O cantor fez uma reverência.
- É bondade de Vossa Graça dizê-lo.
- Não é bondade - Cersei respondeu - é meramente a verdade. Taena me disse que o chamam de Bardo Azul.
- Chamam, Vossa Graça - as botas do cantor eram de macio couro de vitela azul, e os calções de boa lã azul. A túnica que usava era de seda azul-clara, intercalada com cintilante cetim azul. Até chegara ao ponto de pintar o cabelo de azul, à moda de Tyrosh. Longos e encaracolados, os cabelos caíam-lhe até os ombros e cheiravam como se tivessem sido lavados em água de rosas. De rosas azuis, sem dúvida. Pelo menos tem os dentes brancos. Eram bons dentes, nem um pouco tortos.
- Não tem outro nome?
Uma sugestão de rosa inundou-lhe o rosto.
- Quando garoto era chamado Wat. É um bom nome para um rapaz do campo, mas menos adequado a um cantor.
Os olhos do Bardo Azul eram da mesma cor dos de Robert. Bastava isso para Cersei odiá-lo.
- É fácil compreender por que é o favorito da Senhora Margaery.
- Sua Graça é bondosa. Ela diz que lhe dou prazer.
- Oh, estou certa disso. Posso ver seu alaúde?
- Se aprouver a Vossa Graça - sob a cortesia havia uma tênue sugestão de desconforto, mas ele entregou-lhe o alaúde mesmo assim. Não se recusa um pedido da rainha.
Cersei fez vibrar uma corda e sorriu perante o som.
- Doce e triste como o amor. Diga-me, Wat... a primeira vez que levou Margaery para a cama foi antes de ela se casar com meu filho ou depois?
Por um momento ele não pareceu compreender. Quando entendeu, seus olhos esbugalharam-se.
- Vossa Graça foi mal informada. Juro-lhe, eu nunca...
- Mentiroso! - Cersei bateu o alaúde no rosto do cantor com tamanha força que a madeira pintada explodiu em pedaços e lascas. - Lorde Orton, chame meus guardas e leve esta criatura para as masmorras.
O rosto de Orton Merryweather estava úmido de medo.
- Isto... oh, infâmia... ele se atreveu a seduzir a rainha?
- Temo que tenha sido o contrário, mas é um traidor mesmo assim. Que cante para Lorde Qyburn.
O Bardo Azul ficou branco.
- Não - pingou sangue de seus lábios, onde o alaúde o rasgara. - Eu nunca... - quando Merryweather lhe pegou no braço, ele gritou: - Mãe, misericórdia, não.
- Eu não sou sua mãe - disse-lhe Cersei.
Mesmo nas celas negras, tudo que obtiveram dele foram desmentidos, orações e súplicas por misericórdia. Não demorou muito a escorrer-lhe sangue peito abaixo, vindo de todos os dentes partidos, e ele molhou seus calções azul-escuros três vezes, mesmo assim o homem persistiu em suas mentiras.
- Será possível que tenhamos o cantor errado? - perguntou Cersei.
- Tudo é possível, Vossa Graça. Não tenha medo. O homem confessará antes de a noite terminar.
Lá embaixo, nas masmorras, Qyburn usava lã grosseira e um avental de couro de ferreiro. Dirigindo-se ao Bardo Azul, disse:
- Lamento se os guardas foram rudes com você. A educação deles é tristemente deficiente - a voz era bondosa, solícita. - Tudo que queremos de você é a verdade.
- Eu lhes disse a verdade - soluçou o cantor. Correntes de ferro prendiam-no solidamente à fria parede de pedra.
- Nós sabemos que não - Qyburn tinha na mão uma navalha, cujo gume cintilava tenuemente à luz do archote. Cortou a roupa do Bardo Azul, até deixar o homem nu, exceto por suas altas botas azuis, Cersei achou divertido ver que os pelos entre suas pernas eram castanhos.
- Diga-nos como deste prazer à pequena rainha - ordenou.
- Eu nunca... Eu cantei, só isso, cantei e toquei. Suas senhoras lhes dirão. Elas estavam sempre conosco. As primas.
- De quantas delas tem conhecimento carnal?
- De nenhuma. Sou apenas um cantor. Por favor.
Qyburn disse:
- Vossa Graça, pode ser que este pobre homem tenha só tocado para Margaery enquanto ela recebia outros amantes.
- Não. Por favor. Ela nunca... eu cantei. Só cantei...
Lorde Qyburn percorreu com uma mão o peito do Bardo Azul.
- Ela põe seus mamilos na boca durante os jogos de amor? - pôs um deles entre o polegar e o indicador e torceu. - Há homens que gostam disso. Os mamilos deles são tão sensíveis como os de uma mulher - a navalha relampejou, o cantor guinchou. Em seu peito, um olho vermelho chorou sangue. Cersei sentiu-se nauseada. Parte de si queria fechar os olhos, virar as costas para fazer aquilo parar. Mas era a rainha, e tratava-se de traição. Lorde Tywin não teria afastado o olhar.
No fim, o Bardo Azul contou-lhes a vida inteira, até o primeiro dia de seu nome. O pai era fabricante de velas, e Wat fora educado nesse mister, mas, ainda garoto, descobrira que tinha mais habilidade para fazer alaúdes do que cilindros de cera. Aos doze anos, fugira para se juntar a uma trupe de músicos cuja apresentação ouvira numa feira. Vagueara por metade da Campina antes de vir para Porto Real, na esperança de cair nas boas graças da corte.
- Boas graças? - Qyburn soltou um risinho. - É assim que as mulheres o chamam agora? Temo que tenha arranjado muitas, meu amigo... e da rainha errada. A verdadeira encontra-se na sua frente.
Sim, Cersei culpava Margaery Tyrell por aquilo. Não fosse ela, Wat podia ter vivido uma vida longa e fértil, cantando suas cançonetas e deitando-se com criadoras de porcos e filhas de caseiros. Suas intrigas obrigaram-me a isto. Ela conspurcou-me com sua perfídia.
Ao romper da aurora, as altas botas azuis do cantor estavam cheias de sangue e ele lhes contara como Margaery se acariciava enquanto via as primas dar-lhe prazer com a boca. Em outros momentos, cantava para ela enquanto saciava seus apetites com outros amantes.
- Quem eram eles? - a rainha quis saber, e o infeliz Wat nomeou Sor Tallad, o Alto, Lambert Turnberry, Jalabhar Xho, os gêmeos Redwyne, Osney Kettleblack, Hugh Clifton e o Cavaleiro das Flores.
Aquilo a desagradou. Não se atrevia a manchar o nome do herói de Pedra do Dragão. Além disso, ninguém que conhecesse Sor Loras acreditaria em tal coisa. Os Redwyne também não podiam estar incluídos no grupo. Sem a Árvore e sua frota, o reino nunca poderia esperar se ver livre daquele Euron Olho de Corvo e de seus malditos homens de ferro.
- Só está cuspindo o nome de homens que viu em seus aposentos. Nós queremos a verdade!
- A verdade - Wat olhou-a com o único olho azul que Qyburn lhe deixara. Sangue borbulhou através dos buracos que mostrava onde tinham estado os dentes da frente.
- Eu posso ter tido... uma falha de memória.
- Horas e Hobber não participaram nisto, não?
- Não - admitiu. - Eles não.
- E quanto a Sor Loras, tenho certeza de que Margaery teve todo o cuidado para esconder do irmão o que andava fazendo.
- Teve. Agora me lembro. Uma vez, tive de me esconder debaixo da cama quando Sor Loras veio visitá-la. Ele nunca poderá saber, ela disse.
- Prefiro esta canção à outra - era melhor deixar os grandes senhores de fora. Mas os outros... Sor Tallad fora cavaleiro andante, Jalabhar Xho era um exilado e um pedinte, Clifton era o único dos guardas da pequena rainha. E Osney é a cereja em cima do bolo.
- Sei que se sente melhor por ter dito a verdade. Quero que se lembre disso quando Margaery comparecer ao julgamento. Se começar a mentir outra vez...
- Não começarei. Direi a verdade. E depois...
- ... ser-lhe-á permitido vestir o negro. Tem a minha palavra a esse respeito - Cersei virou-se para Qyburn. - Trate de limpá-lo e cuidar dos ferimentos, e dê-lhe leite de papoula para as dores.
- Vossa Graça é bondosa - Qyburn deixou cair a navalha ensanguentada num balde de vinagre. - Margaery pode querer saber para onde foi seu bardo.
- Os cantores vêm e vão, são tristemente famosos por isso.
Subir a escura escada de pedra que levava às celas negras deixou Cersei sem fôlego. Tenho de descansar. Chegar à verdade era um trabalho cansativo, e temia o que se seguiria. Tenho de ser forte. O que tenho de fazer, faço-o por Tommen e pelo reino. Era uma pena que Maggy, a Rã, estivesse morta. Merda para a sua profecia, velha. A pequena rainha pode ser mais nova do que eu, mas nunca foi mais bela, e logo estará morta.
Senhora Merryweather estava à espera em seu quarto. Era noite cerrada, mais próxima da aurora do que do ocaso. Jocelyn e Dorcas encontravam-se ambas dormindo, mas Taena não.
- Foi terrível? - perguntou.
- Não pode imaginar. Preciso dormir, mas temo sonhar.
Taena afagou-lhe os cabelos.
- Foi tudo por Tommen.
- Foi. Eu sei que foi - Cersei estremeceu. - Tenho a garganta seca. Seja doce e sirva-me um pouco de vinho.
- Se lhe agradar. Isso é tudo que desejo.
Mentirosa. Cersei sabia o que Taena desejava. Que fosse. A mulher estar embevecida consigo só ajudava a assegurar que ela e o marido permaneciam leais. Num mundo tão cheio de traição, isso valia uns tantos beijos. Ela não é pior do que a maioria dos homens. Pelo menos não há perigo de alguma vez me deixar grávida.
O vinho ajudou, mas não o suficiente.
- Sinto-me conspurcada - lamentou-se a rainha junto à janela, com a taça na mão.
- Um banho a deixará em condições, minha querida - Senhora Merryweather acordou Dorcas e Jocelyn e mandou que buscassem água quente. Enquanto enchiam a banheira, Taena ajudou a rainha a se despir, desatando-lhe com dedos hábeis as fitas do vestido e puxando-o para baixo. Então, libertou-se do próprio vestido e o deixou amontoar-se no chão.
As duas partilharam o banho, com Cersei recostada nos braços de Taena.
- Tommen precisa ser poupado do pior disto - disse à mulher de Myr. - Margaery ainda o leva todos os dias ao septo, para pedirem aos deuses que lhe curem o irmão - Sor Loras continuava irritantemente a agarrar-se à vida. - Ele também gosta das primas dela. Será duro para ele perdê-las todas.
- Talvez nem todas as três sejam culpadas - sugeriu Senhora Merryweather. - Ora, pode bem acontecer de que uma não tenha participado. Se ficou envergonhada e enojada pelas coisas que viu...
- ... pode ser convencida a testemunhar contra as outras. Sim, muito bem, mas qual delas é a inocente?
- Alia.
- A acanhada?
- Tem esse ar, mas há mais nela de dissimulado do que de acanhado. Deixe-a comigo, minha querida.
- De bom grado - por si só, a confissão do Bardo Azul nunca seria suficiente. Afinal de contas, os cantores ganhavam a vida mentindo. Alia Tyrell seria uma grande ajuda, se Taena conseguisse colocá-la em suas mãos. - Sor Osney também confessará. Os outros deverão ser levados a entender que só através da confissão poderão conquistar o perdão do rei, e a Muralha - Jalabhar Xho acharia a verdade atraente. Estava menos certa a respeito dos outros, mas Qyburn era persuasivo...
A aurora rompia sobre Porto Real quando saíram da banheira. A pele da rainha estava branca e enrugada devido à longa imersão.
- Fique comigo - pediu a Taena. - Não quero dormir sozinha - até proferiu uma oração antes de se enfiar debaixo da coberta, suplicando sonhos bons à Mãe.
A oração revelou-se um desperdício de saliva; como sempre, os deuses mostraram-se surdos. Cersei sonhou que estava de novo nas celas negras, só que dessa vez era ela quem se encontrava acorrentada à parede, em vez do cantor. Estava nua, e sangue pingava da ponta de seus seios, de onde o Duende lhe arrancara os mamilos com os dentes.
- Por favor - suplicou - por favor, meus filhos não, não faça mal aos meus filhos - Tyrion limitou-se a olhá-la de esguelha. Também ele estava nu, coberto de pelos grossos que o faziam assemelhar-se mais a um macaco do que a um homem.
- Vai vê-los coroados - ele disse - e vai vê-los morrer - então, enfiou seu seio sangrento na boca e pôs-se a chupar, e a dor cortou através dela como uma faca quente.
Acordou tremendo nos braços de Taena.
- Um pesadelo - disse, com voz fraca. - Gritei? Lamento.
- Os sonhos se transformam em poeira à luz do dia. Foi o anão outra vez? Por que é que esse homenzinho tolo a assusta tanto?
- Ele ia me matar. Foi predito quando eu tinha dez anos. Eu queria saber com quem casaria, mas ela disse...
-Ela ?
- A maegi - as palavras jorraram dela. Ainda conseguia ouvir Melara Hetherspoon insistindo que, se nunca falassem das profecias, elas não se concretizariam. Mas ela não ficou lá muito silenciosa no poço. Gritou e guinchou. - Tyrion é o valonqar - disse. - Usa essa palavra em Myr? É alto valiriano, quer dizer irmão mais novo - depois de Melara se afogar, interrogara a Septã Saranella sobre a palavra.
Taena pegou sua mão e a afagou.
- Essa mulher era odiosa, velha, doente e feia. Era jovem e bela, cheia de vida e orgulho. Ela vivia em Lanisporto, segundo disse, portanto, devia saber do anão e do modo como ele matou a senhora sua mãe. Essa criatura não se atrevia a bater em você, por causa de quem era, por isso procurou feri-la com sua língua viperina.
Será possível? Cersei queria acreditar naquilo.
- Mas Melara morreu, tal como ela predisse. Não cheguei a me casar com o Príncipe Rhaegar. E Joffrey... o anão matou meu filho diante dos meus olhos.
- Um filho - disse a Senhora Merryweather - mas tem outro, amável e forte, e nenhum mal acontecerá a ele.
- Nunca, enquanto eu viver - dizer isso a ajudava a acreditar que era verdade. Os sonhos transformam-se em poeira à luz do dia, sim. Lá fora, o sol da manhã brilhava através de uma cerração de nuvens. Cersei saiu de debaixo dos cobertores. - Esta manhã vou quebrar o jejum com o rei. Quero ver meu filho - tudo que faço, faço por ele.
Tommen a ajudou a voltar a si. Nunca lhe fora mais precioso do que naquela manhã, tagarelando sobre os gatinhos enquanto fazia pingar mel sobre um pedaço de pão escuro quente, recém-tirado do forno.
- Sor Salto apanhou um rato - disse-lhe o garoto - mas a Senhora Bigodes o roubou.
Eu nunca fui tão doce e inocente, Cersei pensou. Como ele espera governar este reino cruel? A mãe em si queria apenas protegê-lo; a rainha sabia que ele teria de endurecer, caso contrário o Trono de Ferro certamente o devoraria.
- Sor Salto deve aprender a defender seus direitos – disse-lhe. - Neste mundo, os fracos são sempre as vítimas dos fortes.
O rei refletiu sobre aquilo, lambendo mel dos dedos.
- Quando Sor Loras voltar, vou aprender a lutar com lança, espada e maça de armas, como ele luta.
- Aprenderá a lutar - prometeu a rainha - mas não com Sor Loras. Ele não vai voltar, Tommen.
- Margaery diz que vai. Nós rezamos por ele. Pedimos a misericórdia da Mãe e que o Guerreiro lhe dê forças. Elinor diz que esta é a mais dura batalha de Sor Loras.
Cersei alisou-lhe os cabelos para trás, os macios cachos dourados que tanto lhe faziam lembrar Joff.
- Vai passar a tarde com sua esposa e as primas?
- Ela disse que precisa jejuar e se purificar.
Jejuar e se purificar... Oh, para o Dia da Donzela. Tinham-se passado anos desde que Cersei tivera de celebrar aquele dia santo em particular. Três vezes casada, mas ainda quer nos fazer acreditar que é donzela. Recatada e de branco, a pequena rainha levaria suas galinhas ao Septo de Baelor para acender grandes velas brancas aos pés da Donzela e pendurar grinaldas de pergaminho em volta de seu pescoço sagrado. Algumas de suas galinhas, pelo menos. No Dia da Donzela, tanto viúvas como mães ou prostitutas eram proibidas de entrar nos septos, assim como os homens, a fim de não profanarem as sagradas canções de inocência. Só donzelas podiam...
- Mãe? Disse algo de errado?
Cersei deu um beijo na testa do filho,
- Disse uma coisa muito sábia, querido. Agora vá brincar com seus gatinhos.
Mais tarde, convocou Sor Osney Kettleblack ao seu aposento privado. Ele chegou do pátio, suado e fanfarrão, e quando se apoiou num joelho despiu-a com os olhos, como sempre fazia.
- Erga-se, sor, e sente-se aqui junto a mim. Prestou-me um valente serviço um dia, mas agora tenho uma tarefa mais dura para você.
- Sim, e eu tenho uma coisa dura para você.
- Isso tem de esperar - passou-lhe os dedos levemente sobre as cicatrizes. - Lembra-se da puta que lhe fez isto? Quando regressar da Muralha, será sua. Gostaria de tê-la?
- É você que eu desejo.
Aquela era a resposta certa.
- Primeiro terá de confessar sua traição. Os pecados de um homem podem envenenar-lhe a alma se ele os deixar apodrecer. Eu sei que deve ser difícil viver com aquilo que fez. Já está na hora de se livrar da vergonha.
- Vergonha? - Osney pareceu confuso. - Eu já disse a Osmund, Margaery só provoca. Nunca me deixa fazer mais do que...
- Protegê-la é cavalheiresco de sua parte - Cersei o interrompeu - mas é um cavaleiro bom demais para continuar vivendo com seu crime. Não, precisa ir ao Grande Septo de Baelor esta noite e falar com o Alto Septão. Quando os pecados de um homem são tão sombrios, só Sua Alta Santidade em pessoa pode salvá-lo dos tormentos do inferno. Conte-lhe como dormiu com Margaery e com as primas.
Osney pestanejou.
- O quê, com as primas também?
- Megga e Elinor - decidiu Cersei - Alia nunca - esse pequeno detalhe tornaria toda a história mais plausível. - Alia chorava e suplicava às outras que parassem de pecar.
- Só Megga e Elinor? Ou também Margaery?
- Margaery com toda a certeza. Era ela quem estava por trás de tudo.
Contou-lhe tudo que tinha em mente. A medida que Osney ia ouvindo, a apreensão lentamente foi se espalhando por seu rosto. Quando Cersei terminou, ele disse:
- Depois de lhe cortar a cabeça, quero roubar o beijo que ela nunca me deu.
- Pode roubar todos os beijos que quiser.
- E depois disso, a Muralha?
- Só por pouco tempo. Tommen é um rei clemente.
Osney coçou a face marcada.
- Normalmente, quando minto sobre alguma mulher, sou eu quem diz que nunca a fodi, e ela quem afirma que sim. Isto... Nunca menti ao Alto Septão. Acho que se vai parar em algum inferno por isso. Um dos ruins.
A rainha surpreendeu-se. A última coisa que esperava de um Kettleblack era devoção.
- Está se recusando a me obedecer?
- Não - Osney tocou-lhe os cabelos dourados. - O que acontece é que as melhores mentiras têm alguma verdade nelas... para lhes dar sabor, por assim dizer. E você quer que eu conte como fodi uma rainha...
Cersei quase o esbofeteou. Quase. Mas tinha ido longe demais, e havia muito em jogo. Tudo que faço, faço por Tommen. Virou a cabeça e tomou a mão de Sor Osney nas suas, beijando-lhe os dedos. Eram ásperos e duros, calejados da espada. Robert tinha mãos assim, pensou.
Cersei envolveu-lhe o pescoço nos braços.
- Não gostaria que dissessem que fiz de você um mentiroso - sussurrou em uma voz enrouquecida. - Dê-me uma hora, e vá ter comigo em meu quarto.
- Já esperamos o suficiente - Osney enfiou os dedos no corpete de seu vestido e o puxou, a seda abriu-se com um som de rasgar tão forte que Cersei temeu que metade da Fortaleza Vermelha o tivesse ouvido. - Tire o resto antes que também o rasgue - ele disse. - Pode ficar com a coroa. Gosto de ver você de coroa.  

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