segunda-feira, 23 de setembro de 2013

40 - A PRINCESA NA TORRE



Sua prisão era agradável.
Arianne sentia-se confortada por isso. Por que o pai faria um esforço tão grande para lhe fornecer todo o conforto no cativeiro se a tivesse marcado para uma morte de traidora? Ele não pode querer me matar, disse a si mesma uma centena de vezes. Não tem em si crueldade tão grande. Sou do seu sangue e semente, sou sua herdeira, sua única filha. Se fosse necessário, se atiraria ao chão junto às rodas de sua cadeira, admitiria sua falha, lhe suplicaria perdão. E choraria. Quando ele visse lágrimas deslizando por seu rosto, a perdoaria.
Estava menos certa de se perdoar a si mesma.
- Areo - suplicara ao seu captor durante a longa cavalgada seca que a trouxera de Sangueverde de volta a Lançassolar. - Nunca quis que a garota se machucasse. Precisa acreditar em mim.
Hotah respondera apenas com grunhidos. Arianne conseguia sentir sua ira. Estrela Negra, o mais perigoso de todo seu pequeno grupo de conspiradores, escapara. Cavalgara mais depressa do que os perseguidores e desaparecera nas profundezas do deserto, com a lâmina suja de sangue,
- Você me conhece, capitão - dissera Arianne, enquanto as léguas ficavam para trás. - Conhece-me desde pequena. Sempre me manteve a salvo, assim como mantinha a senhora minha mãe quando veio com ela da Grande Norvos para ser seu escudo em uma terra estranha. Agora preciso de você. Preciso de sua ajuda. Nunca pretendi...
- O que pretendeu não importa, pequena princesa - dissera Areo Hotah. - Só o que fez importa - seu semblante era uma pedra. - Lamento. Cabe ao meu príncipe ordenar, e a Hotah obedecer.
Arianne esperara ser levada perante o cadeirão do pai, sob a cúpula de vitral da Torre do Sol. Mas Hotah entregara-a na Torre da Lança, à custódia do senescal do pai, Ricasso, e de Sor Manfrey Martell, o castelão.
- Princesa - dissera Ricasso - perdoe um velho cego que não pode subir com você. Estas pernas não estão à altura de tantos degraus. Um aposento lhe foi preparado. Sor Manfrey a levará para lá, para esperar até que seja desejo do príncipe chamá-la.
- Desejo? Penoso dever, quer dizer. Meus amigos também ficarão confinados aqui? - Arianne tinha sido separada de Garin, Drey e dos outros após a captura, e Hotah recusara-se a dizer o que seria feito com eles.
- Isto cabe ao príncipe decidir - era tudo que o capitão tinha a dizer sobre o assunto. Sor Manfrey mostrou-se um pouco mais cooperativo.
- Foram levados para Vila Tabueira e serão transportados por navio para Sinistres Gris até que o Príncipe Doran decida seu destino.
Sinistres Gris era um velho castelo arruinado empoleirado num rochedo no Mar de Dorne, uma prisão lúgubre e pavorosa para onde os piores criminosos eram enviados a fim de apodrecer e morrer.
- Isso significa que meu pai pretende matá-los? - Arianne não conseguia acreditar. - Tudo que fizeram foi por amor a mim. Se meu pai tem de derramar sangue, devia ser o meu.
- Como quiser, princesa.
- Quero falar com ele.
- Ele achou que talvez quisesse - Sor Manfrey pegou seu braço e a empurrou escadas acima, para cima e para cima, até deixá-la sem fôlego. A Torre da Lança tinha meia centena de metros de altura, e sua cela ficava quase no topo. Arianne examinou todas as portas por que passaram, perguntando a si mesma se alguma das Serpentes de Areia estaria trancada lá dentro.
Depois de a sua porta ser fechada e trancada, Arianne explorou seu novo lar. A cela era grande e arejada, e não lhe faltava conforto. Havia tapetes de Myr no chão, vinho tinto para beber, livros para ler. A um canto encontrava-se um ornamentado tabuleiro de cryvasse, com peças esculpidas em marfim e ônix, embora não tivesse ninguém com quem jogar, mesmo que se sentisse inclinada a fazê-lo. Tinha um colchão de penas onde dormir e uma latrina com assento de mármore, cujo cheiro era adoçado por um cesto cheio de ervas. Àquela altura, a vista era magnífica. Uma janela abria-se para leste, de modo que podia observar o sol nascer do mar. A outra lhe permitia olhar para a Torre do Sol, e para as Muralhas Sinuosas e o Portão Triplo que se erguiam mais atrás.
A exploração demorara menos tempo do que ela teria levado para atar um par de sandálias, mas pelo menos serviu para manter as lágrimas afastadas durante alguns instantes. Arianne descobriu uma bacia e um jarro de água fria e lavou as mãos e o rosto, mas não havia esfregadela que conseguisse limpar seu desgosto. Arys, pensou, meu cavaleiro branco. Lágrimas encheram seus olhos, e de repente se viu chorando, com o corpo inteiro sacudido por soluços. Recordou como o pesado machado de Hotah abrira caminho através da carne e do osso dele, o modo como sua cabeça saltara, girando, pelo ar. Por que fez aquilo? Por que jogara vida fora? Nunca disse para fazê-lo, não quis isso, só quis... eu quis... quis...
Nessa noite, chorou até adormecer... Pela primeira vez, embora não pela última. Nem mesmo nos sonhos encontrara paz. Sonhava com Arys Oakheart a acariciá-la, a sorrir-lhe, a dizer-lhe que a amava... Mas os dardos mantinham-se espetados em seu corpo e os ferimentos sangravam, transformando os panos brancos em vermelhos. Parte de si sabia que era um pesadelo, mesmo enquanto dormia. Ao chegar amanhã, tudo isso desaparecerá, disse a princesa a si mesma, mas quando a manhã chegou ela continuava na sua cela, Sor Arys permanecia morto e Myrcella... Eu nunca desejei aquilo, nunca. Não desejei nenhum mal à garota. Tudo que quis foi que ela fosse uma rainha. Se não tivéssemos sido traídos...
“Alguém contou” dissera Hotah. A lembrança ainda a deixava zangada. Arianne agarrou-se àquilo, alimentando a chama que ardia em seu coração. A ira era melhor do que as lágrimas, melhor do que a dor, melhor do que a culpa. Alguém tinha contado, alguém em quem ela tinha confiado. Arys Oakheart perdera a vida por causa disso, fora morto tanto pelo murmúrio do traidor como pelo machado do capitão. O sangue que correra pelo rosto de Myrcella também era obra do traidor. Alguém contou, alguém que ela tinha amado. Este era o mais cruel de todos os golpes.
Descobriu uma arca cheia de suas roupas aos pés da cama, então, despiu o traje manchado pela viagem com o qual dormiu e vestiu a roupa mais reveladora que encontrou, tufos de seda que cobriam tudo e nada escondiam. Príncipe Doran podia tratá-la como uma criança, mas ela se recusava a se vestir como tal. Sabia que um traje assim desconcertaria o pai quando ele viesse castigá-la por ter fugido com Myrcella. Contava com isso. Se tenho de engatinhar e chorar, que ele também fique desconfortável.
Esperou por ele naquele dia, mas quando a porta finalmente se abriu, revelou apenas os criados com a refeição do meio-dia.
- Quando é que poderei falar com meu pai? - perguntou, mas nenhum deles quis responder. O cabrito fora assado com limão e mel. Com ele vieram folhas de videira envolvendo uma mistura de passas, cebolas, cogumelos e ardente pimenta de dragão. - Não tenho fome - Arianne disse. Os amigos estariam comendo biscoitos de marinheiro e carne de vaca salgada a caminho de Sinistres Gris. - Levem isto, e tragam-me Príncipe Doran - mas eles deixaram a comida, e seu pai não veio. Passado algum tempo, a fome enfraquecera-lhe a determinação, e sentou-se para comer.
Depois de terminar a refeição, nada mais havia para Arianne fazer. Pôs-se a passear em volta da sua torre, duas vezes, e três, e três vezes três. Sentou-se diante do tabuleiro de cryvasse e moveu, entediada, um elefante. Enrolou-se no banco abaixo da janela e tentou ler um livro, até que as palavras se transformaram numa névoa, e ela compreendeu que estava chorando novamente. Arys, meu querido, meu cavaleiro branco, por que fez aquilo? Devia ter se rendido. Eu tentei lhe dizer, mas as palavras ficaram presas na minha garganta. Seu tolo galante, não queria que morresse nem que Myrcella... Oh, pela bondade dos deuses, aquela garotinha...
Por fim, voltou a se enfiar na cama. O mundo tinha escurecido, e pouco havia que pudesse fazer além de dormir. Alguém contou, pensou. Alguém contou, Garin, Drey e Sylva Malhada eram amigos de infância, eram-lhe tão queridos como a prima Tyene. Não conseguia acreditar que a denunciassem... Mas isso só deixava Estrela Negra, e se era ele o traidor, por que teria virado a espada contra a pobre Myrcella? Ele queria matá-la em vez de coroá-la, disse isso mesmo em Pedramarela. Disse que seria assim que eu obteria a guerra que desejava. Mas não fazia sentido que Dayne fosse o traidor. Se Sor Gerold tivesse sido o bicho na maçã, por que teria virado a espada contra Myrcella?
Alguém contou. Poderia ter sido Sor Arys? Teria a culpa do cavaleiro branco subjugado seu desejo? Teria ele amado mais Myrcella do que a si e traído sua nova princesa para expiar a traição à antiga? Estaria tão envergonhado por aquilo que fizera que preferira jogar a vida fora no Sangueverde do que viver para enfrentar a desonra?
Alguém contou. Quando o pai viesse vê-la, descobriria. Contudo, Príncipe Doran não veio no dia seguinte. Nem no outro. A princesa foi deixada sozinha para passear pelo quarto, chorar e alimentar seus ferimentos. Durante as horas de luz, tentava ler, mas os livros que lhe tinham dado eram mortalmente enfadonhos: imponentes velhas histórias e geografias, mapas anotados, um estudo aborrecidíssimo sobre as leis de Dorne. A Estrela de Sete Pontas e Vida dos Altos Septões, um enorme volume sobre dragões que conseguia a proeza de torná-los tão interessantes quanto tritões. Arianne teria dado tudo por uma cópia de Dez Mil Navios ou de Os Amores da Rainha Nymeria, qualquer coisa que lhe ocupasse os pensamentos e lhe permitisse fugir de sua torre por uma hora ou duas, mas esses divertimentos eram-lhe negados.
De seu banco de janela tinha apenas de relancear o olhar para fora para ver a grande cúpula de ouro e vidro colorido embaixo, onde o pai concedia audiências. Ele me chamará em breve, dizia a si mesma.
Não estava autorizada a receber visitas, com exceção dos criados; Bors com sua barba por fazer, o alto Timoth que pingava dignidade, as irmãs Morra e Mellei, a pequena e bonita Cedra, a velha Belandra que fora aia da sua mãe. Traziam-lhe refeições, mudavam-lhe a roupa da cama e esvaziavam o penico, mas nenhum queria falar com ela. Quando pedia mais vinho, Timoth ia buscá-lo. Se desejasse algum de seus pratos preferidos, figos, azeitonas ou pimentões recheados com queijo, bastava-lhe dizer a Belandra e a comida aparecia. Morra e Mellei levavam sua roupa suja e devolviam-na limpa e fresca. A cada dois dias, traziam-lhe uma banheira, e a tímida Cedra ensaboava-lhe as costas e a ajudava a escovar os cabelos.
Mas nenhum deles tinha uma palavra a lhe dizer, e tampouco dignavam-se a lhe contar o que acontecia no mundo que se estendia para além de sua gaiola de arenito.
- Estrela Negra foi capturado? - perguntou um dia a Bors. - Ainda o perseguem? - o homem limitou-se a virar-lhe as costas e a se afastar. - Ficou surdo? - atirou-lhe Arianne. - Volte aqui e me responda. É uma ordem - a única resposta dele foi o som da porta se fechando.
- Timoth - ela tentou em outro dia - o que aconteceu à Princesa Myrcella? Eu não quis que nenhum mal lhe acontecesse - a última vez que vira a outra princesa tinha sido durante o regresso a Lançassolar. Fraca demais para montar a cavalo, Myrcella viajou numa liteira, com a cabeça envolta em ataduras de seda na parte onde Estrela Negra a atingira, com os olhos verdes brilhantes de febre. - Diga-me que ela não morreu, eu lhe suplico. Que mal pode haver em eu saber disso? Diga-me como ela está - Timoth nada quis responder.
- Belandra - disse Arianne, alguns dias mais tarde - se alguma vez amou a senhora minha mãe, apiede-se de sua pobre filha e me diga quando é que meu pai pretende vir me visitar. Por favor. Por favor - mas Belandra também perdera a língua.
Isto é a ideia que o meu pai faz de um tormento? Nem ferros em brasa, nem a roda, mas simplesmente o silêncio? Aquilo era tão característico de Doran Martell que Arianne teve de rir. Ele pensa que está sendo sutil, quando está apenas sendo fraco. Decidiu desfrutar do sossego, usar o tempo para se curar e se fortalecer para aquilo que viria em seguida.
Sabia que não valia a pena remoer constantemente Sor Arys. Em vez disso, obrigou-se a pensar nas Serpentes de Areia, especialmente em Tyene. Arianne gostava de todas as suas primas bastardas, da suscetível e temperamental Obara à pequena Loreza, a mais nova, com apenas seis anos. Mas Tyene sempre fora a de que mais gostava; a irmã querida que nunca tivera. A princesa nunca fora chegada aos irmãos; Quentyn encontrava-se em Paloferro, e Trystane era novo demais. Não, sempre fora ela e Tyene, com Garin, Drey e Sylva Malhada. Nym juntava-se a eles, por vezes, nos jogos, e Sarella passava a vida tentando se meter onde não era seu lugar, mas tinham sido quase sempre uma companhia de cinco. Mergulhavam nas lagoas e fontes dos Jardins de Água e iam para a batalha empoleirados nas costas nuas uns dos outros. Juntas, ela e Tyene tinham aprendido a ler, a andar a cavalo, a dançar. Aos dez anos, Arianne roubou um jarro de vinho, e as duas se embebedaram juntas. Haviam partilhado refeições, camas e joias. Teriam partilhado também o primeiro homem, mas Drey ficara excitado demais e cobrira os dedos de Tyene de esperma no momento em que ela o tirara para fora dos calções. As mãos dela são um perigo. A recordação a fez sorrir.
Quanto mais pensava nas primas, mais sentia falta delas. Tanto quanto sei, podem estar bem abaixo de mim. Nessa noite, Arianne tentou bater no chão com o salto da sandália. Quando ninguém respondeu, debruçou-se de uma janela e espreitou para baixo. Conseguia ver outras janelas mais abaixo, menores do que a sua, algumas nem passavam de seteiras.
- Tyene! - chamou. - Tyene, está aí? Obara, Nym? Conseguem me ouvir? Ellaria? Alguém? TYENE? - a princesa passou metade da noite pendurada à janela, chamando, até ficar com a garganta em carne viva, mas não lhe chegaram gritos em resposta. Aquilo a assustou mais do que poderia exprimir. Se as Serpentes de Areia estavam aprisionadas na Torre da Lança, certamente a teriam ouvido gritar. Por que não teriam respondido? Se meu pai lhes fez algum mal, nunca o perdoarei, nunca, disse a si mesma.
Depois de se passar uma quinzena, tinha a paciência em farrapos.
- Quero falar com meu pai, já - disse a Bors, com sua voz mais autoritária. - Vai me levar até ele - ele não a levou. - Estou pronta para ver o príncipe - disse a Timoth, mas ele virou-lhe as costas como se não tivesse ouvido. Na manhã seguinte, Arianne estava à espera junto à porta quando ela se abriu. Passou por Belandra com um salto, fazendo que uma bandeja de ovos com especiarias se esmagasse contra a parede, mas os guardas a apanharam antes de ter percorrido três metros. Também os conhecia, mas mostraram-se surdos às suas súplicas. Arrastaram-na de volta à cela, bracejando e esperneando.
Arianne decidiu que teria de ser mais sutil. Cedra era sua melhor esperança; a garota era jovem, ingênua e crédula. A princesa lembrou-se de que um dia Garin se gabara de dormir com ela. No banho seguinte, enquanto Cedra lhe ensaboava os ombros, pôs-se a falar de tudo e de nada.
- Sei que lhe foi ordenado que não falasse comigo - disse - mas ninguém me disse para não falar com você - falou sobre o calor do dia, e daquilo que tinha jantado na noite anterior, e de como a pobre Belandra se tornava lenta e rígida. Príncipe Oberyn armara cada uma de suas filhas para que nunca ficassem sem defesa, mas Arianne Martell não tinha nenhuma arma além de sua astúcia. E, assim, sorriu e se mostrou encantadora, e não pediu a Cedra nada em troca, nem palavra, nem aceno.
No dia seguinte, ao jantar, voltou a tagarelar com a garota enquanto ela a servia. Daquela vez deu um jeito de mencionar Garin. Cedra ergueu acanhadamente os olhos ao ouvir o nome dele e quase derramou o vinho que servia. Então é assim, não é? Pensou Arianne.
Durante o banho seguinte, falou dos amigos aprisionados, especialmente de Garin.
- É por ele que mais temo - confidenciou à criada. - Os órfãos são espíritos livres, vivem para vagabundear. Garin precisa de sol e de ar fresco. Se o trancarem em alguma fria e úmida cela de pedra, como sobreviverá? Não durará um ano em Sinistres Gris - Cedra não respondeu, mas quando Arianne se levantou, a criada tinha o rosto pálido e apertava a esponja com tanta força que o sabão pingava no tapete de Myr.
Mesmo assim, foram precisos mais quatro dias e dois banhos para ter a garota na mão.
- Por favor - Cedra sussurrou finalmente, depois de Arianne pintar uma viva imagem de Garin atirando-se da janela da cela, para saborear a liberdade uma última vez antes de morrer. - Precisa ajudá-lo. Por favor, não o deixe morrer.
- Trancada aqui em cima pouco posso fazer - sussurrou em resposta. - Meu pai não quer me receber. Você é a única que pode salvar Garin. Ama-o?
- Sim - Cedra murmurou, corando. - Mas como posso ajudar?
- Pode fazer sair uma carta minha - disse a princesa. - Fará isso? Correrá o risco... por Garin?
Os olhos de Cedra esbugalharam-se. Mas confirmou com a cabeça.
Tenho um corvo, pensou Arianne, triunfante, mas envio-o para quem ? O único de seus conspiradores que escapara à rede do pai tinha sido Estrela Negra. No entanto, àquela altura Sor Gerold podia perfeitamente já ter sido capturado; e se não tivesse sido, certamente já tinha fugido de Dorne. Seu pensamento seguinte foi a mãe de Garin e os órfãos de Sangueverde. Não, eles não. Tem de ser alguém com real poder, alguém que não tenha participado de nosso plano, mas que possa ter motivos para nutrir simpatia por nós. Pensou em apelar à mãe, mas a Senhora Mellario estava longe, em Norvos. E, além disso, havia muitos anos que o Príncipe Doran não dava ouvidos à senhora sua esposa. Ela também não. Preciso de um fidalgo, um fidalgo suficientemente grande para coagir meu pai a me libertar.
O mais poderoso dos senhores de Dorne era Anders Yronwood, o Sangue-Real, Senhor de Paloferro e Protetor do Caminho de Pedra, mas Arianne não era tola para procurar ajuda junto do homem que criara seu irmão Quentyn. Não, O irmão de Drey, Sor Deziel Dalt outrora tinha aspirado casar-se com ela, mas era obediente demais para se opor ao seu príncipe. E, além disso, embora o Cavaleiro de Limoeiros pudesse intimidar um pequeno senhor, não tinha força suficiente para influenciar o Príncipe de Dorne. Não, Arianne finalmente decidiu que não tinha mais do que duas esperanças reais: Harmen Uller, Senhor da Toca do Inferno, e Franklyn Fowler, Senhor de Alcanceleste e Protetor do Passo do Príncipe.
Metade dos Uller é meio louca, dizia o provérbio, e os outros são piores, Ellaria Sand era filha ilegítima de Lorde Harmen. Ela e suas pequenas tinham sido presas com o resto das Serpentes de Areia. Isso devia ter deixado Lorde Harmen furioso, e os Uller eram perigosos quando se enfureciam. Perigosos demais, talvez. A princesa não queria colocar mais vidas em perigo.
Lorde Fowler poderia ser uma escolha mais segura. Chamavam-no o Velho Falcão. Nunca se dera bem com Anders Yronwood; havia um feudo de sangue entre as duas casas que remontava a mil anos quando os Fowler preferiram apoiar os Martell e não os Yronwood durante a Guerra de Nymeria. Os gêmeos Fowler também eram amigos afamados da Senhora Nym, mas quanto peso teria isso junto do Velho Falcão?
Arianne vacilou durante quatro dias enquanto redigia sua carta secreta.
“Dê ao homem que lhe entregar esta carta cem veados de prata” começou. Isso asseguraria que a mensagem seria entregue. Disse na carta onde estava e suplicou que a salvassem. "Seja quem for que me tire desta cela, não será esquecido quando eu me casar.” Isso deverá trazer os heróis correndo. A menos que Príncipe Doran a tivesse proscrito, ainda era a legítima herdeira de Lançassolar; o homem que se casasse com ela um dia governaria Dorne ao seu lado. Arianne só podia rezar para que seu salvador se revelasse mais novo do que os velhos que o pai lhe oferecera ao longo dos anos. “Quero um consorte com dentes” dissera-lhe quando recusara o último.
Não se atrevia a pedir pergaminho por temer levantar suspeitas entre seus captores, por isso escreveu a carta no pé de uma página arrancada da Estrela de Sete Pontas e a enfiou na mão de Cedra no próximo dia de banho.
- Junto do Portão Triplo há um lugar onde as caravanas carregam provisões antes de atravessar as areias profundas - disse-lhe Arianne. - Procure um viajante que se dirija ao Passo do Príncipe e prometa-lhe cem veados de prata se puser isto nas mãos de Lorde Fowler.
- Farei isso - Cedra escondeu a mensagem no corpete. - Encontrarei alguém antes do pôr do sol, princesa.
- Ótimo - Arianne exultou. - Amanhã me diga como foi.
Mas a garota não regressou na manhã seguinte. Nem no outro dia. Quando chegou o momento de Arianne tomar banho, foi Morra e Mellei que lhe encheram a banheira e ficaram para lavar suas costas e escovar os cabelos.
- Cedra adoeceu? - perguntou-lhes a princesa, mas nenhuma das duas quis responder. Só conseguia pensar: ela foi apanhada. Que outra coisa poderia ser? Nessa noite quase não dormiu, com medo do que poderia acontecer.
Quando Timoth lhe trouxe o desjejum na manhã seguinte, Arianne pediu para ver Ricasso em vez do pai. Era evidente que não conseguiria forçar o Príncipe Doran a recebê-la, mas certamente um mero senescal não ignoraria uma convocatória da legítima herdeira de Lançassolar.
No entanto, ignorou.
- Transmitiu a Ricasso o que eu lhe disse? - perguntou da próxima vez que viu Timoth. - Disse-lhe que eu precisava dele? - quando o homem se recusou a responder, Arianne pegou um jarro de vinho tinto e o virou em cima da cabeça do criado. O homem se retirou, pingando, com o rosto transformado numa máscara de dignidade ferida. Meu pai pretende me deixar aqui para apodrecer, a princesa concluiu. Ou então está planejando me casar com algum velho idiota repugnante e pretende me manter trancada até a noite de núpcias.
Arianne Martell crescera contando que um dia se casaria com um grande senhor qualquer, escolhido pelo pai. Havia sido ensinada que era para isso que as princesas serviam... Embora, tinha de admitir, seu tio Oberyn tivesse visto o assunto de forma diferente.
“Se quiserem se casar, casem” dissera o Víbora Vermelha às filhas. “Se não, tirem prazer onde o encontrarem. Não é coisa que abunde no mundo. Mas escolham bem. Se deixarem que um idiota ou um bruto lhes coloque a sela, não venham ter comigo para se verem livres dele. Eu lhes dei as ferramentas para tratarem disso sozinhas."
A liberdade que Príncipe Oberyn permitia às suas bastardas nunca fora partilhada pela herdeira legítima do Príncipe Doran. Arianne tinha de se casar; assim ela tinha aceitado. Sabia que Drey a desejara; e o irmão dele, Deziel, o Cavaleiro de Limoeiros, também. Daemon Sand chegara mesmo a lhe pedir a mão. Mas Daemon era bastardo, e Príncipe Doran não pretendia que ela se casasse com um dornês.
Arianne também aceitara isso. Houve um ano em que o irmão do Rei Robert tinha vindo de visita e ela fizera seu melhor para seduzi-lo, mas era pouco mais que uma menina, e Lorde Renly parecera mais assombrado do que inflamado por suas ofertas. Mais tarde, quando Hoster Tully lhe pedira para ir a Correrrio a fim de conhecer seu herdeiro, acendera velas de agradecimento à Donzela, mas Príncipe Doran declinara o convite. A princesa poderia até ter tomado em conta Willas Tyrell, com perna aleijada e tudo, mas o pai se recusara a mandá-la a Jardim de Cima para conhecê-lo. Tentara ir a despeito dele, com a ajuda de Tyene... Mas Príncipe Oberyn as apanhara em Vaith e as trouxera de volta. Nesse mesmo ano, Príncipe Doran tentara prometê-la a Ben Beesbury, um fidalgo menor que se não tinha oitenta anos pouco faltava, e que era tão cego quanto desdentado.
Beesbury morrera alguns anos mais tarde. Isso lhe dava algum pequeno conforto na presente situação; não podia ser obrigada a se casar com ele se o homem estava morto, e o Senhor da Travessia voltara a se casar; portanto, desse também estava salva. Contudo, Elden Estermont continua vivo e por se casar. Bem como Lorde Rosby e Lorde Grandison. Este última chamavam Grandison Barbagris, mas quando Arianne o conheceu, sua barba havia se tornado branca como a neve. No banquete de boas-vindas, adormecera entre o prato de peixe e o de carne. Drey tinha dito que aquilo era adequado, visto que seu símbolo era um leão adormecido. Garin a desafiara a ver se conseguia lhe dar um nó na barba sem acordá-lo, mas Arianne se conteve. Grandison lhe pareceu então um tipo agradável, menos lamuriento do que Estermont e mais robusto do que Rosby. Contudo, nunca se casaria com ele. Nem mesmo se Hotah se puser atrás de mim com seu machado.
Ninguém veio se casar com ela no dia seguinte, nem no outro. Cedra também não regressou. Arianne tentou conquistar Morra e Mellei da mesma forma, mas não funcionou. Se tivesse conseguido apanhar uma delas sozinha podia ter alguma esperança, mas, juntas, as irmãs eram uma muralha. Àquela altura, a princesa teria achado bem-vindo o toque de um ferro quente ou uma noite passada na roda. A solidão era capaz de levá-la à loucura. Mereço o machado de um carrasco por aquilo que fiz , mas ele nem sequer me dará isso. Mais depressa me trancará e esquecerá que um dia existi. Perguntou a si mesma se Meistre Caleotte estaria elaborando uma proclamação para nomear o irmão Quentyn herdeiro de Dorne.
Os dias chegaram e partiram, um atrás do outro, tantos, que Arianne perdeu a conta do tempo que passara aprisionada. Deu por si passando cada vez mais tempo na cama, até chegar ao ponto de não se levantar de todo, exceto para usar a latrina. As refeições que os criados traziam arrefeciam, intocadas. Arianne dormia e acordava, e voltava a dormir, e continuava a se sentir cansada demais para se levantar. Rezava à Mãe pedindo misericórdia, e ao Guerreiro em busca de coragem, e depois dormia mais um pouco. Novas refeições substituíam as antigas, mas ela também não as comia. Uma dia em que se sentiu especialmente forte, levou toda a comida até a janela e a atirou para o pátio, para que não a tentasse. O esforço a deixou exausta, e, assim, engatinhou para a cama e passou meio dia dormindo.
E então chegou um dia em que uma mão rude a acordou, sacudindo-a pelo ombro.
- Pequena princesa - disse uma voz que conhecia desde a infância. - Levante-se e se vista. O príncipe a chama - Areo Hotah, seu velho amigo e protetor, estava em pé junto dela. Falando com ela. Arianne sorriu, sonolenta. Era bom ver aquele rosto vincado, cheio de cicatrizes, e ouvir sua voz áspera e profunda e o forte sotaque de Norvos.
- O que fez com Cedra?
- O príncipe a mandou para os Jardins de Água - Hotah respondeu. - Ele lhe contará. Mas, primeiro, tem de se lavar e comer.
Devia estar com o aspecto de uma miserável criatura. Arianne saiu com dificuldade da cama, fraca como uma gatinha.
- Mande Morra e Mellei prepararem um banho - disse-lhe - e diga a Timoth que me traga um pouco de comida. Nada pesado. Um pouco de caldo frio e um pedaço de pão e fruta.
- Sim - Hotah aquiesceu, e ela percebeu que nunca ouvira som mais adorável.
O capitão esperou lá fora enquanto a princesa se banhava, escovava os cabelos e comia frugalmente um pouco do queijo e da fruta que lhe tinham trazido. Bebeu um pouco de vinho para sossegar o estômago. Estou assustada, percebeu, pela primeira vez na vida sinto medo do meu pai. Aquilo a fez rir tanto que deixou sair vinho pelo nariz. Quando chegou o momento de se vestir, escolheu um vestido simples de linho cor de marfim, com gavinhas e uvas purpúreas bordadas em volta das mangas e do corpete. Não colocou joias. Tenho de me mostrar casta, humilde e arrependida. Preciso me atirar aos pés dele e lhe suplicar perdão, caso contrário posso nunca mais ouvir outra voz humana.
Quando finalmente ficou pronta, o ocaso já caíra. Arianne julgou que Hotah a levaria até a Torre do Sol para ouvir o julgamento do pai, mas, em vez disso, a entregou no aposento privado do pai, onde foram encontrar Doran Martell sentado atrás de uma mesa de cryvasse, com as pernas gotosas colocadas sobre um apoio almofadado para os pés. Estava brincando com um elefante de ônix, virando-o nas mãos avermelhadas e inchadas. O príncipe parecia pior do que alguma vez o vira. Tinha o rosto pálido e entumecido, as articulações tão inflamadas que lhe doía só de olhar para elas. Vê-lo assim fez que o coração de Arianne se voltasse para o pai... Mas, sem que soubesse por que, não conseguiu se ajoelhar e suplicar, como tinha planejado.
- Pai - preferiu dizer.
Quando ele ergueu a cabeça para olhá-la, tinha os olhos escuros enevoados de dor. Será a gota? Perguntou Arianne a si mesma. Ou serei eu?
- Um povo estranho e sutil, os volantenos - murmurou, enquanto colocava o elefante de lado. - Vi Volantis uma vez, a caminho de Norvos, onde me encontrei pela primeira vez com Mellario. Os sinos estavam tocando e os ursos dançavam nos degraus. Areo deve se lembrar desse dia.
- Lembro -ecoou Areo Hotah em sua voz profunda. - Os ursos dançavam e os sinos tocavam, e o príncipe vinha vestido de vermelho, dourado e laranja. Minha senhora me perguntou quem era aquele que tanto brilhava.
Príncipe Doran abriu um sorriso tristonho.
- Deixe-nos, capitão.
Hotah bateu com o cabo de seu machado no chão, girou sobre os calcanhares e se retirou.
- Eu lhes disse para colocar um tabuleiro de cryvasse em seus aposentos - o pai falou quando ficaram sozinhos.
- Com quem pretendia que eu jogasse? - por que ele está falando de um jogo? Terá a gota roubado seus miolos?
- Consigo. Às vezes é melhor estudar um jogo antes de se tentar jogá-lo. Quão bem conhece o jogo, Arianne?
- Suficientemente bem para jogar.
- Mas não para ganhar. Meu irmão gostava do combate pelo combate, mas eu só jogo os jogos que posso ganhar. Cryvasse não é para mim - estudou o rosto dela por um longo momento antes de perguntar: - Por quê? Diga-me isso, Arianne. Diga-me por quê.
- Pela honra de nossa Casa - a voz do pai a deixara zangada. Soava tão triste, tão exausto, tão fraco. É um príncipe!, quis gritar. Devia estar em fúria! - Sua docilidade envergonha Dorne inteira, pai. Seu irmão foi para Porto Real em seu lugar, e eles o mataram!
- E acha que não sei disso? Oberyn está comigo cada vez que fecho os olhos.
- Dizendo-lhe para abri-los, sem dúvida - Arianne sentou-se diante do tabuleiro de cryvasse, em frente ao pai.
- Não lhe dei licença para se sentar.
- Então chame Hotah e me açoite por minha insolência. É o Príncipe de Dorne. Pode fazê-lo - tocou uma das peças de cryvasse, o cavalo pesado. - Apanhou Sor Gerold?
Ele balançou a cabeça.
- Bem gostaria que tivéssemos apanhado. Foi uma tola por tê-lo metido nisto. Estrela Negra é o homem mais perigoso de Dorne. Você e ele nos causaram um grande dano.
Arianne quase sentiu receio de perguntar.
- Myrcella. Ela está...?
- ... morta? Não, embora Estrela Negra tenha feito seu melhor. Todos os olhos estavam no seu cavaleiro branco, de modo que ninguém parece ter grandes certezas sobre o que aconteceu exatamente, mas parece que o cavalo dela recuou diante do dele no último instante, impedindo-o de cortar o topo do crânio da garota. Mesmo assim, o golpe abriu-lhe o rosto até o osso e cortou-lhe a orelha direita. Meistre Caleotte conseguiu salvar-lhe a vida, mas não há cataplasma ou poção capaz de lhe restaurar o rosto. Ela era minha protegida, Arianne. Prometida ao seu irmão e sob a minha proteção. Desonrou-nos a todos.
- Nunca lhe desejei nenhum mal - Arianne insistiu. - Se Hotah não tivesse interferido...
- ... teria coroado Myrcella rainha, para iniciar uma rebelião contra o irmão. Em vez de uma orelha, teria perdido a vida.
- Só se perdêssemos.
- Se? A palavra é quando. Dorne é o menos populoso dos Sete Reinos. O Jovem Dragão achou por bem fazer todos os nossos exércitos maiores quando escreveu aquele seu livro, para tornar sua conquista mais gloriosa na mesma proporção, e nós achamos por bem regar a semente que ele plantou e deixar nossos inimigos nos julgarem mais poderosos do que somos. Mas uma princesa devia conhecer a verdade. O valor é fraco substituto para os números. Dorne não pode esperar ganhar uma guerra contra o Trono de Ferro. Sozinho, não. E, no entanto, pode bem ser isto o que você nos deu. Sente-se orgulhosa? - o príncipe não lhe deu tempo para responder. - O que farei com você, Arianne?
Parte dela quis dizer perdoe-m e, mas suas palavras a tinham ferido demais.
- Ora, faça o que sempre faz. Nada.
- Você torna difícil a um homem engolir sua fúria.
- É melhor parar de engolir, é provável que se engasgue com ela - o príncipe não respondeu. - Diga-me como soube de meus planos.
- Sou o Príncipe de Dorne. Os homens procuram cair em minhas graças.
Alguém contou.
- Sabia, e no entanto permitiu que eu fugisse com Myrcella. Por quê?
- Este foi o meu erro, e revelou ser um erro grave. É minha filha, Arianne. A garotinha que costumava correr para mim quando esfolava o joelho. Achei difícil acreditar que conspiraria contra mim. Tive de saber a verdade.
- Agora sabe. Quero saber quem me denunciou.
- Eu também iria querer se estivesse em seu lugar.
- Não me dirá?
- Não consigo imaginar nenhuma razão para fazê-lo.
- Acha que não sou capaz de descobrir a verdade sozinha?
- Tente à vontade. Até que descubra, terá de desconfiar de todos eles... e ter um pouco de desconfiança é bom para uma princesa - Príncipe Doran suspirou. - Desilude-me, Arianne.
- Diz o corvo ao melro. Há anos que me desaponta, pai - não pretendera ser tão franca com ele, mas as palavras jorravam. Pronto, agora j á falei.
- Eu sei. Sou brando, fraco e cauteloso demais, clemente demais com nossos inimigos. Neste momento, contudo, você precisa de um pouco dessa clemência, parece-me. Devia estar suplicando meu perdão, em vez de me provocar mais.
- Só peço clemência para meus amigos.
- Que nobre da sua parte.
- O que eles fizeram foi por me amarem. Não merecem morrer em Sinistres Gris.
- Por acaso, concordo. A exceção de Estrela Negra, seus outros conspiradores não foram mais do que crianças tontas, Apesar disso, aquilo não foi um inofensivo jogo de cryvasse. Você e seus amigos estavam brincando de traições. Eu podia ter mandado cortar-lhes a cabeça.
- Podia, mas não fez. Dayne, Dalt, Santagar... Não, nunca se atreveria a transformar essas Casas em inimigos.
- Atrevo-me a mais do que você sonha... Mas deixemos isso de lado. Sor Andrey foi enviado para Norvos a fim de servir a senhora sua mãe durante três anos. Garin passará os próximos dois anos em Tyrosh. De sua família entre os órfãos recebi dinheiro e reféns. Senhora Sylva não foi punida por mim, mas está em idade de se casar. O pai a despachou para Pedraverde, a fim de desposar Lorde Estermont. Quanto a Arys Oakheart, escolheu seu próprio destino, e o enfrentou corajosamente. Um cavaleiro da Guarda Real... O que foi que lhe fizeste?
- Fodi-o, pai. Ordenou-me que entretivesse nossos nobres visitantes, se bem me lembro.
O rosto dele enrubesceu.
- Bastou isso?
- Disse-lhe que, uma vez que Myrcella fosse rainha, nos daria licença para casar. Ele me queria para esposa.
- Fez tudo o que pôde para impedir que ele desonrasse seus votos, certamente - disse o pai.
Foi a vez dela corar. A sedução de Sor Arys levara meio ano. Embora ele afirmasse ter conhecido outras mulheres antes de vestir o branco, ela nunca teria adivinhado pela forma como agia. Suas carícias eram desajeitadas, os beijos, nervosos, e da primeira vez que se deitaram juntos ele derramou a semente na sua coxa quando ela o guiava para si com a mão. Pior, foi consumido pela vergonha. Se tivesse um dragão por cada vez que ele sussurrava “Não devíamos fazer isso” estaria mais rica do que os Lannister. Terá ele atacado Areo Hotah na esperança de me salvar? Perguntou Arianne a si mesma. Ou teria feito para que eu fugisse, para lavar a desonra com o sangue de sua vida?
- Ele me amava - ouviu a si mesma dizendo. - Morreu por mim.
- Se assim foi, pode bem ser apenas o primeiro de muitos. Você e suas primas queriam a guerra. Podem ter o que desejam. Outro cavaleiro da Guarda Real aproxima-se lentamente de Lançassolar neste exato momento. Sor Balon Swann me traz a cabeça da Montanha. Meus vassalos têm andado atrasando-o, para me arranjar algum tempo. Os Wyl retiveram-no no Caminho do Espinhaço durante oito dias, caçando com e sem falcões, e Lorde Yronwood o banqueteou por uma quinzena quando ele emergiu das montanhas. Atualmente está na Penha, onde Senhora Jordayne organizou jogos em sua honra. Quando chegar a Monte Espírito, encontrará Senhora Toland, decidido a ultrapassá-la. Mas mais cedo ou mais tarde, Sor Balon chegará a Lançassolar, e quando isso acontecer ele esperará ver Princesa Myrcella... e Sor Arys, seu Irmão Juramentado. O que lhe diremos, Arianne? Deverei dizer que Oakheart pereceu num acidente de caça, ou sobre uma queda em alguma escada escorregadia? Talvez Arys tenha ido nadar nos Jardins de Água, escorregado no mármore, batido com a cabeça e morrido afogado?
- Não - Arianne respondeu. - Diga que ele morreu defendendo sua pequena princesa. Diga a Sor Balon que Estrela Negra tentou matá-la e Sor Arys se interpôs entre ambos e lhe salvou a vida - era assim que os cavaleiros brancos da Guarda Real deviam morrer, dando a vida por aqueles que tinham jurado proteger. - Sor Balon pode ficar desconfiado, como você ficou quando os Lannister mataram sua irmã e os filhos, mas não terá provas...
-... até falar com Myrcella. Ou terá essa corajosa criança de sofrer também um trágico acidente? Se assim for, isso significará a guerra. Não haverá mentira que salve Dorne da fúria da rainha se sua filha perecer enquanto estiver aos meus cuidados.
Ele precisa de mim, Arianne compreendeu. Foi por isso que me mandou buscar.
- Eu podia dizer a Myrcella o que dizer, mas por que o faria?
Um espasmo de ira percorreu o rosto do pai.
- Previno-lhe, Arianne, estou sem paciência.
- Comigo? - isso é tão típico. - Com Lorde Tywin e os Lannister sempre teve a indulgência de Baelor, o Abençoado, mas para seu sangue, nada.
- Confunde indulgência com paciência. Trabalhei para a queda de Tywin Lannister desde o dia em que me informaram sobre Elia e os filhos. Era minha esperança despi-lo de tudo o que tinha de mais querido antes de matá-lo, mas ao que parece seu filho anão roubou-me este prazer. Retiro um certo consolo em saber que morreu uma morte cruel nas mãos do monstro que ele próprio gerou. Mas não importa. Lorde Tywin uiva nas profundezas do inferno... Onde milhares irão se juntar a ele se a sua loucura se transformar em guerra - o pai fez um trejeito, como se a própria palavra lhe fosse dolorosa. - É isso que você quer?
A princesa recusou-se a se deixar intimidar.
- Quero minhas primas libertadas. Quero meu tio vingado. Quero os meus direitos.
- Os seus direitos?
- Dorne.
- Terá Dorne depois que eu morrer. Está assim tão ansiosa por se ver livre de mim?
- Eu devia lhe devolver essa pergunta, pai. Há anos que tenta se ver livre de mim.
- Isto não é verdade.
- Não? Vamos perguntar ao meu irmão?
- Trystane?
- Quentyn.
- O que há com ele?
- Onde está?
- Com a hoste de Lorde Yronwood no Caminho do Espinhaço.
- Mente bem, pai, admito. Nem sequer pestanejou. Quentyn foi para Lys.
- De onde tirou essa ideia?
- Um amigo me disse - ela também podia ter segredos.
- Seu amigo mentiu. Dou-lhe minha palavra, seu irmão não foi para Lys. Juro pelo sol e lança e pelos Sete.
Arianne não se deixava enganar com tanta facilidade,
- Então é Myr? Tyrosh? Sei que ele está em algum lugar para lá do mar estreito, contratando mercenários para me roubar o direito de nascença.
O rosto do pai tornou-se sombrio.
- Essa desconfiança não a honra, Arianne. Devia ser Quentyn a conspirar contra mim. Mandei-o para longe quando não passava de uma criança, jovem demais para compreender as necessidades de Dorne. Anders Yronwood foi mais pai para ele do que eu, e no entanto seu irmão se mantém leal e obediente.
- E por que não? Favorece-o, sempre foi assim. Ele se parece com você, pensa como você, que pretende lhe dar Dorne, não se incomode em negá-lo. Eu li sua carta - as palavras ainda ardiam brilhantes como fogo em sua memória. -“Um dia ocupará o meu lugar e governará Dorne inteira” escreveu a ele. Diga-me, pai, quando foi que decidiu me deserdar? Foi no dia em que Quentyn nasceu, ou quando eu nasci? O que lhe fiz para fazer que me odiasse tanto? - para sua fúria, havia lágrimas em seus olhos.
- Nunca odiei você - a voz do Príncipe Doran era frágil como pergaminho e cheia de dor. - Arianne, não compreende.
- Nega ter escrito essas palavras?
- Não. Isso aconteceu quando Quentyn foi para Yronwood. Sim, pretendia que ele me sucedesse. Tinha outros planos para você.
- Oh, sim - ela retrucou, cheia de escárnio - e que planos! Gyles Rosby. Ben Cego Beesbury. Barbagris Grandison. Eram esses os seus planos.
Não lhe deu nenhuma chance de responder.
- Sei que é meu dever dar um herdeiro a Dorne, nunca me esqueci disso. Teria casado, e de bom grado, mas os homens que me trouxe eram insultos. Com cada um deles cuspiu em mim. Se alguma vez sentiu algum amor por mim, por que me oferecer a Walder Frey?
- Porque sabia que o desdenharia. Eu tinha de ser visto tentando encontrar um consorte para você depois de chegar a uma certa idade, caso contrário teria levantado suspeitas, mas não me atrevi a lhe trazer um homem que pudesse aceitar. Estava prometida, Arianne.
Prometida? Arianne o fitou, incrédula.
- O que está dizendo? É mais uma mentira? Nunca disse...
- O pacto foi selado em segredo. Pretendia lhe contar quando tivesse idade suficiente... Quando chegasse à idade adulta, pensava, mas...
- Tenho vinte e três anos, há sete que sou uma mulher-feita.
- Eu sei. Se a mantive na ignorância durante esse tempo, foi só para protegê-la. Arianne, sua natureza... Para você, um segredo era apenas uma história especial para murmurar a Garin e Tyene à noite, na cama. Garin mexerica como só os órfãos são capazes, e Tyene não guarda segredos de Obara e da Senhora Nym . E se elas soubessem... Obara gosta de vinho demais, e Nym é muito chegada aos gêmeos Fowler. E a quem os gêmeos Fowler poderiam fazer confidências? Não podia correr o risco.
Sentiu-se perdida, confusa. Prometida. Eu fui prometida.
- Quem é? A quem estive prometida todos esses anos?
- Não importa. Ele está morto.
Aquilo a deixou mais desconcertada do que nunca.
- Os velhos são tão frágeis. Foi um quadril quebrado, um resfriado, a gota?
- Foi um vaso de ouro derretido. Nós, os príncipes, fazemos nossos cuidadosos planos, e os deuses põem tudo abaixo - Príncipe Doran fez um gesto fatigado com uma mão irritada e vermelha. - Dorne será seu. Tem a minha palavra quanto a isto, se minha palavra ainda tiver algum significado para você. Seu irmão Quentyn tem um caminho mais duro a percorrer.
- Que caminho? - Arianne o olhou com suspeita. - O que está guardando para si? Que os Sete me salvem, m as estou farta de segredos. Conte-me o resto, pai... Ou então nomeie Quentyn seu herdeiro, mande chamar Hotah e seu machado e deixe-me morrer ao lado de minhas primas.
- Pensa mesmo que eu faria mal às filhas de meu irmão? - o pai fez uma careta. - A Obara, Nym e Tyene nada falta, exceto a liberdade, e Ellaria e as filhas estão alegremente escondidas nos Jardins de Água. Dorea anda por lá, sorrateira, derrubando laranjas das árvores com sua maça de armas, e Elia e Obella transformaram-se no terror das lagoas - suspirou. - Não se passou assim tanto tempo desde que era você quem brincava naquelas lagoas. Costumava montar nos ombros de uma garota mais velha... Uma garota alta, de cabelos amarelos como palha...
- Jeyne Fowler, ou a irmã Jennelyn - tinham se passado anos sem que Arianne pensasse nisso. - Oh, e Frynne, o pai era um ferreiro. Ela tinha cabelos castanhos. Mas Garin era meu preferido. Quando montava Garin, ninguém conseguia nos derrotar, nem mesmo Nym e aquela garota tyroshi de cabelos verdes.
- Essa garota de cabelos verdes era a filha do Arconte. Esperava-se que eu a enviasse para Tyrosh no lugar dela. Teria servido o Arconte como copeira e se encontrado em segredo com o seu prometido, mas sua mãe ameaçou se ferir se eu lhe roubasse mais algum filho, e eu... Não pude fazer tal coisa.
A história cada vez mais se torna estranha.
- Foi para lá que Quentyn foi? Para Tyrosh, a fim de cortejar a filha de cabelos verdes do Arconte?
O pai pegou uma peça de cryvasse.
- Tenho de saber como chegou ao seu conhecimento que Quentyn estava no estrangeiro. Seu irmão partiu com Cletus Yronwood, Meistre Kedry e três dos melhores jovens cavaleiros do Lorde Yronwood numa longa e perigosa viagem, com um resultado incerto no fim. Foi para nos devolver aquilo que é desejo de nosso coração.
Ela estreitou os olhos.
- O que é o desejo de nosso coração?
- A vingança - a voz dele era baixa, como se tivesse receio de que alguém estivesse ouvindo. - A justiça - Príncipe Doran pressionou o dragão de ônix contra a palma da mão dela com seus dedos inchados e gotosos, e murmurou: - Fogo e sangue.  

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