Sua
prisão era agradável.
Arianne
sentia-se confortada por isso. Por que o pai faria um esforço tão
grande para lhe fornecer todo o conforto no cativeiro se a tivesse
marcado para uma morte de traidora? Ele não pode querer me matar,
disse a si mesma uma centena de vezes. Não tem em si crueldade tão
grande. Sou do seu sangue e semente, sou sua herdeira, sua única
filha. Se fosse necessário, se atiraria ao chão junto às rodas de
sua cadeira, admitiria sua falha, lhe suplicaria perdão. E choraria.
Quando ele visse lágrimas deslizando por seu rosto, a perdoaria.
Estava
menos certa de se perdoar a si mesma.
- Areo -
suplicara ao seu captor durante a longa cavalgada seca que a trouxera
de Sangueverde de volta a Lançassolar. - Nunca quis que a garota se
machucasse. Precisa acreditar em mim.
Hotah
respondera apenas com grunhidos. Arianne conseguia sentir sua ira.
Estrela Negra, o mais perigoso de todo seu pequeno grupo de
conspiradores, escapara. Cavalgara mais depressa do que os
perseguidores e desaparecera nas profundezas do deserto, com a lâmina
suja de sangue,
- Você
me conhece, capitão - dissera Arianne, enquanto as léguas ficavam
para trás. - Conhece-me desde pequena. Sempre me manteve a salvo,
assim como mantinha a senhora minha mãe quando veio com ela da
Grande Norvos para ser seu escudo em uma terra estranha. Agora
preciso de você. Preciso de sua ajuda. Nunca pretendi...
- O que
pretendeu não importa, pequena princesa - dissera Areo Hotah. - Só
o que fez importa - seu semblante era uma pedra. - Lamento. Cabe ao
meu príncipe ordenar, e a Hotah obedecer.
Arianne
esperara ser levada perante o cadeirão do pai, sob a cúpula de
vitral da Torre do Sol. Mas Hotah entregara-a na Torre da Lança, à
custódia do senescal do pai, Ricasso, e de Sor Manfrey Martell, o
castelão.
-
Princesa - dissera Ricasso - perdoe um velho cego que não pode subir
com você. Estas pernas não estão à altura de tantos degraus. Um
aposento lhe foi preparado. Sor Manfrey a levará para lá, para
esperar até que seja desejo do príncipe chamá-la.
- Desejo?
Penoso dever, quer dizer. Meus amigos também ficarão confinados
aqui? - Arianne tinha sido separada de Garin, Drey e dos outros após
a captura, e Hotah recusara-se a dizer o que seria feito com eles.
- Isto
cabe ao príncipe decidir - era tudo que o capitão tinha a dizer
sobre o assunto. Sor Manfrey mostrou-se um pouco mais cooperativo.
- Foram
levados para Vila Tabueira e serão transportados por navio para
Sinistres Gris até que o Príncipe Doran decida seu destino.
Sinistres
Gris era um velho castelo arruinado empoleirado num rochedo no Mar de
Dorne, uma prisão lúgubre e pavorosa para onde os piores criminosos
eram enviados a fim de apodrecer e morrer.
- Isso
significa que meu pai pretende matá-los? - Arianne não conseguia
acreditar. - Tudo que fizeram foi por amor a mim. Se meu pai tem de
derramar sangue, devia ser o meu.
- Como
quiser, princesa.
- Quero
falar com ele.
- Ele
achou que talvez quisesse - Sor Manfrey pegou seu braço e a empurrou
escadas acima, para cima e para cima, até deixá-la sem fôlego. A
Torre da Lança tinha meia centena de metros de altura, e sua cela
ficava quase no topo. Arianne examinou todas as portas por que
passaram, perguntando a si mesma se alguma das Serpentes de Areia
estaria trancada lá dentro.
Depois de
a sua porta ser fechada e trancada, Arianne explorou seu novo lar. A
cela era grande e arejada, e não lhe faltava conforto. Havia tapetes
de Myr no chão, vinho tinto para beber, livros para ler. A um canto
encontrava-se um ornamentado tabuleiro de cryvasse, com peças
esculpidas em marfim e ônix, embora não tivesse ninguém com quem
jogar, mesmo que se sentisse inclinada a fazê-lo. Tinha um colchão
de penas onde dormir e uma latrina com assento de mármore, cujo
cheiro era adoçado por um cesto cheio de ervas. Àquela altura, a
vista era magnífica. Uma janela abria-se para leste, de modo que
podia observar o sol nascer do mar. A outra lhe permitia olhar para a
Torre do Sol, e para as Muralhas Sinuosas e o Portão Triplo que se
erguiam mais atrás.
A
exploração demorara menos tempo do que ela teria levado para atar
um par de sandálias, mas pelo menos serviu para manter as lágrimas
afastadas durante alguns instantes. Arianne descobriu uma bacia e um
jarro de água fria e lavou as mãos e o rosto, mas não havia
esfregadela que conseguisse limpar seu desgosto. Arys, pensou, meu
cavaleiro branco. Lágrimas encheram seus olhos, e de repente se viu
chorando, com o corpo inteiro sacudido por soluços. Recordou como o
pesado machado de Hotah abrira caminho através da carne e do osso
dele, o modo como sua cabeça saltara, girando, pelo ar. Por que fez
aquilo? Por que jogara vida fora? Nunca disse para fazê-lo, não
quis isso, só quis... eu quis... quis...
Nessa
noite, chorou até adormecer... Pela primeira vez, embora não pela
última. Nem mesmo nos sonhos encontrara paz. Sonhava com Arys
Oakheart a acariciá-la, a sorrir-lhe, a dizer-lhe que a amava... Mas
os dardos mantinham-se espetados em seu corpo e os ferimentos
sangravam, transformando os panos brancos em vermelhos. Parte de si
sabia que era um pesadelo, mesmo enquanto dormia. Ao chegar amanhã,
tudo isso desaparecerá, disse a princesa a si mesma, mas quando a
manhã chegou ela continuava na sua cela, Sor Arys permanecia morto e
Myrcella... Eu nunca desejei aquilo, nunca. Não desejei nenhum mal à
garota. Tudo que quis foi que ela fosse uma rainha. Se não
tivéssemos sido traídos...
“Alguém
contou” dissera Hotah. A lembrança ainda a deixava zangada.
Arianne agarrou-se àquilo, alimentando a chama que ardia em seu
coração. A ira era melhor do que as lágrimas, melhor do que a dor,
melhor do que a culpa. Alguém tinha contado, alguém em quem ela
tinha confiado. Arys Oakheart perdera a vida por causa disso, fora
morto tanto pelo murmúrio do traidor como pelo machado do capitão.
O sangue que correra pelo rosto de Myrcella também era obra do
traidor. Alguém contou, alguém que ela tinha amado. Este era o mais
cruel de todos os golpes.
Descobriu
uma arca cheia de suas roupas aos pés da cama, então, despiu o
traje manchado pela viagem com o qual dormiu e vestiu a roupa mais
reveladora que encontrou, tufos de seda que cobriam tudo e nada
escondiam. Príncipe Doran podia tratá-la como uma criança, mas ela
se recusava a se vestir como tal. Sabia que um traje assim
desconcertaria o pai quando ele viesse castigá-la por ter fugido com
Myrcella. Contava com isso. Se tenho de engatinhar e chorar, que ele
também fique desconfortável.
Esperou
por ele naquele dia, mas quando a porta finalmente se abriu, revelou
apenas os criados com a refeição do meio-dia.
- Quando
é que poderei falar com meu pai? - perguntou, mas nenhum deles quis
responder. O cabrito fora assado com limão e mel. Com ele vieram
folhas de videira envolvendo uma mistura de passas, cebolas,
cogumelos e ardente pimenta de dragão. - Não tenho fome - Arianne
disse. Os amigos estariam comendo biscoitos de marinheiro e carne de
vaca salgada a caminho de Sinistres Gris. - Levem isto, e tragam-me
Príncipe Doran - mas eles deixaram a comida, e seu pai não veio.
Passado algum tempo, a fome enfraquecera-lhe a determinação, e
sentou-se para comer.
Depois de
terminar a refeição, nada mais havia para Arianne fazer. Pôs-se a
passear em volta da sua torre, duas vezes, e três, e três vezes
três. Sentou-se diante do tabuleiro de cryvasse e moveu, entediada,
um elefante. Enrolou-se no banco abaixo da janela e tentou ler um
livro, até que as palavras se transformaram numa névoa, e ela
compreendeu que estava chorando novamente. Arys, meu querido, meu
cavaleiro branco, por que fez aquilo? Devia ter se rendido. Eu tentei
lhe dizer, mas as palavras ficaram presas na minha garganta. Seu tolo
galante, não queria que morresse nem que Myrcella... Oh, pela
bondade dos deuses, aquela garotinha...
Por fim,
voltou a se enfiar na cama. O mundo tinha escurecido, e pouco havia
que pudesse fazer além de dormir. Alguém contou, pensou. Alguém
contou, Garin, Drey e Sylva Malhada eram amigos de infância,
eram-lhe tão queridos como a prima Tyene. Não conseguia acreditar
que a denunciassem... Mas isso só deixava Estrela Negra, e se era
ele o traidor, por que teria virado a espada contra a pobre Myrcella?
Ele queria matá-la em vez de coroá-la, disse isso mesmo em
Pedramarela. Disse que seria assim que eu obteria a guerra que
desejava. Mas não fazia sentido que Dayne fosse o traidor. Se Sor
Gerold tivesse sido o bicho na maçã, por que teria virado a espada
contra Myrcella?
Alguém
contou. Poderia ter sido Sor Arys? Teria a culpa do cavaleiro branco
subjugado seu desejo? Teria ele amado mais Myrcella do que a si e
traído sua nova princesa para expiar a traição à antiga? Estaria
tão envergonhado por aquilo que fizera que preferira jogar a vida
fora no Sangueverde do que viver para enfrentar a desonra?
Alguém
contou. Quando o pai viesse vê-la, descobriria. Contudo, Príncipe
Doran não veio no dia seguinte. Nem no outro. A princesa foi deixada
sozinha para passear pelo quarto, chorar e alimentar seus ferimentos.
Durante as horas de luz, tentava ler, mas os livros que lhe tinham
dado eram mortalmente enfadonhos: imponentes velhas histórias e
geografias, mapas anotados, um estudo aborrecidíssimo sobre as leis
de Dorne. A Estrela de Sete Pontas e Vida dos Altos Septões, um
enorme volume sobre dragões que conseguia a proeza de torná-los tão
interessantes quanto tritões. Arianne teria dado tudo por uma cópia
de Dez Mil Navios ou de Os Amores da Rainha Nymeria, qualquer coisa
que lhe ocupasse os pensamentos e lhe permitisse fugir de sua torre
por uma hora ou duas, mas esses divertimentos eram-lhe negados.
De seu
banco de janela tinha apenas de relancear o olhar para fora para ver
a grande cúpula de ouro e vidro colorido embaixo, onde o pai
concedia audiências. Ele me chamará em breve, dizia a si mesma.
Não
estava autorizada a receber visitas, com exceção dos criados; Bors
com sua barba por fazer, o alto Timoth que pingava dignidade, as
irmãs Morra e Mellei, a pequena e bonita Cedra, a velha Belandra que
fora aia da sua mãe. Traziam-lhe refeições, mudavam-lhe a roupa da
cama e esvaziavam o penico, mas nenhum queria falar com ela. Quando
pedia mais vinho, Timoth ia buscá-lo. Se desejasse algum de seus
pratos preferidos, figos, azeitonas ou pimentões recheados com
queijo, bastava-lhe dizer a Belandra e a comida aparecia. Morra e
Mellei levavam sua roupa suja e devolviam-na limpa e fresca. A cada
dois dias, traziam-lhe uma banheira, e a tímida Cedra ensaboava-lhe
as costas e a ajudava a escovar os cabelos.
Mas
nenhum deles tinha uma palavra a lhe dizer, e tampouco dignavam-se a
lhe contar o que acontecia no mundo que se estendia para além de sua
gaiola de arenito.
- Estrela
Negra foi capturado? - perguntou um dia a Bors. - Ainda o perseguem?
- o homem limitou-se a virar-lhe as costas e a se afastar. - Ficou
surdo? - atirou-lhe Arianne. - Volte aqui e me responda. É uma ordem
- a única resposta dele foi o som da porta se fechando.
- Timoth
- ela tentou em outro dia - o que aconteceu à Princesa Myrcella? Eu
não quis que nenhum mal lhe acontecesse - a última vez que vira a
outra princesa tinha sido durante o regresso a Lançassolar. Fraca
demais para montar a cavalo, Myrcella viajou numa liteira, com a
cabeça envolta em ataduras de seda na parte onde Estrela Negra a
atingira, com os olhos verdes brilhantes de febre. - Diga-me que ela
não morreu, eu lhe suplico. Que mal pode haver em eu saber disso?
Diga-me como ela está - Timoth nada quis responder.
-
Belandra - disse Arianne, alguns dias mais tarde - se alguma vez amou
a senhora minha mãe, apiede-se de sua pobre filha e me diga quando é
que meu pai pretende vir me visitar. Por favor. Por favor - mas
Belandra também perdera a língua.
Isto é a
ideia que o meu pai faz de um tormento? Nem ferros em brasa, nem a
roda, mas simplesmente o silêncio? Aquilo era tão característico
de Doran Martell que Arianne teve de rir. Ele pensa que está sendo
sutil, quando está apenas sendo fraco. Decidiu desfrutar do sossego,
usar o tempo para se curar e se fortalecer para aquilo que viria em
seguida.
Sabia que
não valia a pena remoer constantemente Sor Arys. Em vez disso,
obrigou-se a pensar nas Serpentes de Areia, especialmente em Tyene.
Arianne gostava de todas as suas primas bastardas, da suscetível e
temperamental Obara à pequena Loreza, a mais nova, com apenas seis
anos. Mas Tyene sempre fora a de que mais gostava; a irmã querida
que nunca tivera. A princesa nunca fora chegada aos irmãos; Quentyn
encontrava-se em Paloferro, e Trystane era novo demais. Não, sempre
fora ela e Tyene, com Garin, Drey e Sylva Malhada. Nym juntava-se a
eles, por vezes, nos jogos, e Sarella passava a vida tentando se
meter onde não era seu lugar, mas tinham sido quase sempre uma
companhia de cinco. Mergulhavam nas lagoas e fontes dos Jardins de
Água e iam para a batalha empoleirados nas costas nuas uns dos
outros. Juntas, ela e Tyene tinham aprendido a ler, a andar a cavalo,
a dançar. Aos dez anos, Arianne roubou um jarro de vinho, e as duas
se embebedaram juntas. Haviam partilhado refeições, camas e joias.
Teriam partilhado também o primeiro homem, mas Drey ficara excitado
demais e cobrira os dedos de Tyene de esperma no momento em que ela o
tirara para fora dos calções. As mãos dela são um perigo. A
recordação a fez sorrir.
Quanto
mais pensava nas primas, mais sentia falta delas. Tanto quanto sei,
podem estar bem abaixo de mim. Nessa noite, Arianne tentou bater no
chão com o salto da sandália. Quando ninguém respondeu,
debruçou-se de uma janela e espreitou para baixo. Conseguia ver
outras janelas mais abaixo, menores do que a sua, algumas nem
passavam de seteiras.
- Tyene!
- chamou. - Tyene, está aí? Obara, Nym? Conseguem me ouvir?
Ellaria? Alguém? TYENE? - a princesa passou metade da noite
pendurada à janela, chamando, até ficar com a garganta em carne
viva, mas não lhe chegaram gritos em resposta. Aquilo a assustou
mais do que poderia exprimir. Se as Serpentes de Areia estavam
aprisionadas na Torre da Lança, certamente a teriam ouvido gritar.
Por que não teriam respondido? Se meu pai lhes fez algum mal, nunca
o perdoarei, nunca, disse a si mesma.
Depois de
se passar uma quinzena, tinha a paciência em farrapos.
- Quero
falar com meu pai, já - disse a Bors, com sua voz mais autoritária.
- Vai me levar até ele - ele não a levou. - Estou pronta para ver o
príncipe - disse a Timoth, mas ele virou-lhe as costas como se não
tivesse ouvido. Na manhã seguinte, Arianne estava à espera junto à
porta quando ela se abriu. Passou por Belandra com um salto, fazendo
que uma bandeja de ovos com especiarias se esmagasse contra a parede,
mas os guardas a apanharam antes de ter percorrido três metros.
Também os conhecia, mas mostraram-se surdos às suas súplicas.
Arrastaram-na de volta à cela, bracejando e esperneando.
Arianne
decidiu que teria de ser mais sutil. Cedra era sua melhor esperança;
a garota era jovem, ingênua e crédula. A princesa lembrou-se de que
um dia Garin se gabara de dormir com ela. No banho seguinte, enquanto
Cedra lhe ensaboava os ombros, pôs-se a falar de tudo e de nada.
- Sei que
lhe foi ordenado que não falasse comigo - disse - mas ninguém me
disse para não falar com você - falou sobre o calor do dia, e
daquilo que tinha jantado na noite anterior, e de como a pobre
Belandra se tornava lenta e rígida. Príncipe Oberyn armara cada uma
de suas filhas para que nunca ficassem sem defesa, mas Arianne
Martell não tinha nenhuma arma além de sua astúcia. E, assim,
sorriu e se mostrou encantadora, e não pediu a Cedra nada em troca,
nem palavra, nem aceno.
No dia
seguinte, ao jantar, voltou a tagarelar com a garota enquanto ela a
servia. Daquela vez deu um jeito de mencionar Garin. Cedra ergueu
acanhadamente os olhos ao ouvir o nome dele e quase derramou o vinho
que servia. Então é assim, não é? Pensou Arianne.
Durante o
banho seguinte, falou dos amigos aprisionados, especialmente de
Garin.
- É por
ele que mais temo - confidenciou à criada. - Os órfãos são
espíritos livres, vivem para vagabundear. Garin precisa de sol e de
ar fresco. Se o trancarem em alguma fria e úmida cela de pedra, como
sobreviverá? Não durará um ano em Sinistres Gris - Cedra não
respondeu, mas quando Arianne se levantou, a criada tinha o rosto
pálido e apertava a esponja com tanta força que o sabão pingava no
tapete de Myr.
Mesmo
assim, foram precisos mais quatro dias e dois banhos para ter a
garota na mão.
- Por
favor - Cedra sussurrou finalmente, depois de Arianne pintar uma viva
imagem de Garin atirando-se da janela da cela, para saborear a
liberdade uma última vez antes de morrer. - Precisa ajudá-lo. Por
favor, não o deixe morrer.
-
Trancada aqui em cima pouco posso fazer - sussurrou em resposta. -
Meu pai não quer me receber. Você é a única que pode salvar
Garin. Ama-o?
- Sim -
Cedra murmurou, corando. - Mas como posso ajudar?
- Pode
fazer sair uma carta minha - disse a princesa. - Fará isso? Correrá
o risco... por Garin?
Os olhos
de Cedra esbugalharam-se. Mas confirmou com a cabeça.
Tenho um
corvo, pensou Arianne, triunfante, mas envio-o para quem ? O único
de seus conspiradores que escapara à rede do pai tinha sido Estrela
Negra. No entanto, àquela altura Sor Gerold podia perfeitamente já
ter sido capturado; e se não tivesse sido, certamente já tinha
fugido de Dorne. Seu pensamento seguinte foi a mãe de Garin e os
órfãos de Sangueverde. Não, eles não. Tem de ser alguém com real
poder, alguém que não tenha participado de nosso plano, mas que
possa ter motivos para nutrir simpatia por nós. Pensou em apelar à
mãe, mas a Senhora Mellario estava longe, em Norvos. E, além disso,
havia muitos anos que o Príncipe Doran não dava ouvidos à senhora
sua esposa. Ela também não. Preciso de um fidalgo, um fidalgo
suficientemente grande para coagir meu pai a me libertar.
O mais
poderoso dos senhores de Dorne era Anders Yronwood, o Sangue-Real,
Senhor de Paloferro e Protetor do Caminho de Pedra, mas Arianne não
era tola para procurar ajuda junto do homem que criara seu irmão
Quentyn. Não, O irmão de Drey, Sor Deziel Dalt outrora tinha
aspirado casar-se com ela, mas era obediente demais para se opor ao
seu príncipe. E, além disso, embora o Cavaleiro de Limoeiros
pudesse intimidar um pequeno senhor, não tinha força suficiente
para influenciar o Príncipe de Dorne. Não, Arianne finalmente
decidiu que não tinha mais do que duas esperanças reais: Harmen
Uller, Senhor da Toca do Inferno, e Franklyn Fowler, Senhor de
Alcanceleste e Protetor do Passo do Príncipe.
Metade
dos Uller é meio louca, dizia o provérbio, e os outros são piores,
Ellaria Sand era filha ilegítima de Lorde Harmen. Ela e suas
pequenas tinham sido presas com o resto das Serpentes de Areia. Isso
devia ter deixado Lorde Harmen furioso, e os Uller eram perigosos
quando se enfureciam. Perigosos demais, talvez. A princesa não
queria colocar mais vidas em perigo.
Lorde
Fowler poderia ser uma escolha mais segura. Chamavam-no o Velho
Falcão. Nunca se dera bem com Anders Yronwood; havia um feudo de
sangue entre as duas casas que remontava a mil anos quando os Fowler
preferiram apoiar os Martell e não os Yronwood durante a Guerra de
Nymeria. Os gêmeos Fowler também eram amigos afamados da Senhora
Nym, mas quanto peso teria isso junto do Velho Falcão?
Arianne
vacilou durante quatro dias enquanto redigia sua carta secreta.
“Dê ao
homem que lhe entregar esta carta cem veados de prata” começou.
Isso asseguraria que a mensagem seria entregue. Disse na carta onde
estava e suplicou que a salvassem. "Seja quem for que me tire
desta cela, não será esquecido quando eu me casar.” Isso deverá
trazer os heróis correndo. A menos que Príncipe Doran a tivesse
proscrito, ainda era a legítima herdeira de Lançassolar; o homem
que se casasse com ela um dia governaria Dorne ao seu lado. Arianne
só podia rezar para que seu salvador se revelasse mais novo do que
os velhos que o pai lhe oferecera ao longo dos anos. “Quero um
consorte com dentes” dissera-lhe quando recusara o último.
Não se
atrevia a pedir pergaminho por temer levantar suspeitas entre seus
captores, por isso escreveu a carta no pé de uma página arrancada
da Estrela de Sete Pontas e a enfiou na mão de Cedra no próximo dia
de banho.
- Junto
do Portão Triplo há um lugar onde as caravanas carregam provisões
antes de atravessar as areias profundas - disse-lhe Arianne. -
Procure um viajante que se dirija ao Passo do Príncipe e prometa-lhe
cem veados de prata se puser isto nas mãos de Lorde Fowler.
- Farei
isso - Cedra escondeu a mensagem no corpete. - Encontrarei alguém
antes do pôr do sol, princesa.
- Ótimo
- Arianne exultou. - Amanhã me diga como foi.
Mas a
garota não regressou na manhã seguinte. Nem no outro dia. Quando
chegou o momento de Arianne tomar banho, foi Morra e Mellei que lhe
encheram a banheira e ficaram para lavar suas costas e escovar os
cabelos.
- Cedra
adoeceu? - perguntou-lhes a princesa, mas nenhuma das duas quis
responder. Só conseguia pensar: ela foi apanhada. Que outra coisa
poderia ser? Nessa noite quase não dormiu, com medo do que poderia
acontecer.
Quando
Timoth lhe trouxe o desjejum na manhã seguinte, Arianne pediu para
ver Ricasso em vez do pai. Era evidente que não conseguiria forçar
o Príncipe Doran a recebê-la, mas certamente um mero senescal não
ignoraria uma convocatória da legítima herdeira de Lançassolar.
No
entanto, ignorou.
-
Transmitiu a Ricasso o que eu lhe disse? - perguntou da próxima vez
que viu Timoth. - Disse-lhe que eu precisava dele? - quando o homem
se recusou a responder, Arianne pegou um jarro de vinho tinto e o
virou em cima da cabeça do criado. O homem se retirou, pingando, com
o rosto transformado numa máscara de dignidade ferida. Meu pai
pretende me deixar aqui para apodrecer, a princesa concluiu. Ou então
está planejando me casar com algum velho idiota repugnante e
pretende me manter trancada até a noite de núpcias.
Arianne
Martell crescera contando que um dia se casaria com um grande senhor
qualquer, escolhido pelo pai. Havia sido ensinada que era para isso
que as princesas serviam... Embora, tinha de admitir, seu tio Oberyn
tivesse visto o assunto de forma diferente.
“Se
quiserem se casar, casem” dissera o Víbora Vermelha às filhas.
“Se não, tirem prazer onde o encontrarem. Não é coisa que abunde
no mundo. Mas escolham bem. Se deixarem que um idiota ou um bruto
lhes coloque a sela, não venham ter comigo para se verem livres
dele. Eu lhes dei as ferramentas para tratarem disso sozinhas."
A
liberdade que Príncipe Oberyn permitia às suas bastardas nunca fora
partilhada pela herdeira legítima do Príncipe Doran. Arianne tinha
de se casar; assim ela tinha aceitado. Sabia que Drey a desejara; e o
irmão dele, Deziel, o Cavaleiro de Limoeiros, também. Daemon Sand
chegara mesmo a lhe pedir a mão. Mas Daemon era bastardo, e Príncipe
Doran não pretendia que ela se casasse com um dornês.
Arianne
também aceitara isso. Houve um ano em que o irmão do Rei Robert
tinha vindo de visita e ela fizera seu melhor para seduzi-lo, mas era
pouco mais que uma menina, e Lorde Renly parecera mais assombrado do
que inflamado por suas ofertas. Mais tarde, quando Hoster Tully lhe
pedira para ir a Correrrio a fim de conhecer seu herdeiro, acendera
velas de agradecimento à Donzela, mas Príncipe Doran declinara o
convite. A princesa poderia até ter tomado em conta Willas Tyrell,
com perna aleijada e tudo, mas o pai se recusara a mandá-la a Jardim
de Cima para conhecê-lo. Tentara ir a despeito dele, com a ajuda de
Tyene... Mas Príncipe Oberyn as apanhara em Vaith e as trouxera de
volta. Nesse mesmo ano, Príncipe Doran tentara prometê-la a Ben
Beesbury, um fidalgo menor que se não tinha oitenta anos pouco
faltava, e que era tão cego quanto desdentado.
Beesbury
morrera alguns anos mais tarde. Isso lhe dava algum pequeno conforto
na presente situação; não podia ser obrigada a se casar com ele se
o homem estava morto, e o Senhor da Travessia voltara a se casar;
portanto, desse também estava salva. Contudo, Elden Estermont
continua vivo e por se casar. Bem como Lorde Rosby e Lorde Grandison.
Este última chamavam Grandison Barbagris, mas quando Arianne o
conheceu, sua barba havia se tornado branca como a neve. No banquete
de boas-vindas, adormecera entre o prato de peixe e o de carne. Drey
tinha dito que aquilo era adequado, visto que seu símbolo era um
leão adormecido. Garin a desafiara a ver se conseguia lhe dar um nó
na barba sem acordá-lo, mas Arianne se conteve. Grandison lhe
pareceu então um tipo agradável, menos lamuriento do que Estermont
e mais robusto do que Rosby. Contudo, nunca se casaria com ele. Nem
mesmo se Hotah se puser atrás de mim com seu machado.
Ninguém
veio se casar com ela no dia seguinte, nem no outro. Cedra também
não regressou. Arianne tentou conquistar Morra e Mellei da mesma
forma, mas não funcionou. Se tivesse conseguido apanhar uma delas
sozinha podia ter alguma esperança, mas, juntas, as irmãs eram uma
muralha. Àquela altura, a princesa teria achado bem-vindo o toque de
um ferro quente ou uma noite passada na roda. A solidão era capaz de
levá-la à loucura. Mereço o machado de um carrasco por aquilo que
fiz , mas ele nem sequer me dará isso. Mais depressa me trancará e
esquecerá que um dia existi. Perguntou a si mesma se Meistre
Caleotte estaria elaborando uma proclamação para nomear o irmão
Quentyn herdeiro de Dorne.
Os dias
chegaram e partiram, um atrás do outro, tantos, que Arianne perdeu a
conta do tempo que passara aprisionada. Deu por si passando cada vez
mais tempo na cama, até chegar ao ponto de não se levantar de todo,
exceto para usar a latrina. As refeições que os criados traziam
arrefeciam, intocadas. Arianne dormia e acordava, e voltava a dormir,
e continuava a se sentir cansada demais para se levantar. Rezava à
Mãe pedindo misericórdia, e ao Guerreiro em busca de coragem, e
depois dormia mais um pouco. Novas refeições substituíam as
antigas, mas ela também não as comia. Uma dia em que se sentiu
especialmente forte, levou toda a comida até a janela e a atirou
para o pátio, para que não a tentasse. O esforço a deixou exausta,
e, assim, engatinhou para a cama e passou meio dia dormindo.
E então
chegou um dia em que uma mão rude a acordou, sacudindo-a pelo ombro.
- Pequena
princesa - disse uma voz que conhecia desde a infância. - Levante-se
e se vista. O príncipe a chama - Areo Hotah, seu velho amigo e
protetor, estava em pé junto dela. Falando com ela. Arianne sorriu,
sonolenta. Era bom ver aquele rosto vincado, cheio de cicatrizes, e
ouvir sua voz áspera e profunda e o forte sotaque de Norvos.
- O que
fez com Cedra?
- O
príncipe a mandou para os Jardins de Água - Hotah respondeu. - Ele
lhe contará. Mas, primeiro, tem de se lavar e comer.
Devia
estar com o aspecto de uma miserável criatura. Arianne saiu com
dificuldade da cama, fraca como uma gatinha.
- Mande
Morra e Mellei prepararem um banho - disse-lhe - e diga a Timoth que
me traga um pouco de comida. Nada pesado. Um pouco de caldo frio e um
pedaço de pão e fruta.
- Sim -
Hotah aquiesceu, e ela percebeu que nunca ouvira som mais adorável.
O capitão
esperou lá fora enquanto a princesa se banhava, escovava os cabelos
e comia frugalmente um pouco do queijo e da fruta que lhe tinham
trazido. Bebeu um pouco de vinho para sossegar o estômago. Estou
assustada, percebeu, pela primeira vez na vida sinto medo do meu pai.
Aquilo a fez rir tanto que deixou sair vinho pelo nariz. Quando
chegou o momento de se vestir, escolheu um vestido simples de linho
cor de marfim, com gavinhas e uvas purpúreas bordadas em volta das
mangas e do corpete. Não colocou joias. Tenho de me mostrar casta,
humilde e arrependida. Preciso me atirar aos pés dele e lhe suplicar
perdão, caso contrário posso nunca mais ouvir outra voz humana.
Quando
finalmente ficou pronta, o ocaso já caíra. Arianne julgou que Hotah
a levaria até a Torre do Sol para ouvir o julgamento do pai, mas, em
vez disso, a entregou no aposento privado do pai, onde foram
encontrar Doran Martell sentado atrás de uma mesa de cryvasse, com
as pernas gotosas colocadas sobre um apoio almofadado para os pés.
Estava brincando com um elefante de ônix, virando-o nas mãos
avermelhadas e inchadas. O príncipe parecia pior do que alguma vez o
vira. Tinha o rosto pálido e entumecido, as articulações tão
inflamadas que lhe doía só de olhar para elas. Vê-lo assim fez que
o coração de Arianne se voltasse para o pai... Mas, sem que
soubesse por que, não conseguiu se ajoelhar e suplicar, como tinha
planejado.
- Pai -
preferiu dizer.
Quando
ele ergueu a cabeça para olhá-la, tinha os olhos escuros enevoados
de dor. Será a gota? Perguntou Arianne a si mesma. Ou serei eu?
- Um povo
estranho e sutil, os volantenos - murmurou, enquanto colocava o
elefante de lado. - Vi Volantis uma vez, a caminho de Norvos, onde me
encontrei pela primeira vez com Mellario. Os sinos estavam tocando e
os ursos dançavam nos degraus. Areo deve se lembrar desse dia.
- Lembro
-ecoou Areo Hotah em sua voz profunda. - Os ursos dançavam e os
sinos tocavam, e o príncipe vinha vestido de vermelho, dourado e
laranja. Minha senhora me perguntou quem era aquele que tanto
brilhava.
Príncipe
Doran abriu um sorriso tristonho.
-
Deixe-nos, capitão.
Hotah
bateu com o cabo de seu machado no chão, girou sobre os calcanhares
e se retirou.
- Eu lhes
disse para colocar um tabuleiro de cryvasse em seus aposentos - o pai
falou quando ficaram sozinhos.
- Com
quem pretendia que eu jogasse? - por que ele está falando de um
jogo? Terá a gota roubado seus miolos?
-
Consigo. Às vezes é melhor estudar um jogo antes de se tentar
jogá-lo. Quão bem conhece o jogo, Arianne?
-
Suficientemente bem para jogar.
- Mas não
para ganhar. Meu irmão gostava do combate pelo combate, mas eu só
jogo os jogos que posso ganhar. Cryvasse não é para mim - estudou o
rosto dela por um longo momento antes de perguntar: - Por quê?
Diga-me isso, Arianne. Diga-me por quê.
- Pela
honra de nossa Casa - a voz do pai a deixara zangada. Soava tão
triste, tão exausto, tão fraco. É um príncipe!, quis gritar.
Devia estar em fúria! - Sua docilidade envergonha Dorne inteira,
pai. Seu irmão foi para Porto Real em seu lugar, e eles o mataram!
- E acha
que não sei disso? Oberyn está comigo cada vez que fecho os olhos.
-
Dizendo-lhe para abri-los, sem dúvida - Arianne sentou-se diante do
tabuleiro de cryvasse, em frente ao pai.
- Não
lhe dei licença para se sentar.
- Então
chame Hotah e me açoite por minha insolência. É o Príncipe de
Dorne. Pode fazê-lo - tocou uma das peças de cryvasse, o cavalo
pesado. - Apanhou Sor Gerold?
Ele
balançou a cabeça.
- Bem
gostaria que tivéssemos apanhado. Foi uma tola por tê-lo metido
nisto. Estrela Negra é o homem mais perigoso de Dorne. Você e ele
nos causaram um grande dano.
Arianne
quase sentiu receio de perguntar.
-
Myrcella. Ela está...?
- ...
morta? Não, embora Estrela Negra tenha feito seu melhor. Todos os
olhos estavam no seu cavaleiro branco, de modo que ninguém parece
ter grandes certezas sobre o que aconteceu exatamente, mas parece que
o cavalo dela recuou diante do dele no último instante, impedindo-o
de cortar o topo do crânio da garota. Mesmo assim, o golpe abriu-lhe
o rosto até o osso e cortou-lhe a orelha direita. Meistre Caleotte
conseguiu salvar-lhe a vida, mas não há cataplasma ou poção capaz
de lhe restaurar o rosto. Ela era minha protegida, Arianne. Prometida
ao seu irmão e sob a minha proteção. Desonrou-nos a todos.
- Nunca
lhe desejei nenhum mal - Arianne insistiu. - Se Hotah não tivesse
interferido...
- ...
teria coroado Myrcella rainha, para iniciar uma rebelião contra o
irmão. Em vez de uma orelha, teria perdido a vida.
- Só se
perdêssemos.
- Se? A
palavra é quando. Dorne é o menos populoso dos Sete Reinos. O Jovem
Dragão achou por bem fazer todos os nossos exércitos maiores quando
escreveu aquele seu livro, para tornar sua conquista mais gloriosa na
mesma proporção, e nós achamos por bem regar a semente que ele
plantou e deixar nossos inimigos nos julgarem mais poderosos do que
somos. Mas uma princesa devia conhecer a verdade. O valor é fraco
substituto para os números. Dorne não pode esperar ganhar uma
guerra contra o Trono de Ferro. Sozinho, não. E, no entanto, pode
bem ser isto o que você nos deu. Sente-se orgulhosa? - o príncipe
não lhe deu tempo para responder. - O que farei com você, Arianne?
Parte
dela quis dizer perdoe-m e, mas suas palavras a tinham ferido demais.
- Ora,
faça o que sempre faz. Nada.
- Você
torna difícil a um homem engolir sua fúria.
- É
melhor parar de engolir, é provável que se engasgue com ela - o
príncipe não respondeu. - Diga-me como soube de meus planos.
- Sou o
Príncipe de Dorne. Os homens procuram cair em minhas graças.
Alguém
contou.
- Sabia,
e no entanto permitiu que eu fugisse com Myrcella. Por quê?
- Este
foi o meu erro, e revelou ser um erro grave. É minha filha, Arianne.
A garotinha que costumava correr para mim quando esfolava o joelho.
Achei difícil acreditar que conspiraria contra mim. Tive de saber a
verdade.
- Agora
sabe. Quero saber quem me denunciou.
- Eu
também iria querer se estivesse em seu lugar.
- Não me
dirá?
- Não
consigo imaginar nenhuma razão para fazê-lo.
- Acha
que não sou capaz de descobrir a verdade sozinha?
- Tente à
vontade. Até que descubra, terá de desconfiar de todos eles... e
ter um pouco de desconfiança é bom para uma princesa - Príncipe
Doran suspirou. - Desilude-me, Arianne.
- Diz o
corvo ao melro. Há anos que me desaponta, pai - não pretendera ser
tão franca com ele, mas as palavras jorravam. Pronto, agora j á
falei.
- Eu sei.
Sou brando, fraco e cauteloso demais, clemente demais com nossos
inimigos. Neste momento, contudo, você precisa de um pouco dessa
clemência, parece-me. Devia estar suplicando meu perdão, em vez de
me provocar mais.
- Só
peço clemência para meus amigos.
- Que
nobre da sua parte.
- O que
eles fizeram foi por me amarem. Não merecem morrer em Sinistres
Gris.
- Por
acaso, concordo. A exceção de Estrela Negra, seus outros
conspiradores não foram mais do que crianças tontas, Apesar disso,
aquilo não foi um inofensivo jogo de cryvasse. Você e seus amigos
estavam brincando de traições. Eu podia ter mandado cortar-lhes a
cabeça.
- Podia,
mas não fez. Dayne, Dalt, Santagar... Não, nunca se atreveria a
transformar essas Casas em inimigos.
-
Atrevo-me a mais do que você sonha... Mas deixemos isso de lado. Sor
Andrey foi enviado para Norvos a fim de servir a senhora sua mãe
durante três anos. Garin passará os próximos dois anos em Tyrosh.
De sua família entre os órfãos recebi dinheiro e reféns. Senhora
Sylva não foi punida por mim, mas está em idade de se casar. O pai
a despachou para Pedraverde, a fim de desposar Lorde Estermont.
Quanto a Arys Oakheart, escolheu seu próprio destino, e o enfrentou
corajosamente. Um cavaleiro da Guarda Real... O que foi que lhe
fizeste?
- Fodi-o,
pai. Ordenou-me que entretivesse nossos nobres visitantes, se bem me
lembro.
O rosto
dele enrubesceu.
- Bastou
isso?
-
Disse-lhe que, uma vez que Myrcella fosse rainha, nos daria licença
para casar. Ele me queria para esposa.
- Fez
tudo o que pôde para impedir que ele desonrasse seus votos,
certamente - disse o pai.
Foi a vez
dela corar. A sedução de Sor Arys levara meio ano. Embora ele
afirmasse ter conhecido outras mulheres antes de vestir o branco, ela
nunca teria adivinhado pela forma como agia. Suas carícias eram
desajeitadas, os beijos, nervosos, e da primeira vez que se deitaram
juntos ele derramou a semente na sua coxa quando ela o guiava para si
com a mão. Pior, foi consumido pela vergonha. Se tivesse um dragão
por cada vez que ele sussurrava “Não devíamos fazer isso”
estaria mais rica do que os Lannister. Terá ele atacado Areo Hotah
na esperança de me salvar? Perguntou Arianne a si mesma. Ou teria
feito para que eu fugisse, para lavar a desonra com o sangue de sua
vida?
- Ele me
amava - ouviu a si mesma dizendo. - Morreu por mim.
- Se
assim foi, pode bem ser apenas o primeiro de muitos. Você e suas
primas queriam a guerra. Podem ter o que desejam. Outro cavaleiro da
Guarda Real aproxima-se lentamente de Lançassolar neste exato
momento. Sor Balon Swann me traz a cabeça da Montanha. Meus vassalos
têm andado atrasando-o, para me arranjar algum tempo. Os Wyl
retiveram-no no Caminho do Espinhaço durante oito dias, caçando com
e sem falcões, e Lorde Yronwood o banqueteou por uma quinzena quando
ele emergiu das montanhas. Atualmente está na Penha, onde Senhora
Jordayne organizou jogos em sua honra. Quando chegar a Monte
Espírito, encontrará Senhora Toland, decidido a ultrapassá-la. Mas
mais cedo ou mais tarde, Sor Balon chegará a Lançassolar, e quando
isso acontecer ele esperará ver Princesa Myrcella... e Sor Arys, seu
Irmão Juramentado. O que lhe diremos, Arianne? Deverei dizer que
Oakheart pereceu num acidente de caça, ou sobre uma queda em alguma
escada escorregadia? Talvez Arys tenha ido nadar nos Jardins de Água,
escorregado no mármore, batido com a cabeça e morrido afogado?
- Não -
Arianne respondeu. - Diga que ele morreu defendendo sua pequena
princesa. Diga a Sor Balon que Estrela Negra tentou matá-la e Sor
Arys se interpôs entre ambos e lhe salvou a vida - era assim que os
cavaleiros brancos da Guarda Real deviam morrer, dando a vida por
aqueles que tinham jurado proteger. - Sor Balon pode ficar
desconfiado, como você ficou quando os Lannister mataram sua irmã e
os filhos, mas não terá provas...
-... até
falar com Myrcella. Ou terá essa corajosa criança de sofrer também
um trágico acidente? Se assim for, isso significará a guerra. Não
haverá mentira que salve Dorne da fúria da rainha se sua filha
perecer enquanto estiver aos meus cuidados.
Ele
precisa de mim, Arianne compreendeu. Foi por isso que me mandou
buscar.
- Eu
podia dizer a Myrcella o que dizer, mas por que o faria?
Um
espasmo de ira percorreu o rosto do pai.
-
Previno-lhe, Arianne, estou sem paciência.
- Comigo?
- isso é tão típico. - Com Lorde Tywin e os Lannister sempre teve
a indulgência de Baelor, o Abençoado, mas para seu sangue, nada.
-
Confunde indulgência com paciência. Trabalhei para a queda de Tywin
Lannister desde o dia em que me informaram sobre Elia e os filhos.
Era minha esperança despi-lo de tudo o que tinha de mais querido
antes de matá-lo, mas ao que parece seu filho anão roubou-me este
prazer. Retiro um certo consolo em saber que morreu uma morte cruel
nas mãos do monstro que ele próprio gerou. Mas não importa. Lorde
Tywin uiva nas profundezas do inferno... Onde milhares irão se
juntar a ele se a sua loucura se transformar em guerra - o pai fez um
trejeito, como se a própria palavra lhe fosse dolorosa. - É isso
que você quer?
A
princesa recusou-se a se deixar intimidar.
- Quero
minhas primas libertadas. Quero meu tio vingado. Quero os meus
direitos.
- Os seus
direitos?
- Dorne.
- Terá
Dorne depois que eu morrer. Está assim tão ansiosa por se ver livre
de mim?
- Eu
devia lhe devolver essa pergunta, pai. Há anos que tenta se ver
livre de mim.
- Isto
não é verdade.
- Não?
Vamos perguntar ao meu irmão?
-
Trystane?
-
Quentyn.
- O que
há com ele?
- Onde
está?
- Com a
hoste de Lorde Yronwood no Caminho do Espinhaço.
- Mente
bem, pai, admito. Nem sequer pestanejou. Quentyn foi para Lys.
- De onde
tirou essa ideia?
- Um
amigo me disse - ela também podia ter segredos.
- Seu
amigo mentiu. Dou-lhe minha palavra, seu irmão não foi para Lys.
Juro pelo sol e lança e pelos Sete.
Arianne
não se deixava enganar com tanta facilidade,
- Então
é Myr? Tyrosh? Sei que ele está em algum lugar para lá do mar
estreito, contratando mercenários para me roubar o direito de
nascença.
O rosto
do pai tornou-se sombrio.
- Essa
desconfiança não a honra, Arianne. Devia ser Quentyn a conspirar
contra mim. Mandei-o para longe quando não passava de uma criança,
jovem demais para compreender as necessidades de Dorne. Anders
Yronwood foi mais pai para ele do que eu, e no entanto seu irmão se
mantém leal e obediente.
- E por
que não? Favorece-o, sempre foi assim. Ele se parece com você,
pensa como você, que pretende lhe dar Dorne, não se incomode em
negá-lo. Eu li sua carta - as palavras ainda ardiam brilhantes como
fogo em sua memória. -“Um dia ocupará o meu lugar e governará
Dorne inteira” escreveu a ele. Diga-me, pai, quando foi que decidiu
me deserdar? Foi no dia em que Quentyn nasceu, ou quando eu nasci? O
que lhe fiz para fazer que me odiasse tanto? - para sua fúria, havia
lágrimas em seus olhos.
- Nunca
odiei você - a voz do Príncipe Doran era frágil como pergaminho e
cheia de dor. - Arianne, não compreende.
- Nega
ter escrito essas palavras?
- Não.
Isso aconteceu quando Quentyn foi para Yronwood. Sim, pretendia que
ele me sucedesse. Tinha outros planos para você.
- Oh, sim
- ela retrucou, cheia de escárnio - e que planos! Gyles Rosby. Ben
Cego Beesbury. Barbagris Grandison. Eram esses os seus planos.
Não lhe
deu nenhuma chance de responder.
- Sei que
é meu dever dar um herdeiro a Dorne, nunca me esqueci disso. Teria
casado, e de bom grado, mas os homens que me trouxe eram insultos.
Com cada um deles cuspiu em mim. Se alguma vez sentiu algum amor por
mim, por que me oferecer a Walder Frey?
- Porque
sabia que o desdenharia. Eu tinha de ser visto tentando encontrar um
consorte para você depois de chegar a uma certa idade, caso
contrário teria levantado suspeitas, mas não me atrevi a lhe trazer
um homem que pudesse aceitar. Estava prometida, Arianne.
Prometida?
Arianne o fitou, incrédula.
- O que
está dizendo? É mais uma mentira? Nunca disse...
- O pacto
foi selado em segredo. Pretendia lhe contar quando tivesse idade
suficiente... Quando chegasse à idade adulta, pensava, mas...
- Tenho
vinte e três anos, há sete que sou uma mulher-feita.
- Eu sei.
Se a mantive na ignorância durante esse tempo, foi só para
protegê-la. Arianne, sua natureza... Para você, um segredo era
apenas uma história especial para murmurar a Garin e Tyene à noite,
na cama. Garin mexerica como só os órfãos são capazes, e Tyene
não guarda segredos de Obara e da Senhora Nym . E se elas
soubessem... Obara gosta de vinho demais, e Nym é muito chegada aos
gêmeos Fowler. E a quem os gêmeos Fowler poderiam fazer
confidências? Não podia correr o risco.
Sentiu-se
perdida, confusa. Prometida. Eu fui prometida.
- Quem é?
A quem estive prometida todos esses anos?
- Não
importa. Ele está morto.
Aquilo a
deixou mais desconcertada do que nunca.
- Os
velhos são tão frágeis. Foi um quadril quebrado, um resfriado, a
gota?
- Foi um
vaso de ouro derretido. Nós, os príncipes, fazemos nossos
cuidadosos planos, e os deuses põem tudo abaixo - Príncipe Doran
fez um gesto fatigado com uma mão irritada e vermelha. - Dorne será
seu. Tem a minha palavra quanto a isto, se minha palavra ainda tiver
algum significado para você. Seu irmão Quentyn tem um caminho mais
duro a percorrer.
- Que
caminho? - Arianne o olhou com suspeita. - O que está guardando para
si? Que os Sete me salvem, m as estou farta de segredos. Conte-me o
resto, pai... Ou então nomeie Quentyn seu herdeiro, mande chamar
Hotah e seu machado e deixe-me morrer ao lado de minhas primas.
- Pensa
mesmo que eu faria mal às filhas de meu irmão? - o pai fez uma
careta. - A Obara, Nym e Tyene nada falta, exceto a liberdade, e
Ellaria e as filhas estão alegremente escondidas nos Jardins de
Água. Dorea anda por lá, sorrateira, derrubando laranjas das
árvores com sua maça de armas, e Elia e Obella transformaram-se no
terror das lagoas - suspirou. - Não se passou assim tanto tempo
desde que era você quem brincava naquelas lagoas. Costumava montar
nos ombros de uma garota mais velha... Uma garota alta, de cabelos
amarelos como palha...
- Jeyne
Fowler, ou a irmã Jennelyn - tinham se passado anos sem que Arianne
pensasse nisso. - Oh, e Frynne, o pai era um ferreiro. Ela tinha
cabelos castanhos. Mas Garin era meu preferido. Quando montava Garin,
ninguém conseguia nos derrotar, nem mesmo Nym e aquela garota
tyroshi de cabelos verdes.
- Essa
garota de cabelos verdes era a filha do Arconte. Esperava-se que eu a
enviasse para Tyrosh no lugar dela. Teria servido o Arconte como
copeira e se encontrado em segredo com o seu prometido, mas sua mãe
ameaçou se ferir se eu lhe roubasse mais algum filho, e eu... Não
pude fazer tal coisa.
A
história cada vez mais se torna estranha.
- Foi
para lá que Quentyn foi? Para Tyrosh, a fim de cortejar a filha de
cabelos verdes do Arconte?
O pai
pegou uma peça de cryvasse.
- Tenho
de saber como chegou ao seu conhecimento que Quentyn estava no
estrangeiro. Seu irmão partiu com Cletus Yronwood, Meistre Kedry e
três dos melhores jovens cavaleiros do Lorde Yronwood numa longa e
perigosa viagem, com um resultado incerto no fim. Foi para nos
devolver aquilo que é desejo de nosso coração.
Ela
estreitou os olhos.
- O que é
o desejo de nosso coração?
- A
vingança - a voz dele era baixa, como se tivesse receio de que
alguém estivesse ouvindo. - A justiça - Príncipe Doran pressionou
o dragão de ônix contra a palma da mão dela com seus dedos
inchados e gotosos, e murmurou: - Fogo e sangue.
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